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Guias e Dicas
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Uma história do mundo em doze mapas, Esquemas de Geografia

mapas, cartografia

Tipologia: Esquemas

2017
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Compartilhado em 02/12/2017

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rildo-nobrega-7 🇧🇷

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Baixe Uma história do mundo em doze mapas e outras Esquemas em PDF para Geografia, somente na Docsity! 7 ZAHAR Um olhar fascinante sobre doze mapas - da Grécia Antiga ao Google Earth - e como eles marcaram o nosso mundo. Objetos de encanto e deslumbramento, os mapas têm sido usados através dos séculos para promover interesses políticos, religiosos e econômicos. Da tabuleta de argila à tela de computador, passando por Ptolomeu, o "pai da geografia", pelos mundos árabe e oriental e pelo Renascimento, o historiador e especialista em cartografia Jerry Brotton explora doze dos mapas mais importantes da história, num panorama repleto de controvérsias e manipulações. Repleto de belíssimas ilustrações, o autor analisa os mapas abaixo recriando o contexto de cada um deles, conta as histórias de quem os criou e por quê, e revela a sua influência sobre a forma como vemos o mundo: - A Geografia de Ptolomeu, c.150 d.C. - Al-Idrisi, 1154 d.C. - O mapa-múndi de Hereford, c.1300 - O mapa mundial Kangnido, 1402 - Martin Waldseemüller, mapa do mundo, 1507 - Diogo Ribeiro, mapa do mundo, 1529 - Gerard Mercator, mapa do mundo, 1569 - Joan Blaeu, Atlas maior, 1662 - Família Cassini, mapa da França, 1793 - Halford Mackinder, "O eixo geográfico da história", 1904 - A projeção de Peters, 1973 - Google Earth, 2012 Ainda hoje, o viajante mais dedicado não pode esperar conhecer nada além do que uma fração da área da superfície da Terra, de mais de 510 milhões de quilômetros quadrados. No mundo antigo, até mesmo uma viagem de curta distância era uma atividade rara e difícil, geralmente empreendida com relutância e positivamente temida por aqueles que a faziam.3 “Ver” as dimensões do mundo reproduzidas numa placa de argila que media apenas doze por oito centímetros devia ser uma experiência inspiradora, até mesmo mágica. Eis o mundo, a tabuleta diz, e a Babilônia é o mundo. Para aqueles que se viam como parte da Babilônia, era uma mensagem tranquilizadora. Para aqueles que não eram babilônios e viam a tabuleta, a descrição do poder e do domínio da Babilônia era inequívoca. Não admira que, desde os tempos antigos, o tipo de informação geográfica transmitida por objetos como a tabuleta babilônica fosse exclusivo da elite mística ou dirigente. Como veremos ao longo deste livro, para xamãs, sábios, governantes e líderes religiosos, os mapas do mundo conferiam autoridade secreta e mágica aos seus criadores e proprietários. Se essas pessoas entendiam os segredos da Criação e a extensão da humanidade, então elas certamente deviam saber como dominar o mundo terrestre em toda a sua diversidade aterradora e imprevisível. Embora o mapa babilônico do mundo represente a primeira tentativa de que se tem notícia de mapear todo o mundo conhecido, trata-se de um exemplo relativamente tardio da cartografia humana. Os primeiros exemplos conhecidos de arte pré-histórica que mostram a paisagem no plano estão inscritos em pedra ou argila e precedem o mapa babilônico em mais de 25 mil anos; eles remontam ao período paleolítico superior, de 30 mil a.C. Essas inscrições iniciais, muito debatidas pelos arqueólogos no que diz respeito à data e ao significado, parecem representar cabanas com figuras humanas, cercados de gado, as divisões entre habitações básicas, representações de territórios de caça, até mesmo rios e montanhas. A maioria é tão rígida que pode ser facilmente confundida com tentativas abstratas, geométricas, de representar a distribuição espacial de objetos ou eventos, quando é provável que sejam mais marcas simbólicas, ligadas a indecifráveis referências míticas, sagradas e cosmológicas para sempre perdidas. Hoje, os arqueólogos são mais cautelosos do que seus antecessores do século XIX ao atribuir o termo “mapa” a essas primeiras peças de arte rupestre; estabelecer uma data precisa para o surgimento da arte rupestre pré-histórica parece ser tão inútil quanto definir quando um bebê aprende pela primeira vez a diferenciar-se espacialmente do ambiente em que vive.4 O anseio de mapear é um instinto humano básico e duradouro.5 Onde estaríamos sem mapas? A resposta é, obviamente, “perdidos”, mas os mapas fornecem respostas a muito mais perguntas do que simplesmente como ir de um lugar a outro. Desde a primeira infância, temos consciência de nós mesmos em relação ao resto do mundo físico a partir do processamento espacial de informações. Os psicólogos chamam essa atividade de “mapeamento cognitivo”, o dispositivo mental pelo qual os indivíduos adquirem, ordenam e lembram as informações sobre seu ambiente espacial, em cujo processo eles distinguem e se definem espacialmente em relação ao mundo vasto, aterrorizante e incognoscível que está “lá fora”.6 O mapeamento desse tipo não é exclusividade dos seres humanos. Os animais também usam procedimentos de mapeamento, como a demarcação de território pelo odor feita por cães e lobos, ou a localização do néctar de uma colmeia definida pela “dança” da abelha.7 Mas somente os seres humanos deram o salto crucial do mapeamento para a confecção de mapas.8 Com o aparecimento de métodos gráficos de comunicação permanentes, há mais de 40 mil anos, os seres humanos desenvolveram a capacidade de traduzir informações espaciais efêmeras para formas permanentes e reprodutíveis. Então, o que é um mapa? A palavra portuguesa “mapa” (e seus derivados) é usada em várias línguas modernas europeias, como espanhol, inglês e polonês, e vem do termo latino mappa, que significa toalha de mesa ou guardanapo. A palavra francesa para mapa – carte – tem sua origem numa palavra latina diferente, carta, que também fornece a raiz para os termos italiano e russo carta e karta, e se refere a um documento formal. Por sua vez, é derivada da palavra grega para papiro. O termo em grego antigo para mapa – pinax – sugere um tipo diferente de objeto. Um pinax é uma placa feita de metal, madeira ou pedra em que palavras ou imagens eram desenhadas ou gravadas. O árabe toma o termo em um sentido mais visual: usa duas palavras, surah, traduzida por “figura”, e naqshah, ou “pintura”, ao passo que o chinês adotou uma palavra semelhante, tu, que significa desenho ou diagrama.9 O termo map (ou mappe) só entra no idioma inglês no século XVI, e desde então até os anos 1990 dele foram propostas mais de trezentas definições concorrentes.10 Hoje, os estudiosos aceitam geralmente a definição apresentada em History of Cartography, obra em vários volumes que vem sendo publicada desde 1987, sob a direção geral de J.B. Harley e David Woodward. No prefácio ao primeiro volume, Harley e Woodward propuseram uma nova definição inglesa da palavra: “Mapas são representações gráficas que facilitam a compreensão espacial de coisas, conceitos, condições, processos ou eventos no mundo humano.”11 Essa definição (que será adotada ao longo deste livro) “estende-se naturalmente à cartografia celestial e aos mapas de cosmografias imaginárias”, e os livra das definições geométricas mais restritas do termo. Ao incluir a cosmografia – que descreve o universo, analisando a terra e os céus –, a definição de mapa de Harley e Woodward nos permite ver artefatos arcaicos, como o mapa do mundo babilônico, ao mesmo tempo como um diagrama cósmico e um mapa do mundo. As percepções autoconscientes dos mapas e a ciência de sua criação são invenções relativamente recentes. Por milhares de anos, o que as diferentes culturas chamavam de “mapa” era feito por pessoas que não pensavam neles como pertencendo a uma categoria separada da escrita de documentos formais, da pintura, do desenho ou da inscrição de diagramas em uma variedade de meios diferentes, da rocha ao papel. A relação entre mapa e o que chamamos de geografia é ainda mais sutil. Desde os gregos, a geografia é definida como o estudo gráfico (graphein) da Terra (gé), da qual o mapeamento representa uma parte vital. Mas, como disciplina intelectual, a geografia só foi devidamente formalizada no ocidente como profissão ou objeto de estudo acadêmico no século XIX. É nessa variedade díspar de mapas – em tecidos, tabuletas, desenhos ou gravuras – que reside muito de seu notável poder e fascínio. Um mapa é simultaneamente um objeto físico e um documento gráfico, e é tanto escrito como visual: não se pode entender um mapa sem escrita, mas um mapa sem um elemento visual é simplesmente uma coleção de nomes de lugares. O mapa se vale de métodos artísticos de execução para criar uma representação, em última análise, imaginativa de um objeto incognoscível (o mundo); mas também é moldado por princípios científicos, e abstrai a Terra de acordo com uma série de linhas e formas geométricas. O mapa diz respeito ao espaço como seu objetivo final, segundo a definição de Harley e Woodward. Ele oferece uma compreensão espacial dos eventos no mundo humano, mas, como veremos neste livro, muitas vezes diz respeito ao tempo, pois pede ao espectador que observe como esses eventos se desdobram um após o outro. Nós, é óbvio, enxergamos os mapas pelo aspecto visual, mas também podemos lê-los como uma série de histórias diferentes. substitutos daquilo que eles jamais podem verdadeiramente mostrar. O único mapa que poderia representar completamente o território que descreve seria na escala redundante de 1:1. Com efeito, a escolha da escala, um método proporcional de determinar uma relação consistente entre o tamanho do mapa e o espaço que ele representa, está intimamente relacionada com o problema da abstração e tem sido uma rica fonte de prazer e diversão para muitos escritores. Em Sylvie and Bruno Concluded (1893), de Lewis Carroll, o personagem do outro mundo Mein Herr anuncia que “fizemos efetivamente um mapa do país, em uma escala de uma milha para uma milha!”