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Guias e Dicas
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BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional. 4 ed. São Paulo - Saraiva, 2013, Notas de aula de Direito Constitucional

LEGAL ebom!

Tipologia: Notas de aula

2018
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Baixe BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional. 4 ed. São Paulo - Saraiva, 2013 e outras Notas de aula em PDF para Direito Constitucional, somente na Docsity! LUÍS ROBERTO BARROSO CURSO DE Direito Constitucional OS CONCEITOS FUNDAMENTAIS E A CONSTRUÇÃO DO NOVO MODELO PERA itero Editora Saraiva LUÍS ROBERTO BARROSO Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Doutor e Livre-Docente pela UERJ. Mestre em Direito pela Universidade de Yale. Professor Visitante da Universidade de Brasília - UnB. Professor Visitante da Universidade de Poitiers — França (2010). Visiting Scholar - Universidade de Harvard (2011). Advogado. CURSO DE Direito Constitucional CONTEMPORÂNEO OS CONCEITOS FUNDAMENTAIS E A CONSTRUÇÃO DO NOVO MODELO 42 edição 2013 (MB Saraiva ISBN 978-85-02-19996-5 Barroso, Luís Roberto Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo / Luís Roberto Barroso. – 4. ed. – São Paulo : Saraiva, 2013. Bibliografia. 1. Brasil - Direito constitucional 2. Direito constitucional I. Título. CDU-342 Índices para catálogo sistemático: 1. Direito constitucional 342 Diretor editorial Luiz Roberto Curia Gerente de produção editorial Lígia Alves Assistente editorial Álvaro Merlos Akinaga Cordeiro Produtora editorial Clarissa Boraschi Maria Preparação de originais Ana Cristina Garcia Maria Izabel Barreiros Bitencourt Bressan e Liana Ganiko Brito Arte e diagramação Cristina Aparecida Agudo de Freitas e Isabela Agrela Teles Veras Revisão de provas Rita de Cássia Queiroz Gorgati, Ivone Rufino e Claudete Rebelo Serviços editoriais Elaine Cristina da Silva e Vinicius Asevedo Vieira Capa Casa de Ideias / Daniel Rampazzo Produção gráfica Marli Rampim Produção eletrônica Know-how Editorial Data de fechamento da edição: 27-2-2013 Dúvidas? Acesse www.saraivajur.com.br Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia autorização da Editora Saraiva. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal. Aos que sonharam com a revolução que não veio. Aos que não perderam o ideal. RFDUNL da Universidade Nacional de Lisboa RI | Representação de Inconstitucionalidade RIHJ | Revista do Instituto de HermenêuticaJurídica RILSF | Revista de Informação Legislativa doSenado Federal RMS | Recurso em Mandado de Segurança RP | Revista de Processo RPGERJ | Revista da Procuradoria-Geral do Estadodo Rio de Janeiro RPGR | Revista da Procuradoria-Geral daRepública RSTJ | Revista do Superior Tribunal de Justiça RT | Revista dos Tribunais RT-CDCCP | Revista dos Tribunais – Cadernos deDireito Constitucional e Ciência Política RT-CDTFP | Revista dos Tribunais – Cadernos deDireito Tributário e Finanças Públicas RTDP | Revista Trimestral de Direito Público RTJ | Revista Trimestral de Jurisprudência STF | Supremo Tribunal Federal STJ | Superior Tribunal de Justiça TJRJ | Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro TJRS | Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul TRF | Tribunal Regional Federal ÍNDICE GERAL Abreviaturas e periódicos utilizados Introdução PARTE I TEORIA DA CONSTITUIÇÃO: OS CONCEITOS FUNDAMENTAIS E A EVOLUÇÃO DAS IDEIAS CAPÍTULO I - CONSTITUCIONALISMO I o surgimento do ideal constitucional e seu desencontro histórico 1 Generalidades 2 Da Antiguidade Clássica ao início da Idade Moderna II o constitucionalismo moderno e contemporâneo 1 Experiências precursoras do constitucionalismo liberal e seu estágio atual 1.1 Reino Unido 1.2 Estados Unidos da América 1.3 França 2 Um caso de sucesso da segunda metade do século XX: a Alemanha 3 O constitucionalismo no início do século XXI CAPÍTULO II - DIREITO CONSTITUCIONAL I o direito constitucional no universo jurídico 1 Generalidades 2 Conceito 2.1 A ciência do direito constitucional 2.2 O direito constitucional positivo 2.3 O direito constitucional como direito subjetivo 3 Objeto II o direito constitucional como direito público 1 Direito público e direito privado 2 Regime jurídico de direito público e de direito privado III a expansão do direito público e da constituição sobre o direito privado IV espaço público e espaço privado. evolução da dicotomia. um drama brasileiro 1 Origens da distinção 2 O desaparecimento do espaço público: Império Romano e sistema feudal 3 A reinvenção do público: do Estado patrimonial ao Estado liberal 4 A volta do pêndulo: do Estado social ao neoliberalismo 5 O público e o privado na experiência brasileira V a subsistência do princípio da supremacia do interesse público 1 O Estado ainda é protagonista 2 Sentido e alcance da noção de interesse público no direito contemporâneo CAPÍTULO III - CONSTITUIÇÃO I noções fundamentais II referência histórica III concepções e teorias acerca da constituição IV tipologia das constituições V conteúdo e supremacia das normas constitucionais VI a constituição no direito constitucional contemporâneo VII constituição, constitucionalismo e democracia CAPÍTULO IV - PODER CONSTITUINTE 2 Normatividade e realidade fática: possibilidades e limites do direito constitucional 3 Conceito de efetividade 4 Os direitos subjetivos constitucionais e suas garantias jurídicas 5 A inconstitucionalidade por omissão 6 Consagração da doutrina da efetividade e novos desenvolvimentos teóricos PARTE II CAPÍTULO I - ANTECEDENTES TEÓRICOS E FILOSÓFICOS I a teoria jurídica tradicional II a teoria crítica do direito III ascensão e decadência do jusnaturalismo IV ascensão e decadência do positivismo jurídico CAPÍTULO II - TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO I a formação do estado constitucional de direito II marco histórico: pós-guerra e redemocratização III marco filosófico: a construção do pós-positivismo 1 O princípio da dignidade da pessoa humana 1.1 A dignidade humana tem natureza jurídica de princípio constitucional 1.2 O conteúdo jurídico da dignidade humana 2 O princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade IV marco teórico: três mudanças de paradigma 1 A força normativa da Constituição 2 A expansão da jurisdição constitucional 3 A reelaboração doutrinária da interpretação constitucional 4 Um novo modelo CAPÍTULO III - A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL I generalidades 1 Introdução 2 Terminologia: hermenêutica, interpretação, aplicação e construção 3 Especificidade da interpretação constitucional II os diferentes planos de análise da interpretação constitucional 1 O plano jurídico ou dogmático 2 O plano teórico ou metodológico 2.1 As escolas de pensamento jurídico 2.2 As teorias da interpretação constitucional 2.2.1 Alguns métodos da teoria constitucional alemã 2.2.2 O debate na teoria constitucional americana 3 O plano da justificação política ou da legitimação democrática 4 A interpretação constitucional como concretização construtiva III a interpretação constitucional sob perspectiva tradicional 1 Algumas regras de hermenêutica 2 Elementos tradicionais de interpretação jurídica 2.1 Interpretação gramatical, literal ou semântica 2.2 Interpretação histórica 2.3 Interpretação sistemática 2.4 Interpretação teleológica 3 A metodologia da interpretação constitucional tradicional 4 Princípios instrumentais de interpretação constitucional 4.1 Princípio da supremacia da Constituição 4.2 Princípio da presunção de constitucionalidade das leis e atos normativos 4.3 Princípio da interpretação conforme a Constituição 4.4 Princípio da unidade da Constituição 4.5 Princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade 4.6 Princípio da efetividade CAPÍTULO IV - NOVOS PARADIGMAS E CATEGORIAS DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL I premissas metodológicas da nova interpretação constitucional1 1 A norma, o problema e o intérprete 2 Três mudanças de paradigma que abalaram a interpretação constitucional tradicional 2.1 Superação do formalismo jurídico 2.2 Advento de uma cultura jurídica pós-positivista 2.3 Ascensão do direito público e centralidade da Constituição 3 Nova interpretação e casos difíceis 4 Algumas categorias jurídicas utilizadas pela nova interpretação constitucional II os conceitos jurídicos indeterminados III a normatividade dos princípios 1 Recapitulando os conceitos fundamentais 2 Modalidades de eficácia dos princípios constitucionais 2.1 Eficácia direta 2.2 Eficácia interpretativa 2.3 Eficácia negativa INTRODUÇÃO TODO O SENTIMENTO “Pretendo descobrir No último momento Um tempo que refaz o que desfez. Que recolhe todo o sentimento E bota no corpo uma outra vez.” Chico Buarque e Cristóvão Bastos O direito constitucional e a teoria da Constituição passaram por uma revolução profunda e silenciosa nas últimas décadas. Disso resultou um conjunto amplo de transformações, que afetaram o modo como se pensa e se pratica o Direito no mundo contemporâneo. Este Curso procura expô-las didaticamente e refletir acerca de seu sentido e alcance. O presente volume contém a tentativa de elaboração de uma Parte Geral do direito constitucional, sistematizando e consolidando ideias desenvolvidas de maneira esparsa ao longo dos anos. Aproveito essa nota introdutória para lançar rapidamente o olhar para trás e fazer algumas coisas importantes, que a pressa da vida vai sempre deixando para depois: recordar alguns episódios, compartilhar realizações, registrar afetos e agradecer. Um breve depoimento, na primeira pessoa. I A HISTÓRIA RECENTE Descobri o Brasil não oficial em 1975, com a morte do jornalista Vladimir Herzog. Em 1976, ingressei na Faculdade de Direito da UERJ e, pouco à frente, apaixonei-me pelo direito constitucional. Não fui correspondido. Logo no início, em 1977, o General Ernesto Geisel fechou o Congresso, com base no Ato Institucional n. 5/68, e outorgou duas emendas, conhecidas como Pacote de Abril. Um mau começo. Em 1978, iniciei uma militância intensa no movimento estudantil, tendo participado, com um grupo de colegas, da recriação do Centro Acadêmico Luiz Carpenter – Livre. Já não eram os anos de chumbo, mas ainda era um tempo difícil. Em 1979, com a aprovação da Lei da Anistia, constatei que a história, por vezes, anda rápido. E que o impossível de ontem é o insuficiente de hoje. Concluí o curso de Direito em 1980. Foi o ano da explosão da bomba na OAB, seguida do atentado do Riocentro, em 1981. Dois alertas de que o jogo político nem sempre é limpo. Em 1982, comecei minha vida acadêmica. Um veto dos órgãos de segurança empurrou-me do direito constitucional para o direito internacional privado. Foi boa a experiência. Em 1984, com a rejeição da emenda pelas Diretas já, aprendi que há vida depois da derrota. A morte de Tancredo Neves e a posse de José Sarney, em 1986, revelaram-me o papel do acaso e do fortuito na história. Em 1987, voltei a ensinar direito constitucional. Em 1988, quando foi promulgada a Constituição, eu já sabia que a vida é feita das circunstâncias e do possível, não do ideal. II ASCENSÃO E TRIUNFO DO DIREITO CONSTITUCIONAL Antes de me tornar professor, fui um militante do direito constitucional. E isso num tempo em que o direito constitucional não dava prestígio para ninguém. O Brasil era um país no qual antes se valorizava a lei ordinária, o regulamento, a portaria, o aviso ministerial. Em épocas mais obscuras, bastava um telefonema. Quando alguém queria minimizar uma questão, dizia com desdém: “Esse é um problema constitucional”. Gosto de contar a boutade de que meu pai, no início da minha vida profissional, disse-me com voz grave: “Meu filho, você precisa parar com esse negócio de fumar, ser Flamengo, e o direito constitucional também não vai levá-lo a parte alguma. Estuda processo civil!”. A verdade, no entanto, é que quem resistiu, venceu. E hoje já não há mais nada de verdadeiramente importante que se possa pensar ou fazer em termos de Direito no Brasil que não passe pela capacidade de trabalhar com as categorias do direito constitucional. Passamos da desimportância ao apogeu em menos de uma geração. Este livro é, para mim, a celebração do triunfo do direito constitucional1. Não me refiro à consolidação de uma Constituição específica, mas à vitória do constitucionalismo, do sentimento constitucional, que até prescinde de um texto concreto. Trata-se de uma atitude diante da vida: o poder deve ser legítimo e limitado; quem não pensa igual a mim não é meu inimigo, mas meu parceiro na construção de uma sociedade plural; as oportunidades devem ser iguais para todos; quem se perdeu pelo caminho precisa de ajuda, e não de desprezo; toda vida fracassada é uma perda para a humanidade. Por isso mesmo, o Estado, a sociedade e o Direito devem funcionar de modo a permitir que cada um seja o melhor que possa ser. Em um mundo que assistiu ao colapso das ideologias de emancipação e redenção, este é um bom projeto político. Ou, no mínimo, uma boa opção existencial. III INSTITUIÇÕES, COMPANHEIROS E AMIGOS Sou grato à Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, que me proporcionou o ambiente acadêmico onde vivi a maior parte da minha vida. E homenageio a instituição na pessoa de dois Reitores: Antônio Celso Alves Pereira, um encantador de almas, e Nival Nunes de Almeida, um homem de palavra. Na Faculdade de Direito, sou perenemente grato a dois grandes mestres que iluminaram o meu caminho: José Carlos Barbosa Moreira, exemplo de seriedade científica e de integridade pessoal; e Jacob Dolinger, com seu contagiante entusiasmo pelo Brasil – Pátria que o acolheu – e imensa generosidade com seus discípulos. Compartilho este livro com companheiros queridos que participam comigo, há muitos anos, do projeto de oferecer ensino público de qualidade. No Programa de pós- graduação em direito público, Ricardo Lobo Torres e Paulo Braga Galvão foram os melhores parceiros que alguém poderia desejar. Juntos criamos um ambiente em que as pessoas se gostam, se admiram e se ajudam. Na graduação, são amigos queridos, desde o começo, os Professores Carmen Tiburcio, Paulo Cezar Pinheiro Carneiro e Gustavo Tepedino (a ordem é de chegada). E dentre meus ex-alunos de graduação e de pós- graduação, que hoje são docentes da Casa e brilham na vida acadêmica, celebro as afinidades intelectuais e o afeto que me unem a Daniel Sarmento, Gustavo Binenbojm e Ana Paula de Barcellos (também em ordem de chegada). A Faculdade de Direito da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, onde fiz minha pós-graduação, proporcionou-me uma experiência de vida e de estudos extraordinária, além do convívio com Professores notáveis, como Bruce Ackerman e Harold Koh. Mais recentemente, Robert Post tem sido um interlocutor inestimável, a quem devo preciosas sugestões de leitura. Ao longo dos anos, inclusive na elaboração deste livro, passei temporadas dedicadas à pesquisa e à redação do texto na Universidade de Miami (sou grato à acolhida do Professor Keith Rosenn), na Academia de Direito Internacional da Haia, na Universidade de São Francisco (sou grato a Jack Garvey por uma estada maravilhosa), na Universidade de Georgetown e na Universidade George Washington (sou grato a Bob Cottrol pela ajuda e por ter me cedido sua sala na biblioteca). Na globalização do bem, o convívio, ainda que breve ou eventual, com pessoas como Eduardo García de Enterría, Lorenzo Martin-Retortillo, Antônio Avelãs Nunes, Jorge Miranda e Ronald Dworkin, dentre outros, trouxe-me prazer pessoal, motivação e inspiração. Na minha atuação profissional no direito constitucional e no direito público em geral, inúmeras pessoas emprestam-me, há muitos anos, seu talento, energia e dedicação. Dentre elas, Carmen Tiburcio (de novo), Karin Basílio Khalili, Viviane Perez, Rafael Fonteles e, mais recentemente, Felipe Monnerat, Cláudio Pereira de Souza Neto e Helen Lima. Os melhores que há. Eduardo Mendonça, por sua vez, prestou-me valiosa ajuda na preparação deste livro. Na juventude dos vinte e poucos anos, tornou-se um acadêmico de primeira linha e um interlocutor de grande qualidade. Registro, ainda, dois parceiros que já vêm de bem longe, dois presentes que a vida me deu. Nelson Nascimento Diz, com seu senso de humor desconcertante e inteligência luminosa, obriga a todos que o cercam a se tornarem melhores. Há quase vinte e cinco anos me beneficio de sua amizade, de suas ideias e de suas dicas sobre arte. A coordenação geral de tudo, como sabem os mais próximos, é de Ana Paula de Barcellos, uma paixão intelectual, síntese das virtudes que fazem de alguém uma grande pessoa e uma grande jurista. Não há palavras capazes de expressar, de modo preciso, o afeto fraterno e a transcendente parceria que celebramos já vai fazer quinze anos. Por fim, um registro de carinho aos muitos amigos que habitam o lado não jurídico da minha vida e que, nos feriados e fins de semana, frequentam a Villa Luna, em Itaipava. O pessoal que come, bebe e se diverte enquanto eu dou um duro danado (mas à noite eu me junto a todos). Vovô Beto (e vovó Judith, in memoriam). Vovó Detta. Miriam e Cesar. Paulo e Sandra. Hélio e Mercedes. Tininha e Fábio. E os eventuais: Glória e Gustavo. Ankie e Marcos. Lima e Nádia. E, vez por outra, para alegria geral, o José Paulo, que vem sem o Sepúlveda Pertence. E, por fim, meus parceiros maiores, doces cúmplices de uma vida boa, dura e corrida: Tereza, Luna e Bernardo, um mundo à parte, de amor, alegria e paz. O livro, ainda dessa vez sem gravuras, é para eles. Fico devendo. Brasília, 21 de junho de 2008. Luís Roberto Barroso presente independentemente de Constituição escrita – o do Reino Unido – e outros, muito mais numerosos, em que ele passa longe, apesar da vigência formal e solene de Cartas escritas. Exemplo inequívoco é o fornecido pelas múltiplas ditaduras latino- americanas dos últimos quarenta anos. Não basta, portanto, a existência de uma ordem jurídica qualquer. É preciso que ela seja dotada de determinados atributos e que tenha legitimidade, a adesão voluntária e espontânea de seus destinatários[8]. Em um Estado constitucional existem três ordens de limitação do poder. Em primeiro lugar, as limitações materiais: há valores básicos e direitos fundamentais que hão de ser sempre preservados, como a dignidade da pessoa humana, a justiça, a solidariedade e os direitos à liberdade de religião, de expressão, de associação. Em segundo lugar, há uma específica estrutura orgânica exigível: as funções de legislar, administrar e julgar devem ser atribuídas a órgãos distintos e independentes, mas que, ao mesmo tempo, se controlem reciprocamente (checks and balances)[9]. Por fim, há as limitações processuais: os órgãos do poder devem agir não apenas com fundamento na lei, mas também observando o devido processo legal, que congrega regras tanto de caráter procedimental (contraditório, ampla defesa, inviolabilidade do domicílio, vedação de provas obtidas por meios ilícitos) como de natureza substantiva (racionalidade, razoabilidade-proporcionalidade, inteligibilidade). Na maior parte dos Estados ocidentais instituíram-se, ainda, mecanismos de controle de constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público. A seguir, breve narrativa do acidentado percurso que conduziu a civilização do império da força ao Estado de direito. É fundamental ressalvar que o ponto de observação é o da cultura ocidental e dos valores nela cultivados e desenvolvidos. Deve- se ter em conta, também, que nem todos os Estados percorreram os mesmos caminhos ou se encontram no mesmo estágio institucional. Aliás, bem ao contrário, em muitas partes do mundo – talvez na maior parte – o ideal constitucional e a luta pela liberdade ainda são uma aventura em curso. 2 Da Antiguidade Clássica ao início da Idade Moderna Atenas é historicamente identificada como o primeiro grande precedente de limitação do poder político – governo de leis, e não de homens – e de participação dos cidadãos nos assuntos públicos. Embora tivesse sido uma potência territorial e militar de alguma expressão, seu legado perene é de natureza intelectual, como berço do ideal constitucionalista e democrático. Ali se conceberam e praticaram ideias e institutos que ainda hoje se conservam atuais, como a divisão das funções estatais por órgãos diversos, a separação entre o poder secular e a religião, a existência de um sistema judicial e, sobretudo, a supremacia da lei, criada por um processo formal adequado e válida para todos[10]. O centro da vida política ateniense era a Assembleia, onde se reuniam e deliberavam os cidadãos[11]. O principal órgão de poder, todavia, era o Conselho, composto de quinhentos membros, dentre os quais eram escolhidos os que conduziriam o dia a dia da administração. Por fim, havia as Cortes, com seus grandes júris populares, cujo papel político era mais amplo do que o dos órgãos judiciais modernos. Como tudo o mais na ciência, nas humanidades e na vida em geral, Atenas precisa ser estudada em perspectiva histórica[12]. Mas, a despeito de os séculos haverem criado uma aura romântica para esse período, é inegável o florescimento de uma sociedade singularmente avançada, cenário de notável efervescência política e cultural[13]. Atenas foi uma pólis estável e segura, a ponto de tolerar e incentivar o surgimento de filósofos, historiadores e autores teatrais, que mereceram o respeito dos seus contemporâneos e as homenagens da posteridade, que ainda hoje os lê e encena[14]. O ideal constitucionalista de limitação do poder foi compartilhado por Roma, onde a República se implantou em 529 a.C., ao fim da monarquia etrusca, com a Lei das Doze Tábuas[15]. O poder militar e político romano estendeu-se por quase todo o Mediterrâneo, mas sua estrutura jurídica e instituições políticas seguiram sendo as de uma cidade-Estado, com as decisões concentradas em um número limitado de órgãos e pessoas. Tais instituições incluíam a Assembleia (que, a rigor, eram diversas, e encarnavam o poder de elaborar leis), os Cônsules (que eram os principais agentes executivos) e outros altos funcionários (pretores, questores, tribunos da plebe), além do Senado, cujo caráter formal de mero órgão consultivo encobria seu papel de fonte material e efetiva de poder. A participação dos cidadãos era reduzida[16]. A despeito de seu caráter aristocrático, o poder na República era repartido por instituições que se controlavam e temiam reciprocamente[17]. Nada obstante, um conjunto de causas conduziram ao ocaso do modelo republicano, dentre as quais o sistema de privilégios da aristocracia patrícia e a insatisfação das tropas, do povo e das outras aristocracias excluídas dos cargos consulares e do Senado. Do ponto de vista institucional, o fim veio pela via previsível, que destruiu inúmeros outros sistemas pluralistas ao longo da história: os comandantes militares tornaram-se excessivamente poderosos e escaparam ao controle efetivo dos órgãos políticos. Quando a República ruiu e deu-se a coroação do imperador, não foi o fim de Roma, cujo domínio duraria ainda mais meio milênio. O que terminou, na véspera do início da era cristã, foram a experiência e o ideal constitucionalistas, que vinham dos gregos e haviam sido retomados pelos romanos. A partir dali, o constitucionalismo desapareceria do mundo ocidental por bem mais de mil anos, até o final da Idade Média. Nos séculos imediatamente posteriores à queda do Império Romano, em 476, a Antiguidade Clássica defrontou-se com três sucessores: o Império Bizantino, continuação reduzida do Império Romano, com imperador e direito romanos; as tribos germânicas invasoras, que se impuseram sobre a cristandade latina; e o mundo árabe do Islã, que se expandia a partir da Ásia, via África do Norte[18]. Pelo milênio seguinte à derrota de Roma, os povos da Europa integraram uma grande multiplicidade de principados locais autônomos. Os únicos poderes que invocavam autoridade mais ampla eram a Igreja Católica e, a partir do século X, o Sagrado Império Romano- germânico[19]. A atomização do mando político marcou o período feudal, no qual as relações de poder se estabeleciam entre o dono da terra e seus vassalos, restando autoridade mínima para o rei, duques e condes. Já pela alta Idade Média e por conta de fatores diversos – que