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Guias e Dicas
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Victor - Hugo - Os - Miseraveis, Notas de estudo de Astronomia

Texto integral de Os Miseráveis

Tipologia: Notas de estudo

2018
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Compartilhado em 03/07/2018

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Baixe Victor - Hugo - Os - Miseraveis e outras Notas de estudo em PDF para Astronomia, somente na Docsity! DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo Sobre nós: O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.Info ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link. Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível. XI — Christus nos Liberavit XII — A ociosidade do senhor Barmatabois XIII — Solução de algumas questões de polícia municipal LIVRO SEXTO — JAVERT I — Princípio de repouso II — Como Jean se pode tornar Champ LIVRO SÉTIMO — O PROCESSO DE CHAMPMATHIEU I — A Irmã Simplícia II — Perspicácia de mestre Scaufflaire III — Tempestade num crânio IV — Formas de sofrimento durante o sono V — Concerto nas rodas VI — A irmã Simplícia em provação VII — Depois de chegar ao seu destino, o viajante predispõe-se para tornar a partir VIII — Entrada de favor IX — Um lugar onde se vão formar convicções X — O sistema da negativa XI — Champmathieu cada vez mais admirado LIVRO OITAVO — DESFORRA I — Em que espelho Madelaine contempla os cabelos II — Fantine feliz III — Javert satisfeito IV — A autoridade readquire os seus direitos V — Sepultura apropriada SEGUNDA PARTE — COSETTE LIVRO PRIMEIRO — WATERLOO I — O que encontra quem vem de Wivelíes II — Hougomont III — O 18 de Julho de 1815 IV — A V — «O quid obscurum» das batalhas VI — Quatro horas da tarde VII — Napoleão de bom humor VIII — O imperador faz uma pergunta ao guia Lacoste IX — O imprevisto X — A planura do Mont-Saint-Jean XI — Mau guia para Napoleão, bom guia para Bulow XII — A guarda XIII — A catástrofe XIV — O último quadrado XV — Cambronne XVI — Quot libras in duce? XVII — Deve achar-se que Waterloo foi bom? XVIII — Recrudescência do direito divino XIX — O campo de batalha durante a noite LIVRO SEGUNDO — A NAU «ORION» I — O número 24.601 torna-se o 9.430 II — Onde se lêem dois versos cujo autor é talvez o diabo III — De como era preciso que a grilheta tivesse passado por alguma operação preparatória para assim se quebrar com uma só martelada LIVRO TERCEIRO — CUMPRIMENTO DA PROMESSA FEITA À MORIBUNDA I — A falta de água em Montfermeil II — Dois retratos completos III — Vinho para os homens e água para os cavalos IV — Entra em cena uma boneca V — A pequena sozinha VI — O que prova talvez a inteligência de Boulatruelle VII — Cosette no meio da escuridão ao lado dum desconhecido VIII — Desgosto de recolher em casa um pobre que é talvez rico IX — Thenardier em exercício X — Quem procura o melhor, às vezes encontra o pior XI — Reaparece o número 9.430 e como Cosette o ganha na lotaria LIVRO QUARTO — O CASEBRE DE GORBEAU I — Mestre Gorbeau II — Ninho de um mocho e de uma cotovia III — Duas desgraças juntas fazem uma ventura IV — No que repara a principal inquilina V — Barulho que faz uma moeda de cinco francos caindo no chão LIVRO QUINTO — PARA CAÇADA TENEBROSA MATILHA SILENCIOSA I — Ziguezagues estratégicos II — É uma felicidade passarem veículos pela ponte de Austerlitz III — Veja-se a planta de Paris em 1827 IV — Evasão às apalpadelas V — O que seria impossível com a iluminação a gás VI — Princípio de um enigma VII — Continuação do enigma VIII — Complica-se o enigma IX — O homem do guizo X — Onde se explica como Javert bateu o monte e não encontrou caça LIVRO SEXTO — O PETIT PICPUS I — Rua Picpus, número 62 II — A obediência de Martin Verga III — Severidades IV — Alegrias V — Distracções VI — O pequeno convento VII — Vários contornos desta sombra VIII — Post corda lapides IX — Um século sob um hábito X — Origem de adoração perpétua XI — O fim do Petit-Picpus LIVRO SÉTIMO — PARÊNTESIS I — O convento considerado como ideia abstracta II — O convento considerado como facto histórico III — Sob que condição se pode respeitar o passado IV — O convento à luz dos princípios V — A oração VI — Bondade absoluta da oração VII — Precauções que devem adoptar-se na censura VIII — Fé a lei LIVRO OITAVO — OS CEMITÉRIOS ACEITAM O QUE LHES DÃO I — Onde se trata do modo de entrar no convento II — Fauchelevent na presença da dificuldade III — Madre Inocência IV — Onde Jean Valjean faz acreditar que leu Austin Castillejo V — Não basta a embriaguez para se ser imortal VI — Entre quatro tábuas VII — Onde se encontra a origem da frase: «não perder a carta» VIII — Interrogatório bem sucedido IX — Clausura TERCEIRA PARTE — MÁRIO LIVRO PRIMEIRO — PARIS ESTUDADO NA SUA MAIS TÉNUE PARCELA I — Parvulus II — Alguns dos seus sinais particulares III — Como é agradável IV — Como pode ser útil V — As suas fronteiras VI — Fragmento de história VII — O gaiato podia ocupar um lugar nas classificações da Índia VIII — Onde se narra um dito galante do último rei IX — A velha alma da Gália X — Ecce Paris, ecce homo XI — Escarnecer, reinar XII — O futuro latente no povo XIII — Gavroche LIVRO SEGUNDO — O VELHO BURGUÊS I — Noventa anos e trinta e dois dentes II — Tal dono, tal casa III — Lucas Espírito IV — Aspirante centenário V — Biscainho e Nicolette VI — Onde se entrevê a Magnon e os seus dois pequenos VII — Regra: Não receber ninguém senão à noite VIII — Nem sempre dois fazem um par LIVRO TERCEIRO — O AVÔ E O NETO I — Um antigo salão II — Um dos espectros vermelhos daquele tempo III — Requiescat IV — Fim do salteador V — Utilidade de ouvir missa para vir a ser-se revolucionário VI — Quanto vale ter encontrado um sacristão VII — História de saias VIII — Mármore contra granito LIVRO QUARTO — OS AMIGOS DO ABC I — Um grupo que esteve quase a tornar-se histórico II — Oração fúnebre de Blondeau, por Bossuet III — Surpresas de Mário IV — A sala interior do café Musain V — Amplia-se o horizonte VI — Rés Augusta LIVRO QUINTO — EXCELÊNCIA DO INFORTÚNIO I — Mário indigente II — Mário pobre III — Mário engrandecido IV — O senhor Mabeuf V — Pobreza, boa vizinha da miséria VI — O substituto LIVRO SEXTO — CONJUNÇÃO DE DUAS ESTRELAS I — A alcunha: modos de formar nomes de família II — Lux facta est III — Efeitos da Primavera IV — Princípio de uma grave doença V — Caem vários raios sobre «Mame» Bougon VI — Mário prisioneiro VII — Aventuras da letra U entregue a conjecturas VIII — Até os próprios inválidos podem ser felizes IX — Eclipsa LIVRO SÉTIMO — PATRON-MINETTE I — As minas e os mineiros II — O «Bas-fond» III — Babet, Gueulemer, Claquesous e Montparnasse III — Enquanto Cosette e Toussaint dormiam IV — Excesso de zelo de Gavroche QUINTA PARTE — JEAN VALJEAN LIVRO PRIMEIRO — A GUERRA ENTRE QUATRO PAREDES I — O Charybdes do arrabalde de Santo António e o Scylla do arrabalde do Templo II — Que se há-de fazer no abismo senão conversar? III — Luz e sombra IV — Cinco de menos, um de mais V — O horizonte que se avista do alto de uma barricada VI — Mário desvairado, Javert, lacónico VII — Agrava-se a situação VIII — Os artilheiros fazem-se tomar a sério IX — Emprego da habilidade de caçador furtivo e daquela pontaria certeira que influi na sentença de 1796 X — Aurora XI — Pontaria certeira que não mata ninguém XII — A desordem partidária da ordem XIII — Clarões efémeros XIV — Onde se terá ocasião de saber o nome da amante de Enjolras XV — Gavroche fora da barricada XVI — De como o irmão se torna pai XVII — «Mortuus pater filium moritorum expectat» XVIII — O abutre convertido em presa XIX — Vingança de Jean Valjean XX — Os mortos têm razão e os vivos também XXI — Os heróis XXII — Palmo a palmo XXIII — Orestes em jejum e Pílades embriagado XXIV — Prisioneiro LIVRO SEGUNDO — O INTESTINO DE LEVIATHAN I — A terra empobrecida pelo mar II — História antiga dos canos III — Bruneseau IV — Pormenores ignorados V — Progresso actual VI — Progresso futuro LIVRO TERCEIRO — A LAMA, MAS TAMBÉM A ALMA I — A cloaca e as suas maravilhas II — Explicação III — O homem perseguido IV — Também ele carrega com a sua cruz V — Existe na areia como na mulher certa finura pérfida VI — O sorvedouro VII — Às vezes naufraga-se onde se julga desembarcar VIII — A aba do casaco rasgada IX — Onde Mário passa por morto aos olhos de quem não é fácil de enganar X — Regresso do filho pródigo XI — Abalo no absoluto XII — O avô LIVRO QUARTO — JAVERT DESVAIRADO I — Reflexões de Javert LIVRO QUINTO — O AVÔ E O NETO I — Onde se torna a ver a árvore da chapa de zinco II — Onde Mário após a guerra civil, se prepara para a guerra doméstica III — Mário ataca IV — Onde Mademoiselle Gillenormand achou que os embrulhos de Fauchelevent nada tinham de inconvenientes V — Como uma floresta pode ser mais segura depositária de dinheiro do que um tabelião VI — Como os dois velhos, cada um a seu modo, empregam toda a sua diligência em tornar Cosette feliz VII — Efeitos de sonho no meio da ventura VIII — Dois homens impossíveis de descobrir LIVRO SEXTO — A NOITE FOI PASSADA EM CLARO I — O dia 16 de Fevereiro de 1833 II — Jean Valjean continua de braço ao peito III — A inseparável IV — Combate sem fim LIVRO SÉTIMO — A DERRADEIRA GOTA DO CÁLICE I — O sétimo círculo e o oitavo céu II — Escuridão que pode encerrar uma revelação LIVRO OITAVO — O DECRESCIMENTO CREPUSCULAR I — A sala de baixo II — Retirada gradual III — Recordações do jardim da rua Plumet IV — A atracção e a extinção LIVRO NONO — NOITE ESCURÍSSIMA, BRILHANTE AURORA I — Compaixão para os desgraçados, mas indulgência para os felizes II — Derradeiro bruxulear da lâmpada III — Uma pena pesada para quem levantou o carro de Fauchelevent IV — Tinta que, em vez de escurecer, aclara V — Noite, após a qual sucede o dia VI — A erva esconde e a chuva apaga NOTAS Enquanto exis r nas leis e nos costumes uma organização social que cria infernos ar ficiais no seio da civilização, juntando ao des no, divino por natureza, um fatalismo que provém dos homens; enquanto não forem resolvidos os três problemas fundamentais a degradação do homem pela pobreza, o aviltamento da mulher pela fome, a atrofia da criança pelas trevas; enquanto, em certas classes, con nuar a asfixia social ou, por outras palavras e sob um ponto de vista mais claro, enquanto houver no mundo ignorância e miséria, não serão de todo inúteis os livros desta natureza. Hauteville House, 1862 tempo depois, Carlos Myriel, surpreendido, recebeu a no cia de que havia sido nomeado bispo de Digne. Até que ponto, porém, era verdade o que se dizia rela vamente à primeira parte da existência daquele homem? Ninguém o sabia, porque poucas famílias haviam conhecido a dele antes da revolução. Apesar de bispo e mesmo por o ser, Myriel teve de resignar-se à sorte de todas as pessoas que chegam a uma cidade pequena, onde é maior o número de bocas que falam do que cabeças que pensam. No fim de tudo, porém, as conversas em que o seu nome andava envolvido, não passavam de boatos. Fosse como fosse, decorridos nove anos de episcopado e de residência em Digne, todos esses mexericos, que nos primeiros tempos são o objecto constante das conversas entre o povo das terras pequenas, caíram em tão profundo esquecimento, que já ninguém ousava repeti-los, nem sequer recordar-se deles. O reverendo Myriel veio para Digne acompanhado de sua irmã Bap s na, mais nova do que ele dez anos e uma criada da mesma idade da irmã, chamada Magloire, a qual passara a exercer as duplas funções de criada grave da senhora e dispenseira do novo bispo. Alta, magra, pálida, delicada e afável, Bap s na, embora se não pudesse chamar o po da mulher veneranda, porque para isso era necessário que fosse mãe, realizava, todavia, a mais completa expressão da palavra respeitável. Nunca fora bonita, mas a sua existência, que se resumia numa longa série de obras de caridade, reves ra-se, por fim, de uma espécie de alvura luminosa que lhe dava, depois de velha, aquilo a que poderemos chamar a beleza da bondade. O que na sua mocidade fora magreza, tornou- se na velhice em transparência, através da qual, como de um véu, se entrevia um anjo. Era em si mesma mais que uma virgem, era uma alma. O seu vulto parecia feito de sombra; apenas o corpo necessário para determinar o sexo; era pequena porção de matéria contendo uma chama celeste; olhos grandes e sempre fitos no chão, um pretexto para uma alma andar na terra. Magloire era uma velhinha baixa e muito gorda, sempre atarefada, sempre arquejante, não só por efeito da sua muita ac vidade, mas em consequência dos seus padecimentos asmáticos. Apenas chegou a Digne, o novo prelado tomou posse do palácio episcopal, com todas as honras concedidas pelos decretos imperiais, que classificam o bispo imediatamente após o marechal de campo. O maire e o presidente foram logo cumprimentá-lo, e ele, por sua vez, fez o mesmo ao general e ao prefeito. Depois de ver o novo prelado estabelecido no governo espiritual da diocese, a cidade esperou pelos seus actos. II — O abade Myriel torna-se Monsenhor Bemvindo O paço episcopal de Digne estava situado junto do hospital, era um vasto edi cio de pedra de cantaria, mandado construir no princípio do século passado por Monsenhor Henrique Puget, doutor em teologia pela faculdade de Paris, abade de Simore e bispo de Digne em 1712. Este edi cio era um verdadeiro domicílio senhorial, em que tudo respirava grandeza; os aposentos par culares do bispo, os salões, os quartos, o amplo pá o de recreio com o seu claustro em volta, segundo a an ga moda floren na e as magníficas árvores do jardim. Na sala de jantar, uma extensa e sumptuosa galeria no rés-do-chão, cujas janelas davam para os jardins, vera lugar o solene banquete oferecido pelo bispo Puget em 29 de Julho de 1714, ao arcebispo príncipe de Embrun, Carlos Brulaít de Genlis, António de Mesgrigny, capuchinho, bispo de Grasse, Filipe de Vendome, grão-prior de França, abade de Santo Honorato de Lérins, Francisco de Berton de Grillon, bispo-barão de Vence, César de Sabran de Forcalquier, bispo e senhor de Glandeve e a Jean Soanen, da congregação do oratório, pregador ordinário do rei e bispo e senhor de Senez. A sala achava-se decorada com os retratos destes sete reverendos personagens e em cima de uma mesa de mármore branco via-se gravada em letras de oiro a memorável data de 29 de Julho de 1714. O hospital era um pequeno edifício de um só andar, com um jardinzinho. Três dias depois da sua chegada, o bispo foi visitar o hospital. Terminada a visita, pediu ao director que o acompanhasse ao paço. — Senhor director — perguntou-lhe — quantos doentes tem a seu cargo? — Vinte e seis, Monsenhor. — Foi os que contei — disse o bispo. — As camas estão muito apertadas e juntas. — Também reparei nisso. — As enfermarias são muito pequenas e têm falta de arejamento. — Também me pareceu. — E o jardim mal chega para os convalescentes passearem quando está bom tempo. — Assim é, com efeito. — Em ocasiões de epidemias, como este ano, em que houve muitos casos de fo, não sabemos como acomodar os doentes. — Também me ocorreu isso. — Mas, senhor bispo, não podemos fazer outra coisa senão resignarmo-nos — concluiu o director. Esta conversa desenrolava-se na sala de jantar ou galeria do andar térreo. Após um momento de silêncio, o bispo voltou-se de repente para o director e perguntou-lhe: — Quantas camas lhe parece que poderão caber nesta sala? — Na sala de jantar de V. Ex.ª?! — exclamou o director, estupefacto. Entretanto, o bispo correu a vista pela sala, como quem mede e calcula as distâncias e disse como que falando consigo próprio: — Podem aqui caber vinte camas à vontade! — E em seguida acrescentou, elevando a voz: — Senhor director, é evidente que há aqui um grande erro. O senhor tem vinte e seis pessoas em cinco ou seis quartos pequenos. Nós aqui somos três e temos lugar para sessenta. Repito que há erro! O senhor ocupa a minha casa e eu vou ocupar a sua. Façamos, pois, a troca. No dia seguinte, os vinte e seis pobres que naquela ocasião estavam doentes, eram transportados para o paço episcopal e o bispo mudava a sua residência para o hospital. Myriel não possuía bens de fortuna, pois a revolução arruinara completamente a sua família. A irmã nha uma pensão vitalícia de quinhentos francos, a qual, enquanto Myriel fora pároco, bastava às suas despesas pessoais, e ele, como bispo, recebia do Estado uma dotação de quinze mil francos. No mesmo dia em que fixou a sua residência na casa que era dantes o hospital, determinou duma vez para sempre o emprego desta quantia, escrito pelo seu próprio punho da seguinte maneira: Distribuição das despesas da minha casa: Para o seminário: 1500 francos Congregação da missão: 100 francos Para os lazaristas de Montdidier: 100 francos Seminário das missões estrangeiras em Paris: 200 francos Congregação do Espírito Santo: 150 francos Estabelecimentos religiosos da Terra Santa: 100 francos Sociedades de caridade maternal: 300 francos Para a de Aries: 50 francos Para melhoramentos das prisões: 400 francos Para socorro e livramento de presos: 500 francos Para livramento de pais de famílias presos por dívidas: 1000 francos Gratificações aos mestres pobres da diocese: 2000 francos Para socorro dos pobres dos Altos-Alpes: 100 francos Congregação das irmãs de Digne, de Manosque e de Sisteron, para o ensino gratuito das raparigas indigentes: 1500 francos Para os pobres: 6000 francos Para a minha despesa pessoal: 1000 francos Total: 15000 francos Durante todo o tempo do seu episcopado, o virtuoso prelado não fez a menor alteração nestas disposições, a que ele, como se viu, dava o nome de distribuição das despesas da minha casa. Bap s na aceitou com a mais completa submissão a vontade do irmão. Para a virtuosa senhora, Myriel era não só seu irmão, mas seu bispo, seu amigo segundo a natureza, seu superior segundo a igreja. Amava-o e venerava-o inteira e simplesmente. Obedecia, quando ele ordenava e aderia às suas menores vontades sem fazer a mais leve observação. A criada Magloire é que não Se conformou inteiramente com semelhante distribuição, por ver que o bispo só reservava para si mil francos, os quais, reunidos à pensão de Bap s na, perfaziam a soma de mil e quinhentos francos anuais, único rendimento com que os três tinham de viver. E não só viviam, com efeito, como até quando algum pároco de aldeia vinha à cidade, o bispo ainda achava modo de hospedá-lo, graças à severa economia de Magloire e à inteligente administração de Baptistina. Uma ocasião, três meses decorridos, depois da sua chegada a Digne, o bispo disse: — Apesar de tudo, sabe Deus como eu vivo constrangido! — Isso vejo eu! — exclamou Magloire. — Se Monsenhor nem ao menos requisitou à Câmara o subsídio que foi sempre costume dar aos bispos, para despesas na cidade e gastos de jornadas nas visitas do bispado! prá ca, e no domingo, depois da missa, todos os habitantes da aldeia, homens, mulheres e crianças, se dirigem para o campo do pobre homem a fazer-lhe a colheita e a transportar-lhe a palha e o grão para a eira! As famílias a quem questões de partilhas e outros interesses trazia em desunião, dizia: — Olhai para os montanheses de Devolny, terra tão selvá ca que nem de cinquenta em cinquenta anos se ouve o cantar do rouxinol! Pois ali, quando morre o chefe de qualquer família, os rapazes vão procurar fortuna noutra parte e deixam todo o património às irmãs para que elas possam fazer bons casamentos. Aos habitantes dos cantões, amigos de pleitos e questões que desbaratavam os seus haveres em papel selado, dizia: — Olhai para aqueles bons aldeões de Queyras. É uma povoação de três mil almas e, louvado seja Deus, vivem como numa pequena república. Não sabem o que seja um juiz, um processo ou um escrivão. O maire é quem faz tudo. Reparte o imposto, colecta cada habitante o que em consciência lhe parece que deve pagar, julga todas as causas gratuitamente, preside às par lhas entre os membros de uma família sem cobrar emolumentos, profere sentenças sem levar nada às partes, e todos lhe obedecem, porque é um homem justo no meio de uma população de homens simples. Nas aldeias em que não encontrava mestre-escola, dizia, citando ainda como exemplo os habitantes de Queyras: — Quereis saber o que eles fazem? Como um lugar de doze ou quinze fogos não pode só por si sustentar um mestre, combinam-se com os habitantes de outros lugares e assim arranjam, co zando-se entre si, mestres que vão de lugar em lugar, demorando-se oito dias aqui, dez além, dando lições a quem delas se quer aproveitar. Os mestres, andam de feira em feira, como eu