. Quando perguntado se o mapa tem sido muito usado, Mein Herr admite que “ele nunca foi aberto”, e que “os fazendeiros objetaram: eles disseram que ele cobriria todo o país e apagaria a luz do sol! Então, nós agora usamos o próprio condado como seu mapa, e posso garantir que ele funciona muito bem”.16 O conceito foi levado um passo adiante por Jorge Luis Borges, que, em seu conto de um parágrafo “Do rigor na ciência” (1946), reformula o relato de Carroll em um tom mais sombrio. Borges descreve um império mítico onde a arte da cartografia atingiu tal grau de perfeição que os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o tamanho do Império e coincidia pontualmente com ele. Menos Afeitas ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes entenderam que esse dilatado Mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos desertos do Oeste perduram despedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos; em todo o País não há outra relíquia das Disciplinas Geográficas.17 Borges compreendeu tanto o dilema atemporal como a arrogância desmedida potencial do cartógrafo: na tentativa de produzir um mapa abrangente de seu mundo, deve ocorrer um processo de redução e seleção. Mas se seu mapa de escala 1:1 é um sonho impossível, que escala um cartógrafo deve escolher para garantir que seu mapa mundial não tenha o destino que ele descreveu? Muitos dos mapas do mundo descritos neste livro oferecem uma resposta, mas nenhuma de suas escalas escolhidas (ou mesmo qualquer outra coisa deles) foi universalmente aceita como definitiva. Um problema adicional que se apresenta é o da perspectiva. Em que lugar imaginário o cartógrafo se situa antes de começar a mapear o mundo? A resposta, como já vimos, depende invariavelmente da visão de mundo predominante do cartógrafo. No caso do mapa mundial babilônico, a Babilônia está no centro do universo, ou no que o historiador Mircea Eliade chamou de “axis mundi”.18 De acordo com Eliade, todas as sociedades arcaicas usam ritos e mitos para criar o que ele chama de “situação limite”, aquela que “o homem descobre ao tomar consciência de seu lugar no universo”. Essa descoberta cria uma distinção absoluta entre um reino sagrado, cuidadosamente demarcado da existência organizada, e um reino profano, caos desconhecido, sem forma e, portanto, perigoso. No mapa do mundo babilônico, esse espaço sagrado circunscrito por seu círculo interior contrasta com o espaço profano definido pelos triângulos externos, que representam lugares caóticos e indiferenciados, antitéticos ao centro sagrado. Orientar e construir o espaço a partir dessa perspectiva repete o ato divino da Criação, dando forma a partir do caos, e pondo o cartógrafo (e seu patrono) em paridade com os deuses. Eliade sustenta que essas imagens implicam a criação de um centro que estabelece um canal vertical entre o mundo terreno e o divino e que estrutura as crenças e ações humanas. O buraco no centro do mapa do mundo babilônico, considerado comumente uma consequência do uso de um compasso para marcar os parâmetros circulares do mapa, talvez seja antes um canal entre dois mundos. O tipo de perspectiva adotada pelo mapa do mundo babilônico poderia ser chamado também de mapeamento egocêntrico. Durante a maior parte da história registrada, a esmagadora maioria dos mapas põe a cultura que os produziu em seu centro, como muitos dos mapas mundiais examinados neste livro mostram. Até mesmo os mapas on-line de hoje são parcialmente motivados pelo desejo do usuário de primeiro se localizar no mapa digital, digitando seu endereço de casa antes de qualquer outro lugar e dando um zoom para ver aquele lugar. É um ato atemporal de tranquilização pessoal, localizando-nos como indivíduos em relação a um mundo maior que suspeitamos ser muito indiferente à nossa existência. Mas se essa perspectiva literalmente centra os indivíduos, ela também os eleva como deuses, convidando-os a voar e olhar para a Terra de um ponto de vista divino, inspecionando o mundo inteiro em um olhar, calmamente distanciados, contemplando o que só pode ser imaginado pelos mortais presos à terra.19 A genialidade dissimuladora do mapa é fazer com que os observadores acreditem, apenas por um momento, que essa perspectiva é verdadeira, que eles não estão mais presos à terra, olhando para um mapa. E nisso está uma das características mais importantes do mapa: o observador é posto ao mesmo tempo dentro e fora dele. No ato de se localizar nele, o observador está ao mesmo tempo imaginativamente elevando-se acima (e fora) dele, em um momento transcendente de contemplação, para além do tempo e do espaço, vendo tudo de lugar nenhum. Se o mapa oferece ao seu observador uma resposta à persistente pergunta existencial “Onde estou?”, ele o faz através de uma divisão mágica que situa o observador em dois lugares ao mesmo tempo.20 OS GEÓGRAFOS TÊM LUTADO há séculos com o problema de definir onde o observador está em relação a um mapa do mundo. Para os geógrafos do Renascimento, uma solução era comparar a pessoa que vê um mapa com um espectador de teatro. Em 1570, o cartógrafo flamengo Abraham Ortelius publicou um livro que continha mapas do mundo e de suas regiões intitulado Theatrum orbis terrarum – “Teatro do mundo”. Ortelius utilizou a definição grega de teatro – theatron – como “lugar para ver um espetáculo”. Como em um teatro, os mapas que se desenrolam diante dos nossos olhos apresentam uma versão criativa de uma realidade que acreditamos conhecer, mas no processo a transformam em algo muito diferente. Para Ortelius e muitos outros cartógrafos renascentistas, a geografia é “o olho da história”, um teatro de memória, porque, como ele diz, “o mapa sendo aberto diante de nossos olhos, podemos ver as coisas feitas ou lugares onde foram feitas, como se estivessem no tempo presente”. O mapa funciona como um espelho, ou “vidro”, porque “as cartas sendo colocadas como se fossem certos vidros diante de nossos olhos ficarão por mais tempo na memória e causarão a impressão mais profunda em nós”. Mas, como todos os melhores dramaturgos, Ortelius admite que seus “vidros” são um processo de negociação criativa, porque em certos mapas, “em alguns lugares, a nosso critério, onde achamos bom, alteramos algumas coisas, outras coisas deixamos de fora, e em outros lugares, se parecia necessário, pusemos” diferentes aspectos e lugares.21 Ortelius descreve a posição a partir da qual o observador olha para um mapa do mundo, que está intimamente relacionada à orientação – o lugar a partir do qual nos orientamos. Estritamente falando, a orientação se refere geralmente à posição ou direção relativa; nos tempos modernos, ficou consagrada como a fixação de localização em relação aos pontos de uma bússola magnética. Mas muito antes da invenção da bússola na China, no século II d.C., os mapas do mundo eram orientados de acordo com um dos quatro pontos cardeais: norte, sul, leste e oeste. A decisão de orientar os mapas de acordo com uma direção principal varia de uma cultura para outra (como veremos a partir dos doze mapas analisados neste livro), mas não há nenhuma razão puramente geográfica para que uma direção seja que pretende interpretar. ESTE LIVRO CONTA uma história que mostra que, apesar dos grandes esforços de gerações de cartógrafos, as reivindicações fundamentais da cartografia científica nunca se concretizaram. O primeiro grande mapeamento de uma nação baseado em princípios iluministas da ciência, a Carte de Cassini, examinada no capítulo 9, nunca foi realmente terminado, e seu equivalente global, o Mapa Internacional do Mundo, concebido no final do século XIX e cuja história é contada na conclusão deste livro, foi abandonado no final do século XX. O desenvolvimento errático da geografia como disciplina acadêmica e profissional ao longo dos últimos dois séculos fez com que ela demorasse a questionar suas premissas intelectuais. Em anos recentes, os geógrafos passaram a ter sérias reservas sobre sua participação na divisão política da Terra. A crença na objetividade dos mapas viu-se sujeita a profunda revisão, e reconhece-se agora que eles estão intimamente ligados aos sistemas dominantes de poder e autoridade. Sua criação não é uma ciência objetiva, mas um empenho realista, e aspira a um modo particular de representar a realidade. O realismo é uma representação estilística do mundo, assim como o naturalismo, o classicismo ou o romantismo, e não é por acaso que as alegações de objetividade da cartografia atingiram seu auge no mesmo momento da ascensão do romance realista na Europa do século XIX. Em vez de argumentar que a cartografia segue um progresso inexorável em direção da precisão e objetividade científica, este livro defenderá que se trata de uma “cartografia sem progresso”, que proporciona a diferentes culturas visões particulares do mundo em momentos específicos no tempo.25 O livro toma doze mapas do mundo de culturas e momentos diferentes da história mundial e examina os processos criativos através dos quais eles tentaram resolver os problemas enfrentados por seus criadores, da percepção e abstração a escala, perspectiva, orientação e projeção. Os problemas são constantes, mas as respostas são específicas da cultura em que vive o cartógrafo, e descobrimos que o que os impulsionou era tão pessoal, emocional, religioso, político e financeiro quanto geográfico, técnico e matemático. Cada mapa moldava as atitudes das pessoas em relação ao mundo em que viviam, ou cristalizava uma determinada visão de mundo em momentos específicos da história mundial – com frequência, ambos. Esses doze mapas foram criados em momentos particularmente cruciais, quando seus elaboradores tomaram decisões corajosas sobre como e o que representar. No processo, eles criaram novas visões de mundo que buscavam não somente explicar aos seus públicos que o mundo era assim, mas convencê-los da razão de sua existência, e mostrar-lhes seu lugar dentro dele. Cada mapa também sintetiza uma determinada ideia ou questão que ao mesmo tempo motivou sua criação e captou a compreensão do mundo de seus contemporâneos, da ciência, política, religião e império ao nacionalismo, comércio internacional e globalização. Mas os mapas não são sempre moldados exclusivamente pela ideologia, consciente ou inconsciente. Incipientes forças emocionais também desempenharam um papel em sua confecção. Os exemplos aqui vão desde a busca de intercâmbio intelectual em um mapa islâmico do século XII a concepções globais de tolerância e igualdade no controvertido mapa mundial de Arno Peters, publicado em 1973. Embora não pretenda oferecer alguma coisa que se aproxime de uma história abrangente da história da cartografia, este livro apresenta várias contestações a suposições vigentes sobre o tema. A primeira é que, seja qual for o modo como interpretamos a história dos mapas, não se trata de uma atividade exclusivamente ocidental. A pesquisa atual revela até que ponto as culturas pré-modernas, não ocidentais, fazem parte da história, do mapa do mundo babilônico a contribuições indianas, chinesas e muçulmanas. Em segundo lugar, também não existe uma agenda oculta de evolução ou progresso no mapeamento histórico do mundo. Os mapas examinados são criações de culturas que percebem o espaço físico, terrestre, de maneiras diferentes, e essas percepções se refletem nos mapas que fazem. Isso leva ao terceiro argumento, de que cada mapa é tão compreensível e tão lógico para seus usuários quanto o outro, seja ele o mapa-múndi medieval de Hereford ou os aplicativos geoespaciais do Google. A história contada aqui é, portanto, descontínua, marcada por rupturas e mudanças repentinas, em vez de uma acumulação incessante de dados geográficos cada vez mais precisos. O mapa, seja qual for seu meio ou sua mensagem, é sempre uma interpretação criativa do espaço que afirma representar. A “desconstrução” crítica dos mapas como representações objetivas da realidade por autores como Korzybski, Bateson e outros fez com que eles parecessem ferramentas malévolas da ideologia, tecendo uma teia conspiratória de mentiras e dissimulações onde