incluem a reação à anarquia da pluralidade de poderes e a revitalização do comércio –, começa a esboçar-se o processo de concentração do poder que levaria à formação dos Estados nacionais como organização política superadora dos modelos muito amplos e difusos (papado, império) e dos muito reduzidos e paroquiais (tribos, feudos). O Estado moderno surge no início do século XVI, ao final da Idade Média, sobre as ruínas do feudalismo[20]. Nasce absolutista, por circunstância e necessidade, com seus monarcas ungidos por direito divino. O poder secular liberta-se progressivamente do poder religioso, mas sem lhe desprezar o potencial de legitimação. Soberania é o conceito da hora, concebida como absoluta e indivisível, atributo essencial do poder político estatal. Dela derivam as ideias de supremacia interna e independência externa, essenciais à afirmação do Estado nacional sobre os senhores feudais, no plano doméstico, e sobre a Igreja e o Império (romano-germânico)[21], no plano internacional. Com Jean Bodin[22] e Hobbes[23], a soberania tem seu centro de gravidade no monarca. Com Locke[24] e a Revolução Inglesa, ela se transfere para o Parlamento. Com Rousseau[25] e as Revoluções Francesa e Americana, o poder soberano passa nominalmente para o povo, uma abstração aristocrático-burguesa que, com o tempo, iria democratizar-se. II O CONSTITUCIONALISMO MODERNO E CONTEMPORÂNEO 1 Experiências precursoras do constitucionalismo liberal e seu estágio atual 1.1 Reino Unido[26] Em meados do século X, os diversos reinos anglo-saxões dispersos pelas ilhas britânicas já estavam unificados sob o reino da Inglaterra. Com a invasão normanda, em 1066, foram introduzidas as instituições feudais, cujo desenvolvimento consolidou a força política dos barões, que impuseram ao rei João Sem Terra, em 1215, a Magna Charta[27]. Pouco à frente, ainda no século XIII, começou a ganhar forma o Parlamento, convocado e controlado pelo rei, integrado por aristocratas e clérigos, bem como por representantes da baixa aristocracia e da burguesia urbana[28]. Ao final do século XVI, a Inglaterra já havia se firmado como uma monarquia estável, um Estado protestante[29] e uma potência naval. Ali seriam lançadas, ao longo do século XVII, as bases do constitucionalismo moderno, em meio à turbulência institucional resultante da disputa de poder entre a monarquia absolutista e a aristocracia parlamentar. Os conflitos entre o rei e o Parlamento começaram com James I, em 1603, e exacerbaram-se após a subida de Charles I ao trono, em 1625. O absolutismo inglês era frágil, comparado ao dos países do continente (França, Espanha, Portugal), não contando com exército permanente, burocracia organizada e sustentação financeira própria. Em 1628, o Parlamento submeteu ao rei a Petition of Rights[30], com substanciais limitações ao seu poder. Tem início um longo período de tensão política e religiosa (entre anglicanos e católicos, puritanos moderados e radicais), que vai desaguar na guerra civil (1642-1648), na execução de Charles I (1649) e na implantação da República (1649-1658), sob o comando de Cromwell. A República não sobreviveu à morte de seu fundador, dando-se a restauração monárquica com Charles II, em 1660. Seu filho e sucessor, James II, pretendeu retomar práticas absolutistas e reverter a Inglaterra à Igreja Católica, tendo sido derrubado em 1688, na denominada Revolução Gloriosa. Guilherme (William) de Orange, invasor vindo da Holanda, casado com Mary, irmã do rei deposto, torna-se o novo monarca, já sob um regime de supremacia do Parlamento, com seus poderes limitados pela Bill of Rights (1689)[31]. passando a simbolizar a independência das treze colônias americanas, ainda como Estados distintos[50]. A guerra revolucionária prolongou-se até 1781. Nesse mesmo ano foram finalmente ratificados os Articles of Confederation, que haviam sido aprovados em 1778, fazendo surgir uma confederação entre as treze colônias. Essa união mostrou-se frágil e incapaz de enfrentar os desafios da consolidação das novas nações independentes e de impedir a competição predatória entre elas. Não se previu a criação de um Executivo central nem de um Judiciário federal. Além disso, o Congresso não tinha poderes para instituir tributos nem regular o comércio entre os Estados. A insatisfatoriedade da fórmula adotada era patente e justamente para revê-la foi convocada uma convenção, que se reuniu na Filadélfia a partir de 14 de maio de 1787. Os delegados de doze dos Estados (Rhode Island não enviou representantes) iniciaram os trabalhos e logo abandonaram o projeto de revisão dos Artigos da Confederação, convertendo-se em Convenção Constitucional[51]. Dentre seus membros, algumas lideranças destacadas, como George Washington, Benjamin Franklin, Alexander Hamilton e James Madison, um dos mais influentes autores do documento, que viria a tornar-se o quarto Presidente dos Estados Unidos (1809-1817). Em 17 de setembro de 1787 o texto foi aprovado pela Convenção e estava pronto para ser submetido à ratificação dos Estados. A primeira Constituição escrita do mundo moderno passou a ser o marco simbólico da conclusão da Revolução Americana em seu tríplice conteúdo: a) independência das colônias; b) superação do modelo monárquico; c) implantação de um governo constitucional, fundado na separação de Poderes, na igualdade[52] e na supremacia da lei (rule of the law). Para acomodar a necessidade de criação de um governo central com o desejo de autonomia dos Estados – que conservaram os seus próprios Poderes e amplas competências – concebeu-se uma nova forma de organização do Estado, a Federação, que permitiu a convivência dos dois níveis de poder, federal e estadual. A batalha política pela ratificação foi árdua, especialmente nos Estados mais decisivos. Em Massachusets, por exemplo, foi necessária uma pragmática composição política[53]. Em N. York, o debate acirrado deu ensejo à publicação pela imprensa de um conjunto de artigos que se tornariam célebres: os Federalist Papers[54]. Em junho de 1788, dez Estados haviam ratificado a Constituição, um a mais do que exigido pelo art. VII[55]. Em sua versão original, a Constituição não possuía uma declaração de direitos, que só foi introduzida em 1791, com as primeiras dez emendas, conhecidas como Bill of Rights. Nelas se consagravam direitos que já constavam das constituições de diversos Estados e que incluíam as liberdades de expressão, religião, reunião e os direitos ao devido processo legal e a um julgamento justo. Consolidada a independência e a unidade sob a Constituição, os Estados Unidos expandiram amplamente o seu território ao longo do século XIX, pela compra de áreas de outros países, em guerras de conquista ou mediante ocupação de terras indígenas. Entre 1861 e 1865, desencadeou-se a Guerra Civil, um sangrento embate entre os Estados do norte e do sul em torno da questão escravagista, que deixou mais de 600 mil mortos[56]. Mais de duzentos anos após sua entrada em vigor, a Constituição americana ainda conserva sete artigos apenas[57], tendo sofrido o número reduzido de vinte e sete emendas ao longo desse período[58]. Nela institucionalizou-se, de forma pioneira e duradoura, um modelo de separação nítida entre Executivo, Legislativo e Judiciário, em um Estado republicano e sob o sistema presidencialista. É certo que o sistema jurídico americano, fundado na tradição do common law, dá aos tribunais um amplo poder de criação e adaptação do Direito e que, por isso mesmo, a Constituição tem hoje um sentido e um alcance que se distanciam de sua concepção original. Em diversas matérias é possível afirmar que o direito constitucional mudou substancialmente, sem que para isso se operasse uma alteração no texto originário. Mas não se deve minimizar a circunstância de que a Constituição teve a plasticidade necessária para se adaptar a novas realidades. A seguir, breve comentário acerca do papel e da configuração atual de três das principais instituições norte-americanas: o Presidente, o Congresso e a Suprema Corte. O Presidente da República, principal liderança política e chefe da Administração Pública, é eleito para um mandato de quatro anos, admitida uma reeleição[59]. Formalmente, sua escolha se dá por via indireta, mediante voto de delegados partidários designados por cada um dos Estados, de acordo com o voto popular ali manifestado[60]. O Presidente é o chefe supremo das Forças Armadas e, com a aprovação do Senado, nomeia os principais agentes públicos do país. Dentre eles, os juízes federais e os ministros da Suprema Corte, inclusive designando seu presidente (o Chief Justice). Além de suas competências administrativas ordinárias, exerce também poderes normativos (rules, regulations e Executive orders) e participa do processo legislativo, através do envio de projetos e do exercício do poder de veto à legislação aprovada pelo Legislativo. Deve prestar, periodicamente, informações ao Congresso acerca do estado da União e sujeita-se à destituição mediante impeachment, em casos de traição, suborno ou outros crimes graves[61]. O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso, em sistema bicameral, compreendendo a Câmara dos Representantes e o Senado. A Câmara é composta de 435 membros, sendo a representação de cada Estado proporcional ao número de seus habitantes. Os representantes são eleitos para um mandato de dois anos, pelo sistema majoritário distrital. O Senado é o órgão de representação dos Estados, cada um elegendo dois senadores, perfazendo um total de cem, com mandato de seis anos. Cabe ao Senado, que é presidido pelo Vice-presidente da República, a deliberação final acerca dos tratados firmados pelo Poder Executivo. Os projetos de lei aprovados em uma casa legislativa são submetidos à outra. As competências legislativas da União são limitadas e se encontram expressas na Constituição. Os Estados exercem os poderes remanescentes, o que faz com que, nos Estados Unidos, seja estadual a maior parte da legislação que rege o dia a dia das pessoas, como as normas de direito penal, comercial, contratos, responsabilidade civil, sucessões etc. O Congresso desempenha, também, amplas competências de investigação e fiscalização. A história do direito constitucional americano é contada pelas decisões da Suprema Corte, órgão supremo do Poder Judiciário, composto por nove membros (Justices). Desde que avocou a condição de intérprete maior da Constituição[62], sua trajetória é marcada por avanços e recuos, prudências e ousadias, ativismo e autocontenção. A brevidade do texto constitucional e suas cláusulas gerais e abertas deram à Suprema Corte um papel privilegiado na interpretação e definição das instituições e dos valores da sociedade americana. Ao longo de mais de dois séculos, coube-lhe, dentre outras tarefas, (i) definir as competências e prerrogativas do próprio Judiciário[63], do Legislativo[64] e do Executivo[65]; (ii) demarcar os poderes da União e dos Estados dentro do sistema federativo[66]; (iii) estabelecer o sentido e alcance de princípios fluidos, como devido processo legal (procedimental e substantivo)[67] e igualdade perante a lei[68]; (iv) assegurar liberdades fundamentais, como a liberdade de expressão[69], o direito de privacidade[70] e o respeito aos direitos dos acusados em matéria penal[71]; (v) traçar os limites entre a atuação do Poder Público e da iniciativa privada em matéria econômica[72]. A despeito de seu prestígio e sucesso, a Suprema Corte viveu momentos de dificuldades políticas[73], teve algumas linhas jurisprudenciais revertidas por via de emenda constitucional[74] e proferiu decisões que mereceram crítica severa[75]. A extraordinária experiência constitucional americana deve ser vista como um caso especial, e não como um modelo universal ou um paradigma[76]. Os Estados Unidos emergiram da Segunda Grande Guerra como a principal potência ocidental. Após o fim da Guerra Fria, com o colapso da União Soviética, em 1989, assumiram a hegemonia de uma ordem mundial marcada pela injustiça social, pela desigualdade entre as nações e pela ausência de democracia em boa parte dos países. Em 11 de setembro de 2001, atentados terroristas desfechados por fundamentalistas islâmicos a N. York e Washington desconcertaram a humanidade, exibiram conflitos culturais e ressentimentos históricos, dando início a uma era de desconfianças e incertezas. 1.3 França[77] Os gauleses, oriundos da Escandinávia, dominaram o que hoje corresponde ao território da França a partir do século VI a.C. Júlio César incorporou-o ao Império Romano ao final das guerras Gálias, em 58 a.C. O cristianismo penetrou na região desde o século I, tendo seu desenvolvimento se acelerado após o Édito de Milão (313)[78]. Com as invasões bárbaras formaram-se, em princípios do século V, três reinos germânicos: o dos visigodos, o dos burgúndios e, o mais importante deles, o dos francos, que terminou por se impor sobre os outros dois. O grande iniciador da dinastia franca foi Clóvis (481-511), cuja conversão ao catolicismo deu início ao que viria a ser um Estado unificado sob uma fé comum[79]. Alguns séculos mais tarde, no ano 800, Carlos Magno, outro franco, foi coroado, pelo Papa Leão III, Imperador do Ocidente, liderando a primeira grande organização política surgida no mundo ocidental após a queda do Império Romano[80]. Em 846, o Império do Ocidente foi dissolvido, dando origem a três linhas sucessoras, incluindo aquela que viria desembocar no Reino da França, após um longo e intrincado processo de concentração e acomodação de poder. Entre 1337 e 1453, França e Inglaterra envolveram-se em uma disputa territorial que ficou conhecida como a Guerra dos Cem Anos. O século XVI foi marcado pelos efeitos da Reforma e pela recepção das ideias de Lutero e Calvino, tornando-se cenário de um longo e violento período de conflitos entre católicos e protestantes[81]. A ascensão de Henrique IV ao trono francês, em 1594, após sua conversão ao catolicismo, deu início a uma fase de tolerância religiosa[82]. Seu governo foi decisivo na afirmação do poder real, no enfraquecimento dos senhores feudais e na consolidação de um Estado nacional, havendo lançado as bases do Ancien Régime, fundado no poder absoluto do monarca. O 1789 e complementados pelo Preâmbulo da Constituição de 1946. Após a aprovação do Tratado de Maastricht, em 7 de fevereiro de 1992, a Constituição foi emendada para disciplinar o ingresso da França na União Europeia. Até a virada do século, haviam sido aprovadas treze emendas ao texto original. Sob a Constituição de 1958, o Poder Executivo é compartilhado entre o Presidente da República e o Primeiro-Ministro. O Presidente é o chefe de Estado, sendo eleito para um mandato de sete anos, por sufrágio direto e universal[97], exigida maioria absoluta. Titulariza um elenco expressivo de competências, que incluem a nomeação do Primeiro- Ministro, a presidência do Conselho de Ministros, a possibilidade de dissolução da Assembleia Nacional, o comando das Forças Armadas e a negociação de tratados. Já o Primeiro-Ministro é o chefe do governo e da administração, sendo responsável perante o Parlamento e detendo, dentre outras atribuições, competência para formular a política nacional, propor projetos de lei, dar cumprimento às leis, exercer o poder regulamentar e nomear agentes públicos civis e militares. O sistema enseja uma preponderância do Presidente da República, como ocorreu com De Gaulle, Pompidou e Giscard D’Estaing. Sob a presidência de François Mitterrand (1981-1995), no entanto, o partido do Presidente, que era o socialista, em mais de uma ocasião deixou de ter maioria no Parlamento, o que deu causa à nomeação de um Primeiro-Ministro de partido de oposição a ele. Essa convivência de governantes de partidos opostos, que voltou a ocorrer sob a presidência de Jacques Chirac, eleito em 1995, recebe o nome de cohabitation. O Poder Legislativo é atribuído pela Constituição ao Parlamento, composto de duas câmaras, a Assembleia Nacional e o Senado. Os deputados da Assembleia Nacional, em número de 577, são eleitos por voto direto, para um mandato de cinco anos, salvo a hipótese de dissolução. O Senado, cuja principal função é a representação das coletividades territoriais, é composto de 521 membros, eleitos indiretamente[98], para um mandato de nove anos. Os parlamentares têm imunidade material e processual. Cabe ao Parlamento votar as leis[99], cuja iniciativa pertence concorrentemente a seus membros e ao Primeiro-Ministro. Embora os projetos de lei sejam submetidos a cada uma das Casas, sucessivamente, é nítida a preponderância da Assembleia Nacional, que detém a última palavra no processo legislativo e é o órgão perante o qual se promove a responsabilização política do governo. Quando ela adotar uma moção de censura ou quando desaprovar o programa ou uma declaração de política geral, o Primeiro-Ministro deverá apresentar a demissão do governo ao Presidente da República. O Judiciário recebe pouco destaque na Constituição francesa, que se refere a l’autorité judiciaire mais como um departamento especializado do que como um verdadeiro Poder[100]. Ali se estabelece, singularmente, que cabe ao Presidente da República garantir “a independência da autoridade judicial”, com aparente indiferença ao fato de que é a própria supremacia presidencial que pode ensejar a ingerência indevida[101]. Na França, desde a Revolução, levou-se às últimas consequências a ideia de separação dos Poderes no tocante ao Judiciário, objeto de desconfianças históricas[102]. A ele sempre foi vedado apreciar atos do Parlamento ou do governo. Foram criadas, assim, duas ordens de jurisdição totalmente distintas: a) a jurisdição judicial, em cuja cúpula está a Corte de Cassação; e b) a jurisdição administrativa, em cujo topo está o Conselho de Estado, com atribuição de julgar, em última instância, os litígios entre os particulares e o Estado ou qualquer outra pessoa pública[103]. Antes de concluir, cumpre fazer referência a duas instituições típicas do constitucionalismo francês: o Conselho de Estado e o Conselho Constitucional. O Conselho de Estado existe desde a Constituição do ano VIII (1799) e desempenha, sob a Constituição de 1958, um duplo papel: a) é a mais alta instância da jurisdição administrativa[104], como já referido; b) é o mais alto órgão consultivo do governo[105]. No desempenho de sua atividade de órgão do contencioso administrativo, cabe ao Conselho julgar a conformidade dos regulamentos à lei, aos princípios gerais do direito e à Constituição. Em sua atividade consultiva – que é a única prevista constitucionalmente –, cabe ao Conselho manifestar-se previamente acerca de projetos de lei, medidas provisórias (ordonnances) e decretos regulamentares que interfiram com textos de caráter legislativo[106]. Os pareceres do Conselho de Estado não são vinculantes, mas gozam de elevada respeitabilidade. Quanto ao Conselho Constitucional, deve-se fazer uma observação prévia. Na França, jamais se admitiu o controle de constitucionalidade das leis nos moldes norte-americano ou continental europeu. Sob a Constituição de 1958, todavia, passou a existir um procedimento específico, prévio e preventivo, de verificação da conformidade dos atos legislativos com a Constituição, levado a efeito perante o Conselho Constitucional[107]. O Conselho Constitucional exerce competências de órgão eleitoral e de juiz constitucional (juge constitutionnel), ao qual devem obrigatoriamente ser submetidas as leis orgânicas e os regimentos das assembleias parlamentares[108]. As demais leis podem, igualmente, ser submetidas ao Conselho, antes de sua promulgação, mediante requerimento das pessoas legitimadas[109]. Uma disposição declarada inconstitucional não poderá vigorar. Originariamente, o papel do Conselho Constitucional era impedir desvios no sistema parlamentar e, de fato, em uma primeira fase, sua atuação principal foi demarcar competências, especialmente entre a lei, ato do Parlamento, e o regulamento, ato de governo. Com o tempo, o papel do Conselho, cujas decisões são observadas pelo Conselho de Estado e pela Corte de Cassação, tornou-se mais relevante, sobretudo após uma decisão[110] e uma reforma legislativa[111] paradigmáticas, ambas ocorridas na década de 70. Seus pronunciamentos passaram a estender-se a questões envolvendo direitos fundamentais[112] e, por força de modificação constitucional, pode ser solicitado a manifestar-se acerca da compatibilidade de acordos internacionais com a Constituição[113]. Reforma constitucional promovida pela Lei Constitucional n. 2008-724, de 23 de julho de 2008 (Lei de Modernização das Instituições da V República) inovou no controle de constitucionalidade exercido pelo Conselho Constitucional. De fato, foi introduzida uma modalidade de fiscalização de constitucionalidade a posteriori – isto é, após a promulgação e vigência da lei –, em molde mais próximo ao dos tribunais constitucionais europeus. Nessa linha, o novo art. 61.1 da Constituição passou a permitir que o Conselho de Estado ou a Corte de Cassação submetam ao Conselho Constitucional a discussão acerca da constitucionalidade de uma lei que, alegadamente, atente contra direitos e liberdades garantidos pelo texto constitucional. A reforma, que trouxe outras modificações em relação ao Presidente e ao Parlamento, dependia, no tocante à nova atribuição do Conselho Constitucional, da edição de lei orgânica[114]. 