mesmo já presenciei, e dão-se a conhecer segundo o número de penas que trazem na fita do chapéu. Os que só ensinam a ler, trazem uma pena; os que ensinam a ler e a contar, usam duas e os que ensinam a ler, a contar e la m, usam três e são considerados grandes sábios. É uma vergonha ficar toda a vida ignorante, fazei como os de Queyras. Assim discursava o bom prelado, com gesto grave e paternal, inventando parábolas quando não nha exemplos, conciso na frase, opulento em imagens, persuasivo e convicto, singelo e eloquente, como outrora a eloquência de Jesus Cristo, convincente e persuasiva IV — As palavras semelhantes às obras Dotado de génio prazenteiro e afável, conversava e ria alegremente com todos e em especial com as duas mulheres, companheiras— únicas do seu modesto viver, a cujas inteligências adaptava as suas conversas Quando ria, o seu riso parecia o de uma criança. Magloire tratava-o quase sempre por minha grandeza. Certa vez, o bispo levantou-se da sua poltrona e dirigiu-se à estante para tirar um livro, mas como era baixo e não pôde chegar-lhe, virou-se para a criada e disse-lhe: — Magloire, traga-me uma cadeira, porque a minha grandeza não chega àquela prateleira. Entre as visitas que o bispo de Digne recebia na sua residência episcopal, contava-se a da condessa de Lô, sua parente afastada Todas as vezes que se encontravam, nunca aquela dama perdia a ocasião de lhe enumerar o que ela apelidava as esperanças dos seus três filhos Consis am estas na próxima herança dos numerosos ascendentes da condessa, de quem seus filhos eram naturais herdeiros e que não prome am longa duração. O mais novo, por morte de uma segunda a, ficaria com um rendimento superior a cem mil francos, o segundo herdaria de um tio o título de duque; o mais velho sucederia ao avô no pariato. O bispo, ordinariamente, limitava-se a escutar em silêncio as inofensivas e desculpáveis expansões do seu amor de mãe Todavia, numa das ocasiões em que a condessa de Lô repe a a enumeração de todas aquelas heranças em perspec va, reparando no ar pensa vo e distraído com que o prelado a escutava, interrompeu-se e disse-lhe um tanto despeitada: — Que tem, meu primo? Parece que não presta atenção nenhuma ao que eu digo. — Estou a pensar numa coisa singular que li — respondeu o bispo — e que segundo me parece, pertence a Santo Agos nho: «Ponde a vossa esperança naquele a quem ninguém substituiu.» Outra vez, recebendo uma carta em que lhe par cipavam a morte de um fidalgo da terra, na qual, além das dignidades do defunto, pomposamente se ostentavam todas as qualificações feudais e nobiliárias dos seus parentes, exclamou: — Que largas costas tem a morte! Como carrega, sem se queixar, tamanha carga de tulos, e que grande habilidade têm os homens para fazerem do túmulo instrumento da sua vaidade! Quando se lhe apresentava ensejo, nha sempre pronto um dito, que encerrava um sentido sério. Um ano, pela quaresma, chegou à cidade um eclesiás co ainda novo que pregou na catedral. O assunto do seu tema foi a caridade e discursou eloquentemente sobre o assunto. Convidou os ricos a auxiliarem os pobres, a fim de evitarem o inferno, que ele pintou o mais horroroso que pôde e alcançarem o paraíso, que mostrou com as cores mais deliciosas e agradáveis. Entre o auditório, encontrava-se naquela ocasião um abastado negociante, chamado Géborand, o qual, depois de ter ganho dois milhões em empresas fabris, se re rara do comércio para se entregar com mais ou menos moderação ao tráfico usurário. Nunca na sua vida, Géborand dera esmola a um infeliz, mas depois deste sermão viam-no, todos os domingos, aproximar-se das cinco ou seis velhas que mendigavam à porta da catedral e dar um soldo para elas repartirem entre si. Um dia, indo o bispo a passar quando o negociante dava a uma das infelizes a costumada esmola, voltou-se para a irmã e disse-lhe, sorrindo: — Ali está o senhor Géborand a comprar um soldo do paraíso! Quando se tratava de caridade, não recuava mesmo diante de uma recusa, pois nha sempre pronta qualquer resposta que obrigava a reflectir. Uma vez, em certa reunião, tendo aberto um peditório para os pobres, aproximou-se do velho e avarento marquês de Champtercier, singular personagem que sabia o segredo de combinar o seu realismo exaltado com ideias ultra-voltarianas (esta variedade exis u) e disse-lhe, tocando-lhe no braço: — E V. Ex.ª, senhor marquês, não contribui também? O marquês voltou-se e respondeu com modo brusco: — Eu também tenho os meus pobres, senhor bispo. — Nesse caso, rogo-lhe que mos dê. Um dia, na catedral, pregou este sermão: «Meus queridos irmãos e amados ouvintes, há em França um milhão e trezentas e vinte mil casas de habitação de camponeses, as quais só têm três aberturas; um milhão oitocentas e dezassete mil, que têm apenas duas, uma porta e uma janela; e, finalmente, trezentas e quarenta e seis mil cabanas, cuja única abertura é a porta. A causa disto é o denominado imposto das portas e janelas. Imaginai um montão de pessoas, uma família numerosa composta de velhos e crianças, vivendo juntas em cada um desses domicílios sem ar nem luz e pensai nas febres e epidemias a que isto pode dar origem! Oh, dá Deus o ar aos homens e a lei vende-lho! Não acuso a lei, mas bendigo a Deus! No Isera, no Var, nos altos e baixos Alpes, os camponeses, que nem carros de mão possuem, transportam os estrumes às costas; não têm candeeiros nem velas para os alumiar e para obterem luz queimam paus e fragmentos de cordas embebidos em resina. O mesmo acontecendo em todos os lugares do Alto Delfinado. Fabricam pão para seis meses e cosem-no com o estrume seco das vacas. No Inverno, corta-se o pão a machado e conservam-no de molho de um dia para o outro para se poder comer. Compadecei-vos, meus irmãos, vendo quantos infelizes sofrem em torno de vós!» Provençal de nascimento, o bispo familiarizara-se com todos os dialectos das regiões meridionais. Falava com extrema facilidade tanto o do baixo Languedoc, como o dos Baixos Alpes e do Alto Delfinado. Isto agradava ao povo e contribuía bastante para lhe granjear simpa as. No campo, na cidade, ou na mais humilde choupana das montanhas, achava-se como em sua casa. Sabia dizer as coisas mais complicadas nalinguagem mais simples. Sabendo falar a todos, entrava em todas as almas. Além disto, a todos tratava de igual modo, fossem das camadas superiores ou das inferiores. Jamais formulava juízo desfavorável a respeito do que quer que fosse ou condenava sem atender às circunstâncias. Costumava dizer:«Vejamos o caminho por onde a culpa passou». Não obstante ser um ex-pecador, como a si mesmo se denominava, nunca professava as asperezas do rigorismo. A sua doutrina, que abertamente observava, a despeito da austeridade inflexível, podia, com pequena diferença, resumir-se no seguinte: «O homem tem sobre si a carne, que é o seu fardo e a sua tentação. Ela arrasta-o e ele cede-lhe. O seu dever é vigiá-la, contê-la, reprimi-la e não lhe obedecer senão na úl ma extremidade. Essa obediência pode ainda ser culposa, mas a culpa assim é venial. É cair, mas cair de joelhos e por isso terminar em oração.» «Ser santo é uma excepção; a regra é ser justo. Errai, caí, pecai, mas sede justos». «Pecar o menos possível é o dever do homem, não pecar nunca é o sonho do anjo. Tudo o que é terrestre está sujeito ao pecado. O pecado é uma gravitação». Quando via o tumultuoso alarido e a precipitada indignação de muitos, dizia, sorrindo: — Basta ver a azáfama com que a hipocrisia se apressa a protestar e a pôr-se a salvo, como um ponto de interrogação. O cadafalso é uma visão, não é um madeiramento, uma máquina, um mecanismo inerte feito de pau, ferro e cordas. É uma espécie de ente dotado de não sei que sinistra inicia va. Dir-se-ia que essa mola de madeira vê, que essa máquina ouve, que esse mecanismo compreende, que esse ferro e essas cordas têm uma vontade. A vista de um cadafalso faz embrenhar o espírito em sombrias cogitações, do meio das quais surge terrível e como que circundado dos espectros das suas vi mas. O cadafalso é o cúmplice do carrasco, nutre-se de carne e sangue humano. É uma espécie de monstro fabricado pelo juiz e pelo carpinteiro, um espectro que parece viver a horrorosa existência composta de todas as mortes que tem dado. A impressão que semelhante vista causou no espírito do bispo foi tão profunda e horrível, que no dia seguinte e ainda daí por muitos dias, o bondoso prelado parecia visivelmente oprimido. A serenidade quase violenta do momento fúnebre havia desaparecido para dar lugar ao fantasma da jus ça social que o perseguia e obcecava. Ele, que habitualmente voltava de todos os actos que ia desempenhar com tão radiante sa sfação, agora quase parecia exprobar-se do que nha feito. Às vezes punha-se a falar sozinho, balbuciando lúgubres monólogos. Eis um que a irmã, uma noite, ouviu e conservou de memória: «Nunca supus que fosse uma coisa tão monstruosa! É um erro deixarmo-nos absorver pela lei divina, a ponto de olvidar inteiramente a lei humana. Matar só a Deus pertence! Com que direito tocam os homens nessa entidade desconhecida?» Com o decorrer do tempo, estas impressões foram-se atenuando, até talvez se extinguirem. Todavia, houve quem notasse que o bispo, desde então, evitava passar pela praça onde nham lugar as execuções. Podiam chamar o prelado a qualquer hora para ir confessar um enfermo ou assis r a um moribundo, que ele não ignorava ser este o seu dever mais sagrado, a sua missão mais sublime. As viúvas e os órfãos não precisavam de o chamar, porque ele lhes acudia voluntariamente. Sabia estar sentado durante horas inteiras a escutar silencioso e a animar com palavras de conforto o homem que perdera a mulher amada, ou a mãe que perdera o filho querido. Admirável consolador! Os seus esforços não tendiam a fazer ex nguir a dor pelo esquecimento, mas a engrandecê-la pela esperança! — Atentai bem no modo como contemplais os mortos — dizia ele. — Não ocupeis o vosso pensamento com o que apodrece. Olhai fixamente e vereis no fundo do céu a chama viva do ente morto a quem amáveis. Ele sabia que a crença era santa e por isso aconselhava e serenava o homem desesperado, apontando-lhe o homem resignado, e transformava a dor imóvel diante de uma sepultura, indicando-lhe a dor que fita os olhos no cintilar de uma estrela. V — Como Monsenhor Bemvindo poupava as suas batinas A vida ín ma de Carlos Myriel assemelhava-se inteiramente à sua vida pública. Se fora dado a alguém observá-la de perto, ficaria impressionado com o grave e ao mesmo tempo gracioso espectáculo da pobreza voluntária em que vivia o bispo de Digne. Como todos os velhos e como a maior parte dos pensadores, dormia pouco, mas profundamente. Pela manhã, após uma hora de recolhimento, dizia a sua missa na catedral ou no seu oratório par cular e, assim que terminava esta tarefa diária, ia almoçar. O seu almoço consis a em algumas sopas de pão de centeio com leite, extraído de duas vacas que tinha em casa. Em seguida, dava princípio aos seus trabalhos. Um bispo é um homem ocupadíssimo; tem de dar todos os dias audiências ao secretário da câmara eclesiás ca, que habitualmente é um cónego, e a quase todos os seus vigários gerais. Além disto, tem de visitar congregações, conceder licenças, examinar uma completa livraria espiritual como catecismos, livros de horas, etc., escrever pastorais, compor as desavenças entre os párocos e as autoridades, dar expediente à correspondência eclesiás ca e à civil, atender de um lado o estado, de outro a igreja; finalmente, mil coisas que lhe reclamam a atenção. O tempo que lhe sobrava do breviário e do cumprimento de todos os seus encargos e obrigações, dedicava-o em primeiro lugar com os necessitados, com os enfermos e aflitos; e o que de tudo isto ainda lhe sobrava, aplicava-o ao trabalho, ora cavando a terra da sua horta, ora a ler, ou a escrever. A estas duas espécies de trabalho, designava- as com o mesmo nome: jardinar. — O espírito é um jardim — costumava ele dizer. Ao meio-dia, quando o dia estava ameno, saía e dava um passeio pela cidade ou pelos arrabaldes, visitando muitas vezes as casas dos pobres que deparava no caminho. Nada mais fácil do que encontrá-lo sozinho, absorto nas suas cogitações, de olhos fitos no chão, encostado à sua comprida bengala, agasalhado na sua acolchoada capa roxa, meias da mesma cor, grandes sapatos e o seu chapéu de três bicos com uma grande borla de oiro em cada um. Onde quer que aparecesse, todos o festejavam. Dir-se-ia que a sua presença aquecia e iluminava. Por onde ele passava, velhos e crianças assomavam às portas, com o mesmo alvoroço com que sairiam a aquecer-se aos raios do sol. Ele abençoava o povo, o povo abençoava-o a ele, apontando a residência episcopal como o lugar em que todo o infortúnio acharia alivio e toda a necessidade socorro. Parava acada momento, gracejando com os rapazes e raparigas, sorrindo benevolamente para as mães e dando conselhos a todos. Enquanto nha dinheiro, visitava os pobres; acabado ele, visitava os ricos. Como queria que as ba nas lhe durassem muito tempo, nunca saía a passear pela cidade senão com a capa roxa, o que de Verão não deixava de o incomodar. Depois voltava a casa para jantar. O jantar assemelhava-se ao almoço. Às oito e meia da noite, ceava em companhia da irmã, servidos por Magloire, que se conservava de pé por trás deles. Nada mais frugal do que esta refeição, excepto quando o bispo nha algum hóspede, porque então Magloire arranjava pretexto para apresentar na mesa algum peixe ou alguma peça de caça. A isto, que se repe a sempre que havia hóspedes no paço, o bispo nada dizia. Fora destas ocasiões, as refeições habituais constavam sempre de legumes ou de alguma simples sopa. Deste frugal modo de viver originava-se o seguinte dito, já proverbial na cidade: — Hóspede no paço édomingo gordo em casa de jornaleiro. Depois da ceia, demorava-se ainda meia hora a conversar com Bap s na e com Magloire, recolhendo-se em seguida ao seu quarto, onde se punha a escrever em folhas soltas ou na margem de algum in fólio. Carlos Myriel era instruído e alguma coisa versado nas ciências, como o provam os cinco ou seis curiosos manuscritos por ele deixados, entre os quais se conta uma dissertação sobre o versículo do Génesis: No princípio do mundo o espírito de Deus pairava sobre as águas. Comeste versículo confronta o árabe que diz: Sopravam os ventos de Deus. Outro de Flávio José: Um vento vindo do alto precipita-se sobre a terra. E finalmente a paráfrase caldaica de Onkelos, onde se lê: Um vento mandado por Deus soprava sobre a super cie das águas. Noutra dissertação examina as obras teológicas de Hugo, bispo de Ptolomeida, o em terceiro grau do autor deste livro, concluindo que se devem atribuir a esse bispo os diversos opúsculos publicados no século passado sob o pseudónimo de Barleycourt. Às vezes, qualquer que fosse o livro que vesse entre mãos, parava subitamente de ler e caía em profunda meditação, finda a qual se punha a escrever algumas linhas, nas próprias páginas do volume, sem, muitas vezes, aquilo que escrevia ter relação alguma com o que dizia o livro. Temos a seguir uma nota escrita por ele na margem de um livro: Correspondência de Lord Germai com os generais Clinton, Cornwalis e com os almirantes da estação da América. Versailles, em casa do livreiro Poinçoi; e em Paris, na do livreiro Pissot, cais dos Agostinhos. A nota diz: «Oh, vós quem sois!? «O Eclesiastes chama-vos Todo Poderoso; os Macabeus, Criador; a Epístola aos Éfesos, Liberdade; Baruch, Imensidade; os Salmos, Sabedoria e Verdade; Jean, Luz; o Livro dos Reis, Senhor; o Êxodo, Providência; o Leví co, San dade; Esdras, Jus ça; a criação, Deus; o homem, Pai; Salomão, porém, chama-vos Misericórdia, e é este o mais belo de todos os vossos nomes». Às nove horas, as duas mulheres re ravam-se para os seus quartos, que ficavam no primeiro andar, deixando o bispo sozinho, até de madrugada, no rés-do-chão. Agora é necessário dar a exacta ideia da habitação do bispo de Digne. VI — Quem guardava a casa do prelado A casa que o bispo habitava compunha-se de rés-do-chão e primeiro andar; o rés-do- chão era dividido em três salas, o andar superior em três quartos, por cima dos quais ficava um sótão. Nas traseiras da casa havia um pequeno jardim. As duas mulheres ocupavam o primeiro andar, o bispo o rés-do-chão. A primeira sala, cujas janelas deitavam para a rua, servia-lhe de sala de jantar, a segunda de quarto de dormir e a terceira de oratório. Não se podia sair deste sem passar pelo quarto de dormir, nem do quarto de dormir, sem passar pela sala de jantar. No fundo da sala que servia de oratório havia uma alcova fechada, com uma cama de reserva para os hóspedes, que o bispo oferecia aos párocos de aldeia que os seus próprios negócios ou as necessidades das suas paróquias obrigavam a vir a Digne. A farmácia do hospital, pequeno compar mento ao fundo do jardim, servia de cozinha e dispensa. Havia, além disso, também no jardim, um estábulo, que em tempos fora a cozinha do hospício e onde agora o bispo guardava duas vacas. Por pouco que fosse o leite que elas dessem, mesmo assim, todos os dias pela manhã, o prelado mandava entregar metade aos doentes do hospital, ao que ele chamava «pagar o seu dízimo». Como o seu quarto, demasiadamente grande, era muito frio de Inverno e a lenha em Digne fica por elevado preço, lembrou-se de mandar fazer no estábulo das vacas um pequeno armário onde Magloire todas as noites fechava os talheres, mas sem nunca tirar a chave. O jardim, um tanto prejudicado pelas feias construções de que já falámos, era dividido por quatro caminhos em cruz, com um tanque no centro Ao longo do muro caiado que fechava o jardim, havia outro caminho que o circundava. Estas ruas eram separadas por canteiros orlados de buxo, em três dos quais Magloire cul vava legumes, ficando ainda outro, onde o bispo nha as suas flores e onde plantara também algumas árvores de fruto. Numa ocasião, a criada dissera ao bispo, sorrindo com ar de afectuosa malícia: — Monsenhor, que de tudo ra proveito, não sei como tem no jardim um canteiro inutilizado. Não seria melhor semear nele alfaces em vez de flores? — Está enganada, Magloire — respondeu ele. — O agradável é tão ú l como o ú l. — E, após um momento de silêncio, acrescentou: — Ou talvez mais. O canteiro, que era dividido em quatro alegretes, ocupava a atenção do bispo, tanto como os seus livros. Sempre que podia, passava ali uma ou duas horas, cortando, sachando, mondando e lançando à terra novas sementes. Menos hos l com os insectos do que seria para desejar num jardineiro, o bispo também não nha aspirações a botânico; desconhecia os grupos e as famílias, não se lembrando sequer de decidir entre Tournefort e o método natural, nem de tomar par do pelos utrículos contra os cotyledonios ou por Jussieu contra Limeu. Não estudava as plantas, amava as flores. Respeitava muito os sábios, respeitava ainda mais os ignorantes e, sem nunca deixar de respeitar uns e outros, no Verão regava todas as tardes os seus alegretes com um regador de lata pintado de verde. Em toda a casa não havia uma só porta fechada à chave. A porta da sala de jantar que dava saída para o largo da catedral, fora, em tempos, guarnecida de fechaduras e ferrolhos, como se fosse a porta de uma prisão. O bispo mandou rar todas as fechaduras e daí em diante quer fosse noite, quer dia, a porta apenas ficava segura por um simples fecho. Quem quisesse abrir a porta, podia fazê-lo a qualquer hora. Nos primeiros tempos, isto afligia as duas mulheres, mas o bispo dizia-lhes: — Se quiserem mandem pôr ferrolhos nos vossos quartos. Desde então, elas principiaram a par cipar da confiança do bispo ou, pelo menos, a mostrar que par cipavam. Apenas Magloire sen a, de tempos a tempos, renascer-lhe os receios. No que respeita ao prelado, podem dar-nos a explicação ou, pelo menos, indicação do seu pensamento, as seguintes linhas escritas por ele na margemde uma folha da Bíblia: «Eis a diferença: a porta do médico nunca deve estar fechada e a porta do sacerdote deve estar sempre aberta.» Noutro livro in tulado Filosofia da ciência médica escrevera ele esta nota: «Tão médico sou eu como eles. Eles têm os seus enfermos, aos quais chamam doentes; eu tenho esses e os meus, a quem chamo desgraçados». Noutra parte lia-se ainda: «Não pergunteis nunca o nome de quem vos pedir pousada Aquele que necessita de ocultar o seu nome, é quem mais carece de asilo». Uma ocasião, um respeitável pároco, não sabemos bem se o de Couloubroux, se o de Pompierry, perguntou-lhe, talvez ins gado por Magloire, se estava