quer que se encontrem. Em vez disso, os mapas contidos neste livro são interpretados mais como uma série de argumentos engenhosos, proposições criativas, guias altamente seletivos para os mundos que eles criaram. Os mapas nos permitem sonhar e fantasiar a respeito de lugares que nunca veremos, quer neste mundo, quer em outros mundos ainda desconhecidos. A melhor descrição metafórica dos mapas talvez tenha sido pichada em letras de 45 centímetros num muro ao lado da linha férrea, próximo à estação Paddington, em Londres: “O distante está ao alcance da mão em imagens de outros lugares.” Uma metáfora, como um mapa, envolve levar alguma coisa de um lugar para outro. Os mapas são sempre imagens de outros lugares que transportam imaginativamente seus observadores a lugares distantes, desconhecidos, recriando a distância na palma da mão. A consulta a um mapa do mundo garante que o longínquo esteja sempre perto. “O bom mapa é aquele em que se vê o mundo como se fosse visto de outro mundo”, escreveu de modo semelhante o pintor do século XVII Samuel van Hoogstraten.26 Oscar Wilde desenvolveu o sentimento transcendental de Hoogstraten quando fez a observação famosa de que “um mapa do mundo que não inclua Utopia nem vale a pena ser olhado, pois deixa de fora aquele país em que a humanidade está sempre aportando. E quando a humanidade lá aporta, olha para fora, e ao ver um país melhor, iça as velas”.27 Os mapas sempre fazem escolhas em relação ao que incluir e o que omitir, mas é no momento em que essas decisões são tomadas que Wilde sonha com a possibilidade de criar um mundo diferente – ou até mesmo novos mundos para além do nosso conhecimento (que é uma das razões pelas quais os escritores de ficção científica são atraídos irresistivelmente para os mapas). Como Ortelius admitiu, cada mapa mostra uma coisa e, portanto, não mostra outra, e representa o mundo de uma maneira e, em consequência, não de outra.28 Essas decisões podem ser muitas vezes políticas, mas são sempre criativas. A capacidade manifestada por todos os cartógrafos abordados neste livro de elevar-se acima da terra e olhar para baixo de uma perspectiva divina representa um salto idealista de fé imaginativa na humanidade, mas essa visão é tão poderosa que várias ideologias políticas buscaram apropriar-se dela para seus próprios fins. Esse legado traz a discussão até os dias de hoje e à polêmica em curso acerca da dominação crescente de aplicativos digitais de mapeamento on- line, exemplificados pelo tema de meu capítulo final, o Google Earth. Depois de quase dois milênios sendo feitos em pedra, pele de animais e papel, os mapas agora estão mudando de maneiras desconhecidas desde a invenção da imprensa no século XV, e estão enfrentando a obsolescência iminente à medida que o mundo e seus mapas se tornam digitalizados e virtuais. Esses de interação, comércio, troca de ideias e aprendizado entre as pessoas. No centro desse mundo helenístico em evolução, que ia de Atenas à Índia, entre c.330 a.C. e c.30 a.C., estava Alexandria. Do oeste, ela recebia os mercadores e comerciantes dos grandes portos e cidades mediterrâneos, tão distantes quanto a Sicília e o sul da Itália, e enriquecia com o comércio feito com Roma, potência em ascensão. Do norte, recebia a influência cultural de Atenas e das cidades-estados gregas. Reconhecia a influência dos grandes reinos persas do oriente e absorvia do sul a riqueza do fértil delta do Nilo e das vastas rotas de comércio e reinos antigos do mundo subsaariano.2 Tal como a maioria das grandes cidades que se situam numa encruzilhada de povos, impérios e comércio, Alexandria tornou-se também um núcleo de saber e erudição. De todos os grandes monumentos que definem a cidade, nenhum é mais potente no imaginário ocidental do que sua antiga biblioteca. Fundada pelos Ptolomeu por volta de 300 a.C., a biblioteca de Alexandria foi uma das primeiras bibliotecas públicas, projetada para manter uma cópia de cada manuscrito conhecido escrito em grego, bem como traduções de livros de outras línguas antigas, especialmente o hebraico. A biblioteca continha milhares de livros, escritos em rolos de papiro, e todos catalogados e disponíveis para consulta. No coração de sua rede de palácios reais, os Ptolomeu criaram um “mouseion” (museu), originalmente um santuário dedicado às nove Musas (ou deusas), mas que eles redefiniram como um lugar para o culto das musas do saber e da erudição. Ali, os pesquisadores eram convidados a estudar, com promessas de hospedagem, pensão e, o melhor de tudo, acesso à biblioteca. Algumas das melhores cabeças de toda a Grécia daquele período foram atraídas para trabalhar no museu e sua biblioteca. Euclides (c.325-265 a.C.), o grande matemático, veio de Atenas; o poeta Calímaco (c.310-240 a.C.) e o astrônomo Eratóstenes (c.275-195 a.C.) vieram ambos da Líbia; o matemático, físico e engenheiro Arquimedes (c.287-212 a.C.) veio de Siracusa. A biblioteca de Alexandria foi uma das primeiras tentativas sistemáticas de reunir, classificar e catalogar o conhecimento do mundo antigo. Os Ptolomeu decretaram que todos os livros que entrassem na cidade deveriam ser apreendidos pelas autoridades e copiados pelos escribas da biblioteca (embora seus proprietários descobrissem, às vezes, que apenas uma cópia de seu livro original era devolvida). As estimativas da quantidade de livros guardados na biblioteca mostraram-se muito difíceis de fazer, devido a afirmações desvairadamente contraditórias de fontes clássicas, mas até mesmo as avaliações conservadoras falam em mais de 100 mil textos. Um comentarista clássico desistiu de tentar contar: “Quanto ao número de livros e criação de bibliotecas, por que preciso falar, se são toda a memória dos homens?”, escreveu ele.3 Com efeito, a biblioteca era um vasto repositório da memória coletiva do mundo clássico contido nos livros que catalogava. Para tomar emprestada uma expressão da história da ciência, era um “centro de cálculo”, uma instituição com recursos para reunir e processar informações diversas sobre uma gama de assuntos, onde “gráficos, tabelas e trajetórias estão comumente à mão e são combináveis à vontade”, e da qual os estudiosos podiam sintetizar essas informações em busca de verdades mais gerais e universais.4 Foi ali, em um dos grandes centros de cálculo e conhecimento, que nasceu a moderna elaboração de mapas. Por volta de 150 d.C., o astrônomo Cláudio Ptolomeu escreveu um tratado intitulado Geographiké Hyphêgesis (“Esboço geográfico”), que viria a ser conhecido simplesmente como a Geografia. Sentado nas ruínas da outrora grande biblioteca, Ptolomeu compilou um texto que afirmava descrever o mundo conhecido e que definiria a cartografia pelos dois milênios seguintes. Escrito em grego em um rolo de papiro, com oito seções ou “livros”, a Geografia resumia mil anos de pensamento grego sobre a forma, o tamanho e o alcance do mundo habitado. Ptolomeu definia sua tarefa de geógrafo como sendo a de “mostrar o mundo conhecido como uma entidade única e contínua, sua natureza e como ela se situa, levando em conta somente as coisas que estão associadas a ele em suas linhas gerais mais amplas”, que ele listava como sendo “golfos, cidades grandes, os povos e os rios mais notáveis, e as coisas mais dignas de nota de cada espécie”. Seu método era simples: “A primeira coisa que é preciso investigar é a forma, o tamanho e a posição da Terra em relação ao seu ambiente, de modo que seja possível falar de sua parte conhecida, quão grande ela é e como ela é” e “em que paralelos da esfera celeste cada uma das localidades é conhecida.”5 A Geografia que resultou disso era muitas coisas ao mesmo tempo: um relato topográfico da latitude e longitude de mais de 8 mil lugares na Europa, Ásia e África; uma explicação sobre o papel da astronomia na geografia; um guia matemático detalhado para fazer mapas da Terra e suas regiões; e o tratado que proporcionou à tradição geográfica ocidental uma definição duradoura de geografia – em suma, um kit completo para a confecção de mapas tal como concebido pelo mundo antigo.6 Nenhum texto antes ou depois de Ptolomeu ofereceria uma exposição mais abrangente da Terra e como fazer para descrevê-la. Após sua conclusão, a Geografia de Ptolomeu desapareceu por mil anos. Nenhum exemplar original da época de Ptolomeu sobreviveu, e ela só reapareceu no século XIII, em Bizâncio, com mapas desenhados por escribas bizantinos que se baseavam claramente na descrição de Ptolomeu da Terra e da posição de seus 8 mil lugares, e que mostram o mundo clássico como ele via em Alexandria, no século II. Em ordem crescente, o Mediterrâneo, a Europa, o norte da África, o Oriente Médio e partes da Ásia parecem relativamente familiares. As Américas e a Australásia (Oceania), a África meridional e o Extremo Oriente, desconhecidos de Ptolomeu, estão todos ausentes, assim como o Pacífico e a maior parte do oceano Atlântico. O oceano Índico aparece como um enorme lago, com o sul da África contornando a metade inferior do mapa para unir-se a uma Ásia cada vez mais especulativa a leste da península da Malásia. Não obstante, trata-se de um mapa que parecemos entender: com o norte no alto, tem nomes de lugares que marcam as regiões-chave, e é construído com o uso de uma retícula. Tal como a maioria de seus antepassados gregos, desde Platão, Ptolomeu entendia que a Terra era redonda, e usou essa grade para enfrentar a dificuldade de projetar uma Terra esférica sobre uma superfície plana. Ele reconhecia que para desenhar um mapa retangular era necessária uma retícula, “para conseguir uma semelhança com uma imagem de um globo, de tal modo que sobre uma superfície plana os intervalos estabelecidos nela também estejam em proporção tão boa quanto possível aos intervalos reais”.7 Tudo isso faz com que seja tentador ver a Geografia de Ptolomeu como um prenúncio precoce da cartografia moderna. Infelizmente, não é tão simples assim. A opinião dos estudiosos permanece dividida quanto à possibilidade ou não de Ptolomeu ter desenhado os mapas que acompanham a Geografia: muitos historiadores sustentam que as cópias bizantinas do século XIII contêm os primeiros mapas a ilustrar seu texto. Ao contrário de disciplinas como a medicina, não havia nenhum campo ou “escola” de geografia grega. Não existem exemplos registrados do uso prático de mapas na Grécia clássica, e certamente não há exemplos de o livro de Ptolomeu ter sido usado dessa maneira. Voltar-se para a biografia de Ptolomeu a fim de tentar compreender a significação de seu livro oferece pouca ajuda. Não se sabe praticamente nada sobre sua vida. Não há autobiografia, estátua, nem mesmo um relato de “kosmou miméma”, “imagem do mundo”,11 uma representação moral e simbólica do universo grego, neste caso composto por cinco camadas ou círculos concêntricos. Em seu centro estavam “a terra, o céu, o mar, o sol incansável, a lua cheia e todas as constelações que coroam os céus”. No círculo exterior, o escudo retratava “duas belas cidades de homens mortais”, uma em paz, outra em guerra; a vida agrícola mostrando a prática de arar, colher e a vindima; o mundo