2 Um caso de sucesso da segunda metade do século XX: a Alemanha[115] e [116] Em 1648, a Paz de Westfalia pôs fim à Guerra dos Trinta Anos e redesenhou a geografia e a política da Europa[117]. Com a dissolução do Sacro Império Romano- Germânico, as comunidades germânicas espalharam-se por mais de trezentos principados autônomos, com destaque para a Prússia e a Áustria. Tal situação permaneceu inalterada até o final das guerras napoleônicas, em 1815, quando os principados foram fundidos em cerca de trinta unidades maiores, formando a Confederação Germânica. Em 1866, com a vitória da Prússia na guerra contra a Áustria, formou-se a Confederação Germânica do Norte, cuja Constituição foi promulgada em 1867. No entanto, a unificação alemã só veio a ser formalmente concluída cerca de quatro anos mais tarde, com a vitória sobre a França. Em 16 de abril de 1871 foi promulgada a Constituição do Império[118], tendo Bismarck como chanceler, cargo que ocuparia até 1890. Esta Carta só seria superada pela Constituição de Weimar, de 11 de agosto de 1919, promulgada após o fim da Primeira Guerra Mundial[119]. Elaborada em um contexto de intensa turbulência política, tornou-se um dos documentos constitucionais mais influentes da história, apesar de sua curta vigência, encerrada, de fato, em 1933. A Constituição é resultado de influências ideológicas diversas[120]. O SPD, partido social-democrata, possuía maioria na assembleia, mas não maioria absoluta, sofrendo a pressão dos partidos mais radicais e da mobilização das ruas. Nesse cenário, a Constituição procurou conciliar tendências políticas contrapostas e estruturou-se em duas grandes partes: na Parte I, organizava o Estado alemão, disciplinando a relação entre os entes federativos (Capítulo I) e entre os Poderes (Capítulos II-VII); na Parte II, estabelecia o catálogo de direitos fundamentais, do qual constavam tanto direitos individuais, de origem liberal, quanto direitos sociais, aí incluídos a proteção do trabalhador e o direito à educação[121]. Considerada um marco do constitucionalismo social, essa Carta jamais logrou verdadeira efetivação. Sua vigência se deu sob condições econômicas precárias, resultado da política de reparações de guerra imposta pelo Tratado de Versailles[122]. Tais obrigações e a própria atribuição de culpa exclusiva pela guerra à Alemanha criaram o caldo de cultura adequado para a ascensão do regime nazista[123]. Com a chegada de Adolf Hitler ao poder, deu-se a superação da Constituição de Weimar pela realidade política. Em março de 1933, foi publicada a “lei de autorização” (Ermächtigungsgesetz), que permitia a edição de leis diretamente pelo governo imperial – na prática, pelo Chanceler Adolf Hitler –, ainda quando divergissem do texto constitucional[124]. Após a derrota na Segunda Guerra e os julgamentos do Tribunal de Nuremberg, foi promulgada a Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, em 23 de maio de 1949, marcada pela reafirmação dos valores democráticos. A Constituição enuncia os direitos fundamentais logo em sua abertura, com foco nos tradicionais direitos de liberdade, como a inviolabilidade corporal, a liberdade de locomoção, de expressão e de consciência, dentre outros. O art. 1º diz respeito à proteção da dignidade da pessoa humana, considerada inviolável. Não há previsão clara de direitos sociais, mas a sua direito infraconstitucional aos casos concretos[132]. O Tribunal Constitucional é dividido em duas “Seções” (Senate)[133], compostas, cada uma, por oito juízes. Tais Seções dividem as matérias de competência do Tribunal Constitucional, nos termos da sua Lei Orgânica (BVerfGG). Quando houver divergência de entendimento entre as Seções, a decisão deverá ser proferida pelo Plenário (§ 16 do BVerfGG). Há certa flexibilidade quanto à possibilidade de modificação das competências, em razão de eventual excesso de processos em alguma das duas Seções, o que se fará por meio de decisão do Plenário (§ 14 do BVerfGG). Cada Seção ainda deliberará sobre a formação de Câmaras (Kammern), compostas por três juízes (§ 15a.1 do BVerfGG). Uma de suas atribuições é fazer o exame de admissibilidade da remessa ao Tribunal Constitucional das questões constitucionais e das queixas constitucionais. A subdivisão em Câmaras é um importante mecanismo de “barragem” dessas vias de acesso ao Tribunal, em que se concentra grande parte do seu trabalho[134]. As principais competências do Tribunal Constitucional Federal alemão incluem: a) o controle abstrato de constitucionalidade, que tem por objeto a discussão em tese de norma federal ou estadual impugnada em face da Lei Fundamental. A legitimação para suscitar essa modalidade de controle é extremamente restrita, limitando-se ao Governo Federal, aos Governos estaduais e a pelo menos 1/3 (um terço) dos membros do Parlamento. O controle abstrato tem sido utilizado com parcimônia na prática constitucional alemã; b) o controle concentrado de constitucionalidade. Na Alemanha, ao contrário do que ocorre no Brasil, o controle de constitucionalidade em relação à Lei Fundamental é concentrado em uma corte constitucional. Assim, caso qualquer juízo ou tribunal, no exame de um caso concreto, admita a arguição de inconstitucionalidade de uma lei federal, deverá suspender o processo e encaminhar a questão constitucional para ser decidida pelo Tribunal Constitucional Federal; c) o julgamento da queixa constitucional (Verfassungsbeschwerde), notadamente nas questões envolvendo violação de direitos fundamentais por autoridade pública. Podem ser impugnados por essa via decisões judiciais, administrativas e até atos legislativos. A maior parte dos pedidos é apresentada contra decisões de tribunais. A queixa constitucional responde pela grande maioria dos casos apreciados pelo Tribunal Constitucional Federal alemão. Nos últimos anos, com a retração da Suprema Corte americana, fruto de uma postura mais conservadora e de autocontenção, o Tribunal Constitucional Federal alemão aumentou sua visibilidade e passou a influenciar o pensamento e a prática jurisprudencial de diferentes países do mundo. Muitas de suas técnicas de decisão passaram a ser utilizadas por outros tribunais, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro[135]. Ao longo do presente volume, diversas decisões do Tribunal Constitucional Federal serão referidas e comentadas, dentre as quais o caso Lüth, o caso Lebach, o caso Mephisto e o caso do Crucifixo[136]. 3 O constitucionalismo no início do século XXI Como se constata da narrativa empreendida neste capítulo, o Estado moderno se consolida, ao longo do século XIX, sob a forma de Estado de direito. Na maior parte dos países europeus, a fórmula adotada foi a monarquia constitucional. O núcleo essencial das primeiras constituições escritas é composto por normas de repartição e limitação do poder, aí abrangida a proteção dos direitos individuais em face do Estado. A noção de democracia somente viria a desenvolver-se e aprofundar mais adiante, quando se incorporam à discussão ideias como fonte legítima do poder e representação política. Apenas quando já se avançava no século XX é que seriam completados os termos da complexa equação que traz como resultado o Estado democrático de direito: quem decide (fonte do poder), como decide (procedimento adequado) e o que pode e não pode ser decidido (conteúdo das obrigações negativas e positivas dos órgãos de poder). A construção do Estado constitucional de direito ou Estado constitucional democrático, no curso do século XX, envolveu debates teóricos e filosóficos intensos acerca da dimensão formal e substantiva dos dois conceitos centrais envolvidos: Estado de direito e democracia. Quanto ao Estado de direito, é certo que, em sentido formal, é possível afirmar sua vigência pela simples existência de algum tipo de ordem legal cujos preceitos materiais e procedimentais sejam observados tanto pelos órgãos de poder quanto pelos particulares. Este sentido mais fraco do conceito corresponde, segundo a doutrina, à noção alemã de Rechtsstaat, flexível o suficiente para abrigar Estados autoritários e mesmo totalitários que estabeleçam e sigam algum tipo de legalidade[137]. Todavia, em uma visão substantiva do fenômeno, não é possível ignorar a origem e o conteúdo da legalidade em questão, isto é, sua legitimidade e sua justiça. Esta perspectiva é que se encontra subjacente ao conceito anglo-saxão de rule of the law e que se procurou incorporar à ideia latina contemporânea de Estado de direito, État de droit, Stato di diritto. Já no tocante à democracia, é possível considerá-la em uma dimensão predominantemente formal, que inclui a ideia de governo da maioria e de respeito aos direitos individuais, frequentemente referidos como liberdades públicas – como as liberdades de expressão, de associação e de locomoção –, realizáveis mediante abstenção ou cumprimento de deveres negativos pelo Estado. A democracia em sentido material, contudo, que dá alma ao Estado constitucional de direito, é, mais do que o governo da maioria, o governo para todos. Isso inclui não apenas as minorias – raciais, religiosas, culturais –, mas também os grupos de menor expressão política, ainda que não minoritários, como as mulheres e, em muitos países, os pobres em geral. Para a realização da democracia nessa dimensão mais profunda, impõe-se ao Estado não apenas o respeito aos direitos individuais, mas igualmente a promoção de outros direitos fundamentais, de conteúdo social, necessários ao estabelecimento de patamares mínimos de igualdade material, sem a qual não existe vida digna nem é possível o desfrute efetivo da liberdade. O constitucionalismo democrático, ao final da primeira década do século XXI, ainda se debate com as complexidades da conciliação entre soberania popular e direitos fundamentais. Entre governo da maioria e vida digna e em liberdade para todos, em um ambiente de justiça, pluralismo e diversidade. Este continua a ser, ainda, um bom projeto para o milênio. 1 J. C. Smith e David N. Weisstub, The western idea of law, 1983; J. M. Kelly, A short history of western legal history, 1992; Roland de Vaux, Ancient Israel, 1965; Aristóteles, Constitution of Athens and related texts, 1950; Gordon Scott, Controlling the State, 1999; Raphael Sealey, The Athenian republic, 1987; George Willis Botsford, The development of the Athenian Constitution, 1965; André Bonnard, Greek civilization from the Antigone to Socrates, 1959; George Sabine, História das teorias políticas, 1964; Hermes Lima, Introdução à ciência do Direito, 2000; Fábio Konder Comparato, Ética: Direito, moral e religião no mundo moderno, 2006; Argemiro Cardoso Moreira Martins, O direito romano e seu ressurgimento no final da Idade Média, in Antonio Carlos Wolkmer (org.), Fundamentos de história do direito, 1996; R. C. van Caenegem, An historical introduction to western constitutional law, 1995; Julius H. Wolff, Roman law: an historical introduction, 1951; Fritz Schulz, History of roman legal science, 1953; The Encyclopedia Americana, v. 14, 1998; Encyclopedia Britannica, v. V, 1975; The Columbia Encyclopedia, 1993; Jorge Miranda, Teoria do Estado e da Constituição, 2002; J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituição, 2003. 2 Os primeiros escritos de que se tem notícia remontam ao Velho Reinado do Egito, de aproximadamente 2600 a.C. Nada obstante, não há qualquer registro da existência de um corpo de leis, que só chegaria com Dario, um conquistador estrangeiro. V. Roland de Vaux, Ancient Israel, 1961, p. 142 e s. 3 Na Babilônia, ao contrário do Egito, inúmeras coleções de leis foram encontradas, anteriores ao próprio Código de Hamurábi, de 1700 a.C., que era, no entanto, o mais completo. Nele se previam penas de mutilação (o filho que agredisse o pai tinha a mão cortada; o escravo que agredisse o filho de um homem livre tinha a orelha cortada), retaliação (quem ferisse ou quebrasse o olho, o osso ou o dente de um homem livre teria o seu próprio ferido ou quebrado) e multas (se um homem livre agredisse um plebeu ou um escravo sujeitava-se a penas pecuniárias). 4 A Pérsia, segundo os gregos, ou Irã, de acordo com seus próprios habitantes, constituiu um império poderoso no século VI a.C., sob a dinastia Achaemenid. Uma de suas maiores realizações, que permitiu dois séculos de estabilidade no poder, foi a implementação de uma lei secular – a Lei dos Reis – e o incentivo à codificação das leis locais e religiosas. Sob Ciro, o Grande, que governou de 543 a 530 a.C., o império conquistou a Babilônia e libertou os judeus, permitindo que voltassem à sua terra. Cambyses, filho de Ciro, invadiu o Egito (525 a.C.). Foi sucedido por Dario, que deu início às guerras persas contra os gregos, até ser derrotado em 490 a.C. O império persa sucumbiu ao exército da Macedônia, de Alexandre, o Grande, em 334 a.C. 5 Hebreus foram os ancestrais dos judeus e israelitas, designações cuja origem é diversa, mas que passaram a ser utilizadas indistintamente a partir da era cristã. Para os judeus, a Torah, a Lei Escrita, compreende os cinco primeiros livros do Velho Testamento, o Pentateuco, que contém as instruções de Deus para seu povo, as regras morais, sociais e religiosas que deveriam ser observadas. Há uma segunda fonte autorizada de Direito judaico: o Talmud, cujo livro principal denomina-se Mishna, que consiste em uma ampla compilação da Lei Oral, das tradições imemoriais transmitidas de geração para geração, desde séculos antes de Cristo.. 6 Para um interessante estudo acerca da identificação entre Direito, tradição e religião nas sociedades pré- modernas, v. Dieter Grimm, Constituição e política, 2006, p. 3 e s. 7 Daniel P. Franklin e Michael J. Baun (editores), Political culture and constitutionalism: a comparative approach, 1995; Richard Bellamy (editor), Constitutionalism, democracy and sovereignty: american and european perspectives, 1996; Ian Loveland (editor), Constitutional law, 2000; J. Roland Pennock e John W. Chapman (editores), Constitutionalism, 1979; Larry Alexander (editor), Constitutionalism. Philosophical foundations, 1998; Louis Henkin, Elements of constitutionalism, The Review, v. 60, Special Issue (The evolving African constitutionalism), 1998; Carlos Santiago Nino, The constitution of deliberative democracy, 1996. 8 Constitucionalismo e democracia são conceitos que se aproximam, frequentemente se superpõem, mas que não se confundem. Eventualmente, pode haver até mesmo tensão entre eles. Constitucionalismo traduz, como visto, limitação do poder e Estado de direito. Democracia identifica, de modo simplista, soberania popular e governo da maioria. Pois bem: a Constituição se impõe, muitas vezes, como instrumento de preservação de determinados valores e de proteção das minorias, inclusive, e sobretudo, em face das maiorias e do seu poder de manipulação do processo político. 9 Já na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, previa-se: “Art. 16. Toda sociedade, na qual a garantia dos direitos não é assegurada nem a separação dos poderes determinada, não tem constituição”. 10 As primeiras leis escritas remontam a Draco (620-621 a.C.), mas o início do período democrático é associado às reformas de Sólon (594 a.C.) ou, para outros, às de Clístenes (508 a.C.) ou, ainda, às de Ephialtes. A época de ouro da cidade é conhecida como a “era de Péricles”, em razão do grande líder político e orador (443 a 429 a.C.). O fim da democracia ateniense tem data inequívoca: a derrota militar para a Macedônia, em 338 a.C. 11 A Assembleia reunia-se próximo à Ágora, que era a praça pública. As discussões ali eram monopolizadas, Comuns manda o partido da maioria; e o partido da maioria obedece ao Primeiro-Ministro, chefe do governo e do gabinete” (Direito constitucional, 1977, v. 1, p. 84). 37 As anotações deste parágrafo e dos que lhe seguem dentro deste tópico beneficiaram-se da pesquisa e do trabalho desenvolvido por André Rodrigues Cyrino, em paper apresentado no âmbito do Programa de Pós- Graduação em Direito Público da UERJ, intitulado Revolução na Inglaterra? Direitos humanos, corte constitucional e declaração de incompatibilidade das leis. Novel espécie de “judicial review”?, mimeografado, 2006. Sobre os aspectos do direito inglês e as inovações dos últimos anos, v. Ivor Jennings, Governo de gabinete, 1979; Ian Loveland, Constitutional law: a critical introduction, 1996; Jorge Miranda, Teoria do Estado e da Constituição, 2002; Peter Fitzgerald, Constitutional crisis over the proposed supreme court for the United Kingdom, 2004, p. 233, disponível no sítio: www.law.stetson.edu/fitz/fitzstuff/UK%20Supreme%20Court.pdf, acesso em: 13.8.2006; Lord Woolf, The rule of law and a change in the Constitution, Cambridge, Squire Centenary Lecture, 2004, p. 5, disponível no sítio: www.law.cam.ac.uk/docs/view.php?doc=1415, acesso em: 22.2.2006. 38 Outros exemplos de convenções: o cargo de Primeiro-Ministro, que existe desde o século XVIII, só veio a ser objeto de referência legal em 1937; o não exercício do poder de veto pelo Monarca: desde 1707, nenhum rei exerceu tal competência, que caiu em desuso. A convenção, portanto, é o não uso do veto. 39 V. o sítio do Departament of Constitutional Affairs: www.dca.gov.uk. Até 10.8.2006, haviam sido aprovadas 18 leis de reforma do direito constitucional inglês: Compensation Act 2006, Electoral Administration Act 2006, Criminal Defence Service Act 2006, Inquiries Act 2005, Constitutional Reform Act 2005, Mental Capacity Act 2005, Gender Recognition Act 2004, European Parliamentary and Local Elections (Pilots) Act 2004, Courts Act 2003, European Parliament (Representation) Act 2003, Elections Acts, Commonhold – Commencement of Part 1 of the Commonhold and Leasehold Reform Act 2002, The Commonhold and Leasehold Reform Act 2002, Land Registration Act 2002, Freedom of Information 2000, Access to Justice Act 1999, Data Protection Act 1998, Human Rights Act 1998. 40 A expressão designa o modelo de democracia parlamentar inglesa, em razão de a sede do Parlamento ser o Palácio de Westminster, em Londres. 41 A. V. Dicey, An introduction to the study of the law of the Constitution, 8. ed., 1914, integralmente disponível na internet, no sítio: www.constitution.org/cmt/avd/law_con.htm, acesso em: 10.8.2006. Assim doutrinou o constitucionalista inglês, professor da Universidade de Oxford: “The principle, therefore, of parliamentary sovereignty means neither more nor less than this, namely that ‘Parliament’ has ‘the right to make or unmake any law whatever; and further, that no person or body is recognised by the law of England as having a right to override or set aside the legislation of Parliament’”. 42 V. A. v. Secretary of State for the Home Department, julgado em 16.12.2004, disponível no sítio: www.publications.parliament.uk/pa/ld200405/ldjudgmt/jd041216/a&oth-1.htm, acesso em: 22.2.2007. O Appellate Commitee da Câmara dos Lordes declarou incompatível com o HRA o tratamento dado pelo Anti-terrorism, Crime and Security Act, de 2001, à prisão cautelar de estrangeiros suspeitos da prática de terrorismo. O caso envolvia nove muçulmanos presos em prisão de alta segurança (Belmarsh) por prazo indeterminado. Menos de um ano depois da decisão, por iniciativa do Parlamento, foi aprovada uma nova lei (Prevention of Terrorism Act, de 11.3.2005). É certo que também esta nova lei veio a ser objeto de declaração de incompatibilidade, conforme noticia André Rodrigues Cyrino (ob. cit.), e pode-se confirmar nos sítios: http://news.bbc.co.uk/1/hi/uk/5125668.stm e http://en.wikipedia.org/wiki/Prevention_of_Terrorism_Act_2005, acesso em: 2.10.2006. 43 V. Resolução n. 1.342, de 2003, da Assembleia Parlamentar do Conselho Europeu, acessível no sítio: http://assembly.coe.int/Documents/AdoptedText/ta03/ERES1342.htm. 44 Gordon Wood, The creation of the American republic, 1972; Bruce Ackerman, We the people: foundations, 1995; Gordon Scott, Controlling the State, 1999; R. C. van Caenegem, An historical introduction to western constitutional law, 1995; John A. Garraty e Peter Gay (editores), The Columbia history of the world, 1988; Lockard e Murphy, Basic cases in constitutional law, 1992; Nowak e Rotunda, Constitutional law, 2000; Laurence Tribe, American constitutional law, 2000; Stone, Seidman, Sunstein e Tushnet, Constitutional law, 1996; Gerald Gunther, Constitutional law, 1989; Erwin Chemerinsky, Constitutional law: principles and policies, 1997; Kermit L. Hall, The Oxford guide to United States Supreme Court decisions, 1999; Edward Conrad Smith (editor), The Constitution of the United States with case summaries; Paul C. Bartholomew e Joseph Menez, Summaries on leading cases on the Constitution, 1983; Marcelo Caetano, Direito constitucional, 1977, v. 1; Luis Sanches Agesta, Curso de derecho constitucional comparado, 1988; Maurice Duverger, Os grandes sistemas políticos, 1985. 45 A primeira colônia foi Virgínia, fundada em 1606, por uma companhia de comércio internacional. Massachusets foi colonizada pelos puritanos, que vieram no navio Mayflower e desejavam criar uma comunidade regida por seus valores religiosos. Para Maryland foram os católicos, então perseguidos na Inglaterra, e na Pennsylvania estabeleceram-se os quakers. Na Geórgia instalaram-se súditos ingleses endividados, que vieram recomeçar a vida no novo mundo. 46 Diferentemente do que ocorria com as colônias dos demais países europeus, que exportavam suas próprias vicissitudes: absolutismo, centralismo burocrático e intolerância religiosa. 47 Após a vitória sobre a França, na Guerra dos Sete Anos, concluída em 1763, a Coroa britânica instituiu um imposto do selo, incidente sobre jornais, documentos e diversos outros itens, sob o fundamento de que as colônias deveriam contribuir para sua própria defesa. Houve forte reação e desobediência, fundadas em que as colônias não haviam sido ouvidas nem participavam do Parlamento, surgindo um dos slogans da revolução que estava por vir: “No taxation without representantion”. 48 Revogado o Stamp Act, foram em seguida aprovados pelo Parlamento os denominados Townshend Acts, impondo tarifas sobre as importações das colônias. Houve reação violenta em Boston, onde, em 1770, um destacamento militar inglês disparou contra a multidão, matando cinco pessoas e acirrando a determinação anticolonialista. 49 O Tea Act, de 1773, permitiu que a Companhia das Índias Ocidentais distribuísse seus estoques de chá no mercado americano, causando grande prejuízo aos comerciantes locais. Em retaliação, parte desse chá barato foi atirada ao mar, na baía de Boston. Os ingleses enviaram tropas para restaurar a ordem. A evolução dos eventos levou ao primeiro confronto entre tropas inglesas e americanos insurgentes, em Lexington, 1775. 50 A Declaração foi inspirada por ideias de John Locke, especialmente pelo Second treatise on civil government. O texto, de forte teor retórico, procura enunciar as causas que levaram à decisão extrema. Logo, ao início, sua profissão de fé jusnaturalista: “Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens foram criados iguais, foram dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade”. E, ao final, o rompimento com a monarquia inglesa: “Nós, por conseguinte, representantes dos Estados Unidos da América, reunidos em Congresso Geral, apelando para o Juiz Supremo do mundo pela retidão de nossas intenções, em nome e por autoridade do bom povo destas colônias, publicamos e declaramos solenemente: que estas colônias unidas são e de direito têm de ser Estados livres e independentes; que estão desoneradas de qualquer vassalagem para com a Coroa Britânica, e que todo vínculo político entre elas e a Grã-Bretanha está e deve ficar totalmente dissolvido”. 51 Do ponto de vista formal, a Convenção de Filadélfia incidiu em um conjunto notável de ilegalidades: afastou-se do objetivo que justificou a sua convocação; previu, para a ratificação da Constituição que elaboraram, processo de ratificação diverso do que era estabelecido nos Artigos; modificou até mesmo o próprio órgão ao qual caberia a ratificação, substituindo as assembleias legislativas estaduais por convenções constitucionais especiais; deixou de exigir a unanimidade dos Estados para aprovação das modificações introduzidas, estabelecendo que bastariam nove votos favoráveis. Sobre o tema, v. Bruce Ackerman, We the people: Foundations, 1995, p. 41. 52 Esta afirmação, naturalmente, precisa ser confrontada com o fato de que a Constituição mantinha o regime de escravidão, que só veio a ser abolido setenta e seis anos depois, após sangrenta guerra civil, com a aprovação da 13ª Emenda. 53 Nesse Estado, onde o governador e a maioria dos delegados eram antifederalistas (designação dada à corrente contrária à ratificação da Constituição), os federalistas celebraram um acordo para virar o resultado: não se oporiam à reeleição do governador e iriam propor o seu nome para a vice-presidência. Por força desse expediente, pelo qual se barganhou o apoio do chefe do Executivo, Massachusets ratificou a Constituição por estreita margem. 54 Esses textos foram escritos e publicados ao longo de sete meses, a partir de outubro de 1787, com o propósito de demonstrar a importância da Constituição e a necessidade de sua ratificação. Seus autores foram John Jay, James Madison e Alexander Hamilton. Em 1788, esses ensaios foram reunidos em um volume único – denominado The Federalist Papers ou, também, O Federalista –, tendo se tornado, desde então, um clássico da literatura política. A influência que esses artigos doutrinários exerceram sobre o processo de ratificação em si foi limitada, mas a obra logo tornou-se uma referência maior, por sua exposição sistemática acerca da Constituição e suas instituições, sendo considerada o “maior trabalho de ciência política jamais escrito nos Estados Unidos”. Clinton Rossiter (editor), The Federalist Papers, 1961. V. tb. Roy P. Fairfield (editor), The Federalist Papers, 1981. 55 Artigo VII: “A ratificação, por parte das convenções de nove Estados, será suficiente para a adoção desta Constituição nos Estados que a tiverem ratificado”. 56 Em 1860, Abraham Lincoln, um abolicionista, foi eleito presidente dos Estados Unidos. Os Estados do sul, cuja economia agrícola era amplamente dependente da mão de obra escrava, decidiram separar-se da União, dando início à guerra da secessão. A Guerra Civil terminou com a vitória dos Estados do norte. A escravidão foi abolida com a Emenda 13, mas o ressentimento dos Estados do sul prolongou-se ainda por mais de um século. A questão racial nos Estados Unidos, já iniciado o século XXI, ainda é tema fundamental na agenda política. 57 Alguns dos artigos, no entanto, são longos, desdobrados em inúmeras seções e incisos. O art. 1º é dedicado ao Poder Legislativo; o art. 2º, ao Executivo; o art. 3º, ao Judiciário; o art. 4º, a aspectos das relações entre os Estados da Federação; o art. 5º, às emendas à Constituição; o art. 6º prevê a supremacia da Constituição e das leis; e o art. 7º cuida da ratificação da Constituição pelos Estados. 