certo de não cometer, até certo ponto, uma imprudência, deixando de noite a porta aberta, à mercê de quem quisesse entrar, e se, finalmente, não receava consequências desagradáveis numa casa tão mal guardada. O bispo, com serena gravidade, pôs-lhe a mão no ombro e disse-lhe: — Nisi Dominus custodierit domum, in vanum vigilante qui custodiunt earn. Dizendo isto, mudou logo de assunto. O sacerdote, costumava ele dizer, tem tanta bravura como o militar. Com a diferença, acrescentava, que a nossa deve ser mais pacífica. VII — Gravatte, o salteador Vem a propósito aqui um facto que não devemos omi r, por ser um dos que melhor dão a conhecer o carácter do virtuoso bispo de Digne. Depois de destroçada a quadrilha de Gaspar Bés, terrível bandido que infestara as gargantas de Olialles, refugiara-se na montanha com mais alguns salteadores que conseguiram escapar à jus ça, um dos seus lugares-tenentes, chamado Grava e. Conservando-se algum tempo oculto no condado de Nice, Grava e entrou no Piemonte e, quando menos era esperado, reapareceu em França, do lado de Bercelone e, sendo visto primeiro em Jausiers e depois em Tuiles. Oculto nas cavernas de Joug-de-l’Aigle, fazia frequentes incursões nos lugares e aldeias dos arredores, descendo pelos barrancos de Ubaye e do Ubayette. Uma noite, chegou mesmo a entrar em Embrun, onde penetrou na catedral, roubando todos os objectos que se encontravam na sacris a. Os seus repe dos assaltos traziam a terra em con nuo e terrível sobressalto. Destacou-se um corpo de gendarmeria para o perseguir, mas foi trabalho baldado. Escapava-se sempre e até algumas vezes resis a às forças mandadas em sua perseguição. No meio deste terror, chegou o bispo, que andava a fazer as suas visitas pelo distrito de Chastelar. O maire foi ao seu encontro e pretendeu convencê-lo de quanto seria prudente voltar para trás, pois Grava e ocupava a montanha até para além do Arche. Tornava-se perigoso atravessá-la, mesmo com uma escolta, porque seria expor inutilmente a vida de três ou quatro pobres soldados. — Por isso mesmo tenciono ir sem escolta — disse o bispo. — Pois Monsenhor intenta semelhante coisa?! — exclamou o maire. — De tal modo que recuso a companhia dos soldados e daqui a uma hora pôr-me-ei a caminho. — Pois teima em partir? — Porque não? — Sozinho? — Sim. — Isso é uma temeridade, senhor bispo. — Há três anos — replicou o bispo — que não visito o pequeno e humilde lugarejo da montanha, cujos habitantes e bons pastores, são todos meus amigos. A sua riqueza é uma cabra de cada rebanho de trinta que guardam; a sua indústria, é fazer bonitos cordões de lã de diversas cores e o seu diver mento, tocar árias montanhesas em flau ns de seis buracos. Precisam de ouvir a palavra de Deus de tempos a tempos. Que haviam de dizer de um bispo medroso? Que diriam se eu lá não fosse? — Mas, Monsenhor, e os salteadores? — É verdade, tem razão. Se os encontrasse... Olhe que também devem ter necessidade de ouvir falar em Deus! — É uma grande quadrilha! Um rebanho de lobos! — Pois talvez seja desse rebanho, senhor maire, que Jesus queira que eu seja pastor. Quem sabe os desígnios da Providência? — Podem roubá-lo, senhor bispo. — Não tenho nada. — Podem assassiná-lo! — Ora! Com que fim fariam eles mal a um pobre sacerdote que vai a passar, ocupado unicamente em rezar as suas orações? — Valha-me Deus! Que sucederá se os encontrar? — Pedir-lhes-ei esmola para os meus pobres. — Em nome do céu, Monsenhor, não exponha a sua vida! — Pois é esse o seu temor, senhor maire! — atalhou o bispo. — Eu não ando no mundo para guardar a minha vida, mas sim para guardar as almas! Ninguém o pôde fazer mudar de resolução. Apesar de todas as súplicas, par u acompanhado apenas por um rapaz que se prestou a servir-lhe de guia. A sua obs nada resistência deu muito que falar, deixando os ânimos sobressaltados em extremo. Desta vez não quis que a irmã nem Magloire o acompanhassem. Atravessou a montanha montado numa mula e chegou são e salvo até aos pastores seus amigossem ter do o menor encontro desagradável. Demorou-se quinze dias no meio deles, pregando, ensinando, moralizando, administrando os sacramentos. Quando estava prestes a re rar-se, resolveu cantar pon ficalmente um Te-Deum e comunicou a sua intenção ao cura. Mas surgiram graves dificuldades, pois não havia as insígnias episcopais que era mister. A modesta igreja paroquial apenas podia pôr à disposição do bispo alguns deteriorados paramentos de damasco, guarnecidos de galões falsos. — Isso não será obstáculo, senhor cura — disse o bispo. — Anuncie na missa o nosso Te-Deum, que o mais sempre se há-de arranjar. Procuraram-se paramentos em todas as igrejas dos arredores e reunidas as magnificências das humildes paróquias, mal chegavam para reves r convenientemente um chantre da catedral. Achavam-se as coisas nestes apuros, quando à porta da residência paroquial chegaram dois cavaleiros desconhecidos que, depois de fazerem entrega de uma grande caixa de que eram portadores, tornaram a par r imediatamente. Aberta a caixa, viu-se que con nha uma dalmá ca carregada de oiro, uma mitra guarnecida de diamantes, uma cruz arquiepiscopal, um báculo magnífico, todos os paramentos pon ficais roubados um mês antes da sacris a de Nossa Senhora de Embrun. No fundo da caixa que dizem que o homem tem cá por cima, lá por baixo, em qualquer parte, isso escusam de pregar, porque não creio numa só palavra. Como me recomendam o sacri cio e a renúncia, devo meditar sobre todas as minhas acções e quebrar a cabeça para dis nguir o bem do mal, o justo do injusto, e o lícito do ilícito Porquê? Porque terei de dar contas das minhas acções? Quando? Depois da minha morte. Que bonito sonho! Depois de eu morrer hão-de pegar-me nas botas! Falemos franco, nós que somos iniciados e que erguemos a túnica de Isis. Não há bem nem mal, há apenas vegetação. Procuremos a realidade, cavemos até ao fundo, que diabo! É necessário encontrar a verdade, cavemos até encontrá-la e tenhamos a certeza de que ela nos dará os mais requintados prazeres e que fará com que nos riamos do resto. Bem vê que sou quadrado na base. Senhor bispo, a imortalidade da alma não passa de um mito, uma promessa encantadora e mais nada! Que felicidade ser filho de Adão! Ser alma, ser anjo, ver-se a gente com asas azuis nas omoplatas, que deslumbrante perspec va! Vamos, senhor bispo, ajude-me a memória, não foi Tertuliano quem disse que os bem-aventurados andarão de astro em astro? Ora aí tem! Seremos os gafanhotos das estrelas e ainda por cima gozaremos da presença de Deus. Que patarata é toda esta colecção de paraísos! Deus não passa de uma frioleira monstruosa! Por certo que eu não ia agora pôr-me a dizer isto nas colunas do Monitor, mas aqui entre amigos inter pocula posso dizê-lo. Sacrificar a terra pelo paraíso é largar a presa pela sombra! É extremamente estúpido ser logrado pelo infinito. O que sou eu senão uma porção do nada? Exis a porventura antes de nascer? Não. Con nuarei a exis r depois de morto? Não. O que sou então? Um pouco de pó agregado por um organismo. Que devo fazer na terra? Posso escolher: sofrer ou gozar. Aonde me conduzirá o sofrimento? Ao nada. Mas terei sofrido. Aonde me levará o gozo? Ao nada. Mas terei gozado. Assim, pois, a minha escolha está feita. É indispensável dominar ou ser dominado. Prefiro dominar! É preferível ser martelo a ser bigorna. É esta a minha teoria. No fim de tudo isto está o coveiro, que é para nós o Pantheon e está tudo arrumado. Finis. Liquidação total. Some-se tudo para nunca mais aparecer. Creia-me, a morte é a morte e, por mais que me digam, não posso deixar de rir quando penso nela. É uma invenção de amas de crianças; para estas é o papão, para os homens é Jeová! Além do túmulo, há a igualdade do nada. Sardanapalo ou Vicente de Paula, quem quer que tenhais sido, o mesmo nada vos caberá em sorte. Aqui está a verdade! Portanto, vivamos, dê por onde der. Façamos uso do nosso eu, enquanto o possuímos. Repito-lhe, senhor bispo, tenho a minha filosofia e os meus filósofos e não me deixo engrinaldar com patranhas. Todavia, alguma coisa hão-de ter os que rastejam na lama, os pés- descalços, os miseráveis. Dão-se-lhe a engolir as lendas, as quimeras, a alma, a imortalidade, o paraíso, as estrelas. E eles lá vão mas gando tudo. Quem não tem nada, tem Deus. Pouco é, mas valha-nos isso. Da minha parte não lhe ponho obstáculos, mas guardo Naigeon para mim. Quanto a Deus, deixo-o ao povo. — Ora isso é que se chama falar! — exclamou o bispo, batendo as palmas. — Excelente! É realmente maravilhoso o seu materialismo, senhor conde! Quem o professa está livre de cair em logros; não se deixa desterrar estupidamente como Catão, nem apedrejar como Santo Estêvão, nem queimar vivo como Joana d’Arc! Quem consegue chegar a possuir tão admirável materialismo tem o prazer de conseguir a irresponsabilidade e adquirir a convicção de que tudo pode devorar sem susto, empregos, sinecuras, dignidades, palinódias lucra vas, traições úteis, saborosas capitulações de consciência e que descerá ao túmulo, depois de bem feita a digestão. Que agradável coisa! Eu não digo isto por V. Ex.ª, senhor senador. Todavia, não posso deixar de lhe dar os parabéns! Os fidalgos, como V. Ex.ª disse, têm uma filosofia própria, sub l, requintada, unicamente acessível aos ricos, óp mo condimento para guisar com todas as voluptuosidades da vida! É uma filosofia desenterrada das profundidades por inves gadores especiais. Porém, magnates de bom coração, não levam a mal que a crença em Deus seja a filosofia do povo, do mesmo modo, por assim dizer, como a açorda é o peru do pobre. IX — O carácter do irmão descrito pela irmã Para dar ideia mais perfeita da vida íntima do bispo de Digne e do modo como as duas mulheres subordinavam os hábitos e intenções do prelado as suas acções, pensamentos e até ins ntos de mulheres assustadiças, sem que ele vesse sequer o trabalho de falar para as exprimir, nada melhor do que transcrever uma carta escrita por Bap s na à viscondessa de Boischevron, sua amiga de infância. Digne, 16 de Dezembro de 18... Minha querida amiga: Não se passa um só dia em que não falemos a seu respeito. Isto é um hábito an go, mas, além disso, há ainda outra razão. Imagine que a Magloire andando a lavar e a limpar os tectos e as paredes da casa, fez uma grande descoberta; agora os nossos quartos forrados de papel an go e caiado por cima, não fariam má figura num palácio do género do seu. Magloire rasgou todo o papel e encontrou por baixo uma infinidade de coisas. A minha sala, que não tem móveis, e de que nós nos servimos para estender roupa, tem quinze pés de altura e dezoito de largura. Vê-se agora que o tecto foi forrado de lona, no tempo em que isto era hospital, an gamente era pintado e dourado e nha até trabalho de talha, enfim, um tecto à an ga. Porém, o que é digno de se ver é o meu quarto. Por baixo de uma camada muito densa de papéis colados, Magloire descobriu várias pinturas, as quais, sem serem boas, são muito suportáveis. Uma representa Telemaco a ser armado cavaleiro por Minerva; outra representa-o nos jardins não sei de que... onde as damas romanas só iam uma vez. Como lhe hei-de dizer tudo? Tenho romanos e romanas (nesta passagem da carta há uma palavra ilegível) e toda a sua comi va. Magloire limpou e lavou tudo e este Verão, reparadas algumas pequenas avarias, o meu quarto ficou um verdadeiro museu. Encontrou também num canto do sótão, duas consolas muito an gas. Pediram doze francos para as restaurar, mas é preferível dar este dinheiro aos pobres, porque, afinal de contas, são dois objectos muito feios, que eu de boa vontade trocaria por uma mesa redonda de acajú. Eu continuo a ser muito feliz pela bondade de meu irmão. Dá tudo quanto tem aos pobres e enfermos. Os Invernos aqui são muito rigorosos, de maneira que é indispensável fazer alguma coisa pelos infelizes. Nós vivemos muito apoquentados, mas, graças a Deus, não temos falta de lenha nem de luz. Bem vê que estas coisas não são dadas a todos. Meu irmão está habituado a certas coisas e diz sempre que um bispo deve ser como ele. Imagine que a porta da nossa casa nunca se fecha a chave. Meu irmão não tem medo de nada, nem mesmo de noite. Segundo ele diz, um sacerdote não deve ter medo. Não quer que eu nem Magloire nos preocupemos por causa dele. Expõe-se aos maiores perigos e não podemos sequer demonstrar que isso nos assusta. É necessário saber compreendê-lo. A chuva não o impede nunca de sair, chegando no Inverno a fazer longas jornadas a pé, debaixo de água, sem temer as estradas nem recear qualquer mau encontro. O ano passado fez uma das suas excursões a um lugar infestado de salteadores e não quis que nós o acompanhássemos, demorando-se por lá quinze dias. Quando chegou a casa, sem que tivesse sofrido o menor incómodo e quando todos já o julgavam morto, disse-me: «Aqui está como me roubaram!». E abriu uma grande mala onde se encontravam todas as jóias da catedral de Embrun e que os ladrões lhe nham dado. Desta vez, mas de modo que ninguém ouvisse, não pude deixar de ralhar com ele. Ao princípio, assustava-me muito por ver como ele se me a aos perigos sem tomar qualquer medida de precaução, mas depois fui-me habituando. Recomendo sempre a Magloire que o não contrarie e que o deixe proceder como muito bem lhe apraz. Nestas ocasiões, re ro-me para o meu quarto, peço a Deus por ele e durmo descansada. Sinto-me tranquila, porque sei que não resis ria se lhe sucedesse alguma desgraça, iria reunir-me com meu irmão e meu bispo na presença de Deus. Magloire teve mais dificuldade do que e u em habituar-se ao que ela chamava «imprudência do senhor bispo», mas, por fim, também se habituou. Oramos ambas, assustadas às vezes, mas concluídas as nossas orações deitamo-nos e adormecemos. Na nossa casa podia entrar o próprio diabo sem que ninguém se lhe opusesse. Mas no fim de tudo, que podemos nós recear? Temos sempre connosco o mais forte. O diabo pode passar por ela, mas não entrará porque é habitada por Deus! E é quanto me basta para viver sossegada. Meu irmão agora nem precisa de dizer-me a menor palavra. Sei o que ele quer, e entregamo-nos nas mãos da Providência. Creio que não devo proceder de outro modo com um homem de inteligência tão sublime. Ob ve de meu irmão as informações que a minha amiga pretendia rela vamente à família de Faux, porque bem sabe que ele ainda não perdeu os bons sen mentos realistas que sempre teve, lembrando-se ainda de tudo. Efec vamente, é uma an quíssima família da Bretanha. Há quinhentos anos, já exis am um Raul de Faux, um Jean de Faux e um Thomaz de Faux, todos fidalgos e um deles senhor de Rochefort. O úl mo foi Guy Estêvão Alexandre, mestre de campo e não sei o quê na cavalaria ligeira da Bretanha. Sua filha, Maria Luísa, casou com Adriano Carlos de Gramont, filho do duque de Gramont, par de França, coronel das guardas francesas e tenente-general do exército. O nome desta família tem aparecido escrito de três modos: Faux, Fauq e Faouq. Minha boa amiga, peço-lhe que nos recomende nas orações do seu santo parente o senhor cardeal. Quanto à sua querida Silvana, tem feito muito bem em não perder os curtos momentos que passa na sua companhia, para me escrever. Uma vez que ela tem saúde, trabalha segundo os desejos da minha amiga e me conserva a an ga afeição, é quanto desejo. Eu não passo mal, todavia, não sei porquê, estou cada vez mais magra. Adeus. Está a acabar o papel, e por isso concluo, desejando-lhe todas as venturas. Baptistina P. S. — O seu sobrinho está lindo como os anjos. Sabe que em breve vai fazer cinco anos? Ontem, vendo passar um cavalo com umas Coelheiras, perguntou: «O que tem aquele cavalo nos joelhos?». É uma criança muito interessante. O irmão mais novo, passa horas seguidas a brincar, arrastando um ces nho velho, a que chama a sua carruagem. Como se vê por esta carta, as duas mulheres sabiam afeiçoar-se ao modo de viver do bispo, com o talento par cular da mulher que melhor compreende o homem do que ele próprio se compreende a si. O bispo de Digne sob o seu ar prazenteiro e cândido, que nada era capaz de alterar, praticava às vezes coisas sublimes, arrojadas e magníficas, com o modo mais natural e simples. As duas mulheres tremiam de susto, mas não lhe opunham resistência. Magloire arriscava às vezes uma observação, mas antes ou depois, nunca na mesma ocasião. Nunca o perturbavam na prá ca de qualquer acção por uma palavra ou sequer por um gesto. Em certos momentos, sem lhe ser necessário a ele dizê- lo nem se lembrar talvez de o fazer, tão completa era a sua simplicidade, conheciam elas vagamente que ele procedia como bispo e então eram apenas como que duas sombras, divagando pela casa. Serviam-no passivamente e, se para obedecer fosse necessário desaparecer, desapareciam. Por uma admirável delicadeza de ins nto, conheciam que há solicitudes que incomodam. Assim, ainda que o supusessem em perigo, compreendiam- lhe, se não a intenção, pelo menos o génio, a ponto de não exercerem a menor vigilância sobre ele. Deixavam-no entregue a Deus. Contudo, como acaba de ler-se, Bap s na dizia que a morte do irmão seria a morte dela, e Magloire, posto não o dissesse, também o sabia. X — O bispo em presença de uma luz desconhecida O rapazinho re rou-se e o velho, seguindo-o com a vista, acrescentou, como falando consigo mesmo: — Quando eu morrer, estará ele a dormir. São dois sonos que não se estorvarão. O bispo não estava comovido, como parece que deveria estar. Não julgava pressentir a presença de Deus naquele modo de morrer; digamos tudo porque as pequenas contradições das grandes almas devem ser apontadas como tudo o mais, ele que, sempre que se oferecia ocasião, ria jovialmente quando lhe davam o tratamento de Vossa Grandeza, sen u-se um tanto ressen do de não ser tratado por Monsenhor, e esteve quase tentado a replicar: cidadão! Acometera-o uma veleidade de caprichosa familiaridade, muito vulgar nos médicos e nos padres, mas que nele não era natural. Pela primeira vez na sua vida, talvez, o bispo sen u-se com severa disposição de espírito contra aquele homem que, apesar de convencional, de representante do povo, nha sido um poderoso na terra. Ao mesmo tempo que o convencional o contemplava com ar de modesta cordialidade, a que talveznão era de todo estranha a humildade própria do homem que sente aproximar-se o fim. O bispo, posto que fosse habitualmente pouco curioso, porque, no seu entender, a curiosidade vive paredes meias com a ofensa, não se podia coibir de o examinaratentamente porque, por não provir de um sen mento de simpa a, a sua consciência lhe haveria decerto exprobrado, se vesse lugar para com outro qualquer homem. No seu entender, porém, um convencional estava fora de todas as leis, mesmo da lei da caridade. G..., com o seu aspecto sereno e firme, a voz vibrante e grave, era um octogenário dos que causam admiração ao fisiologista. A revolução foi fér l nesses homens proporcionados à época. Conhecia-se naquele velho o homem de acção, que tão próximo da morte, conservava ainda todos os movimentos de saúde. Na sua vista segura, na voz firme, no robusto movimento dos ombros, parecia haver ainda energia de sobejo para repelir a morte. Azrael, o anjo maometano do sepulcro, teria retrocedido, julgando-se enganado na porta. Aquele homem parecia morrer voluntariamente. A sua agonia parecia um acto espontâneo. Só as pernas nham perdido o movimento, como se fosse por elas que a morte o vesse agarrado. Os pés jaziam-lhe mortos e frios, mas a cabeça respirava-lhe toda a seiva da vida e parecia em perfeita lucidez. Naquele grave momento, G... assemelhava-se ao rei do conto oriental, cuja parte superior do corpo era de carne e a inferior de mármore. O bispo sentou-se numa pedra que viu próxima de si e principiou. O seu exórdio foi um ex-abrupto. — Felicito-o — disse ele em tom de exprobração. — Creio que nem sempre votou a morte do rei. O convencional pareceu não reparar no sentido oculto da palavra sempre e respondeu com a maior seriedade: — Não me felicite, porque o que eu votei foi o fim do tirano. Era a voz austera em presença da severidade. — Não percebo o que quer dizer — tornou o bispo. — Quero dizer que o rano do homem é a ignorância, e que foi a sua morte o que eu votei. Foi esse rano o autor da realeza, que é a autoridade tomada de ideias falsas, enquanto a ciência é a autoridade tomada da verdade das coisas. O homem só pela ciência deve ser governado. — E pela consciência — acrescentou o bispo. — É a mesma coisa. A consciência não é mais do que a quan dade de ciência inata que possuímos. O bispo escutava, tomado