pastoral de “gado de chifres eretos”, “ovelhas de lã branca”; e, finalmente, “o poderoso rio Oceano, correndo na orla extrema do forte escudo”.12 Embora o leitor moderno possa não ver de imediato na descrição de Homero do escudo de Aquiles um mapa ou um exemplo de geografia, as definições de ambos os termos gregos sugerem o contrário. Estritamente falando, Homero fornece uma geo-grafia – uma descrição gráfica da Terra – que faz uma representação simbólica, neste caso, das origens do universo e do lugar da humanidade dentro dele. Ele também segue as definições gregas de um mapa como pinax ou periodos gés: o escudo é tanto um objeto físico em que as palavras estão escritas como também um circuito da Terra, circunscrita aos limites do “poderoso rio Oceano”, que define a fronteira (peirata) de um mundo potencialmente ilimitado (ápeiron). Para comentaristas gregos posteriores, a descrição de Homero oferece não apenas uma geografia, mas também uma história da própria Criação: uma cosmogonia. Hefesto, deus do fogo, representa o elemento básico da Criação, e a construção do escudo circular é uma alegoria da formação de um universo esférico. Os quatro metais do escudo (ouro, prata, bronze e estanho) representam os quatro elementos, enquanto suas cinco camadas correspondem às cinco zonas da Terra.13 Além de uma cosmogonia, o escudo de Aquiles é também uma descrição do mundo conhecido como aparece a quem olha para cima do horizonte e observa o céu. A Terra é um disco plano, cercado de mar por todos os lados, com o céu e as estrelas acima e o sol nascendo no leste e se pondo no oeste. Essa era a forma e o alcance do oikoumené, termo grego para mundo habitado. Sua raiz está em oikos, “casa” ou “espaço de habitação”. Como a palavra nos diz, a percepção grega antiga do mundo conhecido, como a da maioria das comunidades arcaicas, era essencialmente egocêntrica, emanando para fora do corpo e de seu espaço doméstico de sustentação. O mundo começava com o corpo, era definido pelo lar e terminava no horizonte. Qualquer coisa além disso era um caos sem limites. Para os gregos, a geografia estava intimamente ligada a uma compreensão da cosmogonia, porque entender as origens da Terra (gé) era compreender a Criação. Para poetas como Homero e mais explicitamente Hesíodo, em sua Teogonia (c.700 a.C.), a Criação começa com o Caos, a massa informe que precede as três outras entidades: Tártaros (o deus primordial do poço sombrio debaixo da terra), Eros (o deus do amor e da procriação) e, mais importante, Gaia (a personificação feminina da Terra). Tanto Caos como Gaia produzem filhos, Nyx (Noite) e Uranôs (Céu). De sua união posterior com Uranôs, Gaia produz as doze divindades dos Titãs: seis filhos – Oceanôs, Hiperion, Coios, Cronos, Iápetos e Crios – e seis filhas – Mnemosine, Febe, Reia, Tétis, Teia e Têmis –, que por sua vez são derrotados pelos deuses do Olimpo liderados por Zeus. Ao contrário da tradição cristã, a criação humana nos primeiros relatos gregos é contraditória e, muitas vezes, secundária em relação às lutas dos deuses. Homero nunca faz um relato explícito da criação dos mortais, em contraste com Hesíodo, que afirma que a humanidade foi criada pelo titã Cronos, mas dá pouca explicação sobre o motivo disso. Em outras versões do mito, os mortais são criados pelo titã Prometeus, que provoca a ira de Zeus ao dar aos seres humanos o dom do “fogo”, ou espírito do conhecimento autoconsciente. Em outras versões do mito da Criação, em Hesíodo e outros, é negada qualquer identidade explicitamente divina à humanidade, que nasce do solo ou terra.14 1. O escudo de Aquiles, bronze de John Flaxman, 1824. Essas explicações ambíguas do nascimento da humanidade nos primeiros relatos míticos gregos da Criação contrastam com as explicações científicas e naturalistas da “ordem das coisas” que começaram a surgir no século VI a.C. na cidade jônica de Mileto (na atual Turquia), onde floresceu um grupo de pensadores que apresentavam um argumento de aspecto científico para explicar a Criação. Mileto estava bem-situada para absorver a influência das teorias babilônicas da Criação e observações astronômicas sobre o movimento das estrelas que remontavam até 1800 a.C., representadas, como vimos no início deste livro, em tabuletas de argila que mostravam a Terra cercada por água e com a Babilônia perto de seu centro. O filósofo Anaximandro de Mileto (c.610-546 a.C.) foi, segundo o biógrafo gregos, Heródoto de Halicarnasso (c.484-425 a.C.). No quarto livro de sua vasta História, Heródoto interrompe a discussão do poder da Pérsia e os limites setentrionais do mundo conhecido na Cítia, para ridicularizar geógrafos como Hecataios: “Não posso deixar de rir do absurdo de todos os fazedores de mapas – há muitos deles – que mostram o Oceano correndo como rio em torno de uma Terra perfeitamente circular, com a Ásia e a Europa do mesmo tamanho.”19 Como viajante e historiador, Heródoto não se interessava pela pura simetria geográfica do mito de Homero ou da ciência de Anaximandro. Embora reiterasse a divisão tripartida do mundo estabelecida por Hecataios entre Europa, Ásia e Líbia (África), Heródoto também listava cuidadosamente os povos, impérios e territórios conhecidos por seus contemporâneos, antes de concluir que “não posso deixar de me surpreender com o método de mapear Líbia, Ásia e Europa. Os três continentes diferem, de fato, bastante em tamanho. A Europa é tão comprida quanto os outros dois juntos, e quanto à largura, não pode, em minha opinião, ser comparada com eles”.20 Ele descartava a hipótese de que o mundo habitado era completamente cercado por água, e questionava por que “três nomes femininos distintos foram dados ao que é realmente uma única massa de terra” – Europa (uma princesa libanesa raptada por Zeus), Ásia (a esposa de Prometeus, embora em outras tradições seja o filho de Cotis, rei da Trácia) e Líbia (filha de Épafos, filho de Júpiter).21 Heródoto tinha pouco interesse por geometria ou pela nomenclatura dos mapas do mundo planos, em forma de disco, que ele descreve (nenhum dos quais sobrevive). No que lhe dizia respeito, essas idealizações abstratas deveriam ser substituídas pela realidade verificável das viagens empíricas e encontros pessoais. Heródoto levantou implicitamente questões sobre a cartografia que a definiriam – e, às vezes, a dividiriam – por séculos. As alegações de objetividade da ciência e, em particular da geometria, são suficientes para fazer mapas precisos do mundo? Ou a cartografia deveria confiar mais nos relatos ruidosos, muitas vezes contraditórios e pouco confiáveis de viajantes para desenvolver uma visão mais abrangente do mundo conhecido? Uma consequência dessas distinções era perguntar se a elaboração de mapas era uma ciência ou uma arte: era principalmente espacial ou temporal, um ato visual ou escrito? Embora a cartografia grega continuasse baseada em cálculos matemáticos e astronômicos, Heródoto levantou a questão de como ela reunia, avaliava e incorporava os dados brutos recolhidos por viajantes na criação de um mapa mais abrangente do mundo. As preocupações de Heródoto encontraram pouca ressonância imediata entre seus contemporâneos, que continuaram a discutir questões matemáticas e filosóficas relativas à natureza da Terra. A crença de Anaximandro em um universo geometricamente simétrico foi desenvolvida por Pitágoras (fl.530 a.C.) e seus discípulos, bem como por Parmênides (fl.480 a.C.), a quem é atribuído o avanço lógico de sugerir que, se o universo era esférico, então, a Terra também o era. Mas a primeira declaração registrada sobre a esfericidade da Terra está perto do final do Fédon (c.380 a.C.), célebre diálogo de Platão sobre os últimos dias de Sócrates. O diálogo é mais conhecido por sua explicação filosófica das ideias platônicas a respeito da imortalidade da alma e pela teoria das formas ideais, mas, perto de seu final, Sócrates apresenta uma imagem do que chama de “regiões maravilhosas da Terra”, tal como vistas pela alma virtuosa após a morte. “Fiquei convencido”, diz Sócrates, “de que, se a Terra é de forma esférica e está colocada no meio do céu, para não cair não precisará nem de ar nem de qualquer outra força da mesma natureza: porque para sustentar-se é suficiente a perfeita uniformidade do céu e o equilíbrio natural da Terra.”22 O que se segue é uma visão singularmente platônica da Terra. Sócrates explica que a humanidade habita apenas uma fração de sua superfície, morando em uma série de concavidades, “de forma e tamanho variáveis, para as quais convergem água, vapor e ar. Porém a própria Terra se acha pura no céu puro, onde estão os astros”. Sócrates explica que “esta nossa Terra” é uma cópia pobre, “corrompida” da “verdadeira Terra”, um mundo ideal, que é visível somente para a alma imortal.23 Finalmente, em uma notável descrição de transcendência global, ele prevê sua própria morte, enquanto se descreve elevando-se e olhando para o mundo esférico: O que dizem, companheiro, para começar, é que, se essa terra fosse vista de cima por alguém, pareceria um desses balões de couro de doze peças de cores diferentes, de que são simples amostras as cores conhecidas entre nós que os pintores empregam. Toda aquela terra é assim, porém de cores muito mais puras e brilhantes; uma parte é de cor púrpura e admiravelmente bela; outra é dourada; outra, ainda, branca, é mais alva do que o giz e a neve, o mesmo acontecendo com todas as cores de que é feita, em muito maior número e mais belas do que quantas possamos já ter visto.24a Esse espectro sem precedentes de um mundo ideal esférico, brilhante, visto pela alma imortal em um momento de transcendência espiritual, seria adotado em uma série de subsequentes imaginações geográficas do globo, especialmente dentro da tradição cristã da salvação e ascensão espiritual. Também definiria a crença de Platão na criação do mundo por um demiurgo divino, ou “artesão”, apresentado no Timeu. Essa visão da Terra é fundamental para a defesa platônica da teoria das formas e da imortalidade da alma. Somente a alma imortal pode apreender a forma ideal do mundo; mas o intelecto e a imaginação dos seres mortais, em forma de pintores, cartógrafos ou matemáticos, são capazes de representar sua ordem divina e celestial, ainda que através de reproduções pobres. Até mesmo os matemáticos só poderiam oferecer aproximações pálidas da Terra ideal; a alusão de Platão ao balão de couro de doze peças é uma referência à teoria de Pitágoras do dodecaedro, o sólido mais próximo da esfera. A visão de Platão – mais de dois milênios antes que o sonho de se elevar acima da Terra e vê-la em toda a sua glória se tornasse realidade na era da viagem espacial extraterrestre – viria a ser um ideal irresistível, embora ilusório, para gerações de geógrafos. Tendo definido a Terra dentro do contexto mais amplo da Criação, os pensadores gregos clássicos começaram a especular sobre a relação entre esferas celeste e terrestre, e como a primeira poderia ajudar a medir a forma e a extensão da Terra. Um dos alunos de Platão, o matemático e astrônomo Eudoxo de Cnidos (c.408-355 a.C.), criou um