58 A maior parte das emendas constituem aditamentos ao texto original. Exceção digna de nota foi a Emenda 21, de 1933, que revogou a Emenda 18, de 1919, que proibia a fabricação, importação e exportação de bebidas alcoólicas (a denominada lei seca). A Emenda 27 – que prevê que a variação da remuneração de senadores e deputados só poderá entrar em vigor após nova eleição, isto é, na legislatura seguinte – tem uma história singular: foi apresentada por James Madison, em 1789, tendo sido aprovada pelo Senado juntamente com as dez primeiras emendas e enviada aos Estados para ratificação, como exigido pelo art. 5º da Constituição. Como não se prevê prazo de validade, ao longo de mais de dois séculos ela foi sendo ratificada por um ou outro Estado, sem merecer maior atenção. Até que, em 1992, o Estado de Michigan tornou-se o 38º Estado a ratificá-la, inteirando os três quartos exigidos, e fazendo com que passasse a viger. V. Erwin Chemerinsky, Constitutional law: principles and policies, 1997. 59 A Emenda 22 veda que o Presidente seja eleito mais de duas vezes, isto é, admite apenas uma reeleição. Aprovada em 1951, essa Emenda restaurou uma limitação de natureza costumeira, que vinha desde o término do segundo mandato de George Washington, mas não foi seguida por Franklin Roosevelt, que se reelegeu para um terceiro e para um quarto mandatos. 60 A eleição do Presidente é feita por um colégio eleitoral, composto por 538 integrantes, cuja composição obedece ao seguinte critério: cada Estado, por regras estabelecidas na sua própria legislação, indica um número de delegados correspondente à soma de Senadores e Deputados daquele Estado (Constituição, art. 2º). Há, todavia, uma singularidade: à exceção dos Estados de Maine e Nebraska, o candidato que obtiver mais votos populares em um Estado recebe todos os votos dos delegados daquele Estado. Esse critério já fez com que, por três vezes, o candidato vencedor no voto popular perdesse no colégio eleitoral. Tal anomalia ocorreu pela última vez na eleição de outubro de 2000, quando o candidato eleito George W. Bush teve menos votos populares do que seu oponente, Al Gore. Sobre o tema, v. James W. Ceaser, Presidential selection: theory and development, 1980; e Samuel Issacharoff, Pamela S. Karlan e Richard H. Pildes, When elections go bad: the law of democracy and the presidential election of 2000, 2001. 61 O impeachment, isto é, o processo por crime de responsabilidade, é julgado pelo Senado, desde que admitida a acusação pela Câmara dos Representantes. Três Presidentes americanos enfrentaram processos de impeachment. Andrew Johnson, em 1867, teve a acusação admitida pela Câmara, mas venceu no Senado por um voto. Nixon, em 1974, renunciou antes do julgamento da admissibilidade da acusação pelo plenário da Câmara. Bill Clinton sofreu igualmente processo de impeachment, no desdobramento de um escândalo sexual amplamente explorado, mas foi absolvido pelo Senado em fevereiro de 1999. 62 Em Marbury v. Madison (1803), a Suprema Corte estabeleceu o princípio da supremacia da Constituição, bem como a autoridade do Judiciário para zelar por ela, inclusive invalidando os atos emanados do Executivo e do Legislativo que a contrariem. 63 Em casos como Luther v. Borden (1849), Baker v. Carr (1962) e Powell v. McCormack (1969), a Suprema Corte desenvolveu a denominada political question doctrine, procurando definir as situações que, por sua natureza política, deveriam ser consideradas inadequadas para decisão pelo Judiciário, devendo a manifestação dos outros dois Poderes ser considerada final. 64 Em McCulloch v. Maryland (1819), a Suprema Corte construiu a doutrina dos poderes implícitos. Embora a Constituição não desse competência expressa ao Congresso para a criação de um banco nacional, tal atribuição poderia ser inferida como “necessária e própria” para o desempenho de outras competências inequívocas da União, como arrecadação de tributos e realização de empréstimos. 65 Em United States v. Nixon (1974), a Corte assentou que a imunidade do Executivo não era um valor absoluto e que, nas circunstâncias, deveria ser ponderada com a necessidade de produção de prova em um processo penal em curso. Determinou, assim, que o Presidente entregasse ao Judiciário fitas que o incriminavam. O desdobramento do caso – que ficou mundialmente conhecido como Watergate – conduziu ao impeachment de Nixon. 66 A tendência ao longo dos anos tem sido a ampliação da atividade legislativa federal, com base na competência do Congresso para legislar sobre comércio entre os Estados (commerce clause, art. 1º, seção 8) e, também, por força da doutrina denominada preemption, derivada da supremacia do direito federal, que faz com que ele filosofia e na ciência política: Descartes, Locke, Montesquieu, Voltaire e Rousseau. 84 Em seu magnífico estudo On revolution, 1987 (1ª edição em 1963), Hannah Arendt comenta o fato intrigante de que foi a Revolução Francesa, e não a Inglesa ou a Americana, que correu mundo e simbolizou a divisão da história da humanidade em duas fases. Escreveu ela: “A ‘Revolução Gloriosa’, evento pelo qual o termo (revolução), paradoxalmente, encontrou seu lugar definitivo na linguagem política e histórica, não foi vista como uma revolução, mas como uma restauração do poder monárquico aos seus direitos pretéritos e à sua glória. (...) Foi a Revolução Francesa e não a Americana que colocou fogo no mundo. (...) A triste verdade na matéria é que a Revolução Francesa, que terminou em desastre, entrou para a história do mundo, enquanto a Revolução Americana, com seu triunfante sucesso, permaneceu como um evento de importância pouco mais que local” (p. 43, 55-56). 85 Marcelo Caetano, Direito constitucional, 1977, p. 127-135: “Se percorrermos a história do período revolucionário, desde 1789 a 1804, verificaremos (...) que sucedem-se a Monarquia absoluta, a Monarquia limitada, a República democrática, a República autoritária ou ditadura e por fim, novamente, a Monarquia absoluta”. 86 Hannah Arendt, On revolution, 1987, p. 48: “E essa multidão, aparecendo pela primeira vez na larga luz do dia, era na verdade a multidão dos pobres e oprimidos, que nos séculos anteriores estivera escondida na escuridão e na vergonha”. 87 Na típica estratificação social feudal, baseada em ordens ou estamentos, o terceiro estado era composto pelos camponeses (pequenos proprietários, arrendatários, assalariados rurais), a burguesia (banqueiros, comerciantes, profissionais liberais e proprietários) e trabalhadores urbanos, conhecidos como sans cullotes (pequenos logistas, artesãos e assalariados em geral). 88 Em 17 de junho de 1789, por proposta de Emmanuel Joseph Sieyès (um padre promovido a abade pela imprecisa tradução do francês abbé), o terceiro estado se declarou Assembleia Nacional e, em 9 de julho de 1789, sob o impacto já da insurreição popular, transformou-se em Assembleia Constituinte. Sieyès foi o autor de importante manifesto, publicado às vésperas da Revolução, em fevereiro de 1789, intitulado Qu’est-ce que le tiers État?, no qual defendeu os interesses do terceiro estado, cujos representantes eram “os verdadeiros depositários da vontade nacional”. Credita-se a Sieyès, igualmente, a distinção fundamental entre poder constituinte e poder constituído, que será objeto de estudo mais adiante. 89 Os burgos designavam os centros comerciais e financeiros que se formaram na Europa, a partir dos séculos XII e XIII. Essas aglomerações, que se situavam em domínios senhoriais, compravam sua própria independência e passavam a ter influência política autônoma. A expansão do comércio ao longo dos séculos, tanto dentro da Europa como com o Oriente, a produção excedente resultante de novas técnicas, o surgimento de pequenas indústrias e a relevância assumida pela atividade financeira fizeram surgir uma classe cuja força econômica era baseada no dinheiro, e não mais na propriedade da terra. Tem início a longa transição que levará do feudalismo ao capitalismo. Na França da segunda metade do século XVIII, essa nova classe, a burguesia, tornara-se a mais rica e instruída, e o absolutismo, com seu modelo feudal-aristocrático, representava um obstáculo à sua ascensão ao poder. 90 A estrutura socioeconômica da França pré-revolucionária era agrária e feudal. Mais de 80% da população era composta de camponeses que, por não possuírem terras próprias, trabalhavam nas terras dos grandes senhores, como arrendatários ou foreiros, pagando a estes direitos feudais. 91 São comumente identificadas quatro fases: (i) a instauração de uma monarquia constitucional e parlamentar; (ii) a Convenção; (iii) o Diretório; (iv) a era napoleônica. Até mesmo um calendário revolucionário foi instituído, tendo como início do ano I o dia seguinte à proclamação da República (22.9.1792). Os meses foram rebatizados com nomes como Brumaire (névoa), Fructidor (frutas) e Thermidor (calor). 92 Em meio à insurreição popular de agosto de 1792, a Assembleia Nacional foi dissolvida, tendo sido eleita, por sufrágio amplo, uma Convenção, que viria a elaborar a Constituição de 1793 (Constituição do ano I). No plano político, os jacobinos venceram a disputa contra os girondinos e, sob a liderança de Robespierre, implantaram o reino do terror, que resultou na prisão e execução de milhares de pessoas acusadas de serem adversárias da Revolução. A crise política e a guerra externa impediram que a Constituição de 1793 tivesse vigência. 93 Membros da Convenção, temendo que Robespierre se voltasse contra eles, destituíram-no e levaram-no à guilhotina, em julho de 1794, no que se denominou Reação Thermidoriana. A Convenção elaborou uma nova Constituição, a de 1795 (Constituição do ano III), instituindo um governo colegiado com cinco membros, o Diretório. Essa fórmula duraria quatro anos, sob a ameaça da volta dos jacobinos, de um lado, e dos realistas, de outro, e uma sucessão de golpes de Estado. O desgaste do Diretório e a exaustão da população com a interminável crise política e econômica prepararam o cenário para o último ato do período revolucionário: a ascensão de Napoleão. 94 A Constituição de 1799 (Constituição do ano VIII) deu forma jurídica ao regime de Consulado, que encobria a realidade do mando pessoal de Napoleão. Em maio de 1802, um plebiscito conferiu-lhe o título de cônsul vitalício. Em 1804, por decisão nominal do Senado confirmada em consulta popular, Napoleão é sagrado imperador, tendo lugar o célebre episódio da autocoroação na Catedral de Notre-Dame. Restabeleceu-se, inclusive, a hereditariedade do poder. A Revolução, aparentemente, encerrava-se onde começara: com uma monarquia absoluta e hereditária. As guerras e conquistas de Napoleão mudariam o curso da história política da Europa. Após a retirada da Rússia, em 1812, e derrotas sucessivas para a coalizão formada por Inglaterra, Áustria, Prússia e Rússia, em 1813, Napoleão é levado à abdicação e ao exílio na Ilha de Elba, em 1814. Em março de 1815, ainda tentaria voltar ao poder, fugindo de Elba e recebendo aclamação popular. A derrota final viria cem dias depois, em Waterloo, na Bélgica, seguida do exílio definitivo na Ilha de S. Helena, no Atlântico Sul. 95 José Guilherme Merquior, em seu O repensamento da Revolução, ensaio que antecede a versão brasileira do Dicionário crítico da Revolução Francesa, 1989, p. LVII, assinalou: “O colapso da sociedade hierárquica era um fato; a cultura da igualdade vencera”. 96 Sobre o tema, v., dentre muitos outros, Maurice Duverger, Les regimes semi-presidentiels, 1986, autor que cunhou a designação; Rafael Mart’nez Martinez, Semi-presidentialism: a comparative study, 1999, p. 10; e Manoel Gonçalves Ferreira Filho, O parlamentarismo, 1993, p. 21. Para uma análise detalhada do modelo francês, v. Luís Roberto Barroso, Uma proposta de reforma política para o Brasil, Revista de Direito do Estado, 3:287, 2006, p. 303 e s. 97 A eleição direta foi introduzida por emenda, em 1962 (Lei Constitucional n. 62-1292, de 6.11.1962). No texto original, o Presidente era eleito indiretamente, por um colégio eleitoral integrado pelos membros do Parlamento e de conselhos gerais e municipais. 98 O colégio eleitoral do Senado compõe-se de deputados, de conselheiros regionais e gerais e, sobretudo, em uma proporção de 96%, de delegados dos conselhos municipais. V. Bernard Chantebout, Droit constitutionnel e science politique, 1991, p. 525. 99 O art. 34 enumera as matérias reservadas à lei. As demais matérias, fora do domínio da lei, serão providas por regulamentos (art. 37), que terão, portanto, caráter de regulamento autônomo. As matérias reservadas à lei poderão ser tratadas por ordonnances (ato normativo análogo às medidas provisórias do direito brasileiro), mediante autorização do Parlamento conferida por prazo determinado. 100 Dedica-se ao tema o Título VIII da Constituição, composto por três artigos (arts. 64 a 66). Neles se prevê a existência de uma lei orgânica criando o estatuto dos magistrados; de um Conselho Superior da Magistratura, órgão responsável pela disciplina e promoção dos magistrados, presidido pelo Presidente da República; assegura-se a inamovibilidade dos juízes de carreira; e proclama-se que a autoridade judicial é a guardiã da liberdade individual. 101 V. Pierre Pactet, Institutions politiques: droit constitutionnel, 1994, p. 487. 102 Essa desconfiança cultivada na França em relação ao Judiciário pode ser exemplificada por uma das leis aprovadas no contexto da Revolução Francesa, a Lei 16-24, de agosto de 1790, de acordo com a qual apenas o Poder Legislativo poderia explicitar o sentido das suas próprias prescrições. O art. 10 do referido diploma assim dispunha: “Les tribunaux ne pourront prendre directement ou indirectement part à l’exercice du pouvoir législatif, ni empêcher ou suspendre l’exécution des décrets du corps législatif, sanctionnés par le roi, à peine de forfaiture”. Até recentemente, esse tipo de prescrição ainda constava de alguns ordenamentos jurídicos, como no Código Civil Chileno, cujo art. 3º dispõe que “solo toca al legislador explicar o interpretar la ley de un modo general y obligatorio”. 103 A Constituição prevê, ainda, a existência de uma Alta Corte de Justiça (art. 67), cuja competência específica é julgar o Presidente da República em caso de alta traição; e também de uma Corte de Justiça da República (criada pela Lei Constitucional n. 93-952, de 27.7.1993), que julga o Primeiro-Ministro e membros do governo por atos praticados no exercício da função e qualificados como crimes. 104 Para uma coletânea das principais decisões proferidas pelo Conselho de Estado como órgão supremo do contencioso administrativo, v. Long, Weil, Braibant, Delvolvé e Genevois, Lês grands arrêts de la jurisprudence administrative, 1996. 105 Os principais pareceres proferidos na condição de órgão consultivo do governo podem ser lidos em Gaudement, Stirn, Farra e Rolin, Lês grands avis du Conseil d’État, 1997. 106 Tais competências consultivas vêm previstas nos arts. 37, 38 e 39 da Constituição. O Conselho de Estado é composto por cerca de duzentos membros, divididos em cinco seções administrativas e uma de contencioso. 107 O Título VIII da Constituição (arts. 56 a 63) é dedicado ao Conseil Constitutionnel, cuja composição é a seguinte: a) nove membros, nomeados pelo Presidente da República, pelo Presidente da Assembleia Nacional e pelo Presidente do Senado, à razão de três cada um; b) os antigos Presidentes da República. 108 Art. 61. “As leis orgânicas, antes de sua promulgação, e os regimentos das assembleias parlamentares, antes de sua aplicação, devem ser submetidos ao Conselho Constitucional, que se pronunciará sobre sua conformidade com a Constituição”. 109 Lei Constitucional n. 74.904, de 29.10.1974 (art. 61): “Para os mesmos fins, as leis podem ser apresentadas ao Conselho Constitucional, antes de sua promulgação, pelo Presidente da República, o Presidente da Assembleia Nacional, o Presidente do Senado ou sessenta deputados ou sessenta senadores“. 110 Objetivamente, a Decisão n. 71-44 DC, de 16.7.1971 (disponível em: www.conseil- constitutionnel.fr/decision/1971/7144dc.htm, acesso em: 26.7.2005), considerou que a exigência de autorização prévia, administrativa ou judicial, para a constituição de uma associação violava a liberdade de associação. Sua importância, todavia, foi o reconhecimento de que os direitos fundamentais previstos na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e no preâmbulo da Constituição de 1946, incorporavam-se à Constituição de 1958, por força de referência constante do preâmbulo desta, figurando, portanto, como parâmetro para o controle de constitucionalidade das leis. Essa decisão reforçou o prestígio do Conselho Constitucional, que passou a desempenhar o papel de protetor dos direitos e liberdades fundamentais. Além disso, consagrou o “valor positivo e constitucional” do preâmbulo da Constituição e firmou a ideia de “bloco de constitucionalidade”. Essa expressão significa que a Constituição não se limita às normas que integram ou se extraem do seu texto, mas inclui outros textos normativos, que no caso eram a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e o Preâmbulo da Constituição de 1946, bem como os princípios fundamentais das leis da República ali referidos. Sobre a importância dessa decisão, v. Léo Hamon, Contrôle de constitutionnalité et protection des droits individuels, 1974, p. 83-90; G. Haimbowgh, Was it France’s Marbury v. Madison?, Ohio State Law Journal, 35:910, 1974; J. E. Beardsley, The Constitutional Council and Constitutional liberties in France, American Journal of Comparative Law, 1972, p. 431-452. Para um comentário detalhado da decisão, v. L. Favoreu e L. Philip, Les grands décisions du Conseil Constitutionnel, 2003. Especificamente sobre bloco de constitucionalidade, v. Michel de Villiers, Dictionaire du droit constitutionnel, 2001; e Olivier Duhamel e Yves Mény, Dictionnaire constitutionnel, 1992. 111 Trata-se da Reforma de 29.10.1974. A partir daí, o direito de provocar a atuação do Conselho Constitucional, que antes recaía apenas sobre o Presidente da República, o Primeiro-Ministro, o Presidente da Assembleia Nacional e o Presidente do Senado, estendeu-se, também, a 60 Deputados ou 60 Senadores. Dessa forma, o controle de constitucionalidade tornou-se um importante instrumento de atuação da oposição parlamentar. Entre 1959 e 1974, foram proferidas apenas 9 (nove) decisões acerca de leis ordinárias (por iniciativa do Primeiro- Ministro e do Presidente do Senado) e 20 (vinte) acerca de leis orgânicas (pronunciamento obrigatório). De 1974 até 1998 houve 328 provocações (saisine) ao Conselho Constitucional. Os dados constam de Louis Favoreu, La place du Conseil Constitutionnel dans la Constitution de 1958, disponível em: www.conseil-constitutionnel.fr, acesso em: 26.7.2005. 112 Há decisões do Conselho em temas de liberdade individual, de associação, de comunicação, de educação, direitos sindicais, direito de propriedade e igualdade jurídica, dentre outros. V. L. Favoreu e L. Philip, Les grands arrêts du Conseil Constitutionnel, 2003. O repertório de jurisprudência do Conselho é o Recueil des décisions du Conseil Constitutionnel, publicado anualmente. 113 Lei Constitucional n. 92.554, de 25.6.1992 (art. 54): “Se o Conselho Constitucional encarregado pelo Presidente da República, pelo Primeiro-Ministro, pelo Presidente de uma das Assembleias ou por sessenta deputados ou sessenta senadores declarar que um acordo internacional comporta uma cláusula contrária à Constituição, a autorização para ratificá-lo ou aprová-lo somente poderá ocorrer após a revisão da Constituição“. 114 V. Lei Constitucional n. 2008-724, cujo art. 29 introduziu, na Constituição francesa, o art. 61.1, com a seguinte redação: “Quando, na tramitação de um processo perante uma jurisdição, for sustentado que uma disposição legislativa atenta contra direitos e liberdades que a Constituição garante, o Conselho Constitucional pode ser provocado a se manifestar sobre tal questão, mediante envio pelo Conselho de Estado ou pela Corte de Cassação, devendo se pronunciar dentro de um prazo determinado”. 115 Este tópico beneficiou-se amplamente de pesquisa realizada por Eduardo Mendonça, no âmbito do Grupo de Pesquisa Institucional por mim coordenado no Programa de Pós- -Graduação em Direito Público da UERJ, no ano de 2005, sob o título “Experiências Constitucionais Contemporâneas”. As traduções do alemão para o português, constantes das notas de rodapé, são de sua autoria. CAPÍTULO II DIREITO CONSTITUCIONAL Sumário: I o direito constitucional no universo jurídico 1 Generalidades 2 Conceito 2.1 A ciência do direito constitucional 2.2 O direito constitucional positivo 2.3 O direito constitucional como direito subjetivo 3 Objeto II o direito constitucional como direito público 1 Direito público e direito privado 2 Regime jurídico de direito público e de direito privado III a expansão do direito público e da constituição sobre o direito privado40 IV espaço público e espaço privado. evolução da dicotomia. um drama brasileiro51 1 Origens da distinção 2 O desaparecimento do espaço público: Império Romano e sistema feudal 3 A reinvenção do público: do Estado patrimonial ao Estado liberal 4 A volta do pêndulo: do Estado social ao neoliberalismo 5 O público e o privado na experiência brasileira V a subsistência do princípio da supremacia do interesse público73 1 O Estado ainda é protagonista 2 Sentido e alcance da noção de interesse público no direito contemporâneo I O DIREITO CONSTITUCIONAL NO UNIVERSO JURÍDICO[1] 1 Generalidades Com a queda da República em Roma, às vésperas do início da era cristã, o constitucionalismo, como ideia e como prática política, desapareceria do mundo ocidental. O monumento jurídico representado pelo direito romano[2], que atravessou os séculos, foi a matriz imperecível do direito civil, não do direito constitucional. Ao final da Idade Média, já avançando no século XVI, consolida-se a forma política superadora das cidades antigas (pólis grega e civitas romana) e do modelo feudal (com principados e feudos subordinados a um Império): o Estado moderno, soberano e absolutista. O Iluminismo, as teorias contratualistas[3] e a reação ao absolutismo fazem renascer o ideal constitucionalista, fundado na razão, na contenção do poder e no respeito ao indivíduo. Com as revoluções liberais surgem, nos Estados Unidos (1787) e na França (1791), as primeiras constituições modernas, materializadas em documentos escritos, aprovados mediante um procedimento formal e solene. A precedência histórica da Constituição norte-americana não assegurou aos seus comentadores pioneirismo doutrinário no desenvolvimento do direito constitucional. Por força da herança inglesa do common law[4], fundada em precedentes judiciais e na solução pragmática de problemas concretos, a evolução do direito constitucional nos Estados Unidos se deu menos pela atividade teórica dos tratadistas e mais pela atuação dos tribunais, notadamente da Suprema Corte[5]. Na França, ao revés, uma sólida produção doutrinária precedeu a Revolução e sua primeira Constituição[6]. Interessantemente, as primeiras cátedras de direito constitucional foram criadas em universidades italianas (Ferrara, Pavia e Bolonha), embora por influência francesa resultante da expansão napoleônica. Apenas em 1834 a disciplina é introduzida na Universidade de Paris[7]. De todo modo, o direito constitucional somente se desenvolve na Europa como disciplina autônoma nas últimas décadas do século XIX, quando regimes constitucionais finalmente se impõem sobre as monarquias absolutas e os governos oligárquico-aristocráticos[8]. Com a Revolução Francesa, o direito civil ganha o Código Napoleônico (1804), que pretendeu ser sua sistematização definitiva, ao passo que o direito constitucional passa a ter o seu próprio objeto, a Constituição, cujos estudos se desenvolveriam a partir do século seguinte. Como se constata singelamente da breve exposição até aqui empreendida, o direito civil dá continuidade a uma tradição milenar, iniciada com o direito romano. Já o direito constitucional é de formação muito mais recente, contando com pouco mais de dois séculos de elaboração teórica. Essa juventude científica, aliada às circunstâncias históricas e políticas que o condicionam, singulariza o direito constitucional atual, envolvido em grande efervescência teórica e complexidades práticas na sua realização[9]. A Constituição é um instrumento do processo civilizatório. Ela tem por finalidade conservar as conquistas incorporadas ao patrimônio da humanidade e avançar na direção de valores e bens jurídicos socialmente desejáveis e ainda não alcançados. Como qualquer ramo do Direito, o direito constitucional tem possibilidades e limites. Mais do que em outros domínios, nele se expressa a tensão entre norma e realidade social. No particular, é preciso resistir a duas disfunções: (i) a da Constituição que se limita a reproduzir a realidade subjacente, isto é, as relações de poder e riqueza vigentes na sociedade, assim chancelando o status quo; e (ii) a do otimismo juridicizante, prisioneiro da ficção de que a norma pode tudo e da ambição de salvar o mundo com papel e tinta. O erro na determinação desse ponto de equilíbrio pode gerar um direito constitucional vazio de normatividade ou desprendido da vida real[10]. Em sua história curta, mas intensa, o direito constitucional conservou a marca da origem liberal: organização do Estado fundada na separação dos Poderes e definição dos direitos individuais. Um contínuo processo evolutivo, todavia, agregou-lhe outras funções. O conteúdo dos direitos ampliou-se para além da mera proteção contra o abuso estatal, transformando-se na categoria mais abrangente dos direitos fundamentais. Novos princípios foram desenvolvidos e princípios clássicos foram redefinidos. O Poder Público continuou a pautar-se pelo princípio da legalidade, mas passou a qualificar-se, igualmente, pela legitimidade de sua atuação. A fundamentalidade da Constituição já não reside apenas nas decisões que traz em si, mas também nos procedimentos que institui para que elas sejam adequadamente tomadas pelos órgãos competentes, em bases democráticas. Progressivamente, o direito constitucional foi deixando de ser um instrumento de proteção da sociedade em face do Estado para se tornar um meio de atuação da sociedade e de conformação do poder político aos seus desígnios. Supera-se, assim, a função puramente conservadora do Direito, que passa a ser, também, mecanismo de transformação social. O direito constitucional já não é apenas o Direito que está por trás da realidade social, cristalizando-a, mas o que tem a pretensão de ir à frente da realidade, prefigurando-a na conformidade dos impulsos democráticos[11]. Em seu estágio atual, o direito constitucional assumiu, na Europa e no Brasil, uma dimensão claramente normativa. Nos Estados Unidos, desde sempre, esta fora sua característica essencial. Em outras partes do mundo, no entanto, inclusive entre nós, o direito constitucional demorou a libertar-se das amarras de outras ciências sociais, como a história, a sociologia, a filosofia, bem como do próprio varejo da política. Desempenhou, assim, por décadas, mais um papel programático e de convocação à atuação dos órgãos públicos do que o de um conjunto de normas imperativas de conduta. Esse quadro reverteu-se. O direito constitucional moderno, investido de força normativa, ordena e conforma a realidade social e política, impondo deveres e assegurando direitos. A juridicização do direito constitucional e a atuação profícua dos tribunais constitucionais ou das cortes a eles equiparáveis deram especial destaque à jurisprudência constitucional, característica marcante do novo direito constitucional[12]. No Brasil de hoje, a ampliação da jurisdição constitucional, a importância das decisões judiciais e uma crescente produção doutrinária de qualidade proporcionaram ao direito constitucional um momento de venturosa ascensão científica e política. 