de admiração, aquela linguagem inteiramente nova para ele. O convencional prosseguiu: — Quanto a Luís XVI, votei contra a morte dele. Não me julgo com direito de matar um homem, mas tenho o dever de exterminar o mal. Por isso votei o fim do rano, isto é, o fim da pros tuição para a mulher, o da escravidão para o homem, o das trevas para a criança. Votei isto, votando a república. Votei a fraternidade, a concórdia, a aurora. Trabalhei na queda dos erros e dos preconceitos, de cujo desmoronamento resulta sempre a luz. Fizemos cair a sociedade velha, vaso de misérias, que, ao derramar-se sobre o género humano, se converteu em uma de felicidade! — Felicidade amarga! — retorquiu o bispo. — Pode dizer felicidade perturbada; e hoje, depois desse fatal restabelecimento do passado chamado 1814, felicidade desaparecida. Desgraçadamente, reconheço, a obra ficou incompleta; demolimos o an go regime nos factos, mas não pudemos exterminá-lo inteiramente nas ideias. Não basta destruir os abusos, é necessário modificar os costumes. Destruiu-se o moinho, mas ainda ficou o vento. — Demolir pode ser que seja ú l, mas desconfio sempre de demolições em que entra a cólera. — O direito tem também a sua cólera, senhor bispo, e a cólera do direito é um elemento do progresso. Assim, digam o que disserem, a revolução francesa foi o maior passo que a humanidade tem dado depois do aparecimento de Cristo. Incompleta, concordo, mas sublime. Resolveu todas as incógnitas sociais, suavizou os espíritos, acalmou, pacificou, esclareceu; inundou a terra das ondas da civilização Foi portanto boa! A revolução francesa foi a santificação da humanidade. O bispo não pôde conter-se e retorquiu: — Sim? E 93? O convencional endireitou-se na cadeira com solenidade quase lúgubre e exclamou com toda a energia possível a um moribundo: — Aí vem com 93! Já estava à espera disso! Há mil e quinhentos anos principiou a formar-se uma nuvem que, ao cabo de quinze séculos, rebentou. E o senhor vem acusar o raio! Apesar de tentar encobri-lo a si próprio, o bispo sen u-se ferido, porém, respondeu, aparentando indiferença: — O juiz fala em nome da justiça e o sacerdote em nome da religião, que é uma justiça mais elevada. O raio não deve enganar-se. — E olhando fixamente para o convencional, acrescentou: — E Luís XVII? — Luís XVII? Ora vejamos. Quem é que o senhor las ma? É a criança inocente? Nesse caso, estamos de acordo, porque choro com o senhor. É a criança real? Peço que me deixe reflec r. Para mim, o irmão de Cartouche, menino inocente, atado à força por baixo dos braços e suspenso até o fazerem morrer, só pelo crime de ser irmão de Cartouche, não é facto menos doloroso do que o mar rio porque passou o neto de Luís XV na torre do Templo, só pelo facto de ser neto de Luís XV. — Eu é que não posso aceitar a aproximação de semelhantes nomes — disse o bispo. — Mas por qual dos dois reclama? Por Cartouche ou por Luís XVII? Seguiu-se um momento de silêncio. O bispo quase se arrependia de ter ido ali, porque se sentia estranhamente impressionado. O convencional prosseguiu: — Vejo que não gosta do rigor da verdade, senhor padre! Gostava Cristo, que pegava numa vara e varria o templo. O seu azorrague cheio de relâmpagos dizia bem rudes verdades. Quando exclamava: Sinite parvulos, não fazia dis nção entre as crianças. Não teria escrúpulo de juntar o filho de Barrabás com o filho de Herodes. O tratamento de Alteza não serve de nada à inocência, porque tão augusta é coberta de andrajos como quando adornada de arminhos! — É exacto — disse o bispo em voz baixa. — Insisto, pois, na minha opinião — con nuou o convencional. — Falou-se em Luís XVII, entendamo-nos, portanto. Devemos chorar sobre todos os inocentes, sobre todos os már res, sobre todas as crianças, sejam filhos do povo, sejam filhos do rei? De acordo. Mas então, repito, é necessário retroceder muito além de 93, porque é antes de Luís XVII que as lágrimas devem começar a ser derramadas. Estou pronto a chorar com o senhor os filhos dos reis, contando que o senhor chore comigo, os filhos do povo! — Eu choro por todos — disse o bispo. — Igualmente! — exclamou G... — Mas se a balança deve inclinar para alguma parte, que seja antes para o lado dos filhos do povo, porque há mais tempo que sofrem! Seguiu-se nova pausa, a qual foi interrompida pelo convencional. Firmou-se num dos cotovelos, apertou entre o polegar e o índice dobrado a pele da cara, com o gesto maquinal de quem interroga ou reflecte, e fitou no bispo um olhar perscrutador, que respirava toda a energia da agonia. Foi quase uma explosão. — Sim, senhor bispo, há muito que o povo sofre! Mas faça o favor de dizer-me: o que pretendia ao vir interrogar-me e falar-me sobre Luís XVII, o senhor aquem eu nem sequer conheço? Desde que resido nesta terra, tenho vivido sempre aqui encerrado, sem companhia, sem ver ninguém, além desse rapazinho que me tem servido. O seu nome é verdade que o ouvi por duas ou três vezes e, devo dizê-lo, pronunciado com respeito, mas isso nada quer dizer; os homens astuciosos sabem perfeitamente como se lança poeira nos olhos do povo. É verdade, eu não ouvi o ruído da sua carruagem; deixou-a decerto oculta no arvoredo, à entrada do caminho que conduz aqui? Repito-lhe, não o conheço, disse-me que era o bispo, mas isso nada me adianta no conhecimento das suas o momento supremo. O bispo compreendeu-o, compreendeu toda a urgência da ocasião e que fora ali como sacerdote. Passando então gradualmente do extremo da frieza à extrema comoção, contemplou aqueles olhos fechados, pegou na mão inerte e gelada do moribundo, dizendo-lhe: — Esta hora pertence a Deus! Não acha que seria para lamentar que o nosso encontro não tivesse resultado? A estas palavras, o convencional reabriu os olhos com aspecto de sombria gravidade. — Senhor bispo — disse ele com len dão, procedida talvez mais da dignidade de alma do que da falta de forças — tenho passado a minha vida na meditação, no estudo e na contemplação. Tinha sessenta anos quando fui chamado pelo meu país, para tomar parte na direcção dos seus negócios. Obedeci. Comba os abusos que nele se davam; havia ranias, destruí-as; havia direitos e princípios, proclamei-os e professei-os. O território estava invadido, defendi-o; a França estava ameaçada, ofereci-lhe o meu sangue. Não era rico e fiquei pobre. Fui um dos senhores do Estado; os subterrâneos do Banco encontravam-se atulhados de dinheiro, a ponto de ser preciso escorar as paredes para não abaterem com o peso do oiro e da prata, e eu ia comer todos os dias a uma hospedaria da rua de l’Abre-Sec, onde se jantava por vinte e dois sous. Socorri os oprimidos, protegi os que sofriam. Rasguei as toalhas dos altares, é verdade, mas foi para ligar as feridas da pátria. Sustentei sempre o progresso da humanidade para a luz e opus-me algumas vezes ao progresso inexorável. Protegi sempre que me foi possível os meus próprios adversários; haja em vista o convento de urbanistas chamado de Santa Clara, situado no lugar de Petegben, na Flandres, exactamente onde os reis merovíngios possuíam o seu palácio de Verão, que eu salvei em 1793. Cumpri com o meu dever até onde pude e fiz o bem que me foi possível. No fim de tudo isto, fui expulso, perseguido, escarnecido, conspurcado, amaldiçoado, proscrito. Passados já tantos anos e apesar dos meus cabelos brancos, muita gente se julga ainda com direito de me desprezar; para a mul dão ignorante tenho rosto de condenado e eu resigno-me sem ódio ao isolamento do ódio. Agora, com oitenta e seis anos, vou morrer. Que pretende o senhor de mim? — A sua bênção — disse o bispo, ajoelhando. Quando o prelado ergueu a cabeça, sen u-se impressionado pela augusta expressão do convencional. Aquele homem sublime havia expirado. O bispo regressou a casa profundamente absorto nos seus pensamentos. Aquela noite passou-a a orar. No dia seguinte, alguns curiosos tentaram falar-lhe no convencional G...; o bispo, por única resposta, limitou-se a apontar-lhes para o céu. De então em diante, o prelado redobrou de afecto e comiseração para com os pequenos e os desvalidos. A menor alusão ao «velho celerado G...» fazia-o cair em profunda meditação. Ninguém podia negar que a passagem daquele espírito pela frente do seu e que o reflexo daquela grande consciência sobre a sua, tinham contribuído para o aproximar da perfeição. Como era de esperar, a «visita pastoral» ao an go membro da Convenção deu que falar durante algum tempo aos ociosos da terra. — É porventura à cabeceira de tal moribundo o lugar de um bispo? Era evidente não haver ali a esperança de conversão; todos os revolucionários são relapsos. Para que foi lá o bispo? Que nha afazer em semelhante lugar? Sempre era preciso estar com muita vontade de ver como o diabo levava uma alma! Certa ocasião, uma senhora já idosa, pertencente à classe que se julga espirituosa, disse-lhe: — Andam todos ansiosos por saber quando recebe Vossa Grandeza o barrete vermelho. — É uma cor muito viva — respondeu o bispo. — Felizmente, os que a desprezam nos barretes, veneram-na nos chapéus. XI — Restrição Seria erro concluir do que temos dito, que Monsenhor Bemvindo fosse um bispo filósofo ou sacerdote patriota. O seu encontro, a que se poderia chamar aliança, com o convencional G..., deixara-lhe apenas certo respeito pelas desgraças alheias, respeito que o tornara mais afectuoso ainda. Apesar de Monsenhor Bemvindo não se ter dado nunca à polí ca, vem a propósito indicar aqui, ainda que resumidamente, qual a sua a tude nos acontecimentos daquela época, se é que pelo espírito do bispo passou algum dia a lembrança de tomar tal atitude. Voltemos, pois, alguns anos atrás. Pouco tempo depois da elevação de Myriel ao episcopado, nomeou-o o imperador barão do império, bem como a vários outros bispos. Por ocasião da prisão do Papa, na noite de 5 para 6 de Julho de 1809, Myriel foi convidado por Napoleão a tomar parte no sínodo dos bispos de França e de Itália convocado em Paris. O sínodo efectuou-se na igreja de Nossa Senhora, reunindo-se a primeira vez a 15 de Junho de 1811, sob a presidência do cardeal Fesch. Myriel foi um dos noventa e cinco bispos que concorreram, porém, não assis u senão a uma sessão e a três ou quatro conferências par culares. Bispo de uma diocese montanhesa, vivendo pobre e rus camente no meio da natureza agreste, parece que levara ao centro daqueles eminentes personagens ideias que alteravam a temperatura da assembleia. Regressou, pois, a Digne, onde, sendo interrogado sobre o motivo do seu breve regresso, respondeu: — Eu incomodava-os lá. A minha presença era para eles, por assim dizer, uma porta aberta pela qual lhes entrava o ar exterior. Noutra ocasião, disse ainda: — Então que querem? Aqueles senhores são príncipes e eu não passo de um pobre bispo aldeão. O facto é que Myriel não fora bem recebido. Entre outras coisas singulares parece que, certo dia, encontrando-se em casa de um dos seus colegas mais qualificados, dissera irreflectidamente: — Que lindos relógios! Que lindos tapetes! Que vistosas librés! Isto deve ser tudo muito importuno! Nunca consen ria que tais superfluidades me es vessem constantemente a ofender a vista, quando há tanta gente a morrer de fome e de frio. O ódio ao luxo, seja dito de passagem, não seria ódio inteligente, porque traria consigo a decadência das artes. Todavia, entre os ministros da igreja, o luxo, a não ser em casos de representação ou ocasião de cerimónias, não deve ter cabimento, porque parece revelar hábitos na realidade pouco carita vos. Um sacerdote opulento é um contra-senso O dever do padre é velar junto dos pobres. Será possível que o sacerdote possa estar em con nuo contacto com toda a espécie de privações, de infortúnios e indigências, sem ter sobre si próprio à semelhança do pó do trabalho, uma porção diminuta dessa santa miséria? Pode conceber-se que um homem colocado junto de um fogareiro não tenha calor? É crível que um operário que lida con nuamente com uma fornalha não tenha nem um só cabelo crestado, nem uma unha enegrecida, nem uma baga de suor na testa, nem uma farrusca de carvão no rosto? A prova mais concludente de caridade no padree sobretudo no bispo é a pobreza. Era isto, sem dúvida, o que pensava o bispo de Digne. Não se creia, porém, que Myriel sobre certos pontos delicados participasse do que nós chamamos «ideias do século». Introme a-se pouco nas questões teológicas da época e não emi a opinião sobre as questões vitais da Igreja e do Estado; mas, se o apertassem muito, veriam que nha mais de ultramontano do que de galicano. Visto que fazemos um retrato e nada desejamos ocultar somos obrigados a acrescentar que a decadência de Napoleão foi totalmente indiferente para o bispo. Desde 1813 por diante, aderiu ou aplaudiu todas as manifestações hos s contra o imperador, levando o extremo a não querer ir visitá-lo na ocasião do seu regresso da ilha de Elba e abstendo-se de ordenar na sua diocese preces públicas a favor dele por ocasião dos Cem Dias. Além de sua irmã Bap s na, o bispo nha dois irmãos, um general e outro prefeito, aos quais escrevia com frequência. Durante algum tempo mostrou-se severo para com o primeiro, porque, tendo o general um comando na Provença, na ocasião do desembarque em Cannas, se colocara à frente de mil e duzentos homens e perseguira o imperador mais como quem queria deixá-lo fugir do que alcançá-lo. Monsenhor Bemvindo, teve, pois, também, a sua hora de espírito de par do, a sua nuvem, a sua hora de animosidade, em que a sombra das paixões da época perpassou por aquele grande e sereno espírito ocupado das coisas eternas. Tal homem, merecia, decerto, ser isento de opiniões polí cas. Mas é necessário não se interpretar mal o nosso pensamento: não confundimos aquilo a que chamam opiniões polí cas, coma grande aspiração ao progresso, com a sublime fé patrió ca, democrá ca e humanitária, que hoje em dia deve constituir a essência de qualquer inteligência generosa. Sem aprofundar as questões que só indirectamente se ligam com o assunto deste livro, diremos apenas: seria para desejar que o bondoso bispo nunca fosse realista nem que o seu olhar jamais se desviasse um só instante da serena contemplação em que, acima das ficções e dos ódios deste mundo, acima deste tempestuoso vai-vem das coisas humanas, se vê distintamente fulgurar a luz da verdade, da justiça e da caridade. Embora reconheçamos que não foi para uma missão polí ca que Deus criara o bispo Myriel, compreenderíamos e admiraríamos o seu proceder, se ele em nome do direito e da liberdade, protestasse e opusesse firme, vigorosa e justa resistência contra Napoleão no tempo da sua omnipotência. Todavia, o que nos agradava ver pra car contra os que ele, como ele entaipados naquela diocese sem saída para o cardinalato e muito parecidos com o seu bispo. Tão geralmente reconhecida era a impossibilidade de medrar à sombra de Monsenhor Bemvindo, que os ordenandos apenas saíam do seminário, tratavam de arranjar recomendação para os arcebispos de Aix ou de Auch, re rando-se logo, porque, enfim, cada qual o que deseja é adiantar-se, e um santo que vive no meio de uma excessiva abnegação é perigosa vizinhança, pode tornar-se contagiosa a sua pobreza incurável, paralisar as ar culações do adiantamento aos que se lhe aproximam, exigir-lhes, em suma, maior desapego de si mesmos, do que aquele para que se acham dispostos. Por conseguinte, todos fogem de tão incomoda va virtude, e por isso se encontrava Monsenhor Bemvindo no maior isolamento. Vivemos numa sociedade extremamente sombria. Conseguir obter bom êxito, é o único título valioso no seio da corrupção. Abominável coisa é o bom êxito, seja dito de passagem. A sua falsa parecença com o merecimento ilude os homens. Para o vulgo, o bom êxito equivale a supremacia. O bom êxito ilude a história. Só Tácito e Juvenal se lhe não submetem. Existe na época presente uma filosofia quase oficial, que envergou a libré do bom êxito e lhe faz o serviço da antecâmara. Fazei por serdes bem sucedidos, é a teoria. A prosperidade supre a capacidade. Ganhai na lotaria e sereis um homem hábil. A veneração é para quem triunfa. Nascei bem fadado, não queirais mais nada. Tende fortuna que o resto virá por si; sede feliz e julgar-vos-ão grande. Se pusermos de parte as cinco ou seis excepções imensas que fazem o esplendor de um século, a admiração contemporânea é apenas miopia. A doiradura também é oiro. Pouco importa que não sejais ninguém, contanto que consigais alguma coisa. O vulgo é um Narciso velho, que se idolatra a si próprio e aplaude o vulgar. A faculdade sublime de ser Moisés, Esquilo, Dante, Miguel Angelo ou Napoleão, concede-a a multidão indistintamente e por unanimidade a quem atinge o fim a que se propôs, seja no que for. Transforme-se um tabelião em deputado, escreva um suposto Corneille Tiridates, possua qualquer eunuco um harém, ganhe um Prudhomme militar acidentalmente a batalha decisiva de uma época, invente um bo cário solas de papelão para o exército do Sambre-et-Meuse e, vendendo-as por coiro, consiga arranjar um rendimento de quatrocentos mil francos, despose qualquer pobretão a usura e obtenha desse consórcio sete ou oito milhões, torne-se bispo um pregador fazendo citações que não percebe, seja o mordomo de uma casa opulenta tão rico ao deixar o seu lugar que o façam ministro das finanças, a tudo isto os homens chamarão expressões de génio, do mesmo modo que denominam belo o rosto de Mousqueton e majestoso o aspecto de Cláudio, confundindo com as constelações do abismo as estrelas que os gansos imprimem com as patas na superfície mole do lodaçal. XIII — Quais eram as crenças do bispo Debaixo do ponto de vista da ortodoxia, é inú l sondar o bispo de Digne Almas como a dele inspiram-nos todo o respeito. Deve acreditar-se na consciência do justo pelo que ela própria afirma. Ainda quando não fora senão porque nós, a respeito de certas naturezas, admi mos o desenvolvimento possível de todas as belezas da virtude humana numa crença diferente da nossa. Quais eram os seus sen mentos a respeito de tal ou tal dogma, a respeito de tal ou tal mistério? Esses segredos do foro ín mo apenas o túmulo os conhece. Do que estamos certos é de que nunca as dificuldades da fé foram para ele transformadas em hipocrisia. Não há coisa alguma que faça apodrecer o diamante. «Credo in Patrem», costumava ele repe r. Afora isto, as suas boas obras davam-lhe a sa sfação que basta à consciência e que nos segreda: «Deus é contigo». O que julgamos dever notar é que afora e, por assim dizer, acima da sua fé, o bispo possuía um excesso de amor. Era por isso, quia multum amavit, que o julgavam vulnerável os «homens sérios», as «pessoas sisudas», a «gente sensata», locuções predilectas do nosso mesquinho mundo em que o egoísmo recebe o santo e a senha do pedantismo. Que excesso de amor era esse? Era uma benevolência serena, que abarcava todos os homens e às vezes chegava a estender-se até às coisas. Era afável para com todos e indulgente com as criaturas de Deus. Todo o homem, mesmo o mais bondoso, é dotado de uma dureza irreflec da, que se expande contra os animais. O bispo de Digne não era dotado dessa dureza, aliás, peculiar a muitos sacerdotes. Não a ngia o exagero do brâmane, mas parecia ter meditado naquelas palavras do Eclesiastes: «Quem sabe para onde vão as almas dos animais?». As fealdades do aspecto, as disformidades do ins nto, não o perturbavam nem indigitavam; pelo contrário, comoviam-no e quase o enterneciam. Parecia que, pensa vo, procurava nelas, além da vida aparente, a causa, a explicação ou a desculpa; havia momentos em que parecia pedir a Deus comutações. Examinava sem cólera e com a atenção do linguista que decifra um palimpsesto, o caos que ainda existe na natureza. Este profundo meditar dava lugar a que ele às vezes proferisse ditos singulares. Uma manhã, andando a passear no jardim e supondo-se a sós, por isso que não via a irmã, que caminhava atrás dele, parou de súbito e, fitando um objecto que jazia no chão, o qual era nada menos que uma enorme aranha, negra, peluda, horrenda, murmurou, de modo que a irmã ouviu: — Pobre animal! Que culpa tem ele de ser assim? Porque razão havíamos de ocultar estas quase divinais criancices da bondade? São talvez puerilidades, mas puerilidades sublimes como as de S. Francisco de Assis e Marco Aurélio. Uma ocasião, torceu um pé só para não pisar uma formiga. Assim vivia aquele homem justo. As vezes adormecia no jardim, e então nada mais venerando do que a figura do bom bispo. Se dermos crédito às no cias que temos dos precedentes da sua vida, Monsenhor Bemvindo, na sua juventude