modelo de esferas celestes concêntricas girando em torno de um eixo que passava pelo centro da Terra. Eudoxo deu o salto intelectual de sair dos limites do mundo terrestre para imaginar o universo (e a Terra em seu centro) para além do espaço e do tempo, desenhando um globo celeste visto “de fora” para dentro, em que as estrelas e a Terra são observadas de uma perspectiva divina. Isso lhe possibilitou traçar os movimentos dos céus em um globo terrestre e mostrar como os principais círculos celestes (criados ao imaginar-se a extensão do eixo da Terra no espaço, em torno do qual as estrelas parecem girar), inclusive o equador e os trópicos, atravessavam a superfície da Terra. O universo geocêntrico de Eudoxo foi um grande avanço na cartografia celeste. Possibilitou-lhe desenvolver uma versão personificada do zodíaco (zodiakos kuklos, ou “círculo de animais”), que moldaria toda a cartografia celestial e a astrologia posteriores, e que ainda influencia a linguagem da moderna geografia, como nos trópicos de Câncer e Capricórnio. Além de seus cálculos astronômicos, Eudoxo escreveu um texto perdido, o Circuito da Terra, no qual consta ter feito uma das primeiras estimativas da circunferência da Terra, 400 mil estádios (o método grego famigeradamente difícil de medição, definido como a distância percorrida por um arado em uma única puxada e estimado entre 148 e 185 metros).25 Em tom mais leve, a comédia de Aristófanes do século V a.C. As nuvens mostra um cidadão ateniense chamado Strepsiades arguindo um estudante e sua parafernália acadêmica. O estudante diz: “Aqui temos um mapa do mundo inteiro. Está vendo? Aqui é Atenas.” A resposta cômica de Strepsiades é de descrença: “Não seja ridículo. Não vejo nem mesmo um único tribunal.” Quando o estudante aponta a localização do Estado inimigo de Esparta, Strepsiades diz: “Está perto demais! Seria de bom alvitre afastá- la para mais longe.” Esses exemplos mostram que já no século V a.C. os mapas mundiais gregos eram objetos físicos, públicos, usados nas artes da guerra e da persuasão. Eles eram extremamente detalhados, inscritos em bronze, pedra, madeira, ou até mesmo no chão, e mostravam um certo grau de conhecimento geográfico. Mas eram também próprios da elite: Aristófanes satiriza a ignorância comum da sofisticação de representação dos mapas, mas suas piadas só funcionam no pressuposto de que o público sabe que o mapa é apenas uma representação do território, e que não é possível mudar de lugar países que parecem desconfortavelmente próximos. Esse era o estado da geografia grega no século IV a.C. As conquistas militares de Alexandre, o Grande, impulsionaram a cartografia numa direção mais descritiva, baseada na experiência direta e em registros escritos de terras distantes, que culminaria na criação da Geografia de Ptolomeu. As conquistas de Alexandre não foram significativas apenas para a expansão do conhecimento grego do mundo conhecido. Tendo aprendido a importância da observação empírica com seu tutor, Aristóteles, Alexandre nomeou uma equipe de estudiosos para coletar dados sobre a flora, a fauna, a cultura, a história e a geografia dos lugares que visitavam e fazer relatórios escritos sobre o avanço diário do exército. A união do conhecimento teórico de Aristóteles e seus predecessores com a observação direta e as descobertas das campanhas de Alexandre mudaria o modo de elaborar mapas no período helenístico que se seguiu à morte de Alexandre. Enquanto os mapas gregos clássicos concentravam-se na cosmogonia e na geometria, a cartografia helenística incorporou esses aspectos àquilo que para nós parece uma abordagem mais científica do mapeamento da Terra. Píteas de Massalia (Marselha), contemporâneo de Alexandre, explorou as costas oeste e norte da Europa, viajando ao longo das costas ibérica, francesa, inglesa e, possivelmente, até mesmo do Báltico. Suas viagens definiram Thule (que poderia ser a Islândia, as Órcades ou até mesmo a Groenlândia) como o limite setentrional do mundo habitado, e também estabeleceram corretamente a posição exata do polo celeste (o ponto em que a extensão do eixo da Terra cruza a esfera celestial). Mas, naquilo que talvez tenha sido o mais importante para a geografia, ele estabeleceu firmemente a ligação entre a latitude de um lugar e a duração de seu dia mais longo, e projetou paralelas de latitude que circundavam todo o globo.31 Por volta da mesma época, o pupilo de Aristóteles Dicáiarcos de Messina (fl.c.326-296 a.C.) criou um modelo mais sofisticado do tamanho do mundo habitado, bem como fez alguns dos primeiros cálculos conhecidos de latitude e longitude. Em sua obra perdida Circuito da Terra, Dicáiarcos refinava Aristóteles, argumentando que a razão entre o comprimento do mundo conhecido em relação à largura era de 3 para 2, e fez cálculos latitudinais rudimentares desenhando um mapa com um paralelo que ia de oeste para leste, passando por Gibraltar, Sicília, Rodes e Índia, a aproximadamente 36° N. Perpendicular a este paralelo havia um meridiano de norte a sul que passava por Rodes. Aos poucos, o mundo habitado começou a parecer um retângulo incompleto, em vez de um círculo perfeito. As percepções filosóficas e geométricas de babilônios e gregos do mundo conhecido supunham uma esfera ideal abstrata, um espaço finito, com um limite fixo circular (o mar), com uma circunferência definida por seu centro, um lugar (Babilônia ou Delfos) que definia sua cultura como modeladora do mundo. A simetria ideal dá lugar a uma forma oblonga irregular inscrita dentro de um retângulo. Não há mais o centro exato de um círculo baseado na geometria e na fé; em vez disso, fazem-se cálculos a partir de um lugar como Rodes, simplesmente porque se situa em um ponto onde as linhas rudimentares de latitude e longitude se cruzam. Nessa alteração está implícita uma mudança de mentalidade a respeito do papel dos mapas. Os títulos dos tratados que descrevem a terra habitada começam a mudar: obras com títulos como Sobre o oceano e Sobre portos substituem o mais tradicional Circuito da Terra. O aumento das informações geográficas altera e amplia lentamente as dimensões retangulares do mundo habitado, que não são mais perfeitamente delimitadas pela geometria do círculo. A fusão da geometria com a observação astronômica e terrestre possibilitou que os pensadores helenísticos iniciassem um empreendimento coletivo de agregar novas informações sobre o cálculo da latitude, o comprimento estimado do mundo conhecido, ou a localização de uma determinada cidade ou região. Com esse espírito cooperativo vieram novas formas de ver os mapas como repositórios de conhecimento, compilações enciclopédicas de informações, ou o que um historiador clássico chamou de “um grande inventário de tudo”.32 Um tratado geográfico poderia abranger ideias de criação, astronomia, etnografia, história, botânica, ou sobre qualquer outro assunto relacionado com o mundo natural. Nas palavras de Christian Jacob, “o mapa torna-se um dispositivo para arquivar o conhecimento sobre o mundo habitado”.33 2. Reconstituição do mapa do mundo de Dicáiarcos, século III a.C. Sempre que uma cultura começa a reunir e arquivar o seu conhecimento, ela exige um local físico para acomodar com segurança esse conhecimento em qualquer forma material que ele tenha. Para o mundo helenístico, esse lugar era a biblioteca de Alexandria e, não por acaso, um dos seus primeiros bibliotecários foi a figura que, antes de Ptolomeu, resumiu a geografia grega. Eratóstenes (c.275-194 a.C.), um grego nascido na Líbia, estudou em Atenas antes de aceitar um convite do rei Ptolomeu III para trabalhar em Alexandria como tutor de seu filho e chefe da biblioteca dos ângulos de um triângulo é 180 graus, o teorema de Pitágoras, segundo o qual, em um triângulo retângulo, a soma do quadrado dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa. Os princípios de Euclides estabeleceram um mundo geométrico moldado pelas leis básicas da natureza. Embora ele tenha, em grande parte, sintetizado o pensamento grego anterior sobre a matéria, seus Elementos, tomados em conjunto, definiram uma percepção do espaço que perduraria por quase dois milênios, até a teoria da relatividade de Einstein e a criação de uma geometria não euclidiana. Para Euclides, o espaço era vazio, homogêneo, plano, uniforme em todas as direções e redutível a uma série de círculos, triângulos e linhas paralelas e perpendiculares. O impacto dessa percepção do espaço na cartografia foi extremamente importante. Ele se manifestou inicialmente na tentativa bastante desajeitada de Eratóstenes de reduzir todo o espaço terrestre a uma série de cálculos triangulares e formas quadrilaterais, mas também possibilitou que cartógrafos posteriores processassem dados geográficos empíricos de maneiras completamente novas. Todo o espaço terrestre poderia, em teoria, ser medido e definido de acordo com princípios geométricos duradouros e projetado sobre um quadro formado por uma grade matemática de linhas e pontos que representavam o mundo. Desse modo, a geometria euclidiana seria a base não somente de toda a geografia grega posterior a Eratóstenes, mas também da tradição geográfica ocidental até o século XX. A resposta helenística aos cálculos astronômicos e geográficos de Eratóstenes foi moldada por uma mudança no mundo político ocorrida nos séculos III e II a.C. A ascensão da República Romana, com suas vitórias nas guerras púnicas e macedônias, assinalou o declínio dos impérios helenísticos e, por fim, a destruição da dinastia ptolomaica em Alexandria. É um dos grandes enigmas da história cartográfica o fato de que quase não tenham sobrevivido mapas do mundo da República ou do Império Romano. Embora seja perigoso extrapolar, os indícios limitados da cartografia romana que sobrevivem em forma de mapas cadastrais (ou de agrimensura) em pedra e bronze, mosaicos de pisos, planos de engenharia, desenhos topográficos, itinerários e roteiros de estradas escritos supõem uma relativa indiferença para com as preocupações mais abstratas da geografia helenística. Em vez disso, os romanos davam preferência ao uso mais prático de mapas em campanhas militares, na colonização, na divisão de terras, na engenharia e na arquitetura.38 No entanto, essa aparente divisão entre uma tradição helenística mais teórica e abstrata e uma geografia romana mais prática e organizacional é, em certa medida, ilusória, especialmente porque as duas tradições se encontraram e se fundiram a partir do século II a.C. Outros centros de erudição do mundo helenístico estavam então começando a desafiar a preeminência cultural de Alexandria. Por volta de 150 a.C. a dinastia atálida, intimamente ligada à ascensão de Roma e com capital em Pérgamo, fundou uma biblioteca que perdia apenas para sua rival ptolomaica, dirigida pelo renomado filósofo e geógrafo Crates de Malos. Estrabão conta- nos que Crates construiu um globo terrestre (desde então perdido) com quatro continentes simétricos habitados, separados por uma enorme cruz de oceano que ia de leste a oeste ao longo do equador e de norte a sul através do Atlântico. O hemisfério