2 Conceito O vocábulo Direito presta-se a acepções amplas e variadas, designando um conjunto heterogêneo de situações e possibilidades. Para os fins aqui visados, é de proveito demarcar três sentidos que, embora diversos, integram-se para produzir um conjunto harmonioso. Direito, assim, pode significar: (i) um domínio científico, isto é, o conjunto ordenado de conhecimentos acerca de determinado objeto: a ciência do Direito; (ii) as normas jurídicas vigentes em determinado momento e lugar: o direito positivo; (iii) as posições jurídicas individuais ou coletivas instituídas pelo ordenamento e a exigibilidade de sua proteção: os direitos subjetivos. O direito constitucional se amolda sem embaraços a essa classificação conceitual[13]. 2.1 A ciência do direito constitucional Como domínio científico, o direito constitucional procura ordenar elementos e saberes diversos, relacionados a aspectos normativos do poder político e dos direitos fundamentais, que incluem: as reflexões advindas da filosofia jurídica, política e moral – filosofia constitucional e teoria da Constituição; a produção doutrinária acerca das normas e dos institutos jurídicos – dogmática jurídica; e a atividade de juízes e tribunais na aplicação prática do Direito – jurisprudência. Embora o conceito de ciência, quando aplicado às ciências sociais, e em particular ao Direito, exija qualificações e delimitações de sentido, a ciência do direito constitucional desempenha papel análogo ao das ciências em geral. Nele se inclui a identificação ou elaboração de determinados princípios específicos, a consolidação e sistematização dos conhecimentos acumulados e, muito importante, o oferecimento de material teórico que permita a formulação de novas hipóteses, a especulação criativa e o desenvolvimento de ideias e categorias conceituais inovadoras que serão testadas na vida prática. A singularidade da ciência do Direito é que ela não pode servir-se, em escala relevante, da ambição de objetividade que caracteriza as ciências exatas ou as ciências naturais. Nesses domínios, as principais matérias-primas intelectuais são a observação, a experimentação e a comprovação, todas elas passíveis de acompanhamento e confirmação objetiva por parte dos demais cientistas e da comunidade em geral. O Direito, todavia, não lida com fenômenos que se ordenem independentemente da atividade do intérprete, de sua subjetividade, de sua ideologia. Ao contrário, por exemplo, do astrônomo, que observa e revela algo que lá já está[14], o jurista cria ele próprio o objeto da sua ciência. O Direito, a norma jurídica, não é um dado da realidade, mas uma criação do agente do conhecimento. As implicações filosóficas e ideológicas decorrentes dessas constatações são objeto anterioridade (art. 150, I e III, b); do direito processual, o devido processo legal (art. 5º, LIV); do direito civil, a garantia da propriedade (art. 5º, XXII), a igualdade entre os cônjuges (art. 226, § 5º) e a proteção da criança e do adolescente (art. 227). Os exemplos se multiplicam. Na verdade, a prática constitucional da maior parte dos países faz constar dos seus textos normas que não são materialmente constitucionais. Cada povo tem as suas circunstâncias políticas e históricas. O Reino Unido e Israel não têm Constituição escrita. A Constituição da Índia, por sua vez, tem 395 artigos. Na Suíça, o direito constitucional protege os pássaros. Na Bélgica, ele regula o uso das línguas. Diante da impossibilidade de adoção de um critério material rigoroso na determinação do objeto concreto do direito constitucional, é de valia recorrer, também, a um critério formal. Nessa linha, o direito constitucional se identifica com o conjunto de normas dotadas de superioridade hierárquica em relação às demais normas do sistema jurídico, às quais fornecem fundamento de validade[21], não estando elas próprias fundadas em qualquer outra norma. II O DIREITO CONSTITUCIONAL COMO DIREITO PÚBLICO 1 Direito público e direito privado O direito constitucional, conjunto de normas fundamentais instituidoras do Estado e regedoras da sociedade, situa-se no vértice da pirâmide jurídica[22] e é ramo do direito público. A distinção entre direito público e direito privado remonta ao direito romano clássico, que atribuía ao primeiro as coisas do Estado e ao segundo, os interesses individuais[23]. Essa divisão jamais significou quebra da unidade sistemática do Direito, tampouco a criação de dois domínios apartados e incomunicáveis. Formulada há muitos séculos, tem resistido às alterações profundas vividas pelo Estado, pela sociedade e pelo próprio Direito. Convém revisitar brevemente o tema, como antecedente para a discussão teórica que tem mobilizado mais intensamente o pensamento jurídico na quadra atual, referente às superposições entre espaço público e espaço privado. A demarcação conceitual entre direito público e direito privado é mais típica dos sistemas fundados na tradição romano-germânica do que no common law[24]. E, sem embargo das resistências ideológicas, dificuldades teóricas e críticas diversas, tem base científica sustentável e é de utilidade didática. É possível formular a distinção levando em conta, fundamentalmente, três fatores verificáveis na relação jurídica: (i) os sujeitos; (ii) o objeto; (iii) a sua natureza. Nenhum deles é suficiente em si, exigindo complementação recíproca. Tomando como critério os sujeitos da relação jurídica, tem-se que, caso ela se estabeleça entre particulares – indivíduos ou pessoas jurídicas de direito privado –, será naturalmente regida pelo direito privado. Vejam-se estes exemplos: (i) dois indivíduos firmam um contrato de compra e venda de um imóvel; (ii) uma pessoa física e uma empresa financeira celebram um contrato de mútuo, que é uma modalidade de empréstimo. Ambas as hipóteses situam-se no âmbito do direito privado. Se, todavia, em um ou em ambos os polos da relação figurar o Estado ou qualquer outra pessoa jurídica de direito público[25], estar-se-á, como regra, diante de uma relação jurídica de direito público. Confiram-se estes outros exemplos: (i) o Estado desapropria imóvel de um particular para a construção de uma escola, propondo a ação judicial própria; (ii) o Estado institui um empréstimo compulsório, que é uma espécie de tributo, mediante lei regularmente aprovada; (iii) a União e um Município firmam convênio para a prestação de um serviço específico na área de saúde. Estas são tipicamente situações regidas pelo direito público. No tocante ao objeto ou conteúdo da relação jurídica, deve-se levar em conta o interesse preponderante tutelado pela norma. Se ela visar, predominantemente, à proteção do bem coletivo, do interesse social, estará no âmbito do direito público. Quando o Estado, nos exemplos dados, desapropria um imóvel ou institui um tributo, atua para satisfazer o interesse público. Ao contrário, encontra-se no domínio do direito privado a disciplina das situações nas quais avulta o interesse particular, individual. Tal será o caso da aquisição de um imóvel para construção de uma residência ou para sede de uma empresa comercial, bem como a obtenção de empréstimo junto a instituição financeira para custear a construção. Por fim, há a questão da natureza jurídica da relação ou, mais propriamente, da posição dos sujeitos em interação. O Estado, como regra, atua no exercício de seu poder soberano, de seu imperium, estabelecendo uma relação de subordinação jurídica com o particular. O proprietário de um imóvel desapropriado ou o sujeito passivo de um tributo sujeitam-se a tais imposições independentemente de sua vontade (desde que elas sejam constitucionais e legais). Este é um traço comum das relações de direito público[26]. Já no direito privado, a regra é a igualdade jurídica entre as partes, sendo que as normas jurídicas desempenham um papel de coordenação. Se o proprietário de um bem não desejar vendê-lo ao pretendente à sua compra, ou se a instituição financeira recusar crédito a quem solicitou empréstimo, a relação jurídica simplesmente não se estabelece. No direito privado, como regra, exige-se consenso, sem que uma vontade possa impor-se à outra[27]. Numa visão esquemática, a distinção direito público e direito privado pode ser assim representada[28]: 1) Quanto aos sujeitos da relação jurídica: a) se forem ambos particulares – indivíduos e sociedades civis ou comerciais: direito privado; b) se um ou ambos forem o Estado ou outra pessoa jurídica de direito público: direito público. 2) Quanto ao objeto da relação jurídica: a) se o interesse predominante for individual, particular: direito privado; b) se o interesse predominante for de natureza geral, da sociedade como um todo: direito público. 3) Quanto à natureza da relação jurídica: a) se a posição dos sujeitos se articular em termos de igualdade jurídica e coordenação: direito privado; b) se a posição dos sujeitos se articular em termos de superioridade jurídica e subordinação: direito público. 2 Regime jurídico de direito público e de direito privado O fato de que o Estado, por vezes, não atua investido de superioridade jurídica constitui uma hipótese particular, que não compromete os fundamentos da diferenciação. Da mesma forma, a circunstância de que o Direito é normalmente público na sua origem – porque emanado do Estado[29] – e visa, em última análise, ao bem- estar de cada pessoa individualmente considerada, identifica peculiaridades da ciência jurídica, sem infirmar a validade e utilidade da classificação em público e privado[30]. Por fim, a crítica ideológica, marxista[31] ou não[32], ainda quando fundada em argumentos procedentes, questiona mais o papel do próprio Direito do que a cisão entre público e privado, cuja existência não é posta em discussão. Na verdade, é fora de dúvida que na vida das pessoas e na prática das instituições existe, claramente, um regime jurídico de direito público e outro de direito privado. No regime jurídico de direito privado, vigoram princípios como os da livre-iniciativa e da autonomia da vontade. As pessoas podem desenvolver qualquer atividade ou adotar qualquer linha de conduta que não lhes seja vedada pela ordem jurídica. O particular tem liberdade de contratar, pautando-se por preferências pessoais. A propriedade privada investe seu titular no poder de usar, fruir e dispor do bem. As relações jurídicas dependem do consenso entre as partes. E a responsabilidade civil, como regra, é subjetiva[33]. Violado um direito na esfera privada, seu titular tem a faculdade de defendê-lo, e para tanto deverá ir a juízo requerer a atuação do Estado no desempenho de sua função jurisdicional. Já o regime jurídico de direito público funda-se na soberania estatal, no princípio da legalidade e na supremacia do interesse público[34]. A autoridade pública só pode adotar, legitimamente, as condutas determinadas ou autorizadas pela ordem jurídica. Os bens públicos são, em linha de princípio, indisponíveis e, por essa razão, inalienáveis. A atuação do Estado na prática de atos de império independe da concordância do administrado, que apenas suportará as suas consequências, como ocorre na desapropriação[35]. Os entes públicos, como regra, somente poderão firmar contratos mediante licitação e admitir pessoal mediante concurso público. E a responsabilidade civil do Estado é objetiva[36]. Violada uma norma de direito público, o Estado tem o poder-dever – não a faculdade – de restabelecer a ordem jurídica vulnerada. Além disso, normalmente os atos do Poder Público são autoexecutáveis, independendo de intervenção judicial[37]. Os atos públicos sujeitam-se a controles específicos, tanto por parte do próprio Poder[38] que o praticou como dos demais[39]. III A EXPANSÃO DO DIREITO PÚBLICO E DA CONSTITUIÇÃO SOBRE O DIREITO PRIVADO[40] O direito privado, especialmente o direito civil, atravessou os tempos sob o signo da livre-iniciativa e da autonomia da vontade. As doutrinas individualista e voluntarista, consagradas pelo Código Napoleônico (1804) e incorporadas pelas codificações do século XIX, repercutiram sobre o Código Civil brasileiro de 1916[41]. A liberdade de contratar e o direito de propriedade fundiam-se para formar o centro de gravidade do sistema privado. Ao longo do século XX, todavia, esse quadro se alterou. A progressiva dos negócios públicos. Assim, à organização dicotômica clássica “público-privado”, agrega-se um novo e importante elemento: a esfera pública não estatal[58]. Em síntese: o espaço estritamente privado compreende o indivíduo consigo próprio, abrigado em sua consciência (intimidade) ou com sua família, protegido por seu domicílio (privacidade). O espaço privado, mas não reservado, é o do indivíduo em relação com a sociedade, na busca da realização de seus interesses privados, individuais e coletivos. E, por fim, o espaço público é o da relação dos indivíduos com o Estado, com o poder político, mediante o controle crítico, a deliberação pública e a participação política. 2 O desaparecimento do espaço público: Império Romano e sistema feudal A Ágora, praça do mercado, centro espacial e social da pólis, atravessou os séculos como símbolo da presença dos cidadãos na ação política, a imagem do espaço público. Com a derrota dos gregos para a Macedônia, no fim do século IV a.C., desfez-se a democracia grega[59]. A ideia de poder limitado e da existência de um espaço de participação e deliberação política foi continuada por Roma, até o colapso da República e a consagração do Império Romano, às vésperas do início da era cristã. O despotismo se impôs a partir de então, com suas características inafastáveis: vontade arbitrária do governante, medo dos governados e apropriação privada do que é comum ou público[60]. A res publica deixa de ser propriedade dos romanos para tornar-se patrimônio do Imperador. Junto com o ideal constitucionalista de controle do poder, liberdade e participação, o espaço público desaparece da Europa e do mundo que gravitava à sua volta. Com a queda do Império Romano, em 476, o poder se dispersa espacial e politicamente entre os proprietários de terras, o rei e seus duques, condes e barões. As relações sociais deixam de ser regidas por um Direito único, centralizado, ficando sujeitas aos particularismos locais, aos contratos e ao poder privado. Aliás, traço típico das sociedades feudais era, precisamente, a inexistência de fronteiras entre o público e o privado, com o absoluto predomínio das estruturas privadas. O senhor é simultaneamente o dominus, o dono da terra, e o titular do imperium, da autoridade máxima sobre aqueles que vivem em seus domínios. Forma-se uma rede de proteção (obrigação privada do senhor para com o súdito) e vassalagem (obrigação privada do súdito para com o senhor). A única instituição verdadeiramente pública ao longo desse período – que vai da queda do Império até o final da Idade Média – é a Igreja Católica (v. supra), cuja significação para o indivíduo era maior do que a da sociedade política na qual ele se integrava[61]. 3 A reinvenção do público: do Estado patrimonial ao Estado liberal Ao final da Idade Média começa a se formar o modelo institucional que resultaria no Estado moderno, unificado e soberano. O conhecimento convencional costuma associar o surgimento dessa nova forma política ao absolutismo, mas diversos autores chamam a atenção para uma fase intermediária – o Estado patrimonial[62] –, que, em alguns países, teria sucedido o feudalismo, na virada do século XVI, e antecedido a centralização total do poder. Nessa fórmula, também referida como Estado corporativo, de ordens ou estamental, ainda se confundem amplamente o público e o privado, o imperium (poder político) e o dominium (direitos decorrentes da propriedade), a fazenda do príncipe e a fazenda pública. O poder, inclusive o poder fiscal (relativo à arrecadação de receitas e realização de despesas), é compartilhado pelos estamentos dominantes – o príncipe ou rei, a Igreja e os senhores de terras –, recaindo unicamente sobre os pobres, uma vez que os ricos, i.e., a nobreza e o clero, gozavam de imunidades e privilégios[63]. O Estado absolutista e o Estado de polícia[64] sucedem o Estado patrimonial. Neles se centraliza o poder do monarca, desaparecendo a fiscalidade periférica da Igreja e do senhorio. Finalmente, com o aprofundamento dos ideais iluministas e racionalistas, retoma-se a distinção entre público e privado, entre patrimônio do príncipe e do Estado, separação que irá consumar-se com o advento do Estado liberal. A luta pela liberdade, a ampliação da participação política, a consagração econômica da livre iniciativa, o surgimento da opinião pública, dentre outros fatores, fizeram do modelo liberal o cenário adequado para o renascimento do espaço público, sem comprometimento do espaço privado. De forma esquemática, a Constituição, de um lado, e o Código Civil Napoleônico, de outro, expressaram esse ideal de equilíbrio entre os espaços público e privado. Configurou-se a dualidade Estado/sociedade civil[65], sob cujo rótulo genérico se abrigaram a distinção entre as relações de poder, as relações individuais e os mecanismos de proteção dos indivíduos em face do Estado. No plano financeiro, surge o Estado fiscal. Além de deter o monopólio do uso legítimo da força, o Estado passa a ser o único titular do poder de tributar. O tributo passa a ser receita estritamente pública, derivada do trabalho e do patrimônio dos contribuintes, retirando o caráter privatístico das relações fiscais, antes representadas por ingressos originários do patrimônio do príncipe. Torna-se, assim, o tributo, paradoxalmente, o símbolo representativo da liberdade individual, embora seja também dotado do poder de destruí- la[66]. 4 A volta do pêndulo: do Estado social ao neoliberalismo Ao longo do século XIX, o liberalismo e o constitucionalismo se difundem e se consolidam na Europa. Já no século XX, no entanto, sobretudo a partir da Primeira Guerra, o Estado ocidental torna-se progressivamente intervencionista, sendo rebatizado de Estado social[67]. Dele já não se espera apenas que se abstenha de interferir na esfera individual e privada das pessoas. Ao contrário, o Estado, ao menos idealmente, torna-se instrumento da sociedade para combater a injustiça social, conter o poder abusivo do capital e prestar serviços públicos para a população[68]. Como natural e previsível, o Estado social rompeu o equilíbrio que o modelo liberal estabelecera entre público e privado. De fato, com ele se ampliou significativamente o espaço público, tomado pela atividade econômica do Estado e pela intensificação de sua atuação legislativa e regulamentar, bem como pelo planejamento e fomento a segmentos considerados estratégicos. Esse estado da busca do bem-estar social, o welfare state, chegou ao final do século amplamente questionado na sua eficiência, tanto para gerar e distribuir riquezas como para prestar serviços públicos. A partir do início da década de 80, em diversos países ocidentais, o discurso passou a ser o da volta ao modelo liberal, o Estado mínimo, o neoliberalismo[69]. Dentre seus dogmas, que com maior ou menor intensidade correram mundo, estão a desestatização e desregulamentação da economia, a redução das proteções sociais ao trabalho, a abertura de mercado e a inserção internacional dos países, sobretudo através do comércio. O neoliberalismo pretende ser a ideologia da pós-modernidade, um contra-ataque do privatismo em busca do espaço perdido pela expansão do papel do Estado. 