e ainda mesmo no tempo da sua virilidade, foi homem de génio áspero e até violento. A sua mansidão universal era mais resultado de uma grande convicção, que por entre os sucessos da vida se lhe fora lentamente infiltrando no coração e caindo na alma pensamento por pensamento, do que ins nto da natureza A índole do homem pode como o rochedo, ser cavada por gotas de água, e essas concavidades nunca mais se desfazem, nunca mais se destroem. Em 1815, como nos parece já ter dito, contava ele setenta e cinco anos, mas parecia não ter mais de sessenta. Era baixo e um tanto gordo, gordura que comba a dando longos passeios a pé: nha o andar firme e pouco se curvava, pormenor do qual nada pretendemos inferir; Gregório XVI, era desempenado e risonho aos oitenta anos, o que não obstava que fosse um mau bispo Monsenhor Bemvindo possuía o que o povo chama «um bonito rosto», porém, tão amável que fazia esquecer a beleza. Quando conversava com aquela infan l alegria que cons tuía uma das suas graças, parecia que a sua jovialidade se comunicava a quem se encontrava com ele e que todo ele respirava alegria. A frescura e rosado da tez, a alvura dos dentes, que ainda conservava todos e que mostrava quando ria, davam-lhe esse aspecto de franqueza e afabilidade, que faz com que se diga de um homem: «É um bom rapaz», e de um velho: «É um bom homem». Foi essa a impressão que ele produziu em Napoleão. No primeiro momento e para quem o via pela primeira vez, não passava, efec vamente, de um bom homem, porém, decorridas algumas horas de permanência junto dele, por pouco expansivo que es vesse, via-o transfigurar-se lentamente, assumindo uma expressão veneranda; a sua fronte elevada e séria, que as cãs tornavam augusta, era também augusta pela meditação; a majestade sobressaía-lhe da bondade sem que a bondade cessasse de resplandecer: a sua vista produzia aimpressão que se sen ria ao ver um anjo, sorrindo, abrir lentamente as asas, sem deixar de sorrir. Um inexplicável respeito se apossava gradualmente do coração de quem o contemplava. Parecia a quem o via que nha diante dos olhos uma dessas almas fortes, indulgentes e ricas de provações em que o pensamento é tão sublime, que não pode deixar de ser suave. A oração, a celebração dos o cios religiosos, a esmola, a consolação dos aflitos, a cultura de um canteiro, a fraternidade, a frugalidade, a hospitalidade, o desapego, a confiança, o estudo, o trabalho, ocupavam-lhe todos os momentos da existência «Ocupavam» é o termo próprio, porque, efec vamente, cada dia de existência do bispo não tinha um momento vago de bons pensamentos, de boas palavras e de boas obras. Deixava, porém, de ser completo, se a chuva ou o frio o impedia de ir passear ao jardim uma ou duas horas antes de se deitar, depois de as duas mulheres se terem acomodado. Parecia ser para ele uma espécie de rito o preparar-se para o sono da meditação, na presença do grandioso espectáculo da noite. Às vezes, a hora bastante adiantada da noite, as duas mulheres, se acaso estavam acordadas, ouviam ainda o ruído dos seus vagarosos passos no jardim. Ali permanecia a sós consigo, em plácido recolhimento e adoração, comparando a serenidade do seu coração com a do éter, impressionado no meio das trevas pelos esplendores visíveis das constelações e pelos invisíveis esplendores de Deus, abrindo a alma aos pensamentos que descem do infinito. Em tais momentos, oferecendo o coração à hora em que as flores nocturnas oferecem o seu perfume, aceso como uma lâmpada no meio da noite estrelada, enlevado no meio do cin lar universal da criação, nem ele mesmo saberia dizer o que se passava no seu espírito; sen a evaporar-se dele e descer sobre ele o que quer que fosse. Misteriosas permutações entre os abismos da alma e os abismos do universo! sonambulismo melancólico do animal, a transformação da morte, a recapitulação de existências encerradas num túmulo, a incompreensível filiação dos amores sucessivos do eu persistente, a essência, a substância, a alma, a natureza, a liberdade e a necessidade; problemas indecifráveis, densidades sinistras, sobre as quais se debruçam os arcanjos do espírito humano; abismos temerosos que Lucrécio, S. Paulo e Dante contemplam com esse olhar fulgurante que parece despontar estrelas no infinito em que se fixa. O bispo era apenas um homem que observava exteriormente as questões misteriosas, sem as perscrutar nem debater, nem se cansar a averiguá-las, um homem que respeitava os mistérios do incompreensível. LIVRO SEGUNDO — A QUEDA I — No fim de um dia de marcha Num dos primeiros dias do mês de Outubro de 1815, uma hora antes do pôr-do-Sol, entrou na cidade de Digne um homem que viajava apé. Os raros habitantes que a essa hora se encontravam às janelas ou às portas de suas casas, observavam o viajante com uma espécie de inquietação. Seria, na verdade, di cil encontrar viandante de aspecto mais miserável. Era um homem ainda no vigor da idade, de estatura mediana e robusto. Poderia ter, quando muito, quarenta e seis ou quarenta e oito anos. Escondia-lhe parte do rosto, crestado pelo sol e a escorrer em suor, um boné de pala de couro A camisa, de linho grosseiro e amarelado, apertada no pescoço por uma pequena âncora de prata, deixava- lhe a descoberto o peito cabeludo; trajava calças de co m azul, muito velhas, coçadas, brancas num joelho e rotas no outro, uma esfarrapada blusa parda, tendo num dos cotovelos um remendo de pano verde, cosido com cordel. Servia-lhe de gravata um lenço torcido, enrolado em volta do pescoço. Calçava sapatos forrados, sem meias, e trazia às costas uma volumosa mochila de soldado, em bom estado e muito apertada, e na mão um enorme cajado nodoso. Afora isto, traziaa barba crescida, os cabelos eram raros e eriçados, mas parecia não terem sido cortados havia muito tempo. O suor, o calor, a poeira, a viagem a pé, acrescentavam ainda uma estranha sordidez a este conjunto de andrajos. Ninguém o conhecia. Era evidentemente um forasteiro. De onde viria? Do Meio Dia; talvez da beira-mar, pois entrava em Digne pela mesma rua onde, sete meses antes, nham visto passar Napoleão, ao ir de Cannes para Paris. A julgar pelo cansaço de que dava mostras, aquele homem devia ter caminhado todo o dia. Algumas mulheres do an go bairro situado à entrada da cidade nham-no visto parar ao pé das árvores do boulevard Gassendi e beber água na fonte que fica na extremidade do passeio. Grande devia ser a sua sede, pois que, dali a cem passos, alguns rapazes, que foram atrás dele, viram-no beber novamente na fonte da praça do Mercado. Chegando à esquina da rua de Poichevert, tomou à esquerda e principiou a caminhar em direcção à mairie, para onde entrou. Um quarto de hora depois, tornou a sair. À porta estava sentado um gendarme, no mesmo banco de pedra a que o general Dronot subira no dia 4 de Março, para ler à mul dão assustada de Digne a proclamação datada do golfo Juan. O desconhecido tirou o boné e cumprimentou humildemente o gendarme. Em vez de corresponder ao cumprimento, o soldado examinou-o com atenção e, depois de o seguir algum tempo com a vista, entrou na mairie. Havia então em Digne uma excelente estalagem, in tulada A Cruz de Coíbas, cujo proprietário era um tal Jacquin Labarre, homem de muita consideração na cidade, devido ao seu parentesco com outro Labarre, an go soldado do regimento dos Guias e dono da estalagem dos Três Delfins, em Grenoble, a respeito da qual, por ocasião do desembarque do imperador, nham corrido na terra numerosos boatos. Contava-se que, em Janeiro desse ano, o general Bertrand, disfarçado em carreteiro, fora ali repe das vezes, distribuindo, por essa ocasião, a soldados e civis, auns a condecoração da Legião de Honra, a outros dinheiro às mãos cheias. A realidade é que, na sua chegada a Grenoble, o imperador recusara ir para o palácio da prefeitura e agradecera ao maire, dizendo: — Vou para casa de um honrado camarada meu conhecido. E foi hospedar-se na estalagem dos Três Delfins. Esta glória do Labarre dos Três Delfins reflec a-se a vinte e cinco léguas de distância sobre o Labarre da Cruz de Coíbas. Costumavam dizer na cidade, quando falavam dele: — O primo do de Grenoble. O desconhecido dirigiu-se, pois, para a estalagem que era a melhor da localidade, e entrou na cozinha, que dava imediatamente para a rua. Os fogões estavam todos acesos. No meio da cozinha, destacava-se a figura do estalajadeiro, que, exercendo conjuntamente as funções de cozinheiro, corria de um lado para o outro, atarefado nos aprestos de excelente jantar des nado aos carreteiros, que se ouviam conversar e rir com grande estrépito na sala próxima. Além dos coelhos e perdizes, cozinhados de diferentes maneiras, estavam também a ser preparadas duas grandes carpas da lagoa de Lauzet e uma truta da lagoa de Alloz. O dono da estalagem sen ndo abrir a porta e entrar mais um freguês, perguntou, sem tirar os olhos do que estava a fazer: — Que deseja o senhor? — Comer e dormir — respondeu o desconhecido. — Nada mais fácil — tornou o estalajadeiro. E, voltando-se para o recém-chegado, examinou-o dos pés à cabeça e acrescentou: — Pagando! O homem tirou da algibeira da blusa uma bolsa e respondeu: — Eu tenho dinheiro. — Nesse caso, estou às suas ordens. O homem tornou a guardar a bolsa, rou a mochila, encostou-a à porta e foi sentar-se num mocho, junto ao lume, sem largar da mão o cajado. As noites de Outubro em Digne são muito frias. Entretanto, o estalajadeiro, andando de um lado para o outro, não deixava de observar o recém-chegado. — A que horas se janta? — Daqui a pouco — respondeu o estalajadeiro. Enquanto o desconhecido se aquecia, de costas voltadas para o digno estalajadeiro Jacquin Labarre, este rou um lápis da algibeira, rasgou um bocado de um jornal, já an go, que estava em cima de uma mesa ao pé da janela, escreveu uma ou duas linhas, dobrou-o e, sem o fechar, entregou-o a um rapazinho, que parecia servir-lhe, ao mesmo tempo, de ajudante de cozinha e moço de recados, disse-lhe algumas palavras ao ouvido e o rapaz partiu a correr em direcção à mairie. O desconhecido, que não reparara em nada disto, tornou a perguntar: — O jantar ainda levará muito tempo? — Não tarda — respondeu o estalajadeiro. Decorridos alguns minutos, voltou o rapazito. O estalajadeiro desdobrou rapidamente O homem obedeceu. Foi sentar-se junto da chaminé, estendendo para a fogueira os pés magoados de andar e respirando o ape toso cheiro que se exalava da panela. O seu rosto, oculto em parte pela pala do boné, tomou uma vaga aparência de sa sfação, a par do pungente aspecto que dá o hábito do sofrimento. Tinha, contudo, um perfil firme, enérgico e triste. A sua fisionomia era singularmente composta; à primeira vista parecia humilde, mas analisada de damente parecia severa. Os olhos brilhavam-lhe sob as sobrancelhas como o fogo sob a cinza. Um dos homens que estavam sentados à mesa era um peixeiro, o qual, antes de vir para a taberna da rua de Chaffaut, nha ido deixar o cavalo na estalagem de Labarre. Quisera o acaso que ele, nesse mesmo dia pela manhã, encontrasse um desconhecido de mau aspecto, caminhando entre Brás d’Asse e... (Não nos lembra o nome. Creio que Escoublon). Ora, encontrando-o, o homem, que parecia vir já muito cansado, pedira-lhe que o deixasse ir um bocado a cavalo, ao que o peixeiro não respondeu, apressando o passo. O mesmo peixeiro fazia parte, meia hora antes, do grupo que rodeava Jacquin Labarre, e ele próprio contara o desagradável encontro que vera pela manhã, a quantos se encontravam na Cruz de Coíbas. Assim, pois, mesmo do lugar em que estava, fez um sinal impercep vel ao taberneiro, que se acercou dele, trocando ambos algumas palavras em voz baixa. Entretanto, o forasteiro parecia mergulhado nas suas reflexões. O taberneiro voltou para junto da chaminé, pôs subitamente a mão no ombro do desconhecido e disse-lhe: — Trata de sair já daqui. O homem voltou-se e respondeu com brandura: — Também sabe?... — Sei. — Já na outra estalagem me não quiseram recolher. — E nesta põem-te fora. — Para onde quer que eu vá? — Para onde quiseres! O desconhecido pegou no cajado e na mochila e saiu. Quando ele saiu, vários rapazes que o nham seguido desde a Cruz de Coíbas e que pareciam estar à sua espera, começaram a a rar-lhe pedradas. Ele voltou-se para trás e ameaçou-os com o cajado; os rapazes dispersaram logo como um bando de estorninhos. Con nuando a caminhar passou em frente da cadeia. Da porta pendia uma corrente de ferro presa a uma sineta, puxou por ela. Quase no mesmo instante, abriu-se um postigo. — Senhor carcereiro — disse ele, rando respeitosamente o boné — faz-me o favor de me recolher por esta noite? — A cadeia não é estalagem! — respondeu uma voz. — Faça com que o prendam e para cá virá! E acto contínuo fechou o postigo. O desconhecido con nuou a caminhar e entrou numa rua, orlada de jardins em quase toda a sua extensão, fechados apenas por sebes, o que a tornava mais alegre. Entre os jardins e as sebes avistou uma casinha branca de um só andar, através de cuja janela se via luz. Espreitou pela vidraça como fizera na taberna. Era uma sala grande caiada de branco, com uma cama coberta por uma colcha de chita e um berço a um canto, algumas cadeiras de palhinha e uma espingarda de dois canos pendurada na parede. No meio da casa uma mesa com comida. Um candeeiro de latão alumiava a toalha de grosseiro linho branco, um cangirão de estanho, luzente como prata e cheio de vinho, uma terrina de barro escuro, que fumegava. A mesa estava sentado um homem de meia idade, rosto franco e alegre, brincando com uma criancinha que nha nos joelhos. A curta distância via-se uma mulher, ainda nova, a amamentar outra criança. O pai e a criança riam muito, a mãe sorria. O desconhecido quedou-se um instante a contemplar este sereno e risonho espectáculo. O que lhe iria no espírito? Só ele o poderia dizer. É natural que pensasse que uma casa onde havia alegria, devia ser hospitaleira e que onde via tanta felicidade talvez encontrasse alguma compaixão. Bateu ao de leve na vidraça com os dedos. Vendo que não fora ouvido, bateu segunda vez e ouviu então a mulher dizer: — Parece-me que bateram. — Eu não ouvi — respondeu o marido. O homem tornou a bater. O marido levantou-se, pegou no candeeiro, dirigiu-se para a porta e abriu-a. Era um homem de elevada estatura, meio camponês, meio operário. Trazia um largo avental de couro que lhe subia até ao ombro esquerdo e sobre o qual lhe pendia à cintura, tão seguros como se es vessem num cabide, um martelo, um lenço vermelho e um polvorinho. A camisa, desapertada, deixava-lhe a descoberto o alvo e entroncado pescoço. Tinha sobrancelhas espessas, barba comprida, os olhos à flor do rosto e, além de tudo isto, esse ar de quem está em sua casa, que é uma coisa inexprimível. — Peço-lhe que me desculpe de o ter incomodado — disse o desconhecido — mas poderia o senhor, pagando eu, dar-me um prato de sopa e um canto para dormir na barraca que está no jardim? — Quem é você? — perguntou o dono da casa. O homem respondeu: — Venho de Puy Moisson. Caminhei todo o dia para vencer as doze léguas até aqui. Poderia fazer-me o que lhe pedi, pagando? — Eu não nha dúvida em recolher um homem de bem que me pagasse — disse o camponês. — Mas porque não vai para a estalagem? — Não têm lugar. — Não é possível! Hoje não é dia de mercado. Já foi à estalagem do Labarre? — Já, sim, senhor. — E então? O desconhecido respondeu com dificuldade: — Não sei, não me quis receber. — E já foi a uma estalagem que há na rua de Chaffaut? Esta segunda pergunta aumentou extraordinariamente o embaraço do forasteiro, que balbuciou: — Aí também não me quiseram dar pousada. O rosto do dono da casa assumiu então uma expressão de desconfiança. Mirou novamente o desconhecido dos pés à cabeça e de repente exclamou com uma espécie de estremecimento: — Será você o tal homem? Dizendo isto, relanceou outro olhar para o desconhecido, deu três passos para trás, pousou o candeeiro em cima da mesa e lançou mão da espingarda, que se encontrava pendurada na parede. Às palavras do camponês: «Será você o tal homem?», a mulher levantara-se, pegara nas criancinhas ao colo e refugiara-se precipitadamente atrás do marido, olhando aterrada o desconhecido, com o peito descoberto, o olhar desvairado, murmurando em voz baixa: — É decerto um ladrão! Tudo isto vera lugar em menos tempo do que é necessário para o imaginar. Depois de examinar algum tempo o homem como quem examina uma víbora, o dono da casa voltou para a porta e disse: — Vai-te daqui! — Por caridade — disse o homem — dê-me ao menos um prato de sopa! — Dou-te é um tiro — disse o camponês. E em seguida fechou violentamente a porta. O desconhecido ouviu correr os ferrolhos e, decorrido um momento, fechou-se também a janela e ouviu ainda o ruído de uma tranca de ferro, com que a segurava. A noite con nuava a descer e a aragem fria dos Alpes aumentava de força. Ao clarão do dia expirante, o desconhecido avistou, num dos jardins que orlam a rua, uma espécie de cabana que lhe pareceu ser feita de feixes de feno. Saltou resolutamente uma grade de madeira e achou-se no jardim. Aproximou-se da cabana, que nha por porta uma abertura estreita e pouco elevada, assemelhando-se aos abrigos que os cantoneiros constroem na beira das estradas. Supôs ser, efec vamente, a cabana de um cantoneiro; nha frio e fome; não poderia matar a fome, mas ao menos nha ali um abrigo contra o frio. De ordinário, estas cabanas não são ocupadas de noite. Deitou-se de bruços e entrou para a cabana, onde encontrou calor e uma cama de palha. Conservou-se algum tempo deitado, sem poder fazer o menor movimento, tão fa gado ele estava, e em seguida, como a mochila que trazia às costas o incomodava, e era, além disso, um óp mo travesseiro, principiou a desatar uma das correias. Neste momento ouviu um rosnar feroz. Olhou. À entrada da cabana desenhava-se, no meio das trevas, a cabeça dum enorme mastim. Abrigara-se na casinhota de um cão. Dotado de prodigiosa força, o homem lançou mão do cajado, fez da mochila escudo deveres para com as criaturas (Mt VI, 20-25). Quanto aos outros deveres, achara-os o bispo indicados e prescritos em diversas partes; aos soberanos e aos súbditos, na Epístola aos Romanos; aos magistrados, às esposas, às mães e aos mancebos, em S. Pedro; aos maridos, aos pais, aos filhos e aos criados, na Epístola aos Efésios; aos fiéis, na Epístola aos Hebreus; às virgens, na Epístola aos Corín os. De todas estas prescrições formavam, à força de trabalho, um todo harmónico, que tencionava oferecer às almas. Às oito horas estava ainda a trabalhar, escrevendo incòmodamente em quartos de papel, com um volumoso livro aberto sobre os joelhos, quando Magloire entrou, segundo o costume, para tirar a prata do armário junto do leito. Um momento depois, calculando que a mesa estaria posta e que talvez a irmã es vesse à espera dele, fechou o livro, levantou-se e encaminhou-se para a sala de jantar. A sala de jantar era uma sala oblonga, com fogão, uma porta para a rua, como já dissemos, e uma janela para o jardim. Efec vamente, Magloire acabava de pôr a mesa. Ao mesmo tempo que andava neste serviço, conversava com Baptistina. Sobre a mesa que ficava próxima do fogão estava colocado um candeeiro. No fogão crepitava uma boa fogueira. Facilmente se pode imaginar o aspecto daquelas duas mulheres, ambas com mais de sessenta anos. Magloire, baixa, gorda e ágil; Bap s na, magra, débil, meiga, um pouco mais alta do que o irmão, trajando um ves do de seda cor de castanha, que era a cor da moda em 1806, o qual ela comprara em Paris nesse ano e que ainda lhe durava. Para nos servirmos de uma dessas locuções vulgares que têm o mérito de exprimir numa só frase uma ideia que mal se desenvolveria numa página, Magloire parecia uma campónia e Baptistina uma fidalga. Magloire trazia uma touca branca de rufos na cabeça, um cordãozinho de oiro ao pescoço, único adereço feminino que havia em casa, um lenço preto posto por baixo de um ves do de lã preto, com mangas largas e curtas, um avental de chita de quadrados verdes e vermelhos, atado à cintura por uma fita verde, nos pés, sapatos grossos e meias amarelas, como as mulheres de Marselha. O ves do de Bap s na era talhado pelos moldes de 1806: cinta curta, saia de pouca roda, mangas de dragonas com abas e botões. Uma touca especial ocultava-lhe os cabelos brancos. Magloire nha ar de inteligência, bondade e agilidade; os cantos da boca desigualmente contraídos, e o lábio superior mais grosso do que o inferior, davam-lhe uma expressão de orgulhosamente imperial. Enquanto o bispo não exprimia a sua