norte representava o oikoumené, mas também os perioikoi (“habitantes próximos”) a oeste, com o antoikoi (“habitantes opostos”) e antipodes (“aqueles com o pé oposto”) no hemisfério sul.39 O globo de Crates era uma combinação fascinante de tradições estabelecidas da geometria grega com a etnografia em desenvolvimento da República Romana, formalizando a geografia dos antipodes e antecipando viagens renascentistas posteriores para descobrir a “quarta parte” do mundo. Mas nem todo mundo aceitava Eratóstenes. O astrônomo Hiparco de Niceia (c.190-120 a.C.) escreveu uma série de tratados em Rodes, entre eles três livros intitulados Contra Eratóstenes, nos quais criticava o uso feito por seu predecessor de observações astronômicas ao desenhar mapas. Estrabão conta-nos que “Hiparco mostra que é impossível para qualquer homem, seja leigo ou erudito, alcançar o conhecimento necessário de geografia sem uma determinação dos corpos celestes e dos eclipses que foram observados”.40 As detalhadas observações astronômicas de Hiparco de mais de 850 estrelas fizeram com que ele pudesse apontar as imprecisões dos cálculos de latitude de Eratóstenes, bem como reconhecer os problemas da medição de distâncias de leste a oeste – linhas de longitude – que não fosse feita mediante precisas observações comparativas de eclipses do sol e da lua. Trata-se de um problema que só seria resolvido satisfatoriamente no século XVIII, por meio do cronômetro e da medição precisa de tempo marítimo, mas Hiparco ofereceu seus cálculos rudimentares de latitude e longitude nas primeiras tabelas astronômicas conhecidas. Aqueles que contestavam Eratóstenes nem sempre estavam certos. Um dos geógrafos revisionistas mais influentes foi o matemático, filósofo e historiador sírio Posidônio (c.135-50 a.C.). Dirigente de uma escola em Rodes, foi amigo de romanos ilustres como Pompeu e Cícero e escreveu vários tratados (todos perdidos) que aperfeiçoavam e corrigiam diversos elementos da geografia helenística. Ele propôs sete zonas climáticas ao redor da Terra, em vez das cinco de Aristóteles, baseado em observações astronômicas e etnográficas que incluíam algumas informações mais detalhadas sobre os habitantes de Espanha, França e Alemanha, extraídas das recentes conquistas romanas dessas regiões. De forma mais controvertida, Posidônio questionava o método de Eratóstenes para calcular a circunferência da Terra. A partir de Rodes, sua cidade adotiva, ele sustentava que ela estava no mesmo meridiano de Alexandria, e a uma distância de apenas 3.750 estádios (uma subestimação grave, qualquer que seja seu valor de um stadion). Ele observou então a altura de Canopus, na constelação de Carina, e alegou que ela estava exatamente sobre o horizonte em Rodes, mas subia 7 graus e meio ou 1⁄48 de um círculo em Alexandria. Multiplicando a cifra de 3.750 estádios por 48, Posidônio estimou a circunferência da Terra em 180 mil estádios. Infelizmente, sua estimativa do ângulo de inclinação entre os dois lugares estava errada, assim como seu cálculo da distância entre Rodes e Alexandria. Seus cálculos forneciam uma subestimação grosseira do tamanho da Terra, mas se mostrariam notavelmente duradouros. Historicamente, Posidônio representa o momento em que as tradições de mapeamento helenística e romana se uniram. Foi um desenvolvimento que atingiu o clímax na Geografia de Estrabão, obra escrita entre os anos 7 e 18 d.C. Os dezessete livros dessa obra, cuja maioria ainda sobrevive, resumem o estado ambíguo da geografia e da cartografia antes de Ptolomeu, quando o Império Romano passou a dominar o Mediterrâneo e o mundo helenístico entrou em seu longo declínio. Estrabão, nativo da província romana do Ponto (na atual Turquia), foi influenciado intelectualmente pelo helenismo, mas moldado politicamente pelo imperialismo romano. Embora seguisse geralmente os cálculos de Eratóstenes, reduziu o tamanho do oikoumené, dando-lhe uma extensão latitudinal de menos de 30 mil estádios e uma largura longitudinal de 70 mil estádios. Ele contornou o problema de projetar a Terra em uma superfície plana recomendando a criação de “um grande globo” de, pelo menos, três metros de diâmetro. Se isso também se mostrasse impossível, ele aceitava desenhar um mapa plano com uma grade retangular de paralelos e meridianos, alegando despreocupadamente que “fará somente província em longitude e latitude, a fim de computar os fenômenos nessas cidades. Mas uma vez que a definição dessa informação é pertinente a um projeto cartográfico separado, vamos apresentá-la por si mesma, seguindo as pesquisas daqueles que mais elaboraram esse tema, registrando o número de graus que cada cidade está distante do equador ao longo do meridiano descrito por ele, e quantos graus esse meridiano está a leste ou a oeste do meridiano descrito por Alexandria ao longo do equador, porque foi para esse meridiano que estabelecemos os tempos correspondentes às posições [dos corpos celestes].46 O Almagesto foi provavelmente escrito pouco depois de 147 d.C. A necessidade de um “projeto cartográfico separado” baseado nas observações astronômicas registradas no Almagesto foi o impulso para o texto subsequente de Ptolomeu, a Geografia: uma exposição, em forma de tabelas complementares ao trabalho maior astronômico, que forneceria as coordenadas de cidades-chave. Após a conclusão do Almagesto, e depois de escrever tratados sobre astrologia, óptica e mecânica, Ptolomeu completou os oito livros dessa segunda grande obra. O texto final trazia substancialmente mais do que a prometida tabela das principais coordenadas geográficas. Ptolomeu optou por não coletar dados pessoalmente ou por meio de agentes, mas coligir e comparar todos os textos disponíveis em Alexandria. Ele ressaltou a importância dos relatos de viajantes, mas alertou sobre sua falta de confiabilidade. A Geografia reconhecia a necessidade de “seguir, em geral, os últimos relatos que possuímos” de preeminentes geógrafos, bem como historiadores. Entre eles, estavam fontes etimológicas e históricas – autores romanos como Tácito e sua descrição do norte da Europa nos Anais (c.109 d.C.) e periploi de origem incerta, como o anônimo Périplo do mar da Eritreia (c.século I d.C.), um guia de comerciante para lugares no mar Vermelho e no oceano Índico. O autor mais importante citado na Geografia era Marino de Tiro, cujo trabalho se perdeu desde então, mas que, de acordo com Ptolomeu, “parece ser o último [autor] em nosso tempo a ter encarado esse tema”.47 O primeiro livro definia o objeto da geografia e como desenhar um mapa do mundo habitado. Os livros 2-7 apresentavam a prometida tabela de coordenadas geográficas, mas agora ampliada para incluir 8 mil cidades e lugares, todos listados de acordo com sua latitude e longitude, a partir do oeste, com Irlanda e Grã-Bretanha, indo depois para o leste, passando por Alemanha, Itália, Grécia, norte da África, Ásia Menor e Pérsia, e terminando na Índia. O oitavo livro sugeria como dividir o oikoumené em 26 mapas regionais: dez da Europa, quatro da África (ainda chamada de “Líbia”) e doze da Ásia, uma ordem que seria reproduzida nas primeiras cópias bizantinas de seu livro ilustrado com mapas e na maioria dos atlas mundiais subsequentes. A riqueza de informações geográficas contida nas tabelas de Ptolomeu incluía não somente a tradição erudita de investigação geográfica, mas também cálculos astronômicos e o testemunho escrito de viajantes. Desde o início da Geografia, Ptolomeu deixa muito claro que “o primeiro passo de um processo desse tipo é a pesquisa sistemática, reunir o máximo de conhecimento a partir dos relatos de pessoas com formação científica que percorreram cada um dos países; e que o inquérito e o relatório são em parte uma questão de levantamento e em parte de observação astronômica”. Essa “pesquisa sistemática” só foi possível graças à consulta das Pinakes (tábuas) da biblioteca de Alexandria, o primeiro catálogo de biblioteca conhecido indexado de acordo com o assunto, autor e título, criado por Calímaco de Cirene, c.250 a.C. A Geografia era um imenso banco de dados, compilados pelo primeiro geógrafo de gabinete, uma “mente imóvel” que funcionava em um centro fixo,48 processando diversos dados geográficos em um vasto arquivo do mundo. Para Ptolomeu, não havia espaço para cosmogonias especulativas sobre as origens do universo, ou tentativas de estabelecer as fronteiras geográficas e políticas indeterminadas do oikoumené. A declaração de abertura da Geografia dava o tom, com sua definição duradoura da geografia como “uma imitação por meio do desenho de toda a parte conhecida do mundo, juntamente com as coisas que estão, em termos gerais, relacionadas a ele”. Ptolomeu considerava a geografia uma representação gráfica abrangente do mundo conhecido (mas não, devemos observar, de toda a Terra), em contraste com o que ele chamou, com um aceno para a preocupação romana com agrimensura, “corografia”, ou mapeamento regional. Enquanto a corografia requer habilidade no “desenho da paisagem”, Ptolomeu dizia que o mapeamento global “não exige isso de forma alguma, uma vez que permite que se mostrem as posições e configurações gerais [de aspectos] puramente por meio de linhas e rótulos”, um processo geométrico em que o método matemático “assume precedência absoluta”.49 Usando uma metáfora corporal esclarecedora para contrastar as duas abordagens geográficas, Ptolomeu acreditava que a corografia fornece “uma impressão de uma parte, como quando se faz uma imagem de apenas uma orelha ou um olho; mas o objetivo da cartografia do mundo é uma visão geral, análoga a fazer um retrato de toda a cabeça”. Tendo estabelecido sua metodologia, Ptolomeu trata então de discutir o tamanho da Terra e suas dimensões de latitude e longitude por meio de uma crítica detalhada dos métodos de Marino de Tiro, antes de fornecer suas próprias projeções geográficas para desenhar mapas mundiais. Um dos aspectos mais significativos dos cálculos de Ptolomeu diz respeito ao tamanho de toda a Terra em relação ao seu domínio habitado, o oikoumené. Revendo os cálculos de Eratóstenes e Hiparco, Ptolomeu dividiu a circunferência do globo em 360 graus (com base no sistema sexagesimal babilônico, em que tudo era medido em unidades de sessenta) e estimou o comprimento de cada grau em quinhentos estádios. Isto lhe deu a mesma circunferência da Terra de Posidônio: 180 mil estádios. Era certamente pequeno demais, talvez cerca de 10 mil quilômetros, ou mais de 18% da circunferência real da Terra, dependendo do comprimento do stadion usado. Mas se Ptolomeu acreditava que a Terra era menor do que predecessores como Eratóstenes imaginavam, ele argumentava que sua parte habitada era muito maior do que muitos acreditavam: seu oikoumené estendia-se de oeste para leste através de um arco de pouco mais de 177 graus, a partir de um meridiano que atravessava as ilhas Afortunadas (Canárias) até Cattigara (acredita-se que em algum lugar perto da atual Hanói, no Vietnã), uma distância estimada em 72 mil estádios. Sua largura era estimada em pouco mais da metade do comprimento, cobrindo apenas 40 mil