5 O público e o privado na experiência brasileira Em Portugal e, como consequência, também no Brasil, houve grande atraso na chegada do Estado liberal. Permaneceram, assim, indefinida e indelevelmente, os traços do patrimonialismo[70], para o que contribuiu a conservação do domínio territorial do rei, da Igreja e da nobreza. O colonialismo português, que, como o espanhol, foi produto de uma monarquia absolutista, legou-nos o ranço das relações políticas, econômicas e sociais de base patrimonialista, que predispõem à burocracia, ao paternalismo, à ineficiência e à corrupção. Os administradores designados ligavam-se ao monarca por laços de lealdade pessoal e por objetivos comuns de lucro, antes que por princípios de legitimidade e de dever funcional. A gestão da coisa pública tradicionalmente se deu em obediência a pressupostos privatistas e estamentais[71]. A triste verdade é que o Brasil jamais se libertou dessa herança patrimonialista. Tem vivido assim, por décadas a fio, sob o signo da má definição do público e do privado. Pior: sob a atávica apropriação do Estado e do espaço público pelo interesse privado dos segmentos sociais dominantes. Do descobrimento ao início do terceiro milênio, uma história feita de opressão, insensibilidade e miséria. A Constituição de 1824, primeiro esforço de institucionalização do novo país independente, pretendeu iniciar, apesar das vicissitudes que levaram à sua outorga, um Estado de direito, quiçá um protótipo de Estado liberal. Mas foi apenas o primeiro capítulo de uma instabilidade cíclica, que marcou, inclusive e sobretudo, a experiência republicana brasileira, jamais permitindo a consolidação do modelo liberal e tampouco de um Estado verdadeiramente social. De visível mesmo, a existência paralela e onipresente de um Estado corporativo, cartorial, financiador dos interesses da burguesia industrial, sucessora dos senhores de escravo e dos exportadores de café[72]. A Constituição de 1988, o mais bem-sucedido empreendimento institucional da história brasileira, demarcou, de forma nítida, alguns espaços privados merecedores de proteção especial. Estabeleceu, assim, a inviolabilidade da casa, o sigilo da correspondência e das comunicações, a livre-iniciativa, a garantia do direito de propriedade, além de prometer a proteção da família. Seu esforço mais notável, contudo, é o de procurar resguardar o espaço público da apropriação privada, o que faz mediante normas que exigem concurso para ingresso em cargo ou emprego público, licitação para a celebração de contratos com a Administração Pública, prestação de contas dos que administram dinheiro público, bem como sancionam a improbidade administrativa. Proibição emblemática, que em si abriga mais de cem anos de uma República desvirtuada, é a do art. 37, § 1º, que interdita autoridades e servidores de utilizarem verbas públicas para promoção pessoal. Sob a Constituição de 1988 estabeleceu-se uma discussão rica e importante acerca do princípio da supremacia do interesse público. De fato, sobretudo nos últimos anos, Se ambos entrarem em rota de colisão, caberá ao intérprete proceder à ponderação adequada, à vista dos elementos normativos e fáticos relevantes para o caso concreto. Nesse ponto, adere-se à doutrina que sustenta a necessidade de se rediscutir e dessacralizar o chamado princípio da supremacia do interesse público. Mas há uma ponte na direção da posição tradicional. O interesse público primário, consubstanciado em valores fundamentais como justiça e segurança, há de desfrutar de supremacia em um sistema constitucional e democrático. Deverá ele pautar todas as relações jurídicas e sociais – dos particulares entre si, deles com as pessoas de direito público e destas entre si. O interesse público primário desfruta de supremacia porque não é passível de ponderação; ele é o parâmetro da ponderação. Em suma: o interesse público primário consiste na melhor realização possível, à vista da situação concreta a ser apreciada, da vontade constitucional, dos valores fundamentais que ao intérprete cabe preservar ou promover. O problema ganha em complexidade quando há confronto entre o interesse público primário consubstanciado em uma meta coletiva e o interesse público primário que se realiza mediante a garantia de um direito fundamental. A liberdade de expressão pode colidir com a manutenção de padrões mínimos de ordem pública; o direito de propriedade pode colidir com o objetivo de se constituir um sistema justo e solidário no campo; a propriedade industrial pode significar um óbice a uma eficiente proteção da saúde; a justiça pode colidir com a segurança etc. Na solução desse tipo de colisão, o intérprete deverá observar, sobretudo, dois parâmetros: a dignidade humana e a razão pública. O uso da razão pública importa em afastar dogmas religiosos ou ideológicos – cuja validade é aceita apenas pelo grupo dos seus seguidores – e utilizar argumentos que sejam reconhecidos como legítimos por todos os grupos sociais dispostos a um debate franco, ainda que não concordem quanto ao resultado obtido em concreto. A razão pública consiste na busca de elementos constitucionais essenciais e em princípios consensuais de justiça, dentro de um ambiente de pluralismo político. Um interesse não pode ser considerado público e primário apenas por corresponder ao ideário dos grupos hegemônicos no momento. O interesse público primário não se identifica, por exemplo, nem com posições estatistas nem com posições antiestatistas. Tais concepções correspondem a doutrinas particulares, como o socialismo e o liberalismo econômico. Para que um direito fundamental seja restringido em favor da realização de uma meta coletiva, esta deve corresponder aos valores políticos fundamentais que a Constituição consagra, e não apenas ao ideário que ocasionalmente agrega um número maior de adeptos[76]. O outro parâmetro fundamental para solucionar esse tipo de colisão é o princípio da dignidade humana[77]. Como se sabe, a dimensão mais nuclear desse princípio se sintetiza na máxima kantiana segundo a qual cada indivíduo deve ser tratado como um fim em si mesmo. Essa máxima, de corte antiutilitarista, pretende evitar que o ser humano seja reduzido à condição de meio para a realização de metas coletivas ou de outras metas individuais[78]. Assim, se determinada política representa a concretização de importante meta coletiva (como a garantia da segurança pública ou da saúde pública, por exemplo), mas implica a violação da dignidade humana de uma só pessoa, tal política deve ser preterida, como há muito reconhecem os publicistas comprometidos com o Estado de direito. 1 Luis Sánchez Agesta, Curso de derecho constitucional comparado, 1974; Benda, Maihofer, Vogel, Hesse e Heyde, Manual de derecho constitucional, 1996; Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, 1996; Burdeau, Hamon e Troper, Manuel de droit constitutionnel, 1993; Francisco Balaguer Callejón (coord.), Villar, Aguilar, Gueso, Callejón e Rodríguez, Derecho constitucional, 2004, v. 1; J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituição, 2003; Afonso Arinos de Melo Franco, Curso de direito constitucional brasileiro, 1968, v. 1; Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, 2000; Paulo Biscaretti di Ruffia, Derecho constitucional, 1987; Rosah Russomano, Curso de direito constitucional, 1984; José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, 2001; Georges Vedel, Manuel élémentaire de droit constitutionnel, 1949; Pablo Lucas Verdú, Curso de derecho constitucional, 1989; v. 1; René David, Os grandes sistemas do Direito contemporâneo, 1978; Daniel R. Coquillette, The anglo-american legal heritage, s. d.; Manuel Atienza, El sentido del derecho, 2001; Hermes Lima, Introdução à ciência do Direito, 2000; Jean-Bernard Auby e Mark Freedland (org.), La distinction du droit public e du droit prevé: regards français et britanique – the public law/private law divide: une entente assez cordiale?, 2004. 2 O direito romano compreende o conjunto de normas que regeram a sociedade romana em suas diferentes fases, desde as origens (Roma foi fundada em 754 a.C.) até o ano 565 d.C., com a morte de Justiniano. Engloba, portanto, um período que vem de antes da Lei das Doze Tábuas (449 a.C.) e vai até os trabalhos de compilação que viriam a ser denominados Corpus Juris Civilis. Como noticia Antônio Manuel Hespanha, entre os séculos I a.C. e III d.C., o Império Romano estendeu-se por toda a Europa meridional, tendo ainda atingido algumas zonas mais ao norte, como parte da Gália (hoje França) e o sul da Inglaterra. No oriente europeu, o Império Romano expandiu-se pelos Bálcãs e pela Grécia e prolongou-se, depois, pela Ásia Menor. Como assinalado no capítulo anterior, a história da civilização romana dividiu-se em três fases: a realeza, a república e o império. Já a história interna do direito romano, isto é, a evolução de suas instituições, atravessou três fases: o período arcaico (da fundação de Roma até o século II), o período clássico (até o século III) e o período pós-clássico (até o século VI d.C). Por essa razão, influenciou de maneira profunda todo o direito europeu continental e, em menor escala, o direito inglês. Em meados do século VI, Justiniano promoveu a compilação de textos jurídicos da tradição romana, compreendendo o Digesto (533 d.C.), que reunia as obras dos juristas clássicos, o Código (529 d.C.), que abrangia a legislação imperial de seus antecessores, e as Instituições (530 d.C.), que constituía um manual introdutório. Houve ainda uma compilação póstuma, as Novelas (565 d.C.), com os atos do próprio Justiniano. Esse conjunto de livros recebeu, a partir do século XVI, o nome de Corpus Juris Civilis, passando a constituir a memória medieval e moderna do direito romano. Sobre o tema, vejam-se, em meio a muitos outros: José Carlos Moreira Alves, Direito romano, 1987, p. 1-3; Antônio Manuel Hespanha, Cultura jurídica europeia: síntese de um milênio, 2005, p. 123-131; Sir William S. Holdsworth, Essays in law and history, 1995, p. 188. 3 Para o contratualismo, a Constituição é a forma jurídica do contrato social, tal como concebido no século XVIII. Consiste no pacto por meio do qual os indivíduos, anteriormente livres no estado de natureza, renunciam a parte de sua liberdade em favor de uma organização política, que em contrapartida irá promover a ordem e o respeito aos direitos. 4 Na atualidade, o direito ocidental é dividido em duas grandes famílias, dois grandes sistemas: (i) o da tradição romano-germânica, também referido como civil law, baseado, sobretudo, em normas escritas, no direito legislado; (ii) e o common law ou direito costumeiro, originário do direito inglês, que sofreu menor influência do direito romano, e desenvolveu um sistema baseado nas decisões de juízes e tribunais, consistindo o direito vigente no conjunto de precedentes judiciais. Nas últimas décadas, verificou-se a ascensão do papel da lei escrita nos países do common law e, do mesmo passo, a valorização da jurisprudência – isto é, dos precedentes judiciais – no mundo romano-germânico, inclusive no Brasil. Sobre as características de cada uma dessas famílias jurídicas, v. René David, Os grandes sistemas do direito contemporâneo, 1978; e Daniel R. Coquillette, The anglo-american legal heritage, s.d.; John Henry Merryman, The civil law tradition, 1985; Guido Fernando Silva Soares, Common law: introdução ao Direito dos EUA, 1999. 5 Sem embargo, merecem referência expressa os escritos reunidos em The Federalist Papers, de Hamilton, Madison e Jay, datados de 1787-1788, e a obra clássica de Joseph Story, Commentaries on the Constitution of the United States, de 1833. 6 A rigor, de Aristóteles a Montesquieu, autores de origens diversas voltaram sua atenção para a constituição do Estado, embora sob perspectiva política, e não jurídica. Mas no século XVIII, a França se tornara o centro cultural do mundo e o próprio Iluminismo foi um movimento intelectual predominantemente francês. Atribui-se a Sieyès a primeira elaboração teórica que identificou a existência de um poder constituinte como força política superior, distinta do poder constituído, tema que será retomado no capítulo IV (v. Emmanuel Joseph Sieyès, Qu’est-ce que le tier état?, escrito em 1789. Há uma versão em português, intitulada A constituinte burguesa, 1986). 7 A iniciativa coube a Guizot, quando ministro da instrução pública, sob a monarquia liberal de Luís Felipe, que se direito financeiro e tributário, o direito processual e o direito penal. Há quem faça menção ao direito urbanístico, que, todavia, não tem autonomia científica plenamente reconhecida, assim como o direito previdenciário e o direito ambiental. No plano externo, há ainda o direito internacional público. No direito privado estão o direito civil, o direito comercial e o direito do trabalho. Este último constituiria, segundo alguns autores, um terceiro gênero: o direito social, tese que não se consolidou inteiramente. O denominado direito internacional privado é vítima de uma impropriedade terminológica: desempenha, na verdade, uma função pública, que é a de determinar a lei aplicável nos casos em que há conflitos entre leis originárias de ordenamentos diversos. 29 Não se fará aqui o desvio para a discussão da questão da necessária estatalidade do Direito e das possibilidades de sua criação a partir de outras fontes. Cabe, contudo, breve menção à circunstância de que o próprio Judiciário já tem reconhecido normas jurídicas cuja origem não é estatal. No Brasil, foi o caso, por exemplo, do direito de superfície, originariamente engendrado por práticas que tinham lugar em comunidades informais, como as favelas cariocas. V. Boaventura de Souza Santos, O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica, 1988. 30 A esse propósito, v. Afonso Arinos de Melo Franco, Curso de direito constitucional brasileiro, 1968, v. 1, p. 20: “Mesmo para o jurista a distinção é irrelevante, se ele se colocar na observação da gênese do Direito, porque provindo sempre, para ele, o direito do Estado, pouca diferença faz que se trate de Direito privado ou público, uma vez que, geneticamente, todo o Direito é estatal e, por isto, público. Por outro lado, (...) o Estado, como qualquer outra instituição social, e até a própria sociedade, existem, em última análise, para tornar possível o convívio humano e, por conseguinte, para atender (...) os interesses dos indivíduos. Assim considerado, todo o Direito seria privado”. 31 V. Michel Miaille, Introdução crítica ao Direito, 1989, p. 159-160: “A distinção entre direito público e direito privado não é, pois, ‘natural’: não é lógica em si, traduz uma certa racionalidade, a do Estado burguês. A classificação (...) está ligada à história de uma sociedade que conheceu gradualmente a dominação do modo de produção capitalista. (...) A separação entre direito público e direito privado é exterior ao indivíduo: ela separa-o em dois elementos distintos e mesmo opostos. O homem como indivíduo burguês e privado e o homem como cidadão do Estado não é afinal senão outra formulação da distinção entre direito privado e direito público”. 32 Hans Kelsen, Teoria pura do Direito, 1979, p. 382: “A absolutização do contraste entre Direito público e privado cria também a impressão de que só o domínio do Direito público, ou seja, sobretudo, o Direito constitucional e administrativo, seria o sector de dominação política e que esta estaria excluída no domínio do Direito privado. (...) Por meio da distinção de princípio entre uma esfera pública, ou seja, política, e uma esfera privada, quer dizer, apolítica, pretende evitar-se o reconhecimento de que o Direito ‘privado’ (em cujo centro se encontra a instituição da chamada propriedade privada), criado pela via jurídica negocial do contrato, não é menos palco de actuação da dominação política do que o Direito público, criado pela legislação e pela administração”. 33 Responsabilidade civil é o dever de reparar o dano causado a outrem. A responsabilidade subjetiva consiste em que o causador do dano somente responderá se tiver agido com culpa. Na dicção expressa do art. 159 do Código Civil: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”. 34 Como se verá mais adiante, o princípio da legalidade vem se transmudando em um princípio mais abrangente, referido como princípio da constitucionalidade ou, mais propriamente ainda, da juridicidade (v. infra, Parte II, cap. IV). V. Paulo Otero, Legalidade e administração pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade, 2003, p. 15. Da mesma forma, o princípio da supremacia do interesse público encontra-se em uma fase de reavaliação crítica e redefinição (v. infra, nesse mesmo capítulo, tópico V). 35 O administrado, naturalmente, tem o direito a um devido processo legal, que, no caso da desapropriação, compreende o pagamento de indenização justa, prévia e em dinheiro (CF, art. 5º, XXIV). Mas à decisão de desapropriar, em si, ele não poderá opor-se, salvo se for hipótese de desvio de finalidade. A jurisprudência nesse sentido é pacífica: o Judiciário não pode aferir da conveniência e oportunidade da desapropriação. Mas constatando que foi feita por sentimento pessoal, e não por interesse público, pode anulá-la por desvio de finalidade (e.g., STJ, Revista de Direito Administrativo, 179-80:181, 1990, REsp 1.225/ES, Rel. Min. Geraldo Sobral). 36 Objetiva é a responsabilidade que independe de culpa, bastando que exista a conduta do agente, o dano e o nexo de causalidade entre uma e outro. A responsabilidade objetiva é extraída do art. 37, § 6º, da Constituição, onde se prevê: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. 37 A autoexecutoriedade não se aplica aos atos de intervenção na liberdade e no direito de propriedade das pessoas. A decretação da prisão de um indivíduo, a desapropriação de um bem ou a cobrança coativa de um tributo são providências que dependem da intervenção do Poder Judiciário. 38 Dois enunciados da Súmula da jurisprudência predominante do STF informam o autocontrole ou a autotutela por parte da Administração Pública: “346 – A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos”; e “473 – A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”. Sobre o tema, v. Patrícia Baptista, Os limites constitucionais à tutela administrativa, in Luís Roberto Barroso (org.), A reconstrução democrática do direito público no Brasil, 2007. 39 Além do controle interno referido na nota anterior, há controles externos, como o exercido pelos Tribunais de Contas sobre o emprego de verbas públicas pelos três Poderes (CF, arts. 70 e s.). Existem, ademais, ações judiciais específicas para impugnar atos emanados do Poder Público, por exemplo, o mandado de segurança e a ação popular (CF, art. 5º, LXIX e LXXIII). 40 Hans Kelsen, Teoria pura do Direito, 1979; Miguel Reale, Lições preliminares de Direito, 1999; Léon Duguit, Traité de droit constitutionnel, 1927; Hermes Lima, Introdução à ciência do Direito, 2000; Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito civil, 1997, v. 1; Ricardo Lobo Torres, O espaço público e os intérpretes da Constituição, Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, 50:92, 1977; Gustavo Tepedino, Temas de direito civil, 1999; Maria Helena Diniz, Compêndio de introdução à ciência do Direito, 1993; Francisco Amaral, Direito civil, 2000; Michel Miaille, Introdução crítica ao direito, 1989; Richard S. Kay, The state action doctrine, the public-private distinction, and the independence of constitutional law, Constitutional Commentary, v. 10, 1993; Harold L. Levinson, The public law/private law distinction in the courts, George Washington Law Review, v. 57, 1989; Aeyal M. Gross, Globalization, human rights, and american public law – a comment on Robert Post, Theoretical Inquiries in Law, v. 2, 2001; Jean-Bernard Auby e Mark Freedland (org.), La distinction du droit public e du droit prevé: regards français et britanique – the public law/private law divide: une entente assez cordiale?, 2004. 41 V. Gustavo Tepedino, Temas de direito civil, 1999, p. 2. 42 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito civil, 1997, v. 1, p. 13-14: “Os princípios de ordem pública não chegam a constituir direito público, por faltar a participação estatal direta na relação criada, que se estabelece toda entre particulares. São, pois, princípios de direito privado. Mas, tendo em vista a natureza especial da tutela jurídica e a finalidade social do interesse em jogo, compõem uma categoria de princípios que regem relações entre particulares, a que o Estado dá maior relevo em razão do interesse público em jogo. São, pois, princípios de direito privado que atuam na tutela do bem coletivo, (...) inderrogáveis pela vontade das partes, e cujos efeitos são insuscetíveis de renúncia”. 43 Alguns exemplos. O casamento tem, como se sabe, natureza consensual – sua celebração depende da vontade das partes –, mas os deveres do casamento não são por elas determinados, decorrendo cogentemente da lei. Não é possível um pacto dispensando formalmente os cônjuges do dever de fidelidade ou da assistência aos filhos. O contrato de trabalho, do mesmo modo, é fruto de um acordo de vontades entre o empregador e o empregado, mas regras como salário mínimo, jornada máxima, fundo de garantia não podem ser afastadas por deliberação dos contratantes. 44 V. infra, Parte II, capítulo V, Item IV.1, com ampla referência bibliográfica sobre a constitucionalização do direito civil. Adiantam-se, desde logo, alguns autores e obras: Pietro Perlingieri, Perfis de direito civil, 1997. Na literatura nacional, vejam-se: Gustavo Tepedino, Temas de direito civil, 1999, cujas ideias estão presentes neste parágrafo e no seguinte; Maria Celina Bodin de Moraes, A caminho de um direito civil constitucional, Revista de Direito Civil, 65:23, 1993; e Luiz Edson Fachin (coord.), Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo, 1998. 45 V. Michele Giorgianni, Il diritto privato ed i suoi atuali confini, 1961, na tradução de Maria Cristina De Cicco, O direito privado e os seus atuais confins, Revista dos Tribunais, 747:35, 1998. 46 V. Pietro Perlingieri, Perfis do direito civil, 1997, p. 33. 47 E.g.: Art. 226: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) § 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”. 48 E.g.: Art. 227, § 4º: “A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente”. 49 E.g.: Art. 5º, XXXII: “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. 50 E.g.: Art. 5º, XXIII: “a propriedade atenderá a sua função social”. 51 Hannah Arendt, The human condition, 1989; Norberto Bobbio, Estado, governo, sociedade: por uma teoria geral da política, 1987; Max Weber, Economy and society, 1978; Raymundo Faoro, Os donos do poder, 1979; Marilena Chauí, Público, privado e despotismo, in Adauto Novaes (org.), Ética, 1992; John Rickman (editor), A general selection from the works of Sigmund Freud, 1989; Ricardo Lobo Torres, A ideia de liberdade no Estado patrimonial e no Estado fiscal, 1991; Michel Miaille, Introdução crítica ao Direito, 1989; Nelson Saldanha, O jardim e a praça: ensaio sobre o lado privado e o lado público da vida social e histórica, 1986; Ricardo Lobo Torres, O espaço público e os intérpretes da Constituição, RDPGERJ, 50:92, 1997; Maria Rita Kehl, A mínima diferença, 1996; Jürgen Habermas, The public sphere, in Robert E. Goodin and Philip Pettit (ed.), Contemporary political philosophy, 2006, p. 103 e s. 52 Aristóteles, Política, obra escrita em 350 a.C. Há uma versão em inglês acessível na internet no sítio <http://classics.mit.edu/Aristotle/politics.html>. V., sobre o ponto, Marilena Chauí, Público, privado e despotismo, in Adauto Novaes (org.), Ética, 1992, p. 358. 53 A condição humana, desde o nascimento e por muitos anos, é precária, individualista e autocentrada. Volta-se apenas para a realização de seus próprios instintos e desejos. Freud, em O mal-estar na civilização (1929-1930), reafirma que o sentido da vida é a busca do prazer. Textualmente: “Quem fixa os objetivos da vida é simplesmente o Princípio do Prazer, que rege as operações do aparelho psíquico desde a sua origem”. Comentando o tema, escreveu Maria Rita Kehl (A mulher e a lei, in Adauto Novaes (org.), Ética, 1992, p. 262): “A civilização surge da necessidade de se imporem restrições à sofreguidão do Princípio do Prazer, no mínimo para que ele não destrua seus próprios objetos (...) A subjugação dos poderes individuais da força bruta pelo poder coletivo, simbolizado na forma da lei, é um passo importante na construção das civilizações”. 54 Werner Jaeger, Paideia: a formação do homem grego, 1995, p. 106 e s.; Hannah Arendt, The human condition, 1989, p. 24. 55 Nelson Saldanha, O jardim e a praça: ensaio sobre o lado privado e o lado público da vida social e histórica, 1986, p. 12: “A ideia de jardim nos evoca a imagem de uma parte da casa particular. Enquanto isso a ideia de praça nos indica o espaço público, o espaço político, econômico, religioso ou militar. (...) Esta distinção essencial entre a vida consigo mesmo, e com a família ou com pessoas mais ligadas, e a vida com ‘todos’ e com ‘os outros’ em sentido amplo”. 56 Marilena Chauí, Público, privado e despotismo, in Adauto Novaes (org.), Ética, 1992, p. 357 (texto ligeiramente editado): “O déspota é uma figura da sociedade e da política gregas; é o chefe da família, entendendo-se por família e casa três relações fundamentais: a do senhor e o escravo, a do marido e a mulher, e a do pai e os filhos. A principal característica do déspota encontra-se no fato de ser ele o autor único e exclusivo das normas e das regras que definem a vida familiar, isto é, o espaço privado. Seu poder, escreve Aristóteles, é arbitrário, pois decorre exclusivamente de sua vontade, de seu prazer e de suas necessidades”. 