vontade, ela falava resolutamente, com certa liberdade misturada de respeito, mas apenas ele a manifestava, obedecia-lhe tão submissamente como Baptistina. Quanto a Bap s na, esta nem sequer abria a boca. Limitava-se a obedecer e a condescender. Ainda mesmo em nova, não fora bonita; nha olhos grandes e azuis à flor do rosto, nariz comprido acavaletado; mas o seu aspecto indicava inefável bondade, fora predes nada para a mansidão. Mas a fé, a caridade e a esperança, estas três virtudes que reanimam a alma, foram gradualmente elevando essa mansidão a san dade. A natureza fizera-a ovelha, a religião fê-la anjo. Pobre santa! Doce recordação desvanecida! Bap s na referiu tantas vezes, no decorrer do tempo, o que naquela noite se passou no paço, que muitas pessoas, que ainda hoje vivem, se recordam de todos os pormenores da narração. Na ocasião em que o bispo entrou, Magloire falava com certa vivacidade. Conversava com Bap s na sobre um assunto que lhe era familiar e ao qual o bispo estava acostumado. Tratava-se da porta da rua. Parece que, na ocasião em que saíra a fazer compras para a ceia, Magloire ouvira dizer certas coisas em diversos lugares. Falava-se de um homem de má catadura, de um vagabundo suspeito, que nesse dia nha chegado à cidade, onde decerto ainda permanecia; dizia-se que era provável que nessa noite quem se recolhesse tarde, vesse algum mau encontro. Que a polícia era a culpada. Mas como não havia de ser assim, se o prefeito e o maire, por causa da sua inimizade, do que tratavam era de comprometer-se mutuamente, deixando andar tudo ao Deus dará? Que pertencia à gente prudente incumbir-se da polícia e guardar-se a si mesma, tendo o cuidado de fechar e aferrolhar bem as portas. Magloire acentuou muito estas úl mas palavras, mas o bispo que vinha do seu quarto, onde sen ra frio, sentou-se em frente do fogão a aquecer-se, com o pensamento, ao que parecia, distraído noutras coisas. Por consequência, passava desapercebida para ele a frase que Magloire acentuava de propósito. Repe u-a. Então, Bap s na, querendo sa sfazer Magloire, sem desgostar o irmão, aventurou-se a dizer timidamente: — O irmão ouviu o que disse Magloire? — Vagamente — respondeu o bispo. Depois, voltando um pouco a cadeira, descansou as mãos nos joelhos e, erguendo para a velha criada o rosto cordial e risonho, a que o clarão da fogueira punha um tom insinuante, acrescentou: — Então, o que há? Que sucedeu? Magloire repe u a história desde o princípio, exagerando-a até sem dar por isso. Era o caso que, àquela hora, se encontrava na cidade um vagabundo esfarrapado, uma espécie de mendigo, perigoso, o qual se apresentara a pedir pousada em casa de Jacquin Labarre, que não quisera recolhê-lo, e a quem nham visto no boulevard Gassendi e andar a vaguear pelas ruas próximas ao anoitecer. Era uma espécie de malandrim com uma cara de meter medo. — Sim? — disse o bispo. A condescendência do prelado em interrogá-la animou Magloire, a quem, no seu entender, esta circunstância indicava que o bispo não estava longe de se assustar; portanto, prosseguiu com ar triunfante: — É como lhe digo, Monsenhor. Tenho o pressen mento de que esta noite acontece alguma desgraça na cidade! E ainda para mais, a polícia deixa correr tudo sem tomar providências (repe ção inú l). Viver numa terra montanhosa e nem sequer haver à noite lampiões pelas ruas! Se alguém sai, arrisca-se a uma desgraça na escuridão! A menina também é da minha opinião, Monsenhor. — Eu? — atalhou Bap s na. — Eu não digo nada. O que o meu irmão fizer é sempre bem feito. Magloire continuou, como se não tivesse ouvido o protesto: — Dizíamos há pouco que esta casa está muito mal segura e que se Monsenhor o permi sse, eu iria ainda hoje chamar o serralheiro Paulino Musebois para vir pôr os an gos fechos que a porta nha; estão ali, é um instante. E digo que são precisos os fechos, ainda que não seja senão por esta noite, porque uma porta que para se abrir de fora basta levantar uma aldraba é de fazer a gente andar sempre em sobressalto; e, ainda para mais, Monsenhor tem o costume de mandar logo entrar, e lá pela noite morta nem é preciso pedir licença... Neste momento bateram à porta com força. — Entre quem é — disse o bispo. III — Heroísmo da obediência passiva A porta abriu-se. Abriu-se de par em par, como se alguém a empurrasse com energia e resolução. Entrou um homem. Este homem já nós conhecemos. Era o forasteiro que vimos há pouco a divagar em busca de pousada. Depois de entrar, deu um passo e parou, deixando atrás de si a porta aberta. Trazia a mochila às costas, o cajado na mão. A expressão do seu olhar era rude, atrevida, fatigada e violenta. Era uma aparição sinistra. Magloire nem força teve para gritar. Estremeceu e ficou boquiaberta. Bap s na voltou-se e, avistando o homem no momento em que ele entrava, fez menção de erguer-se, aterrada por semelhante visita. Depois, lentamente, voltou-se para o lado do fogão, fitou os olhos no irmão e a expressão do seu rosto tornou-se completamente serena. O bispo fitava o desconhecido com aspecto tranquilo. No momento em que ele abria a boca para perguntar sem dúvida ao recém-chegado o que desejava, o homem encostou-se ao cajado com ambas as mãos, olhou para o velho e para as duas mulheres e, sem esperar que o bispo falasse, disse em voz alta: — Chamo-me Jean Valjean. Sou um forçado das galés, onde es ve dezanove anos. Há quatro dias que fui posto em liberdade e vou a caminho de Pontarlier, que é o meu des no. Ainda não parei desde que saí de Toulon. Hoje andei doze léguas a pé. Cheguei aqui quase à noite e fui a uma estalagem onde não me quiseram recolher por causa do meu passaporte amarelo, que nha apresentado na mairie, por não ter outro remédio. Fui a outra estalagem e disseram-me: «Põe-te daqui para fora!». Assim tenho andado de um lado para outro, sem ninguém me querer recolher. Ba à porta da cadeia e o carcereiro não ma quis abrir. Recolhi-me na casinhota dum cão, mas o cão mordeu-me e expulsou-me como o faria um homem. Pareceu-me que também sabia quem eu era Par em direcção ao campo, com intenção de dormir ao relento. O céu estava encoberto, e eu, lembrando-me que poderia chover e que Deus não estaria para obstar a que a chuva não diga que o recebo em minha casa. O dono desta casa não sou eu, é todo aquele que carece de asilo. Tudo quanto há nesta casa lhe pertence. Que necessidade tenho eu de saber o seu nome? Além disso, antes de mo dizer, já eu sabia o nome que lhe havia de dar. O homem mostrou-se muito admirado. — Na verdade? Pois já sabia como me chamava? — Sabia — respondeu o bispo —; chama-se meu irmão. — Olhe, senhor cura! — exclamou o homem. — Quando entrei nesta casa, vinha a morrer de fome; porém, o senhor tem tanta bondade, que eu já não sei o que sinto, passou-me tudo! O bispo encarou-o, dizendo-lhe: — Tem sofrido muito? — Ora! A ves menta vermelha, a grilheta ao pé, uma tábua por cama, calor, frio, trabalho, pancadas, corrente dobrada pela menor falta, calabouço por uma palavra, sempre acorrentado, ainda que es vesse doente e de cama! Os cães, senhor, ainda são mais felizes! Dezanove anos! E tenho quarenta e seis! Por fim, o passaporte amarelo. Aqui tem o que tenho sofrido! — Sim — replicou o bispo — o senhor saiu de um lugar de tristeza. Mas lembre-se que haverá mais alegria no céu pelo rosto debulhado em lágrimas de um pecador arrependido, do que pela túnica branca de cem justos. Se saiu dessa mansão de dores com pensamentos de ódio e de cólera contra os homens, é digno de compaixão; se saiu com pensamentos de benevolência, de doçura e de paz, vale mais que qualquer de nós. Entretanto, Magloire nha posto a ceia na mesa; uma sopa feita de água, azeite, pão e sal, um bocado de toucinho, um pedaço de carne de carneiro, alguns figos, um pouco de queijo fresco e pão de centeio. A criada, de seu motu proprio, acrescentara uma garrafa de vinho velho de Mauves. O rosto do bispo tomou repen namente essa expressão jovial peculiar aos génios hospedeiros. — Vamos para a mesa — disse ele com vivacidade, como nha por costume quando algum estranho ceava na sua companhia. Fez sentar o homem à sua direita, e Bap s na, de todo tranquilizada e restabelecida do seu receio, tomou lugar à esquerda. O bispo disse o benedicite e em seguida, como costumava, serviu ele mesmo a sopa. O homem principiou a comer avidamente. De repente, o bispo exclamou: — Parece-me que falta qualquer coisa na mesa! Efec vamente, Magloire só nha posto os três talheres necessários. Ora, era costume antigo, todas as vezes que o bispo tinha hóspedes, pôr na mesa os seis talheres de prata. Ostentação inocente, graciosa aparência de luxo, naquela casa agradável e severa, que elevava a pobreza até à dignidade, era uma espécie de criancice encantadora. Magloire, compreendendo a observação, saiu sem dizer palavra e ao cabo de um momento, os três talheres reclamados pelo bispo brilhavam sobre a toalha, simetricamente colocados diante de cada um dos trêsconvivas. IV — Pormenores sobre as queijeiras de Pontarlier Chegados a este ponto, não podemos dar melhor ideia do que se passou naquela noite à mesa do bispo do que transcrevendo aqui a passagem de uma carta de Bap s na à condessa de Boischevron, na qual a conversa entre o forçado e o bispo é relatada com ingénua minuciosidade: Este homem não prestava atenção a ninguém. Comia com voracidade de esfaimado. No fim da ceia, porém, disse a meu irmão: — Senhor cura, isto é tudo bom de mais para mim, mas sempre lhe digo que os carreteiros que não quiseram deixar-me comer com eles, passam melhor do que o senhor! Aqui para nós, a observação do homem quase me escandalizou. Meu irmão respondeu: — Não admira, trabalham mais do que eu. — Não é por isso — replicou o homem — é porque têm mais dinheiro. O senhor é pobre, bem vejo; talvez nem mesmo seja cura. Pois olhe, se Deus fosse justo, devia fazê-lo mais do que cura! — Deus é mais do que justo! — disse meu irmão. E, passado um instante, acrescentou: — Então o senhor Jean Valjean vai para Pontarlier? — Com itinerário obrigado. Creio que foi assim que o homem disse. Em seguida continuou: — Amanhã de madrugada, infalivelmente, tenho de pôr-me a caminho. Mal se pode andar agora. Se as noites estão frias, de dia não se pára com calor. — Pois vai para uma excelente terra — prosseguiu meu irmão. — No tempo da revolução, ficando a minha família arruinada, refugiei-me primeiro em Franche-Conté, onde vivi algum tempo do meu trabalho. Tinha boa vontade, por isso achei sem dificuldade em que me ocupar. Há ali por onde escolher: fábricas de papel, de des lação, lagares de azeite, relojoarias, fábricas de aço, de cobre, e não menos de vinte oficinas de ferreiro, quatro das quais, as de Lods, Châttilon, Audincourt e Buere, são muito consideráveis. Parece-me não me enganar e que são estes os nomes que meu irmão citou. Depois, interrompendo-se, dirigiu-me a palavra: — Ó irmã, não temos lá ainda alguns parentes? — Tínhamos — respondi eu. — Entre outros, o senhor Lucenet, que era capitão dos guardas barreiras, no tempo do antigo regime. — É verdade — continuou meu irmão — mas em 93 não havia parentes; ninguém podia contar senão com os seus braços, portanto lancei-me ao trabalho. Há em Pontarlier, para onde o senhor Valjean vai, uma indústria especial e muito agradável para quem a exerce. São as fábricas de queijos, a que lá chamam queijeiras. Então meu irmão, sem deixar de instar com o homem para que comesse, passou a explicar-lhe minuciosamente o que são as queijeiras de Pontarlier, que se dividem em duas espécies: as grandes granjas, que pertencem a pessoas abastadas, e onde há quarenta ou cinquenta vacas, as quais produzem sete ou oito mil queijos cada Verão e as queijeiras de associação, que pertencem a montanheses pobres, que sustentam as suas vacas em comum e dividem depois os produtos. Estes úl mos têm assoldadado um queijeiro, ao qual chamam grurin, que recebe o leite das vacas dos associados três vezes ao dia, tomando nota exacta da porção que pertence a cada um dos sócios. Por fins de Abril principia o trabalho das queijeiras e em meados de Junho é que os queijeiros conduzem as vacas à montanha. O homem ia-se reanimando, à proporção que comia. Meu irmão fazia-lhe beber o excelente vinho de Mauves, que ele mesmo não bebe, porque diz que é vinho caro. Explicava-lhe estes pormenores com aquele ar prazenteiro que a minha amiga lhe conhece, entremeando as suas palavras de graciosas atenções para comigo. Quando falou no bom o cio de grurin, como se desejasse que o seu hóspede entendesse, sem que lho aconselhasse directamente, que seria bom recurso para ele. Uma circunstância se deu que me fez impressão. O homem era o que já lhe disse. Pois meu irmão, não só durante a ceia, mas em todo o tempo que es veram juntos antes de se recolherem, exceptuando algumas palavras a respeito de Jesus, quando ele entrou, não proferiu uma única palavra que pudesse recordar ao homem o que nha sido, nem o que ele próprio era. Fora, na aparência, excelente ocasião de pregar um pouco e de fazer sen r ao forçado o predomínio do bispo, imprimindo-lhe assim a marca da passagem pela sua sede. Para qualquer outro que assim vesse na mão aquele desgraçado, era bem cabida a ocasião de lhe dar, ao mesmo tempo, o alimento do corpo e do espírito, fazendo-lhe alguma admoestação com grande cabedal de moral e bons conselhos, ou de mostrar comiseração, exortando-o a comportar-se melhor para o futuro. Meu irmão nem sequer lhe perguntou de que terra era, nem a história da sua vida, pois nela se dera uma falta e meu irmão parecia que evitava quanto pudesse recordar-lha. A tal extremo levava isto, que uma vez, falando dos montanheses de Pontarlier que têm um suave trabalho perto do céu e que, acrescentava ele, são felizes porque são inocentes, calou-se de repente, receando que estapalavra, a seu pesar proferida, ofendesse o homem em alguma coisa. À força de reflexão, parece-me ter compreendido o que se passava no coração de meu irmão. Ele entendia, sem dúvida, que o homem chamado Jean Valjean nha em demasia presente no espírito a sua miséria, que o melhor seria distraí-lo dela e fazê-lo persuadir, embora por um só instante, que era uma pessoa como outra qualquer, tratando-o a ele como tratava a toda a gente. Não acha, minha amiga, um não sei quê de evangélico nesta delicadeza que se abstém de prá cas, de moral, de alusões, e não lhe parece que a melhor compaixão para com o homem que tem uma ferida é não lhe tocar nela? Pareceu-me ser este o motivo secreto por que meu irmão assim procedia. Em todo o caso, o que posso assegurar, é que se ele teve todas estas ideias, nem a mim as deu a conhecer; conservou-se desde o princípio ao fim, segundo o seu costume, ceando com o tal Jean Valjean com o mesmo ar e as mesmas atenções que teria, se se achasse presente o senhor Gedeão Preboste ou o prior da freguesia. No fim, quando já estávamos na sobremesa, bateram à porta. Era a tia Gerbaud com o filhinho nos braços. Meu irmão beijou a criancinha na testa e pediu-me quinze soldos para os dar à a Gerbaud. O homem quase não dava atenção ao que se passava. Não proferia uma só palavra e dava indícios de estar muito cansado. Apenas a pobre Gerbaud saiu, meu irmão deu graças e voltou-se depois para o homem, dizendo-lhe: — Agora trate de descansar, que lhe há-de ser necessário. Magloire levantou a mesa num instante e, entendendo que devíamos re rar-nos para deixar o hóspede à sua vontade, subimos ambas para os nossos quartos. Todavia, um instante depois, mandei Magloire ir deitar sobre a cama do pobre homem uma pele de cabrito montês da Floresta Negra, que eu nha no meu quarto. As noites vão frias e a pele aquece muito. Pena é que ela esteja tão velha, tem-lhe caído o pêlo quase todo. Foi comprada por meu irmão no tempo em que ele esteve na Alemanha, em To lingen, próximo à nascente do Danúbio, assim como a faquinha de cabo de marfim de que me sirvo à mesa. Magloire voltou logo a seguir e fomos ambas rezar na sala onde estendemos a roupa e depois recolhemo- nos aos nossos quartos sem proferir mais uma palavra. V — Tranquilidade Monsenhor Bemvindo, depois de se ter despedido da irmã, pegou num dos cas çais de prata que estavam em cima da mesa e entregou o outro ao seu hóspede, dizendo-lhe ao mesmo tempo: — Vou conduzi-lo ao seu quarto. O homem seguiu-o. Como acima dissemos, a casa era dividida de tal modo que para se passar para o oratório, em que ficava a alcova, ou sair dele, era necessário atravessar o quarto do bispo. Na ocasião em que ambos o atravessavam, Magloire guardava os talheres de prata no armário que ficava à cabeceira da cama. Era o úl mo serviço que fazia todas as noites antes de se ir deitar. O bispo conduziu o hóspede à alcova, onde sevia uma cama preparada com toda a limpeza e uma mesinha, sobre a qual o homem pousou o castiçal. — Ora vamos — disse-lhe o bispo — durma bem e pela manhã não se vá sem primeiro tomar uma chávena de leite quente das nossas vacas. — Muito obrigado, senhor cura — respondeu o homem. Mal proferira, porém, estas palavras cheias de serenidade, teve de repente e sem transição um movimento impetuoso, que gelaria de susto as duas boas mulheres, se dele fossem testemunhas. Ainda mesmo hoje é para nós di cil fixar a causa que, naquele momento, operava sobre ele. Seria acaso sua intenção fazer uma advertência ou uma ameaça? Teria obedecido a uma espécie de impulso ins n vo e para ele mesmo sobre um culpado. Que lúgubre momento aquele em que a sociedade se desvia e consuma o irreparável desamparo de uma criatura racional! Jean Valjean foi condenado a cinco anos de galés. A 22 de Abril de 1796, proclamava-se em Paris avitória de Montenno e, alcançada pelo general em chefe do exército de Itália, que a mensagem do Directório de Quinhentos, chama Bonaparte, e nesse mesmo dia saía de Bicêtre uma numerosa leva de forçados. Jean Valjean fazia parte dessa leva. Um an go carcereiro daquela prisão, que conta hoje perto de oitenta anos, lembra-se ainda perfeitamente desse infeliz que foi acorrentado na extremidade do quarto cordão, no ângulo norte do pá o. Jazia sentado no chão como todos os outros e parecia não compreender mais nada além do horror da sua situação. É provável que por entre as vagas ideias da sua lamentável ignorância se lhe afigurasse excessivo o tormento que os homens lhe infligiam. Todo o tempo que lhe es veram a soldar a argola da go lha, pelo lado de trás, o que se fazia descarregando sobre o ferro grandes marteladas, o infeliz chorou sempre e, sufocado pelas lágrimas que lhe embargavam a voz, apenas de quando em quando se lhe ouvia dizer: «Eu era um pobre podador em Taverolles!» Ao dizer isto, no meio de con nuos soluços, levantava e baixava gradualmente a mão direita sete vezes, como se tocasse sucessivamente em sete cabeças desiguais, e por este gesto depreendia-se que o crime que cometera, fora para alimentar sete crianças. Par u para Toulon, onde chegou ao cabo de uma viagem de vinte e sete dias, num carro e com a corrente de forçado ao pescoço. Em Toulon ves ram-lhe a jaqueta vermelha, que cons tui o trajo dos sentenciados às galés. Desde então, tudo o que cons tuíra a sua existência até aí se desvaneceu, incluindo o nome; deixou de ser Jean Valjean para ser apenas um número, o 24601. E sua irmã? Que des no levou? Que des no levaram aquelas sete criancinhas? Quem se ocupa de semelhantes coisas? Perguntai ao tufão que passa para onde arremessou as folhas secas da pequena árvore serrada pelo pé. É sempre a mesma história. Aquelas pobres criaturas de Deus, agora sem apoio, sem guia nem asilo, par ram ao acaso, talvez mesmo que cada qual pelo seu lado, e pouco a pouco se foram embrenhando nessa névoa frígida em que se perdem os des nos solitários, trevas espessas no meio das quais sucessivamente desaparecem tantas frontes assinaladas com o es gma do infortúnio, durante a triste peregrinação da humanidade. Abandonaram a terra que os viu nascer; o campanário da sua aldeia esqueceu-os; esqueceu-os o marco do campo que fora seu; no fim de alguns anos passados nas galés, até o próprio Jean Valjean os esqueceu. Naquele coração, onde existira uma ferida, ficara uma cicatriz. Eis tudo. Durante todo o tempo que esteve em Toulon, uma só vez ouviu falar da irmã. Foi pelos fins do seu quarto ano de ca veiro. Alguém que os conhecera na terra nha visto a irmã. Residia em Paris, onde morava numa rua pobre das proximidades de S. Sulpício, chamada a rua de Geindre. Apenas nha na sua companhia um filho, o mais novo de todos. Onde estavam os outros seis? Nem ela mesmo o saberia dizer. Todas as manhãs ia trabalhar para uma pografia na rua do Sabot, n.