estádios, que iam de Thule, situada a 63° N, até a região de “Agisymba” (atual Chade), 16° S, uma extensão latitudinal, em suas medições, de pouco mais de 79 graus.50 Essas medidas levam naturalmente à questão de como Ptolomeu chegou aos seus cálculos de latitude e longitude. Ele calculou paralelos de latitude de acordo com as observações astronômicas do dia mais longo do ano em qualquer lugar dado. Começando do grau zero no equador com um dia mais longo de doze horas, Ptolomeu utilizou aumentos de quarto de hora para cada paralelo até alcançar o paralelo que representa o dia mais longo de quinze horas e meia, altura em que mudou para aumentos de meia hora, até o limite do oikoumené, que estimou como estando ao longo do paralelo de Thule, com um dia mais longo de vinte horas. Recorrendo a esse método de medição, bem como a cálculos de Hiparco baseados em observações astronômicas da altitude do sol no solstício, Ptolomeu elaborou suas tabelas de latitude, embora a relativa simplicidade de seu método de observação fizesse com que muitas delas estivessem incorretas (inclusive a de Alexandria). O cálculo da longitude mostrou-se ainda mais difícil. Ptolomeu acreditava que a única maneira de determinar a longitude era medir a plana na forma de um paralelogramo retangular”, dentro do qual se marca uma série de pontos, linhas e arcos com o uso de uma régua giratória. Tendo estabelecido o esquema geométrico básico, o cartógrafo então toma a régua que mede o raio de um círculo centrado em um ponto imaginário além do polo Norte. A régua é então marcada com gradações de latitude do equador até o paralelo de Thule. Prendendo a régua no ponto imaginário, de modo que ela possa girar livremente ao longo de uma linha equatorial dividida em 180 graus de intervalos de uma hora, seria possível localizar e marcar qualquer lugar em um mapa em branco referindo-se às tabelas de Ptolomeu de coordenadas de latitude e longitude. A régua era simplesmente girada para a longitude necessária listada ao longo da linha equatorial e, de acordo com Ptolomeu, “usando-se as divisões da régua, chegamos à posição indicada em latitude, conforme exigido em cada caso”.53 Os contornos geográficos num mapa desse tipo eram relativamente insignificantes: o que o caracterizava não eram contornos, mas uma série de pontos estabelecidos por suas coordenadas de latitude e longitude. Um ponto é, evidentemente, o primeiro princípio definidor da geometria euclidiana: ele é “aquilo que não tem parte”, é indivisível, sem comprimento ou largura. Para criar uma projeção precisa de mapa, Ptolomeu voltou direto aos fundamentos da geometria euclidiana. 3. Diagramas da primeira e da segunda projeção de Ptolomeu. Essa primeira projeção ainda tinha suas desvantagens: em um globo, as linhas paralelas diminuem ao sul do equador, mas se desenhadas na projeção de Ptolomeu, seu comprimento aumentava. Ptolomeu foi efetivamente contra a consistência de sua própria projeção e resolveu esse problema com meridianos formando ângulos agudos no equador. Isto dava à projeção a aparência de uma clâmide, mas estava muito longe de ser ideal. Ptolomeu considerou esse apenas um inconveniente menor, pois seu oikoumené se estendia somente até 16° S do equador, mas isso causaria problemas sérios em séculos posteriores, quando os viajantes começaram a circum-navegar a África. Não obstante, a primeira projeção ainda apresentava meridianos retos, os quais, como Ptolomeu reconheceu desde o início, só correspondiam a uma perspectiva parcial do globo visto do espaço; tal como os paralelos, os meridianos traçam um arco circular ao redor do globo, e sua realidade geométrica deveria manter essa curvatura sobre um mapa plano. Ele propôs então uma segunda projeção: “Poderíamos fazer um mapa do oikoumené sobre a superfície plana ainda mais semelhante e igualmente proporcional [ao globo] se tomássemos os meridianos, também, à semelhança das linhas meridianas do globo.”54 Essa projeção, segundo ele, era “superior à anterior” porque paralelos e meridianos estavam representados como arcos em curva, e porque praticamente todos os seus paralelos mantinham suas proporções corretas (ao contrário da primeira projeção, onde só se conseguia isso para os paralelos que passavam pelo equador e por Thule). A trigonometria envolvida era mais complicada do que na primeira projeção, e Ptolomeu ainda tinha problemas para manter a proporcionalidade uniforme ao longo de seu meridiano central. Ele também reconhecia que era muito mais difícil construir um mapa baseado na segunda projeção, pois os meridianos curvos não poderiam ser desenhados com a ajuda de uma régua giratória. Depois das descrições exaustivas de ambas as projeções, Ptolomeu concluía o primeiro livro da Geografia com algumas observações extremamente otimistas. Apesar de preferir a segunda projeção, ele avaliava que ela “poderia ser inferior à outra no que dizia respeito à facilidade de fazer o mapa”, e aconselhava os futuros geógrafos “a agarrarem-se às descrições de ambos os métodos, para o bem daqueles que serão atraídos para o mais acessível deles porque é fácil”. Seu conselho influenciaria a reação dos estudiosos e cartógrafos ao renascimento da Geografia, que ocorreu a partir do século XIII. Os predecessores de Ptolomeu usavam a geografia para tentar entender a cosmogonia, a explicação da criação de tudo. Em sua Geografia, Ptolomeu afastou-se dessa busca. Não há mitos e poucos limites políticos ou etnografias estão presentes em seu livro. Em vez disso, ele recria as origens de sua matéria em dois princípios duradouros da erudição alexandrina: os princípios da geometria de Euclides e o método bibliográfico de classificação de Calímaco. A inovação de Ptolomeu foi estabelecer uma metodologia repetível para mapear o mundo conhecido de acordo com domínio sobre o Egito desapareceu, submersa sob as águas do porto de Alexandria. A biblioteca sumiu há muito tempo, a maioria de seus livros foi saqueada e destruída. Sua perda tem assombrado a imaginação ocidental desde então e historiadores de diferentes quadrantes ideológicos ao longo dos tempos têm culpado todo mundo, de romanos e cristãos a muçulmanos, por sua destruição. Ela permanece como uma memória romântica de infinitas possibilidades, uma fonte de especulação e mito, um “poderia ter sido” no desenvolvimento da erudição e da civilização, e uma lição sobre os impulsos tanto criativos como destrutivos que estão no cerne de todos os impérios.60 Mas algumas das “obras” sobreviveram e migraram, entre elas, a Geografia de Ptolomeu. Embora pareça notavelmente intocado pelos acontecimentos que o cercavam, o texto de Ptolomeu traduz um desejo de transmitir suas ideias de uma forma mais duradoura do que os mapas ou monumentos. A Geografia foi o primeiro livro que, por acidente ou projeto, mostrou o potencial da transmissão de dados geográficos digitalmente. Em vez de reproduzir elementos analógicos gráficos não confiáveis para descrever a informação geográfica, os exemplares sobreviventes da Geografia utilizaram os sinais descontínuos e separados de números e formas – das coordenadas de lugares de todo o mundo habitado à geometria necessária para desenhar as projeções de Ptolomeu – para transmitir seus métodos. Essa primeira geografia digital rudimentar criou um mundo baseado em uma série de pontos, linhas e arcos de interconexão fundamentados na tradição grega de observação astronômica e especulação matemática, que se estende de Eratóstenes e Euclides até Anaximandro. Ptolomeu lançou uma rede sobre todo o mundo conhecido, definido pelos princípios abstratos duradouros da geometria e da astronomia e pela medição da latitude e longitude. Um de seus maiores triunfos foi fazer todas as gerações posteriores “verem” uma série de linhas geométricas cruzando o globo – os polos, o equador e os trópicos – como se fossem reais, em vez de projeções geométricas feitas pelo homem sobre a superfície da Terra. Os métodos científicos de Ptolomeu procuravam tornar o mundo compreensível através da imposição da ordem geométrica sobre a variedade caótica do mundo “lá fora”, ao mesmo tempo em que retinham um sentimento de admiração por sua infinita variedade. Sua visão, consagrada em uma das primeiras declarações da Geografia sobre a mensuração geométrica da Terra, inspiraria gerações de geógrafos para além da Renascença, até a era dos voos espaciais tripulados: Essas coisas pertencem à mais sublime e mais bela das buscas intelectuais, ou seja, expor à compreensão humana através da matemática tanto o céu em sua natureza física, uma vez que pode ser visto em sua revolução ao nosso redor, como a natureza da Terra através de um retrato, uma vez que a Terra real, sendo enorme e não nos rodeando, não pode ser inspecionada por alguma pessoa, seja como um todo ou parte por parte.61 a A tradução dos trechos do Fédon é de Carlos Alberto Nunes, publicada pela Editora da Universidade do Pará. (N.T.) 2. Intercâmbio Al-Idrisi, 1154 d.C. Palermo, Sicília, fevereiro de 1154 Em 27 de fevereiro de 1154, Rogério II, “rei da Sicília, do ducado da Apúlia e do principado de Cápua”, morreu aos 58 anos em seu Palazzo Reale, situado no coração de sua capital, Palermo. Foi enterrado com a devida cerimônia na nave sul da catedral de Palermo, onde, 24 anos antes, fora coroado rei, no Natal de 1130. Sua morte pôs fim a um reinado extraordinário na ilha que, aos olhos modernos, representa um dos grandes momentos da convivencia medieval, o termo espanhol para a coexistência pacífica de católicos, muçulmanos e judeus em um único reino. Descendentes da dinastia Hauteville, originária da península de Cotentin, na Normandia, Rogério e seus antepassados comandaram uma série de conquistas espetaculares na Europa, na África e no Oriente Médio no final do século XI. Enquanto o Império Bizantino decaía diante dos primeiros desafios persas, e depois árabes muçulmanos, à sua autoridade, os normandos exploravam a desordem internacional da cristandade medieval e logo impuseram seu domínio sobre partes do sul da Itália, Sicília, Malta e norte da África. Eles chegaram a conquistar a Inglaterra e até criaram um principado em Antioquia (com partes das atuais Turquia e Síria) antes da Primeira Cruzada, de 1095.1 Em cada fase de suas conquistas militares, os normandos assimilavam as culturas conquistadas (com graus variados de sucesso). Em 1072, o pai de Rogério, Rogério Guiscard, capturou Palermo e nomeou a si mesmo conde da Sicília, pondo fim a mais de cem anos de controle árabe da ilha. Antes do domínio árabe, a Sicília fora governada primeiro pelos gregos, depois pelos romanos e, por fim, pelos bizantinos. Foi uma herança que deixou os normandos no controle de uma das ilhas com maior diversidade cultural e de importância estratégica em todo o Mediterrâneo. Em 1130, quando foi coroado rei, Rogério II passou a desenvolver uma política de acomodação política e tolerância religiosa para com muçulmanos e judeus que Tal como acontece com a Geografia de Ptolomeu, trabalhamos com um livro e seus mapas que foram produzidos centenas de anos após sua criação original. Em uma das mais