57 Por exemplo: é corriqueira, nos dias que correm, a prestação de serviços públicos por empresas privadas em áreas como transporte, energia e telecomunicações. Foi nesse ambiente, aliás, que se desenvolveu a figura das agências reguladoras. V., por todos, Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Direito regulatório, 2003. 58 Sobre o ponto, v. Jürgen Habermas, Soberania popular como procedimento: um conceito normativo de espaço público, Novos Estudos CEBRAP, 26, 1990, p. 110: “As associações livres constituem os entrelaçamentos de uma rede de comunicação que surge do entroncamento de espaços públicos autônomos. Tais associações são especializadas na geração e programação de convicções práticas, ou seja, em descobrir temas de relevância para o conjunto da sociedade, em contribuir com possíveis soluções para os problemas, em interpretar valores, produzir bons fundamentos, desqualificar outros”. V. tb. Seyla Benhabib, Models of public space: Hannah Arendt, the liberal tradition, and Jürgen Habermas, in Craig Calhoun (org.), Habermas and the public sphere,1992; e Nancy Fraser, Rethinking the public sphere: a contribution to the critique of actually existing democracy, in Craig Calhoun (org.), Habermas and the public sphere, Cambridge, 1992. 59 Nelson Saldanha, O jardim e a praça: ensaio sobre o lado privado e o lado público da vida social e histórica, 1986, p. 20. 60 Marilena Chauí, Público, privado e despotismo, in Adauto Novaes (org.), Ética, 1992, p. 357-360. A autora procura extremar a ideia de despotismo – que é a apropriação do poder, por usurpação, e seu exercício sobre o pressuposto privado da autoridade absoluta – da de ditadura e tirania, de acordo com a origem de cada uma. O ditador “é uma figura criada pela República romana”: um homem ilustre, membro do patriciado, chamado pelo Senado, em momento de convulsão, para resolver um problema específico, por um tempo determinado. O tirano, por seu turno, “é uma figura política grega”: homem de excepcionais virtudes, convocado pelo povo em um CAPÍTULO III CONSTITUIÇÃO Sumário:I noções fundamentais II referência histórica III concepções e teorias acerca da constituição IV tipologia das constituições V conteúdo e supremacia das normas constitucionais VI a constituição no direito constitucional contemporâneo VII constituição, constitucionalismo e democracia I NOÇÕES FUNDAMENTAIS[1] O constitucionalismo moderno, fruto das revoluções liberais, deu à ideia de Constituição sentido, forma e conteúdo específicos[2]. É certo, contudo, que tanto a noção como o termo “Constituição” já integravam a ciência política e o Direito de longa data, associados à configuração do poder em diferentes fases da evolução da humanidade, da Antiguidade clássica ao Estado moderno[3]. Nessa acepção mais ampla e menos técnica, é possível afirmar que todas as sociedades políticas ao longo dos séculos tiveram uma Constituição, correspondente à forma de organização e funcionamento de suas instituições essenciais. Assim, a Constituição histórica ou institucional[4] designa o modo de organização do poder político do Estado, sendo antes um dado da realidade que uma criação racional. Na perspectiva moderna e liberal, porém, a Constituição não tem caráter meramente descritivo das instituições, mas sim a pretensão de influenciar sua ordenação, mediante um ato de vontade e de criação, usualmente materializado em um documento escrito[5]. Nascida em berço revolucionário, a Constituição consubstancia a superação da ordem jurídica anterior – a subordinação colonial, no caso dos Estados Unidos, e o Ancien Régime, na experiência francesa – e a reconstrução do Estado em novas bases. Em uma visão esquemática e simplificadora, é possível conceituar a Constituição: a) do ponto de vista político, como o conjunto de decisões do poder constituinte ao criar ou reconstruir o Estado, instituindo os órgãos de poder e disciplinando as relações que manterão entre si e com a sociedade; b) do ponto de vista jurídico, é preciso distinguir duas dimensões: (i) em sentido material, i.e., quanto ao conteúdo de suas normas, a Constituição organiza o exercício do poder político, define os direitos fundamentais, consagra valores e indica fins públicos a serem realizados; (ii) em sentido formal, i.e., quanto à sua posição no sistema, a Constituição é a norma fundamental e superior, que regula o modo de produção das demais normas do ordenamento jurídico e limita o seu conteúdo. A Constituição, portanto, cria ou reconstrói o Estado, organizando e limitando o poder político, dispondo acerca de direitos fundamentais, valores e fins públicos e disciplinando o modo de produção e os limites de conteúdo das normas que integrarão a ordem jurídica por ela instituída. Como regra geral, terá a forma de um documento escrito e sistemático, cabendo-lhe o papel, decisivo no mundo moderno, de transportar o fenômeno político para o mundo jurídico, convertendo o poder em Direito[6]. II REFERÊNCIA HISTÓRICA Na acepção atual, Constituição e constitucionalismo são conceitos historicamente recentes, associados a eventos ocorridos nos últimos trezentos anos. Como se sabe, o Estado moderno surge, ao final da Idade Média, sobre as ruínas do feudalismo e associado ao absolutismo do poder real. A autoridade do monarca, tanto em face da Igreja quanto perante os senhores feudais, passa a fundar-se no direito divino e no conceito de soberania que então se delineava, elemento decisivo para a formação dos Estados nacionais. Três grandes revoluções abriram caminho para o Estado liberal, sucessor histórico do Estado absolutista e marco inicial do constitucionalismo: a inglesa (1688), a americana (1776) e a francesa (1789). A Revolução Inglesa (v. supra) teve como ponto culminante a afirmação do Parlamento e a implantação de uma monarquia constitucional. Quando, em 1689, William III e Mary II ascendem ao trono, com poderes limitados pela Bill of Rights (Declaração de Direitos, 1688), já estavam lançadas as bases do modelo de organização política que inspiraria o ocidente pelos séculos afora. E com uma singularidade: fruto de uma longa gestação, que remonta à Magna Charta (1215), as instituições inglesas tiveram fundação tão sólida que puderam até mesmo prescindir de uma Constituição escrita[7]. A Revolução Americana (v. supra) teve significado duplo: a emancipação das colônias inglesas na América, anunciada na célebre Declaração de Independência, de 1776; e sua reunião em um Estado independente, delineado na Constituição de 1787. Primeira Constituição escrita e solenemente ratificada (a ratificação se deu em 1789; em 1791 foram acrescentadas as dez primeiras emendas, conhecidas como Bill of Rights), foi ela o marco inicial do longo sucesso institucional dos Estados Unidos da América, baseado na separação dos Poderes e em um modelo de texto sintético (a versão original tem apenas 7 artigos), republicano, federativo e presidencialista[8]. A Revolução Francesa (v. supra), cuja deflagração é simbolizada pela queda da Bastilha, em 1789, foi um processo mais profundo, radical e tormentoso de transformação política e social. E, na visão de superfície, menos bem-sucedido, pela instabilidade, violência e circularidade dos acontecimentos. A verdade, contudo, é que foi a Revolução Francesa – e não a americana ou a inglesa – que se tornou o grande divisor histórico, o marco do advento do Estado liberal. Foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, com seu caráter universal, que divulgou a nova ideologia, fundada na Constituição, na separação de Poderes e nos direitos individuais. Em 1791 foi promulgada a primeira Constituição francesa. No plano das ideias e da filosofia, o constitucionalismo moderno é produto do iluminismo e do jusnaturalismo racionalista que o acompanhou, com o triunfo dos valores humanistas e da crença no poder da razão. Nesse ambiente, modifica-se a qualidade da relação entre o indivíduo e o poder, com o reconhecimento de direitos fundamentais inerentes à condição humana, cuja existência e validade independem de outorga por parte do Estado. No plano político, notadamente na Europa continental, a Constituição consagrou a vitória dos ideais burgueses sobre o absolutismo e a aristocracia. Foi, de certa forma, a certidão do casamento, de paixão e conveniência, entre o poder econômico – que já havia sido conquistado pela burguesia – e o poder político. É oportuno, neste passo, um registro importante. Embora tenham sido fenômenos contemporâneos e tenham compartilhado fundamentos comuns, o constitucionalismo americano e o francês sofreram influências históricas, políticas e doutrinárias diversas. E, em ampla medida, deram origem a modelos constitucionais bem distintos, que só vieram a se aproximar na segunda metade do século XX. Nos Estados Unidos, desde a primeira hora, a Constituição teve o caráter de documento jurídico, normativo, passível de aplicação direta e imediata pelo Judiciário. No modelo francês, que se irradiou pela Europa, a Constituição tinha natureza essencialmente política e sua interpretação era obra do Parlamento, e não de juízes e tribunais. De fato, a Constituição americana teve suas origens no contratualismo liberal de Locke – um pacto social de paz e liberdade entre os homens[9] – e na ideia de um Direito superior, uma higher law, fundado no direito natural medieval[10]. A força normativa e a supremacia da Constituição foram asseguradas desde o início pelo controle de constitucionalidade das leis (judicial review). Diferente foi a concepção de Constituição que emergiu da Revolução Francesa. Na França, o tema central do debate político que resultou na Constituição de 1791 foi a titularidade do poder constituinte. A ideia revolucionária de soberania nacional contrapunha-se à visão absolutista da soberania do Monarca. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, a despeito de sua importância simbólica, não tinha valor normativo, e, na prática, o que prevalecia eram os atos do Parlamento. Só em 1971, o Conselho Constitucional, já sob a Constituição de 1958, iria reconhecer à Declaração valor jurídico supralegal (v. supra). Essa neutralização de sua força normativa deu o tom da ideia de Constituição que prevaleceria na França e que se irradiaria pela Europa, bem diversa da que vigorou nos Estados Unidos[11]. III CONCEPÇÕES E TEORIAS ACERCA DA CONSTITUIÇÃO A doutrina, sobretudo europeia, especulou ao longo do tempo acerca da natureza, significação e papel da Constituição, produzindo elaborações diversas[12]. Não é o caso de investigá-las, em obra dessa natureza, salvo para breve referência a dois desenvolvimentos de maior repercussão: a concepção sociológica e a concepção jurídica ou positivista[13]. Na sequência será apresentada a concepção normativa, que, de certa forma, tenta produzir uma síntese entre as duas correntes anteriores. O sociologismo constitucional ou o conceito sociológico de Constituição é associado ao alemão Ferdinand Lassalle. De acordo com sua formulação, a Constituição de um país é, em essência, a soma dos fatores reais do poder que regem a sociedade. Em outras palavras, o conjunto de forças políticas, econômicas e sociais, atuando dialeticamente, estabelece uma realidade, um sistema de poder: esta é a Constituição real, efetiva do Estado. A Constituição jurídica, mera “folha de papel”, limita-se a converter esses fatores reais do poder em instituições jurídicas, em Direito[14]. Com ênfase nos aspectos ligados ao poder econômico e às relações que ele engendra, a concepção marxista também partilha e até aprofunda essa visão pessimista acerca do Direito e da Constituição, considerando que a ordem jurídica pode ser reduzida a um fator de dominação, agregando uma aura de legitimidade à estrutura de poder prevalente[15]. significativamente, para incluir, além dos direitos políticos e individuais, também direitos sociais e coletivos. Ademais, as Constituições passaram a abrigar princípios fundamentais e fins públicos relevantes (programas de ação política)[23]. Assim, as normas constitucionais comportam classificação, quanto ao seu conteúdo, em três grandes categorias: as que organizam o poder político (normas constitucionais de organização), as que definem direitos fundamentais (normas constitucionais definidoras de direitos) e as que indicam valores e fins públicos (normas constitucionais de princípio ou programáticas). No entanto, as circunstâncias políticas do momento histórico em que são elaboradas ou reformadas fazem com que as Constituições, invariavelmente, contenham normas que não correspondem exatamente ao conteúdo explicitado acima. Tal fato levou a doutrina a cunhar o conceito de normas apenas formalmente constitucionais, que têm essa natureza por integrarem o documento formal Constituição, mas não pela matéria de que tratam[24]. No caso da Constituição brasileira de 1988, são exemplos de tal situação, dentre muitos, os dispositivos que cuidam do regime jurídico dos serviços notariais (art. 236) ou do status federal do Colégio Pedro II, localizado no Rio de Janeiro (art. 242). Embora o fenômeno seja menos comum, a doutrina também identifica normas materialmente constitucionais que não figuram na Constituição, geralmente dispondo sobre direito intertemporal ou regras de hermenêutica[25]. No Brasil, este seria o caso de diversas normas da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Já a supremacia da Constituição é o postulado sobre o qual se assenta o próprio direito constitucional contemporâneo, tendo sua origem na experiência americana[26]. Decorre ela de fundamentos históricos, lógicos e dogmáticos, que se extraem de diversos elementos, dentre os quais a posição de preeminência do poder constituinte sobre o poder constituído[27], a rigidez constitucional (v. supra), o conteúdo material das normas que contém e sua vocação de permanência[28]. A Constituição, portanto, é dotada de superioridade jurídica em relação a todas as normas do sistema e, como consequência, nenhum ato jurídico pode subsistir validamente se for com ela incompatível. Para assegurar essa supremacia, a ordem jurídica contempla um conjunto de mecanismos conhecidos como jurisdição constitucional, destinados a, pela via judicial, fazer prevalecer os comandos contidos na Constituição. Parte importante da jurisdição constitucional consiste no controle de constitucionalidade, cuja finalidade é declarar a invalidade e paralisar a eficácia dos atos normativos que sejam incompatíveis com a Constituição. VI A CONSTITUIÇÃO NO DIREITO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO Das origens até os dias de hoje, a ideia de Constituição – e do papel que deve desempenhar – percorreu um longo e acidentado caminho. O constitucionalismo liberal, com sua ênfase nos aspectos de organização do Estado e na proteção de um elenco limitado de direitos de liberdade, cedeu espaço para o constitucionalismo social. Direitos ligados à promoção da igualdade material passaram a ter assento constitucional e ocorreu uma ampliação notável das tarefas a serem desempenhadas pelo Estado no plano econômico e social. Em alguns países, essa tendência foi mais forte, dando lugar à noção de dirigismo constitucional ou de Constituição dirigente, com a pretensão de impor ao legislador e ao administrador certos deveres de atuação positiva, com a consequente redução do campo reservado à deliberação política majoritária[29]. Essa ampliação do espaço constitucional passou a ser amplamente questionada a partir do quarto final do século XX, na onda de uma intensa reação política pela redução do tamanho do Estado, pela desregulação e pela volta ao minimalismo constitucional do liberalismo[30]. Do ponto de vista dogmático, as últimas décadas assistiram a um movimento decisivo, que foi o reconhecimento e a consolidação da força normativa da Constituição. No constitucionalismo europeu – e na maior parte do mundo, que vivia sob sua influência – prevalecia o entendimento de que as normas constitucionais não seriam propriamente normas jurídicas, que comportassem tutela judicial quando descumpridas, mas sim diretivas políticas endereçadas sobretudo ao legislador. A superação dessa perspectiva ganhou impulso no segundo pós-guerra, com a perda de prestígio do positivismo jurídico e da própria lei e com a ascensão dos princípios constitucionais concebidos como uma reserva de justiça na relação entre o poder político e os indivíduos, especialmente as minorias. Essa mudança, uma verdadeira revolução silenciosa, tornou-se possível graças à disseminação da jurisdição constitucional, com a criação de inúmeros tribunais constitucionais pelo mundo afora. Como já assinalado, o quadro descrito acima encontrou exceção notável na experiência norte-americana, onde o constitucionalismo sempre foi marcado pela normatividade ampla e pela judicialização das questões constitucionais, na linha do precedente firmado com o julgamento do caso Marbury v. Madison pela Suprema Corte, em 1803. No Brasil, a força normativa e a conquista de efetividade pela Constituição são fenômenos recentes, supervenientes ao regime militar, e que somente se consolidaram após a redemocratização e a promulgação da Constituição de 1988. Sedimentado o caráter normativo das normas constitucionais, o Direito contemporâneo é caracterizado pela passagem da Constituição para o centro do sistema jurídico[31], onde desfruta não apenas da supremacia formal que sempre teve, mas também de uma supremacia material, axiológica. Compreendida como uma ordem objetiva de valores[32] e como um sistema aberto de princípios e regras[33], a Constituição transforma-se no filtro através do qual se deve ler todo o direito infraconstitucional. Esse fenômeno tem sido designado como constitucionalização do Direito, uma verdadeira mudança de paradigma que deu novo sentido e alcance a ramos tradicionais e autônomos do Direito, como o civil, o administrativo, o penal e o processual (v. infra). Essa constitucionalização do Direito, potencializada por algumas características associadas ao contexto filosófico do pós-positivismo – centralidade da ideia de dignidade humana e dos direitos fundamentais, desenvolvimento da nova hermenêutica, normatividade dos princípios, abertura do sistema, teoria da argumentação –, tem tornado o debate jurídico atual extremamente rico e instigante. Nele têm-se colocado temas que definirão o futuro da Constituição, dentre os quais: o papel do Estado e suas potencialidades como agente de transformação e de promoção dos direitos fundamentais; a legitimidade da jurisdição constitucional e da judicialização do debate acerca de determinadas políticas públicas; a natureza substantiva ou procedimental da democracia e o conteúdo das normas constitucionais que a concretizam, para citar apenas alguns exemplos. A essas questões se soma, ainda, a crise da própria ideia tradicional de soberania estatal, num tempo em que é nítida a tendência para a formação de blocos políticos e econômicos de integração[34]. A tradicional percepção da Constituição como documento supremo, expressa na imagem do vértice de uma pirâmide, enfrenta o desafio doutrinário de um mundo onde convivem inúmeras fontes normativas superiores. Todas aspiram à primazia ou, no mínimo, à igualdade hierárquica, e dentre elas se incluem, além do próprio direito constitucional, também o direito internacional e o direito comunitário[35]. Nesse cenário, foi assinado, ao fim de 2004, o tratado que estabelece uma Constituição para a Europa[36]. Todavia, sua não aprovação em referendos realizados na França e na Holanda (Países Baixos), no primeiro semestre de 2005, lançou incertezas e adiou o início de sua vigência. VII CONSTITUIÇÃO, CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA A ideia de Estado democrático de direito, consagrada no art. 1º da Constituição brasileira, é a síntese histórica de dois conceitos que são próximos, mas não se confundem: os de constitucionalismo e de democracia. Constitucionalismo significa, em essência, limitação do poder e supremacia da lei (Estado de direito, rule of law, Rechtsstaat). Democracia, por sua vez, em aproximação sumária, traduz-se em soberania popular e governo da maioria. Entre constitucionalismo e democracia podem surgir, eventualmente, pontos de tensão: a vontade da maioria pode ter de estancar diante de determinados conteúdos materiais, orgânicos ou processuais da Constituição. Em princípio, cabe à jurisdição constitucional efetuar esse controle e garantir que a deliberação majoritária observe o procedimento prescrito e não vulnere os consensos mínimos estabelecidos na Constituição. Não por acaso, portanto, é recorrente na doutrina o debate acerca do fundamento democrático da jurisdição constitucional, das origens até os dias de hoje[37]. A subsistência da polêmica e a busca constante de legitimação nas relações entre o constituinte e o legislador revelam um imperativo dos tempos modernos: o de harmonizar a existência de uma Constituição – e dos limites que ela impõe aos poderes ordinários[38] – com a liberdade necessária às deliberações majoritárias, próprias do regime democrático. As perguntas que desafiam a doutrina e a jurisprudência podem ser postas nos termos seguintes: por que um texto elaborado décadas ou séculos atrás (a Constituição) deveria limitar as maiorias atuais? E, na mesma linha, por que se deveria transferir ao Judiciário a competência para examinar a validade de decisões dos representantes do povo? As respostas a essas indagações já se encontram amadurecidas na doutrina contemporânea[39] e podem ser resumidas como se faz a seguir. A Constituição de um Estado democrático tem duas funções principais. Em primeiro lugar, compete a ela veicular consensos mínimos, essenciais para a dignidade das pessoas e para o funcionamento do regime democrático, e que não devem poder ser afetados por maiorias políticas ocasionais[40]. Esses consensos elementares, embora possam variar em função das circunstâncias políticas, sociais e históricas de cada país[41], envolvem a garantia de direitos fundamentais, a separação e a organização dos Poderes 1 Benda, Maihofer, Vogel, Hesse e Heyde, Manual de derecho constitucional, 1996; Dalmo de Abreu Dallari, Elementos de teoria geral do Estado, 1998; Eduardo García de Enterría, La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional, 1991; Francisco Balaguer Callejón, Derecho constitucional, v. 1, 2004; J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituição, 2003; Jorge Miranda, Teoria do Estado e da Constituição, 2002; Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, 2001; José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, 2001; Konrad Hesse, Escritos de derecho constitucional, 1983; Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 2003, e Temas de direito constitucional, t. III, 2005; Miguel Carbonell (org.), Neoconstitucionalismo, 2003; Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, 2001; Robert A. Dahl, How democratic is the American Constitution, 2001; Vicky C. Jackson e Mark Tushnet, Comparative constitutional law, 1999. 2 Etimologicamente, o termo “constituição” deriva imediatamente do verbo “constituir” e tem como origem remota o vocábulo latino “constitutionis”, cuja carga semântica igualmente herdou. Assim, em sentido lato, constituição significa o modo de ser específico de determinada coisa, os elementos que a individualizam, ou ainda o ato de sua criação. V. Antônio Houaiss e Mauro de Salles Villar, Dicionário Houaiss da língua portuguesa, 2001, p. 813. 3 Em A Constituição de Atenas, obra escrita, provavelmente, entre 332 e 322 a.C., Aristóteles descreve as instituições políticas e sociais de Atenas desde as origens aristocráticas até o que veio a ser conhecido como a “democracia grega”. Na segunda parte dessa obra, descreve detalhadamente o funcionamento do governo e das práticas políticas. Esse texto pode ser encontrado, em língua portuguesa, no sítio <http://www.consciencia.org/aristoteles_constituicao_de_atenas.shtml>, acesso em: 8.3.2007. 4 Diz-se Constituição em sentido institucional porque ligada à institucionalização do poder. Sobre o tema, v. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, 2000, t. II, p. 13: “Em qualquer Estado, em qualquer época e lugar, encontra-se sempre um conjunto de regras fundamentais, respeitando-se à sua estrutura, à sua organização e à sua atividade – escritas ou não escritas, em maior ou menor número, mais ou menos simples ou complexas. Encontra- se sempre uma Constituição como expressão jurídica do enlace entre poder e comunidade política ou entre sujeitos e destinatários do poder”. 5 Os fundamentos teóricos do constitucionalismo moderno começaram a ser lançados após a Reforma Protestante, tendo como principais referências teóricas os autores que desenvolveram a ideia de contrato social, em especial os ingleses Thomas Hobbes e John Locke, no século XVII – v. Thomas Hobbes, Leviathan, 1651, e John Locke, Second treatise of government, 1690 – e o francês Jean-Jacques Rousseau, no século XVIII – v. Jean Jacques Rousseau, Du contrat social, 1762. 6 Isso não importa, naturalmente, em suprimir ou minimizar a importância e a dignidade da Política, que é indispensável para a convivência entre os diferentes (Hannah Arendt, O que é política, 1998). A Constituição provê apenas sobre uma quantidade limitada de matérias, tidas pelo constituinte como fundamentais ou de especial relevância. Tudo o mais sujeita-se à deliberação política, ao processo majoritário, ao Poder Legislativo. Aliás, a própria Constituição, salvo no tocante às cláusulas pétreas (v. infra), comporta modificação, por via de emenda constitucional, desde que observado o procedimento próprio e obtido o voto da maioria qualificada necessária. No caso brasileiro, exigem-se três quintos dos votos de cada Casa do Congresso Nacional (CF, art. 60, § 2º). 7 Tal particularidade do constitucionalismo inglês faz com que as normas constitucionais não sejam formalmente distintas da legislação ordinária. Inexiste, assim, no sistema inglês, a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de um ato legislativo, de modo que ali prevalece a supremacia do Parlamento, e não da Constituição, tal como interpretada por um órgão do Judiciário ou por um Tribunal Constitucional. Relembrem-se, todavia, as implicações do Constitutional Reform Act, de 2005, discutidas no capítulo anterior. 8 É curioso observar, no entanto, que o modelo americano, no seu conjunto, não foi seguido por qualquer das democracias maduras do mundo: nenhuma tem Constituição sintética, poucas adotam o sistema federativo, inúmeras são monarquias, quase todas são parlamentaristas, e só recentemente se vem implantando o controle de constitucionalidade das leis, mesmo assim em molde diverso. Sobre o tema, v. Bruce Ackerman, The rise of world constitutionalism, Yale Law School Occasional Papers, Second Series, n. 3, 1997: “Devemos aprender a olhar para a experiência americana como um caso especial, não como um paradigma”; e Robert A. Dahl, How democratic is the American Constitution, 2001, p. 41 e s. Este último autor faz um levantamento dos vinte e dois países que se mantiveram estavelmente democráticos nos últimos cinquenta anos e que são: Alemanha, Áustria, Austrália, Bélgica, Canadá, Costa Rica, Dinamarca, Estados Unidos, Finlândia, França, Islândia, Irlanda, Israel, Holanda, Itália, Japão, Luxemburgo, Nova Zelândia, Noruega, Reino Unido, Suécia e Suíça. A Índia teve um hiato autoritário entre 1975 e 1977, sob o governo da primeira-ministra Indira Gandhi. 9 John Locke, Second treatise of government, 1980 (a 1ª edição é de 1690), cap. VIII, p. 52: “Sendo os homens, como já foi dito, por natureza, livres, iguais e independentes, ninguém pode ser retirado desse estado e colocado sob o poder político de outro sem o seu consentimento. A única maneira pela qual alguém pode ser privado de sua liberdade natural e submetido aos laços de uma sociedade civil é entrando em acordo com outros homens para se juntarem e unirem em uma comunidade para que possam viver entre si de maneira confortável, segura e pacífica, desfrutando de suas propriedades e de maior segurança em face dos que a ela não tenham aderido”. 10 V. Edward S. Corwin’s, The Constitution and what it means today, 1978, p. 221. Existe uma edição em português – A Constituição norte-americana e seu significado atual, 1986 –, de onde se colhe: “A fonte inicial do controle de constitucionalidade, no entanto, é muito mais antiga que a Constituição e do que qualquer dos Estados americanos. Ela pode ser encontrada no common law, onde se colhem princípios que foram desde cedo considerados “fundamentais” e que compreendem uma “lei ou Direito superior” (higher law) que nem mesmo o Parlamento poderia alterar. “E parece”, escreveu o Chief Justice Coke, em 1610, em seu famoso dictum no caso Bonham, “que quando um ato do Parlamento é contra o direito e a razão comuns, o common law irá submetê-lo a controle e irá julgá-lo nulo”. É interessante observar que este modelo seria adotado nos Estados Unidos, mas não prevaleceria no Reino Unido, onde se implantou a supremacia do Parlamento. 11 Sobre o tema, v. o primoroso texto de Eduardo García de Enterría, La Constitución española de 1978 como pacto social y como norma jurídica, Revista de Direito do Estado, 1:3, 2006, p. 10: “Esta falta de condición normativa de la Constitución fue refrendada por toda la práctica judicial europea, que no admitió nunca que fuese invocada como norma de decisión de litigios y menos aún como paradigma de validez de las leyes, y acantonó así su significado al plano en que la situó originalmente la post-Revolución Francesa: titularidad de la soberanía y organización de los poderes”. 12 Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, 2000, t. II, p. 52 e s., tabulou-as em concepções: jusnaturalistas, positivistas, historicistas, sociológicas, marxistas, institucionalistas, decisionistas, axiológicas (decorrentes da filosofia dos valores) e estruturalistas. 13 Não se explora aqui, por motivos diversos, a concepção decisionista de Carl Schmitt, frequentemente associada a uma visão autoritária da Constituição e do poder, bem como ao antissemitismo e à ascensão do nazismo. V. Carl Schmitt, Teoría de la Constitución, 2001 (a 1ª edição alemã é de 1928). Para um estudo recente sobre a doutrina de Carl Schmitt, v. Marcelo Leonardo Tavares, Medidas de exceção no Estado de direito: limites à restrição da liberdade em situação de crise, 2007, mimeografado, tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito Público da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. 14 Essas ideias foram sistematizadas em célebre conferência proferida para intelectuais e sindicalistas alemães, em 1863, transformada em um opúsculo clássico – Ferdinand Lassalle, A essência da Constituição –, onde se lê: “Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas do poder; a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país vigem e as Constituições escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores reais do poder que imperam na realidade social”. 15 Embora não se tenha em Marx uma teoria acabada do Direito (v. Michel Miaille, Reflexão crítica sobre o conhecimento jurídico. Possibilidades e limites, in Crítica do Direito e do Estado, 1984, p. 43), sua ênfase economicista remarca a tese de que o Direito é uma superestrutura que corresponde, no mundo das ideias, a uma base material, resultante das relações de produção. É a infraestrutura econômica que condiciona as instituições jurídicas. Embora o pensamento marxista ande fora de moda nesses tempos neoliberais, é de proveito reavivar passagem antológica, publicada no prefácio de sua Contribuição à crítica da economia política, escrito em 1859: “Na produção social de sua vida, os homens contraem determinadas relações necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral” (in Obras escolhidas de Marx e Engels, 1961, p. 301). 16 V. Hans Kelsen, Teoria pura do Direito, 1979 (a 1ª edição é de 1934 e a 2ª edição é de 1960); e Teoría general del Estado, 1965 (a 1ª edição é de 1925). 17 As insuficiências metodológicas e o mau uso político dado ao positivismo jurídico, invocado como fundamento de legitimidade de ordens jurídicas iníquas, não o desmerecem como construção teórica, nem lhe retiram o mérito de haver dado ao Direito uma elaboração técnica e sistemática que possibilitou avanços importantes, inclusive o desenvolvimento do constitucionalismo normativo. 18 Hans Kelsen, Teoria pura do Direito, 1979, p. 310: “A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por seu turno, é determinada por outra; e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental – pressuposta. A norma fundamental – hipotética, nestes termos – é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora”. 19 O tema encontra-se sistematizado, em páginas primorosas, no texto de Konrad Hesse, “La fuerza normativa de la Constitución”, in Escritos de derecho constitucional, 1983. Sobre a mesma questão, v., também, Eduardo García de Enterría, La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional, 2006 (a 1ª edição é de 1981); e Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 2003. 20 Na mesma situação estão Israel e Nova Zelândia. 21 A Constituição Imperial, nos seus arts. 174 a 177, estabelecia um procedimento especial para a modificação dos dispositivos constitucionais. O art. 178 explicitava que tal procedimento diferenciado aplicava-se apenas aos dispositivos que tratassem de certas matérias, consideradas efetivamente constitucionais. Confira-se a redação do art. 178: “É só Constitucional o que diz respeito aos limites, e attribuições respectivas dos Poderes Politicos, e aos Direitos Politicos, e individuaes dos Cidadãos. Tudo, o que não é Constitucional, póde ser alterado sem as formalidades referidas, pelas Legislaturas ordinárias”. 22 Assim dispôs a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789: “Art. 16. Toda sociedade na qual não está assegurada a garantia dos direitos nem determinada a separação dos poderes, não tem Constituição”. 23 Exemplos de tarefas impostas pela Constituição ao Estado, no caso brasileiro: erradicar a pobreza e a marginalização (art. 3º, III); incentivar o desenvolvimento científico (art. 218); preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais (art. 225, I). 24 Usualmente, a doutrina emprega a expressão “normas materialmente constitucionais” para designar as normas que tratam de questões fundamentais e integram a Constituição. A rigor, portanto, essas normas são formal e materialmente constitucionais. E emprega a expressão “normas formalmente constitucionais” para identificar as que integram a Constituição mas não têm o conteúdo típico, isto é, normas apenas formalmente constitucionais. 25 Essas normas são frequentemente referidas como normas de sobredireito. Não se destinam elas a reger diretamente as relações jurídicas, dirigindo-se antes ao intérprete, figurando como premissas conceituais ou metodológicas de aplicação de outras normas. Alguns exemplos: a) de regra de direito intertemporal: LICC, art. 2º, § 1º: “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”; b) de regra de hermenêutica: LICC, art. 4º: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. No direito francês se desenvolveu a ideia de bloco de constitucionalidade, que serve para identificar a existência de normas materialmente constitucionais fora da Constituição. Essa expressão significa que a Constituição não se limita às normas que integram ou se extraem do seu corpo, mas inclui outros textos normativos. No caso da Decisão n. 71.44 DC, de 16.7.1971, do Conselho Constitucional (disponível em: www.conseil-constitutionnel.fr/decision/1971/7144dc.htm, acesso em: 26.7.2005), considerou-se ter caráter materialmente constitucional a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e o Preâmbulo da Constituição de 1946. Em decisão monocrática proferida na ADIn 1.120/PA, DJU, 7 mar. 2002, o Ministro Celso de Mello tratou do tema nos seguintes termos: “É por tal motivo que os tratadistas – consoante observa Jorge Xifra Heras (‘Curso de Derecho Constitucional’, p. 43) –, em vez de formularem um conceito único de Constituição, costumam referir-se a uma pluralidade de acepções, dando ensejo à elaboração teórica do conceito de bloco de constitucionalidade (ou de parâmetro constitucional), cujo significado – revestido de maior ou de menor abrangência material – projeta-se, tal seja o sentido que se lhe dê, para além da totalidade das regras constitucionais meramente escritas e dos princípios contemplados, explícita ou implicitamente, no corpo normativo da própria Constituição formal, chegando, até mesmo, a compreender normas de caráter infraconstitucional, desde que vocacionadas a desenvolver, em toda a sua plenitude, a eficácia dos postulados e dos preceitos inscritos na Lei Fundamental, viabilizando, desse modo, e em função de perspectivas conceituais mais amplas, a concretização da ideia de ordem constitucional global”. 26 V. Constituição americana, art. 6º, § 2º; o Federalista, n. 78 (sobre os escritos federalistas de Hamilton, Madison e Jay, v. supra); e a decisão proferida pela Suprema Corte em Marbury v. Madison, 1803. Em alguns poucos países, como o Reino Unido e, em alguma medida, a França, onde não há controle judicial de constitucionalidade, o princípio não tem aplicação plena, prevalecendo a doutrina da “supremacia do Parlamento”. 27 Sobre a distinção entre poder constituinte e poder constituído, v. o clássico opúsculo de Emmanuel Joseph Sieyès, Qu’est-ce le tier État, editado em 1789, na antevéspera da Revolução Francesa. Há edição em português dessa obra, sob o título A constituinte burguesa: que é o terceiro Estado?, 1986. pluralismo significa reconhecer que existem diferentes concepções de mundo e de projetos de vida digna, que devem conviver e não devem ter pretensão de hegemonia. 46 Na configuração moderna do Estado e da sociedade, a ideia de democracia já não se reduz à prerrogativa popular de eleger representantes, nem tampouco às manifestações das instâncias formais do processo majoritário. Na democracia deliberativa, o debate público amplo, realizado em contexto de livre circulação de ideias e de informações, e observado o respeito aos direitos fundamentais, desempenha uma função racionalizadora e legitimadora de determinadas decisões políticas. Sobre o tema, v. John Rawls, A theory of justice, 1999; Jürgen Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 1989; Carlos Santiago Nino, La Constitución de la democracia deliberativa, 1997; Gisele Citadino, Pluralismo, direito e justiça distributiva, 1999. V. tb. Cláudio de Souza Pereira Neto, Teoria constitucional e democracia deliberativa, 2006, p. 11: “O primeiro concebe a deliberação como um processo de aplicação de princípios de justiça: fornece, com isso, uma versão substantiva de democracia deliberativa. O segundo compreende que a deliberação deve permanecer aberta quanto aos resultados, considerando, como únicas restrições defensáveis, as que dizem respeito a suas próprias condições procedimentais. O seu modelo é procedimental”. 47 Esse debate é predominantemente – mas não exclusivamente – americano. Na vertente substancialista, vejam-se especialmente: John Rawls, A theory of justice, 1999; Liberalismo político, 2000; e tb. Ronald Dworkin, Taking rights seriously, 1997; Freedom’s law: the moral reading of the American Constitution, 1999; O império do Direito, 1999. Na vertente procedimentalista, vejam-se especialmente: John Hart Ely, Democracy and distrust: a theory of judicial review, 1980; e tb. Jürgen Habermas, Direito e democracia entre faticidade e validade, 1997. Para um debate aprofundado da questão, em língua portuguesa, v. a obra referida acima de Cláudio Pereira de Souza Neto, Teoria constitucional e democracia deliberativa, 2006. 48 Nesse sentido, Ana Paula de Barcellos, Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas, Revista de Direito Administrativo, 240:83, 2005, p. 88: “É bem de ver que o conflito substancialismo versus procedimentalismo não opõe realmente duas ideias antagônicas ou totalmente inconciliáveis. O procedimentalismo, em suas diferentes vertentes, reconhece que o funcionamento do sistema de deliberação democrática exige a observância de determinadas condições, que podem ser descritas como opções materiais e se reconduzem a opções valorativas ou políticas. Com efeito, não haverá deliberação majoritária minimamente consciente e consistente sem respeito aos direitos fundamentais dos participantes do processo deliberativo, o que inclui a garantia das liberdades individuais e de determinadas condições materiais indispensáveis ao exercício da cidadania”. 49 Sem embargo, o liberalismo político, tal qual sustentado contemporaneamente, não se confunde com o liberalismo econômico. O laissez faire é hoje defendido por uma vertente do pensamento político que muitas vezes se apresenta como antagônica às teorias liberais da justiça: o libertarianismo, cujo propósito é justamente minimizar a intervenção estatal no domínio econômico. V. Friedrich Hayek, The constitution of liberty, 1960; Robert Nozick, Anarquia, Estado e utopia, 1991. 50 Na vertente liberal, é possível alinhar os dois autores substancialistas citados acima: John Rawls e Ronald Dworkin. Dentre os comunitaristas, é possível destacar: Michael Walzer, As esferas da justiça: em defesa do pluralismo e da igualdade, 1999; Charles Taylor, Democracia incluyente: la dinámica de la exclusión democrática, Metapolítica, v. 5, n. 18, 2001; Michael Sandel, Liberalism and the limits of justice, 2006; e Bruce Ackerman, We the people, 1993. Para uma densa reflexão sobre o tema, em língua portuguesa, v. Gisele Citadino, Pluralismo e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional contemporânea, 1999, em cuja Introdução averbou com propriedade, à p. 3: “Ressalte-se, desde logo, que nestes últimos anos filósofos políticos, filósofos do direito e constitucionalistas têm estabelecido uma sólida troca de impressões acerca da estrutura normativa mais adequada ao ideal de uma sociedade justa. De resto, é cada dia mais difícil definir com precisão estas fronteiras”. CAPÍTULO IV PODER CONSTITUINTE Sumário: I conceito, origens e generalidades II processos constituintes e modelos constitucionais III titularidade e legitimidade do poder constituinte IV natureza e limites do poder constituinte 1 Condicionamentos pré-constituintes 2 Condicionamentos pós-constituintes V procedimento VI poder constituinte e legitimidade democrática I CONCEITO, ORIGENS E GENERALIDADES[1] Assim como é possível falar de uma Constituição histórica, cuja existência antecedeu à compreensão teórica do fenômeno constitucional, também o poder constituinte, como intuitivo, está presente desde as primeiras organizações políticas. Onde quer que exista um grupo social e poder político efetivo, haverá uma força ou energia inicial que funda esse poder, dando-lhe forma e substância, normas e instituições. A teoria do poder constituinte, envolvendo especulações acerca de sua natureza, titularidade e limites, é que só recebeu elaboração em época mais recente[2]. Seu desenvolvimento remonta ao advento do constitucionalismo moderno, em um ambiente dominado pelas aspirações de racionalidade do iluminismo, do jusnaturalismo e do contratualismo. As noções de poder constituinte, soberania e legitimidade política iniciam sua longa e acidentada convivência. A primeira Constituição escrita do mundo moderno foi a americana, elaborada pela Convenção da Filadélfia, de 1787. Fora precedida por diversas constituições estaduais das antigas colônias inglesas na América do Norte[3]. E, antes delas, por inúmeras declarações de direitos[4]. Não houve, nos Estados Unidos, um debate prévio mais sofisticado acerca do tema do poder constituinte e suas implicações. A Constituição surgiu como um fato histórico, obra de estadistas e legisladores, não de filósofos[5]. É certo que, a posteriori, já durante o processo de ratificação, produziu-se um conjunto de escritos explicativos do documento aprovado, que viriam a tornar-se – reunidos em um volume – um clássico da ciência política[6]. A Constituição francesa de 1791 foi contemporânea da Constituição americana, mais por coincidência histórica do que por afinidades nas suas causas e consequências. Nos Estados Unidos, a Constituição foi o momento de conclusão de um processo revolucionário – ou, mais propriamente, da emancipação da colônia em relação à metrópole. Na França, ao revés, o processo constituinte deflagrou o movimento revolucionário, que teve como marco inicial a convocação dos Estados-Gerais e sua conversão em assembleia nacional constituinte[7]. Foi nesse ambiente que Sieyès desenvolveu e divulgou a formulação teórica que o tornaria célebre[8]. Em opúsculo clássico, intitulado Qu’est-ce que le Tiers État?, escrito no curso do processo revolucionário francês[9], Emmanuel Joseph Sieyès[10] apresentou as reivindicações do Terceiro Estado (a rigor, da burguesia) em face dos estamentos privilegiados, sobretudo a aristocracia[11]. Após identificar o terceiro estado com a nação, formulou ele a distinção essencial entre poder constituinte e poder constituído. O poder constituinte, incondicionado e permanente, seria a vontade da nação, só encontrando limites no direito natural. O poder constituído, por sua vez, receberia sua existência e suas competências do primeiro, sendo por ele juridicamente limitado. Estavam assentadas as bases políticas da supremacia constitucional[12]. Para dar viabilidade prática à teoria e legitimar a Assembleia Nacional como poder constituinte, Sieyès afastou-se da doutrina rousseauniana da vontade geral e da necessidade de participação direta de cada indivíduo, substituindo-a pelo conceito de representação política[13]. A soberania popular rousseauniana foi substituída pela ideia de “soberania nacional”[14]. Essas, portanto, as origens históricas modernas do poder constituinte e de sua teoria. Em pouco mais de duzentos anos de existência, o conceito conservou seu núcleo essencial, mas sofreu variações significativas de conteúdo. Trata-se do poder de elaborar e impor a vigência de uma Constituição. Situa-se ele na confluência entre o Direito e a Política, e sua legitimidade repousa na soberania popular. Modernamente, a reaproximação entre o Direito e a Ética, assim como a centralidade da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais, inspiram a percepção da existência de limites ao poder constituinte, a despeito das dificuldades teóricas que o tema suscita e das complexidades de sua efetivação. Na sequência do capítulo, faz-se o registro de alguns ciclos e experiências históricas que merecem destaque, bem como a análise de questões recorrentes na teoria do poder constituinte: quem o exerce (titularidade), como o exerce (procedimento), com qual fundamento (natureza) e dentro de que condicionamentos (limites). II PROCESSOS CONSTITUINTES E MODELOS CONSTITUCIONAIS Desde o surgimento do Estado liberal, na segunda metade do século XVIII, o mundo viveu algumas ondas de constitucionalização, com a elaboração de constituições por diferentes Estados, dentro de determinado período e circunstâncias históricas. Um autor identificou sete ciclos diversos[15]: 1) entre 1780 e 1791, inúmeros Estados situados no continente americano, inclusive os Estados Unidos da América, assim como a Polônia e a França elaboraram constituições escritas; 2) em 1848, um conjunto de revoluções ocorridas na Europa produziu constituições em mais de cinquenta países, levando em conta, para esse fim, os inúmeros pequenos Estados que viriam a constituir a Itália e a Alemanha; 3) após a Primeira Guerra Mundial, foram criados ou recriados Estados como a Polônia e a Tchecoslováquia, e na Alemanha entrou em vigor a Constituição de Weimar; 4) após a Segunda Guerra Mundial, as nações derrotadas adotaram novas Constituições, sob tutela mais ou menos estrita dos aliados; 5) com o fim dos impérios coloniais, uma nova onda se formou. Começou com Índia e Paquistão, na década de 40, e chegou ao seu ápice ao longo da década de 60, envolvendo países como Costa do Marfim, Gana e Nigéria; 6) com o fim das ditaduras no sul da Europa, nos anos 70, Portugal, Espanha e Grécia ganharam novas constituições democráticas;
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