º 3, onde exercia o mister de encadernadora, e onde nha de estar às seis horas da manhã, hora que de Inverno ainda nem se conhece o dia. No mesmo edi cio havia uma escola, para onde ela levava o filho, que nha sete anos. Como ela, porém, entrava às seis horas, e a escola não se abria senão às sete, a pobre criança, a quem não consen am entrada na pografia, nha de esperar uma hora cá fora, no Inverno, ao relento da noite, antes de principiar a aula. Todas as manhãs, os operários que passavam, viam a infeliz criança sentada no chão, pendendo com sono, e muitas vezes a dormir nalgum canto, acocorado e encostado ao seu cestinho. Quando chovia, a porteira, compadecida do rapazinho, recolhia-o no seu cubículo, onde havia apenas uma enxerga, uma roda de fiar e duas cadeiras de pau; o pequeno deitava-se a um canto e adormecia abraçado ao gato para não ter tanto frio. Às sete horas abria-se a escola e ele lá se apresentava. Eis o que disseram a Jean Valjean. Contaram-lhe isto um dia, foi um momento, um relâmpago, como uma janela repentinamente aberta sobre os destinos dos entes que ele tanto amava e que logo após se fechou. Depois disto não tornou a ouvir falar deles, foi aquela a úl ma vez. Nada mais soube a seu respeito, nunca os tornou a ver, nem no decurso desta dolorosa história se tornará a fazer menção a eles. Nos fins do quarto ano, chegou a Jean Valjean a vez de se evadir, no que foi auxiliado pelos seus camaradas, como é costume de tão triste lugar. Evadiu-se e andou dois dias errante pelos campos, usufruindo a liberdade, se éser livre ver-se perseguido, voltar acabeça a todo o instante, estremecer ao menor ruído, ter medo de tudo, da chaminé que fumega, do homem que passa, do cão que ladra, do cavalo que galopa, da hora que bate, do dia porque se vê, da noite porque se não vê, da estrada, do atalho, do arvoredo, do sono. Na noite do segundo dia, Jean Valjean era recapturado. Havia trinta e seis horas que não tinha comido nem bebido. Em virtude deste novo delito, foi condenado pelo tribunal marí mo a uma prolongação de três anos, o que perfez oito anos. Ao fim do sexto ano, chegou-lhe novamente ocasião de se evadir; aproveitou-se dela, mas não chegou a consumar a fuga. Apenas deram pela sua falta na ocasião da chamada, dispararam o ro de peça do costume, e, apesar da escuridão da noite, deram com ele escondido debaixo da quilha de um navio em construção. Resis u aos guardas que o prenderam. Crime de evasão e rebelião. Este novo delito, previsto pelo código especial, foi punido com um agravo de cinco anos, sendo dois de dupla grilheta. Treze anos. No décimo ano, tentou a fuga novamente, porém, não foi mais feliz do que das outras vezes. Mais três anos por esta nova tentativa. Dezasseis anos. Finalmente, no décimo terceiro ano, tentou mais uma vez evadir-se e foi novamente preso depois de quatro horas de liberdade. Três anos por estas quatro horas. Em Outubro de 1815 foi posto em liberdade, tendo entrado em 1796, por ter quebrado um vidro e furtado um pão. Permitam-nos aqui um parêntesis. É a segunda vez, nos seus estudos sobre a penalidade e sobre a condenação pela lei, que o autor deste livro encontra o roubo de um pão, como origem da catástrofe de um des no Cláudio Gueux roubara um pão; Jean Valjean nha roubado um pão; segundo uma esta s ca inglesa, está provado que em Londres de cinco roubos quatro têm por causa imediata a fome. Jean Valjean entrara para as galés soluçante e trémulo; saiu de lá impassível. Entrara angustiado, saiu sombrio. Que se passara naquela alma? VII — O interior do desespero Vamos tentar descrevê-lo. É indispensável que a sociedade olhe para estas coisas visto serem obra sua. Jean Valjean era ignorante, mas não imbecil. Ardia ainda naquele homem a luz natural. O infortúnio, que traz consigo um tal ou qual clarão, aumentou a pouca claridade que havia naquele espírito. Não obstante o azorrague, a grilheta, o calaboiço, o trabalho incessante, o sol ardente das galés, a tarimba dos forçados, Jean Valjean concentrou-se na sua consciência e reflectiu. Constituíra-se em tribunal e principiou por julgar-se a si próprio. Reconheceu então que não era um inocente injustamente punido. Confessou a sós consigo que cometera uma acção violenta e repreensível; que talvez lhe não recusassem aquele pão, se o vesse pedido; que, em todo o caso, sempre lhe fora melhor esperá-lo, ou da compaixão ou do trabalho; que não era, em suma, razão defini va e sem réplica dizer-se: não é possível a espera quando se morre de fome. Primeiro, porque é raríssimo que alguém morra literalmente à fome; segundo, porque, feliz ou infelizmente, o homem é conformado de tal modo, que pode padecer muito e por espaço de muito tempo, sem morrer, quer sica, quer moralmente; que devia, portanto, ter sofrido com resignação, o que mesmo teria sido melhor para aquelas pobres criancinhas; que fora por certo um acto de loucura nele, mesquinha criatura impotente, querer arcar com a sociedade a peito descoberto e imaginar que o roubo o podia rar da miséria; que, finalmente, era má porta para sair da miséria aquela por onde se entra na infâmia e concluiu que procedera mal. Depois fez a si próprio as seguintes perguntas: Fora ele o único que procedera mal na sua fatal história? Antes de tudo, não era uma coisa grave que um trabalhador como ele não vesse em que se ocupar; que um homem laborioso como ele não vesse que comer? Em segundo lugar, confessada a culpa come da, não fora bárbaro e desmesurado o cas go infligido? Não houvera maior abuso da parte da lei na pena do que da parte do criminoso na culpa? Não houvera excesso de peso no prato da balança que contém a expiação? O excesso do cas go não seria a aniquilação do delito e não daria em resultado inverter as situações, subs tuindo a culpa do delinquente pela culpa da repressão, fazendo do criminoso a ví ma e do devedor credor e pondo defini vamente o direito da parte daquele mesmo que o violara? Aquele cas go, complicado com sucessivos agravos por tenta vas de evasão, não viria a ser, por úl mo, um atentado do mais forte contra o mais fraco, um crime da sociedade contra o indivíduo, crime que recomeçara todos os dias, crime que durara transfiguração, um homem num animal perigoso. Algumas vezes num animal feroz. Bastariam para provar esta singular acção exercida pela lei sobre a alma humana, as necessárias e per nazes tenta vas de evasão levadas a efeito por Jean Valjean Ele renovaria essas tentativas, tão completamente ineficazes e tolas, tantas vezes quantas se lhe oferecesse ensejo para as realizar,sem reflectir, por um só instante, nem no resultado nem nas experiências já feitas. Irrompia impetuoso, como o lobo que avista a janela aberta. Dizia-lhe o ins nto: «Foge!» O raciocínio ter-lhe-ia decerto dito: «Não fujas!» Porém, diante de tão forte tentação, a razão desaparecia e ficava só o ins nto. A besta era quem agia. Depois agarravam-no outra vez e as novas severidades que lhe infligiam apenas conseguiam torná-lo ainda mais bravio. Uma particularidade se dava nele que não devemos omitir. Jean Valjean era dotado de uma força sica, a respeito da qual nenhum dos seus companheiros das galés o igualava. No trabalho de alar um cabo ou de puxar um cabrestante, valia por quatro homens. Levantava e conduzia muitas vezes às costas enormes pesos, subs tuindo quando era preciso o instrumento chamado «crie», que outrora nha o nome de «orgueil», donde, seja dito de passagem, tomou nome a rua de Montorgueil. Em razão disto, os seus camaradas alcunharam-no de Jean-le-Cric. Uma ocasião, andando a fazer-se alguns reparos na varanda da casa da câmara de Toulon, uma das admiráveis cariá des de Puget que sustentam a varanda deslocou-se e esteve quase a vir a terra. Jean Valjean, que se encontrava próximo, deitou os ombros à cariátide e sustentou-a sozinho enquanto os outros operários não acudiram. A sua destreza ultrapassava ainda o vigor de que era dotado. Certos forçados, perpétuos sonhadores de evasões, chegam a fazer da força e da destreza combinadas, verdadeira ciência. É a ciência dos músculos. Uma completa e misteriosa esta s ca é quo dianamente posta em prá ca pelos presos, eternos invejosos dos pássaros e das moscas. Trepar por uma ver cal e achar pontos de apoio onde apenas se via uma saliência, era um brinquedo para Jean Valjean. Dado o ângulo de uma parede, com a tensão das costas e das curvas das pernas, com os cotovelos e os calcanhares fincados nas asperezas da pedra, içava-se como por magia à altura de um terceiro andar. As vezes subia deste modo até ao telhado da prisão. Jean Valjean falava pouco e nunca se ria. Era necessário uma comoção extraordinária para lhe arrancar, uma ou duas vezes por ano, aquele lúgubre riso do forçado, que é como que o eco de um rir infernal. Ao ver a expressão habitual do seu rosto, dir-se-ia que aquele homem trazia de con nuo os olhos fitos em alguma pavorosa visão. Andava, com efeito, absorto. Por entre as confusas percepções de uma natureza incompleta e de uma inteligência atrofiada, Jean Valjean conhecia vagamente que pesava sobre ele o que quer que fosse de monstruoso. No meio da obscura e desmaiada penumbra em que se arrastava, de cada vez que voltava a cabeça e tentava elevar os olhos, via com terror misturado de raiva, surgir, erguer-se, elevar-se em alturas incomensuráveis, com horríveis escarpamentos, uma espécie de pavoroso montão de coisas, leis, preconceitos, homens e factos, cujos contornos mal dis nguia, cuja aglomeração o amedrontava, e que não era nada mais do que essa maravilhosa pirâmide a que nós chamamos civilização. No meio desse conjunto desigual e disforme, divisava aqui e além, ora próximo a ele, ora longe e em alturas inacessíveis, algum grupo, alguma saliência iluminada por um clarão mais vivo; aqui, por exemplo, o guarda-chusma com o seu azorrague, além o gendarme com o seu sabre, mais ao longe o arcebispo mitrado, mais acima ainda e no meio de uma como auréola resplandecente, o imperador coroado e coruscante. Parecia- lhe que esses longínquos esplendores, em vez de dissipar as trevas que o circundavam, as tornavam mais carregadas e fúnebres. Tudo isso, leis, preconceitos, factos, homens, cruzava-se numa região superior, consoante o misterioso e complicado movimento que Deus imprime à civilização, caminhando por cima dele e esmagando-o com o que quer que era de serena crueldade e inexorável indiferença. Almas despenhadas no abismo do mais intenso infortúnio, homens infelizes perdidos no mais fundo desses limbos, para os quais ninguém deita os olhos, os réprobos da lei sentem sobre si todo o peso da sociedade humana, tão horrível para os que se acham de fora, tão terrível para os que se acham por baixo. Ví ma desta situação, Jean Valjean meditava. De que natureza poderiam ser as suas cogitações? Se o grão de milho debaixo da mó pensasse, pensaria, sem dúvida, o que Jean Valjean pensava. Todas estas coisas, realidades cheias de espectros, fantasmagorias cheias de realidade, tinham, por último, criado nele certo estado interior quase inexplicável. Às vezes, no meio da sua tarefa de forçado, parava e punha-se a meditar. E então, a sua razão, conjuntamente mais aperfeiçoada e mais desorientada do que noutro tempo, revoltava-se contra o des no. Parecia-lhe absurdo quanto lhe nha acontecido, afigurava-se-lhe impossível quanto o rodeava. Dizia no recôndito do seu pensamento: «Isto é um sonho». E olhava para o guarda-chusma que estacionava de pé a pequena distância dele; o guarda-chusma afigurava-se-lhe um fantasma; e, de repente, o fantasma descarregava-lhe uma chicotada. Para ele mal exis a a natureza visível. Não se ficaria muito longe da verdade, dizendo- se que para Jean Valjean não havia sol, nem amenos dias de Estio, nem céu límpido, nem frescas madrugadas de Abril. A única luz que, de ordinário, lhe iluminava a alma era um como clarão baço coado por ferros. Resumindo, finalmente, o que pode ser resumido e traduzido por resultados posi vos quanto acabamos de expor, limitar-nos-emos a dizer, que em dezanove anos, Jean Valjean, o inofensivo podador de Taverolles, o temível forçado de Toulon, tornara-se capaz, graças ao modo como as galés o nham amoldado, de duas espécies de más acções: primeiro de uma má acção, rápida, irreflec da, filha do primeiro movimento, inteiramente ins n va, espécie de represálias pelo mal sofrido; segundo, de uma má acção, grave, considerada pesada em consciência e meditada com as falsas ideias que pode dar tão grande infortúnio. As suas premeditações passavam pelas três fases sucessivas, que só as naturezas de certa têmpera são capazes de percorrer: raciocínio, vontade, obs nação Tinha por ins gadores a habitual indignação, a amargura da alma, o profundo conhecimento das iniquidades sofridas, a reacção mesmo contra os bons, contra os inocentes e os justos, se é que os havia. A origem e o alvo de todos os seus pensamentos era o ódio contra a lei humana, ódio que, não sendo sustado no seu desenvolvimento por algum acaso providencial, se transforma, chegado certo tempo, em ódio contra a sociedade, depois em ódio contra a humanidade, em seguida em ódio contra a criação, e se traduz por um vago, incessante e brutal desejo de fazer mal, seja a quem for, a um ser animado qualquer. A vista disto, não era, pois, sem razão, que o passaporte classificava Jean Valjean de «homem perigosíssimo». De ano para ano, aquela alma fora-se dissecando cada vez mais, lenta mas fatalmente. Para corações insensíveis, olhos enxutos Quando saiu das galés, havia dezanove anos que Jean Valjean não vertera uma lágrima. VIII — A onda e a sombra Homem ao mar! Que importa? O navio não pára. O vento é fresco e o navio tem um rumo que é obrigado a seguir. Não pode deter-se. Segue sempre. O homem que caiu ao mar desaparece, torna a aparecer, mergulha, sobe à super cie, estende os braços, chama. Ninguém o ouve. O navio, balouçado pelas vagas, obedece ao impulso da manobra de quem o dirige; equipagem e passageiros nem sequer divisam já o homem submergido; a cabeça do infeliz é apenas um ponto escuro na imensidade do mar. No espaço retumbam os seus gritos desesperados ao ver o espectro daquela vela que lhe foge. Contempla-a, crava nela os olhos com frenesi. E ela afasta-se, vai decrescendo, vai-se esfumando, confundida no ambiente nebuloso do horizonte. Há pouco ainda que ele ia dentro desse navio, que fazia parte da sua equipagem, que passeava no convés com os outros, que nha a sua parte de respiração e de sol, que era um vivo. Agora, que foi que sucedeu? Escorregou, caiu, acabou-se. Ei-lo em luta com a voracidade da água. Tenta firmar os pés e não encontra um ponto de apoio; estende os braços e não encontra a que se apegar. As ondas revoltas e retalhadas pelo vento rodeiam-no medonhas. As vagas envolvem-no, sacudidas pelo vento em pavorosos escarcéus; as ondulações impetuosas e desencontradas do abismo fazem dele seu ludíbrio; a espuma das ondas fus ga-lhe a cara, como se fora a lava deste vulcão líquido, como se fora um escarro de pungente ironia a rado às faces do infeliz por aquele povoléu de vagas indómitas; a cada passo o dragão imenso abre as fauces de chofre e subverte-o, devora-o; e ele, de cada vez que mergulha, avista precipícios de trevas cerradas; medonhas vegetações desconhecidas o enleiam, emaranham-se-lhe nos pés, o atraem para si; sente que se torna abismo, faz parte da espuma, as vagas trazem- no aos repelões, bebe a amargura, o oceano porfia cobardemente no intento de o afogar, a imensidade zomba da sua agonia. Parece que toda aquela água lhe tem ódio. E ele luta sempre! O infeliz tenta defender-se, tenta suster-se, esbraceja, emprega todos os esforços, consegue nadar Ele, pobre força de repente exausta, combate a que é inexaurível. Onde está o navio? Muito longe. Mal se avista nas lívidas sombras do horizonte. O vento con nua em rajadas; a espuma das ondas vence-o. Ergue os olhos e vê adormecer, pôs-se a meditar Jean Valjean encontrava-se num desses momentos em que as ideias se nos amontoam confusamente no espírito. Sen a no cérebro uma espécie de vai-vém tumultuoso. As recordações do passado, as lembranças do presente, flutuavam- lhe em tropel, cruzavam-se confusamente nele, perdendo as formas, tomando vulto descomunal, para em seguida desaparecerem de súbito como que numa pouca de água lodacenta e agitada. Numerosos pensamentos lhe ocorriam ao espírito, porém havia um que o assaltava de con nuo e expelia todos os outros. Esse pensamento, digamo-lo já, era o dos seis talheres de prata e da colherde sopa que Magloire pusera na mesa e que lhe havia prendido a atenção. Aqueles seis talheres de prata obcecavam-no Encontravam-se ali, a dois passos. Na ocasião em que ele passara pelo quarto imediato para vir para aquele em que se encontrava, vira a criada a arrumá-los num armário que ficava à cabeceira da cama do bispo. Os talheres eram de prata maciça, juntamente com a colher de sopa, dariam, pelo menos, duzentos francos. O dobro do que ele nha ganho em dezanove anos. É verdade que teria ganho mais, se a administração o não tivesse «roubado». O seu espírito oscilou mais de uma hora em reflexões incessantes, entremeadas de certo esforço renitente. Neste momento, soaram três horas Jean Valjean reabriu os olhos, ergueu-se de chofre, estendeu o braço, procurou às apalpadelas a mochila, a qual nha arrumado perto da cama, deixou pender as pernas, pousou os pés no chão e achou-se, quase sem saber como, sentado na beira da cama. Após haver permanecido durante algum tempo nesta a tude, com ar pensa vo, que teria parecido sinistra a quem assim o visse, acordado no meio da escuridão, numa casa em que todos dormiam, agachou-se de súbito, descalçou os sapatos, pô-los cautelosamente no capacho ao pé da cama, voltou à primi va posição pensa va e ficou imóvel. No meio das suas pavorosas meditações, as ideias que acima indicamos tumultuavam- lhe de con nuo no cérebro, entravam, saíam, tornavam a entrar, oprimiam-no como se carregasse um peso sobre ele, no meio de tudo isto, ocorria-lhe maquinalmente ao espírito, com singular per nácia, a lembrança de um forçado chamado Brevet que ele conhecera nas galés, que usava as calças seguras apenas por um suspensório de algodão trabalhado a agulha de meia. Não se lhe afastava do espírito o desenho em xadrez daquele suspensório. Conservava-se, pois, nesta posição e permaneceria nela indefinidamente até amanhecer, se não ouvisse o som do relógio, dando um quarto ou meia hora. Dir-se-ia que aquela badalada lhe dissera: «Vamos!», porque se pôs logo de pé, hesitou ainda um instante, escutou, e, sen ndo o mais completo silêncio em casa, encaminhou-se cautelosamente para a janela, que apenas entrevia A noite não estava muito escura, mas no céu corriam algumas nuvens impelidas pelo vento. Este estado do firmamento produzia, fora, alterna vas de sombra e claridade, eclipses, por assim dizer, totais, e em seguida momentos do mais límpido luar; dentro de casa havia uma espécie de crepúsculo. Este crepúsculo, intermitente em virtude das nuvens, mas suficiente para dis nguir os objectos, assemelhava-se à baça claridade que penetra pelo respiradouro de um subterrâneo, no meio da qual se reflectem as sombras dos que passam. Jean Valjean aproximou-se da janela e examinou-a. Não nha grades, deitava para o jardim e, segundo o uso da terra, era apenas fechada por uma simples aldraba. Abriu-a, mas como no quarto penetrasse repentinamente uma rajada de vento frio, tornou logo a fechá-la, tendo previamente olhado para o jardim com olhar mais de inves gação e estudo, do que de simples observação. Viu neste exame que o jardim era cercado por um muro caiado, extremamente baixo e fácil de escalar. Além do muro, dis nguiu a copa de algumas árvores igualmente espaçadas, o que indicava haver ali uma avenida ou rua arborizada. Depois deste exame, fez um movimento como de quem tomou a sua resolução, dirigiu-se para a cama, pegou na mochila, abriu-a, revolveu-a, rou de dentro qualquer coisa, que pôs em cima da cama, meteu os sapatos num bolso, atou o saco, deitou-o ao ombro, pôs o boné na cabeça, descendo a pala para os olhos, procurou o cajado às apalpadelas, foi pô-lo ao canto da janela, voltou outra vez para junto da cama e pegou resolutamente no objecto que nha poisado sobre ela, e que parecia uma barra de ferro curta, aguçada como um chuço numa das extremidades. Seria di cil perceber na escuridão o fim para que fora assim preparado aquele pedaço de ferro. Seria para servir de alavanca? Seria para servir de maça? Visto à claridade, reconhecer-se-ia que não era mais do que um instrumento de cabouqueiro. Como então empregavam às vezes os forçados em extrair pedras das altas colinas que circundavam Toulon, não era raro que vessem à sua disposição ferramentas daquele género. Pegou no ferro com a mão direita e encaminhou-se para a porta do quarto imediato que era o do bispo, contendo a respiração e abafando os passos para não ser pressentido. Chegado à porta, encontrou-a entreaberta. O bispo não a tinha fechado XI — O que ele faz Jean Valjean escutou. Nem o mais leve ruído. Empurrou a porta. Empurrou-a com a ponta dos dedos, ligeiramente, com a fur va e inquieta delicadeza do gato que quer entrar. A porta cedeu à pressão e fez um movimento impercep vel e silencioso, que alargou pouco mais a abertura. Deteve-se um momento, depois empurrou de novo a porta, desta vez com mais força. A porta con nuou a ceder silenciosa. A abertura era já suficientemente grande para que ele pudesse passar, mas uma mesa pequena, que formava com ela um ângulo, obstruía a entrada. Jean Valjean reconheceu o obstáculo. Era necessário, custasse o que custasse, que a abertura se alargasse mais. Decidiu-se e empurrou a porta pela terceira vez, mais energicamente do que das duas antecedentes. Desta vez, um dos gonzos, decerto enferrujado, soltou um grito rouco e prolongado no meio do silêncio. Jean Valjean estremeceu. O ruído do gonzo soou-lhe aos ouvidos, estrondoso e tremendo, como a trombeta do juízo final. Na fantás ca exageração do primeiro momento, quase se lhe afigurou que aquele gonzo acabava de animar-se e assumir de repente vida terrível, la ndo como um cão para avisar toda a gente e despertar os adormecidos. Estacou, trémulo e desorientado, deixando-se cair das pontas dos pés sobre os calcanhares. As artérias temporais pulsavam-lhe com tal força, que as ouvia bater como dois martelos numa bigorna, afigurava-se-lhe que a respiração lhe saía do peito sussurrante, como uma rajada de vento saída de uma caverna. Parecia-lhe impossível que o horrível clamor daquele gonzo irritado não abalasse toda a casa, como medonho repelão de um terramoto; a porta empurrada por ele assustara-se e clamara; o velho não tardaria a levantar-se, as duas mulheres não tardariam a gritar, não tardaria a acudir gente em socorro; antes de um quarto de hora, a cidade estaria em movimento e a gendarmaria a postos. Por um instante considerou-se perdido. Deixou-se pois ficar onde estava, petrificado como a estátua de sal e sem se atrever a fazer o menor movimento. Decorreram alguns minutos. A porta abrira-se de par em par. Jean Valjean espreitou para dentro do quarto. O mais completo sossego. O rangido do gonzo enferrujado não despertara ninguém. Estava passado este primeiro perigo, mas nem por isso era menos terrível o tumulto que ainda se agitava dentro dele. Jean Valjean, porém, não recuou. Não recuara nem mesmo na ocasião em que se considerara perdido. Do que tratava agora era de operar com presteza. Avançou um passo e entrou no quarto. Este jazia no mais profundo silêncio. Aqui e além divisavam-se algumas formas vagamente confusas, que, vistas à claridade, eram papéis espalhados por cima de uma mesa, in-folios abertos, muitos volumes amontoados sobre um banco, uma poltrona carregada de roupa, um genuflexório, objectos que, àquela hora, eram apenas vultos informes, branquejando por entre as trevas. Jean Valjean con nuou a caminhar com a maior precaução, para não esbarrar com os móveis. Do lado oposto do quarto, ouvia a igual e serena respiração do bispo adormecido. De súbito, parou, porque se encontrava junto da cama, onde nha chegado mais depressa do que pensara. A natureza, às vezes, nos seus efeitos e espectáculos, estabelece com as nossas acções uma espécie de correlação tão sombria e inteligente, que parece querer, por meio dela, fazer-nos reflec r e sondar-nos a nós próprios. Havia perto de meia hora que uma espessa nuvem cobria o céu. No momento em que Jean Valjean parou, em frente do leito, a nuvem rasgou-se, como se o fizesse de propósito, e um raio de luar, coando-se por entre a janela rasgada do quarto do bispo, veio subitamente iluminar o pálido rosto do prelado, que dormia serenamente. Resguardava-o do frio da noite, que nos Baixos Alpes se faz sen r com especial intensidade, uma camisola de lã escura, que lhe cobria os braços até aos pulsos. A cabeça debruçava-se-lhe sobre o travesseiro na a tude indolente do repouso; a mão, aquela mão de onde nham saído tão boas e santas acções, pendia-lhe fora da roupa, ornada com o anel pastoral. O rosto iluminava-se-lhe — Pois então, colheres de pau. Daí por alguns instantes, o bispo estava a almoçar naquela mesma mesa em que Jean Valjean, no dia antecedente, es vera sentado. No decurso do almoço, Monsenhor Bemvindo notou, gracejando, a sua irmã, que não proferira palavra, e a Magloire, que resmungava surdamente, não ser preciso garfo nem colher, mesmo de pau, para molhar um pedaço de pão numa chávena de leite. — Nunca se viu uma coisa assim! — dizia Magloire, andando de um para outro lado. — Recolher um homem daqueles e deitá-lo quase ao pé de si! Ainda devemos dar graças a Deus por só nos ter roubado! Parece-me que ainda sinto um estremecimento quando me lembro de semelhante coisa! No instante em que obispo e a irmã se levantaram da mesa, bateram à porta. — Entre — disse o bispo. A porta abriu-se e um estranho e violento grupo assomou no limiar. Três homens traziam um quarto agarrado no meio deles. Os três eram gendarmes, o quarto era Jean Valjean. Apenas em presença do bispo, o gendarme que parecia ser o comandante do grupo adiantou-se para ele, fazendo a continência militar e disse: — Monsenhor... Ouvindo este tratamento, Jean Valjean, que se mostrava sombrio e aba do, ergueu a cabeça com ar de estupefacção e murmurou: — Monsenhor?! Pensei que era o cura... — Silêncio! — ordenou um dos gendarmes. — É o senhor bispo. Entretanto, Monsenhor Bemvindo aproximara-se dos homens com a presteza que lhe permitia a sua avançada idade e exclamou, com os olhos fitos em Jean Valjean: — Ah, então voltou?! Es mo muito tornar a vê-lo. Mas agora me lembro: eu também lhe dei os cas çais, que são de prata, como o resto, e que lhe podem render duzentos francos ou mais. Porque não os levou? Jean Valjean abriu os olhos e encarou o venerável bispo com uma expressão que nenhuma linguagem poderia traduzir. — Então é verdade o que este homem disse, Monsenhor? — perguntou o cabo que comandava os gendarmes. — Nós encontrámo-lo como quem ia a fugir e prendemo-lo como suspeito. Levava consigo esta prata... — E disse-lhes — atalhou o bispo, sorrindo — que um pobre padre em casa de quem passara a noite lhos nha dado? Os senhores não acreditaram e trouxeram-no aqui. Pois disse-lhes a verdade. — Sendo assim, podemos deixá-lo ir? — perguntou o cabo. — Sem dúvida — respondeu o bispo. Os gendarmes largaram Jean Valjean, que recuou estupefacto. — Então, estou livre?! — exclamou ele em voz quase inar culada e como se falasse a dormir. — Pois não ouviste? — disse um dos gendarmes. — Meu amigo — tornou o bispo — não se vá embora sem levar os cas çais. Aqui os tem. E, dirigindo-se ao fogão, pegou nos dois cas çais de prata e entregou-os a Jean Valjean. As duas mulheres olhavam para tudo aquilo sem fazerem o menor gesto nem proferirem uma só palavra que pudesse contrariar o prelado. Jean Valjean, que tremia como varas verdes, pegou maquinalmente nos dois cas çais, com ar desvairado. — Agora — disse o bispo — vá em paz. É verdade, meu amigo, se voltar é escusado passar pelo jardim. Pode entrar e sair sempre pela porta da rua, que está fechada apenas por uma simples aldraba, seja de dia ou de noite. — E, em seguida, voltando-se para os gendarmes, acrescentou: — Os senhores podem retirar-se. Os gendarmes saíram. Jean Valjean sentiu-se como que prestes a desfalecer. O bispo aproximou-se dele e disse-lhe em voz baixa: — Não se esqueça nunca de que me prometeu empregar o dinheiro desta prata em tornar-se homem de bem. Jean Valjean, que não se recordava de lhe ter prome do coisa alguma, ficou sem saber o que havia de dizer. Obispo, que acentuaramuito as suas palavras, acrescentou: — Jean Valjean, meu irmão, lembre-se que já não pertence ao mal, mas sim ao bem. Resgatei a sua alma. Libertei-a dos maus pensamentos e do espírito de perdição para a dar a Deus. XIII — O pequeno Gervásio Jean Valjean saiu da cidade como se sesoubesse perseguido. Principiou a caminhar apressadamente pelo meio dos campos, seguindo todos os caminhos e atalhos que se lhe ofereciam, sem reparar que a cada instante voltava aos mesmos lugares por onde já nha passado. Assim andou vagueando toda a manhã, sem comer nem ter fome. Um sem número de sensações desconhecidas o agitavam. Sen a uma espécie de ira, mas nem sabia contra quem. Impossível lhe seria dizer se as sensações que o agitavam eram de arrependimento ou humilhação. Às vezes sen a-se acome do por um singular enternecimento, que repelia, opondo-lhe o endurecimento dos seus úl mos vinte anos. Semelhante estado afligia-o. Assustava-se ao ver como dentro dele se abalava essa espécie de pavorosa serenidade que a injus ça do seu infortúnio lhe havia dado. A si mesmo perguntava o que é que viria subs tuir isso. Preferia ter ido entre os gendarmes para a cadeia ao desfecho que as coisas haviam tido, porque não se veria tão agitado. Posto que a estação fosse bastante adiantada, viam-se, todavia, aqui e além, por entre as sebes, algumas flores extemporâneas, cujo cheiro, ao passar, lhe suscitava recordações da infância, que se lhe tornavam insuportáveis, porque havia muito que elas o não nham acome do. Inexprimíveis pensamentos se amontoaram assim nele durante o dia todo. Ao declinar do sol no ocidente, a essa hora em que a sombra do mais pequeno seixo se estende desmesuradamente no chão, encontrava-se Jean Valjean sentado atrás de uma moita, numa extensa e escalvada planície, absolutamente deserta. No horizonte apenas se avistavam os Alpes. Nem o vulto de um só campanário de alguma aldeia longínqua. Jean Valjean achava-se a três léguas de Digne, pouco mais ou menos. A poucos passos distante da moita, passava um carreiro que cortava a planície. No meio da sua meditação, que não pouco contribuiria para tornar os seus andrajos mais medonhos a qualquer pessoa que o encontrasse, ouviu um rumor alegre. Voltou a cabeça e viu, caminhando pelo carreiro, um rapazinho saboiano, de dez anos, pouco mais ou menos, cantando com a sua sanfona ao lado. Era um desses rapazinhos simplórios e alegres, que andam de terra em terra, com as calcinhas rotas e os joelhos à mostra. O saboiano interrompia de vez em quando a can ga e parava para a rar ao ar algumas moedas que trazia namão e que cons tuíam talvez toda a sua fortuna. Entre elas havia uma moeda de quarenta soldos. Chegando ao pé da moita, o pequeno parou sem ver Jean Valjean e a rou ao ar o punhado de soldos que, até então, nha aparado nas costas da mão com toda a destreza. Desta feita, porém, escapou-lhe a moeda de quarenta soldos, que rolou por entre o mato até onde estava Jean Valjean. Este viu-a e pôs-lhe o pé em cima. O pequeno, que seguira a moeda com os olhos e vira perfeitamente onde ela nha ido parar, não deu o menor indício de admiração e caminhou direito ao homem. Era um lugar absolutamente solitário. Desde ali até onde a vista podia alcançar, não se avistava vivalma, nem na planície nem no carreiro. Apenas se ouvia o chilrear de um ou outro bando de passarinhos que atravessavam o espaço. O rapazinho estava de costas voltadas para o sol, que parecia pôr-lhe fios de oiro na cabeça e purpureava o rosto selvagem de Jean Valjean de um reflexo cor de sangue. — O senhor faz favor de me dar o meu dinheiro? — disse o pequeno, com essa infan l resolução que se compõe de ignorância e inocência. — Como te chamas? — perguntou-lhe Jean Valjean. — Gervásio. — Então põe-te a andar! — tornou Jean Valjean. — Mas dê-me o meu dinheiro! — replicou o rapazinho. Jean Valjean curvou a cabeça e não respondeu. O pequeno repetiu: — O meu dinheiro! Dê-me o meu dinheiro! Jean Valjean parecia não ouvir. O pequeno agarrou-o pela gola da blusa e abanou-o, diligenciando ao mesmo tempo rar-lhe o pesado sapato ferrado de cima da moeda de quarenta soldos. — Dê-me o meu dinheiro! — exclamava a pobre criança, debulhada em lágrimas. Jean Valjean, que se encontrava ainda sentado, levantou a cabeça, fitou na criança os olhos embaciados com uma espécie de pasmo, e, por fim, exclamou em voz terrível, lançando a mão ao cajado: — Quem está aí? — Sou eu, senhor, sou o Gervásio! Faça favor de rar o pé, dê-me o meu dinheiro! — — Sou um miserável! Naquele momento, o coração não pôde ser superior à comoção que o alanceava e desatou a chorar. Era a primeira vez que chorava havia dezanove anos! Jean Valjean saíra de casa do bispo alheado de tudo aquilo em que pensara até então. Nem ele próprio podia explicar o que se passava dentro dele. Diligenciava reagir contra as suaves palavras do velho. «Lembre-se que me prometeu tornar-se homem de bem. Resgatei a sua alma, arranquei-a ao espírito da perversidade e entrego-a a Deus». A lembrança de tais palavras ocorria-lhe de con nuo ao espírito. A esta celeste indulgência, porém, opunha ele a soberba, que é em nós como que a fortaleza do mal. Conhecia confusamente que o perdão daquele padre era o maior assalto e o mais temível ataque que em dias da sua vida o nha abalado; que o seu endurecimento seria defini vo, se resis sse a tamanha clemência; que, se cedesse, ser-lhe-ia necessário renunciar ao ódio de que as acções dos outros homens, ao cabo de muitos anos, lhe nham, por fim, saturado a alma, e em que ele achava certo gosto; que, desta feita, era necessário vencer ou ser vencido e que uma luta colossal e defini va estava travada entre a sua perversidade e a bondade daquele homem. Na presença de todas estas considerações, Jean Valjean sen a-se como que embriagado. Caminhando assim, com aspecto desvairado, teria porventura percepção dis nta do que poderia resultar da sua aventura de Digne? Ouviria de todos esses misteriosos zumbidos que advertem ou importunam o espírito em certos momentos da vida? Dir-lhe-ia acaso alguma voz ao ouvido que acabava de atravessar a hora solene do seu des no; que já não havia meio termo para ele; que se, desde então, não se tornasse o melhor dos homens, seria o pior; que necessitava, para assim dizer, elevar-se mais alto do que o bispo ou cair mais fundo do que o forçado; que, se quisesse tornar-se bom, havia de tornar-se anjo; que, se quisesse con nuar perverso, havia de tornar-se monstro? Cumpre fazer ainda aqui a pergunta que noutra parte a nós próprios fizemos: Produziria tudo isto porventura no pensamento daquele homem uma tal ou qual sombra? É certo, como nós mesmo já dissemos, que o infortúnio faz a educação da inteligência; porém, no caso presente, éduvidoso que Jean Valjean se achasse em estado de discriminar quanto aqui apontamos. Se acaso ele nha percepção de tais ideias, mais as entrevia do que via, e apenas serviam para lhe causar uma perturbação inexprimível e quase dolorosa. Ao sair dessa coisa disforme e negra chamada as galés, o bispo causara- lhe na alma a impressão molesta que lhe produziria nos olhos uma claridade muito intensa ao sair das trevas. A vida futura, a vida possível que actualmente se lhe oferecia, fulgurante e pura, enchia-o de temor e ansiedade Nem sabia bem que transformação era aquela. À semelhança de uma coruja que visse surgir de repente o sol, o forçado sen a- se ofuscado e quase que cego com o aspecto da virtude. O que era certo e do que nem ele próprio duvidava, é que Jean Valjean já não era o mesmo homem, é que tudo nele se achava alterado, é que já não estava na mão dele fazer com que o bispo lhe não tivesse falado nem com que o não tivesse comovido. Nesta disposição de espírito, encontrara Gervásio e roubara-lhe os quarenta soldos. Porquê? Decerto nem ele o soubera explicar. Seria um derradeiro efeito e como que um supremo esforço dos maus pensamentos com que saíra das galés, um resto de impulsão, um resultado do que em está ca se denomina força adquirida! Era isso e talvez ainda menos do que isso. Digamo-lo francamente: não fora ele quem roubara, não fora o homem, fora a besta, que por hábito e ins nto, pusera estupidamente o pé em cima daquela moeda de prata, na mesma ocasião em que a inteligência se deba a no meio de tantas obsessões inauditas e desconhecidas. Quando a inteligência acordou e viu a acção do bruto, Jean Valjean recuou com angústia e soltou um grito de aflição. É que, estranho fenómeno apenas possível na situação em que ele se achava, roubando o dinheiro àquela criança, praticara uma coisa de que já não era capaz. Fosse como fosse, o certo é que esta sua úl ma má acção produziu nele um efeito decisivo; atravessou rapidamente o caos que nha na inteligência e dissipou-o, separou- lhe a luz das trevas e operou sobre a alma, no estado em que se achava, como certos reagentes químicos operam sobre uma mistura turva, precipitando um elemento e clarificando o outro. No primeiro momento, antes de se examinar e de reflec r, alucinado e como quem tenta fugir, fez toda a diligência para encontrar o pequeno, a fim de lhe res tuir o dinheiro; porém, depois que viu a inu lidade e impotência dos seus esforços, parou, desesperado. Na ocasião em que exclamou: «Sou um miserável!», aquele homem acabava de se ver tal qual era, e já se achava a tal ponto separado de si próprio, que se lhe afigurava já não ser mais do que um fantasma que nha ali diante de si em carne e osso, de cajado na mão, com a blusa ves da e a mochila às costas, cheia de objectos roubados, de semblante resoluto e sombrio, com o pensamento cheio de abomináveis projectos, o medonho forçado Jean Valjean. O excesso de infortúnio tornara-o até certo ponto visionário Tudo isto foi pois uma visão. Viu realmente diante de si Jean Valjean e o seu rosto sinistro. Esteve a ponto de perguntar a si mesmo quem era semelhante homem e teve horror. O seu cérebro encontrava-se num desses momentos violentos e, ao mesmo tempo, temerosamente serenos, em que a abstracção é tão profunda que absorve a realidade. Não vemos então os objectos que temos diante de nós e deparamos como que fora de nós com as figuras que temos no espírito. Jean Valjean contemplou-se, por assim dizer, face a face, e ao mesmo tempo, no meio da sua alucinação, via a uma misteriosa profundidade, uma espécie de luz que, ao princípio, se lhe afigurou um archote. Olhando com mais atenção para essa luz que se mostrava à sua consciência, viu que ela tinha forma humana, que o archote era o bispo. A sua consciência comparou simultaneamente aqueles dois homens assim colocados na sua presença, o bispo e Jean Valjean. Só o primeiro fora capaz de fazer desaparecer o segundo. Por um desses singulares efeitos, par culares a esta espécie de êxtases, à medida que se prolongava a sua abstracção e que crescia e resplandecia a seus olhos o vulto do bispo, o de Jean Valjean diminuía e desfazia-se. Em certa ocasião, ficou apenas reduzido a uma sombra. De súbito desapareceu e ficou só o bispo, enchendo a alma daquele miserável de uma irradiação magnífica. Jean Valjean, durante muito tempo, não fez senão chorar. Chorou copiosamente, chorou e soluçou com mais fraqueza do que uma mulher, com mais pavor do que uma criança. Enquanto assim chorava, o cérebro parecia iluminar-se-lhe com extraordinária luz, ao mesmo tempo encantadora e terrível. A sua vida passada, a sua primeira falta e a longa expiação que se lhe seguira, o embrutecimento exterior, o endurecimento interior, a recondução à liberdade acompanhada por tantos planos de vingança, o que lhe nha acontecido em casa do bispo, a úl ma coisa que fizera, esse roubo de quarenta soldos a uma criança, crime tanto mais cobarde e monstruoso, por isso que o cometera depois do perdão do bispo, tudo isto lhe ocorreu claramente, porém no meio de uma claridade que ele ainda até então não nha visto. Olhou para a sua vida e pareceu-lhe horrível; olhou para a alma e pareceu-lhe medonha; porém uma luz suave se lhe reflec a na vida e na alma. Parecia-lhe que via Satanás à luz do paraíso. Quantas horas chorou assim? O que fez depois de ter chorado? Para onde foi? Nunca ninguém o soube. Apenas parece averiguado que, nessa mesma noite, o estafeta que conduzia a mala do correio de Grenoble para Digne e que chegava a este último ponto pelas três horas da manhã, ao atravessar a rua da catedral, viu um homem prostrado de joelhos, na a tude de quem orava, em frente da porta de Monsenhor Bemvindo.
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