bem-preservadas cópias manuscritas do Entretenimento, guardada na Coleção Pococke da Bodleian Library e datada de 1553, há um mapa do mundo circular, lindo em sua simplicidade, que parece mostrar como al-Idrisi representava o mundo em meados do século XII. O aspecto mais surpreendente desse mapa é que ele é orientado com o sul na parte superior. Etimologicamente, “orientação” deriva da raiz latina oriens, que se refere ao leste, ou à direção do sol nascente. Praticamente todas as culturas antigas registraram sua capacidade de orientar-se de acordo com um eixo leste-oeste baseado em observações do sol crescente (oriental) e poente (ocidental), e um eixo norte-sul medido de acordo com a posição da Estrela Polar ou do sol ao meio-dia.4 Essa orientação era tão simbólica e sagrada quanto direcional. Em culturas politeístas adoradoras do sol, o leste (oriens) era reverenciado como a direção da renovação e da vida, seguido de perto pelo sul, enquanto que o oeste era, compreensivelmente, associado ao declínio e à morte, e o norte, à escuridão e ao mal. A tradição judaico-cristã desenvolveu essas associações, orientando os lugares de culto, assim como os mapas, para o oriente, reconhecido em última instância como a localização do paraíso terrestre. Em contraste, o oeste era associado à mortalidade e à direção encarada por Cristo na cruz. O norte tornou-se um sinal do mal e da influência satânica, e muitas vezes era a direção na qual as cabeças de excomungados e não batizados ficavam quando eram enterrados.5 Como mostra o capítulo seguinte, praticamente todos os mapas do mundo cristão (mappaemundi) puseram o leste na parte superior de seus mapas até o século XV. O islã e cartógrafos como al-Idrisi herdaram uma reverência semelhante pelo oriente, embora desenvolvessem um interesse ainda mais forte pelas direções cardeais graças à ordem do Alcorão aos seus fiéis para orar na direção sagrada de Meca, independentemente da localização deles no mundo; a busca pela direção (conhecida como qibla, “direção sagrada”) e a distância de Meca e da Caaba inspirou alguns dos mais complicados e elaborados mapas e cálculos diagramáticos do período medieval.6 A maioria das comunidades que se converteram ao islamismo em sua fase inicial de expansão internacional rápida, nos séculos VII e VIII, vivia diretamente ao norte de Meca, levando-os a considerar a qibla como o sul. Em consequência, a maioria dos mapas do mundo muçulmanos, inclusive o de al-Idrisi, estava orientada com o sul na parte superior. Isso também estabelecia uma clara continuidade com a tradição das comunidades zoroastristas recentemente conquistadas na Pérsia, que consideravam o sul sagrado. Praticamente não existem tradições culturais que ponham o oeste no topo do mapa, pois ele é quase universalmente associado ao desaparecimento do sol, um símbolo de trevas e morte, exemplificado na expressão da gíria inglesa “go west”, que significa morrer. A direção cardeal final, o norte, situada no alto do mapa babilônico do mundo, tem uma linhagem ainda mais complicada. Na China, concedia-se primazia ao norte por ser a direção sagrada. Do outro lado das vastas planícies do império, o sul trazia luz solar e ventos quentes, e assim era a direção na qual o imperador olhava para seus súditos. Quando olhavam para o imperador de uma posição de sujeição, todos encaravam o norte. Etimologicamente, o chinês “costas” é sinônimo de “norte”, porque as costas do imperador davam para essa direção. Os mapas do mundo chineses estavam orientados da mesma maneira, uma das muitas razões de seus mapas parecerem, à primeira vista, extremamente modernos. As crenças gnósticas e dualistas de várias comunidades antigas da Mesopotâmia também celebravam o norte como a direção sagrada, considerando a Estrela Polar uma fonte de luz e revelação, e é possivelmente por esse motivo que o mapa babilônico do mundo é orientado para o norte. No mapa do mundo de al-Idrisi, as quatro direções cardeais estão marcadas fora da moldura do mapa, a qual, inspirada nos versos do Alcorão, é composta por uma auréola dourada. O próprio mapa mostra um mundo em dívida com o oikoumené grego. O Mediterrâneo e o norte da África são representados em detalhes, assim como uma fantástica cadeia de montanhas em forma de água-viva com seus afluentes, na África central. Chamada de “As Montanhas da Lua”, acreditava-se que a cadeia era a fonte do Nilo. Egito, Índia, Tibete e China estão todos rotulados em árabe, assim como o mar Cáspio, Marrocos, Espanha, Itália e até a Inglaterra. O mapa conserva um entendimento classicamente vago do sul da África e do sudeste da Ásia, embora se afaste de Ptolomeu ao mostrar uma África circum-navegável, com o globo inteiro cercado por um mar circundante. O aspecto mais peculiar desse mapa do mundo talvez seja o seu desacordo com o livro de que faz parte. Em contraste com a geografia humana fervilhante descrita em outros mapas e nos textos do Entretenimento, o mapa do mundo é uma representação puramente física da geografia. Não há cidades nem praticamente vestígios discerníveis do impacto da humanidade sobre a superfície da Terra (com exceção da lendária barreira erguida por Alexandre, o Grande, em montanhas do Cáucaso para manter afastados os monstros míticos Gog e Magog, representados no canto esquerdo inferior do mapa). Essa aparente contradição entre a descrição evocativa feita no Entretenimento de regiões da Terra e seu mapa do mundo geométrico só pode ser entendida se voltarmos para a explicação do que Rogério queria quando empregou al- Idrisi: os frutos da tradição precedente de trezentos anos de cartografia islâmica. A EXPRESSÃO “MAPAS ISLÂMICOS” constitui um certo equívoco. As tradições geográficas e práticas cartográficas que gradualmente se fundiram após a ascensão do islamismo na península Arábica no final do século VII eram regional, política e etnicamente diversificadas demais para merecerem ser descritas como um corpo unificado de cartografia (embora o mesmo se possa dizer até certo ponto dos mapas “gregos” ou “cristãos”). Nenhuma das primeiras línguas islâmicas possuía um substantivo definitivo para definir “mapa”. Tal como no grego e no latim, vários termos eram usados para descrever o que hoje se chamaria de mapa. Entre eles estavam surah (que significa “forma” ou “figura”), rasm ou tarsim (“desenho”) e naqsh ou naqshah (pintura).7 Como a Bíblia, o Alcorão oferecia pouca ajuda direta aos cartógrafos. Ele não tem uma cosmologia definível com um relato claro do tamanho e da forma da Terra dentro de um universo maior, apesar de oferecer uma série de alusões intrigantes. O céu é descrito como um dossel espalhado sobre a Terra, que é mantida no lugar por montanhas e iluminada pelo sol e pela lua. Deus “criou sete firmamentos e da Terra um número similar”, embora as dimensões específicas desses mundos não sejam explicadas.8 As referências a uma Terra aparentemente em forma de disco rodeado por água e a descrição dos mares Mediterrâneo e Árabe separados por uma barreira parecem valer-se da antiga cosmologia babilônica, embora alusões ao “sol pondo-se em uma fonte de água escura” impliquem uma ideia do Atlântico, noção herdada dos gregos.9 É somente quando o califado abássida se torna o centro do Império Islâmico em Bagdá, no final do século VIII, que se pode detectar uma prática reconhecidamente islâmica de cartografia. A fundação da capital imperial de Bagdá, no ano de 750, pelo segundo califa abássida al-Mansur representou a culminação bem-sucedida de uma luta encarniçada com o seu interesse principal estava “nas latitudes dos sete climas, começando a enumeração a partir do equador terrestre em direção ao norte”.14 Como em Ptolomeu, os climas de Suhrab eram determinados por meio de tabelas anexas da máxima luz do dia. O resultado é um diagrama que representa os sete climas que vão de 20° S do equador (mostrado à esquerda) a 80° N (à direita), com o norte em frente ao leitor (na parte inferior da figura). Isso pressupõe que Suhrab traçou seu mapa do mundo com o sul na parte superior. As coordenadas de Suhrab são claramente ptolomaicas (embora ele expanda o alcance latitudinal do mundo habitado de Ptolomeu), mas sua projeção geral sobre um retângulo com linhas de interseção em ângulo reto está mais próxima da de Marino. Suhrab também reproduziu substancialmente as coordenadas de Kitab surat al-ard (“Imagem da Terra”), escrito por al-Khwarazmi (m.847), membro da “Casa da Sabedoria” de al-Mamun, outra indicação de que o mapa mundial do califa pode ter sido retangular, bem como orientado com o sul na parte superior, de acordo com as crenças muçulmanas predominantes. O diagrama de Suhrab proporciona um vislumbre sobre a possível forma e orientação do mapa de al-Mamun, embora os cálculos aperfeiçoados do tamanho da Terra realizados posteriormente pelos estudiosos do califa indiquem que ainda se faziam progressos no mapeamento do planeta. Em resposta ao desejo do califa “de saber o tamanho da Terra”,15 enviaram-se agrimensores para o deserto sírio a fim de medir o ângulo de elevação do sol em relação às cidades de Palmira e Raqqa – uma repetição da famosa tentativa de Eratóstenes de medir a circunferência da Terra. A maioria deles concluiu que o comprimento de um grau de longitude era de 56⅔ milhas árabes. Com base em cálculos atuais do comprimento de uma milha árabe, que seria equivalente a de uma milha moderna, essa estimativa foi convertida em uma circunferência global de pouco mais de 40 mil quilômetros (25 mil milhas). Se a equivalência é correta, isso significa que os agrimensores de al-Mamun chegaram a menos de cem quilômetros da circunferência correta da Terra medida no equador. O resultado é ainda mais surpreendente quando contrastado com a enorme subestimação de Ptolomeu da circunferência da Terra, que para ele teria um pouco menos de 29 mil quilômetros (18 mil milhas). Todos os indícios que subsistem da “Casa da Sabedoria” sugerem uma imagem do mundo em evolução fortemente devedora do conhecimento grego, banhada por tradições indo-persas que produziram um mapa baseado em divisões climáticas orientado com o sul na parte superior. Embora estudiosos como al-Khwarazmi tenham se apropriado de Ptolomeu para estabelecer um gênero de mapa do mundo usando o termo genérico surat al-ard, a Geografia foi traduzida apenas parcialmente (e muitas vezes com erros) do grego para o árabe. Al-Khwarazmi e seus seguidores concentraram-se quase exclusivamente nas tabelas de latitudes e longitudes de Ptolomeu, corrigindo muitos de seus erros e omissões. Eles proporcionaram uma medição mais precisa do Mediterrâneo e também representaram o oceano Índico fluindo para o que hoje seria visto como o oceano Pacífico, não mais cercado de terra. Mas não fizeram uma conexão explícita com o método de Ptolomeu de projetar a Terra em uma retícula de longitude e latitude, e o diagrama de Suhrab apresentava não mais do que uma versão revista da projeção retangular de Marino, que tinha sido tão fortemente criticada por Ptolomeu. Tampouco a divisão da Terra em continentes atraiu particularmente os primeiros estudiosos muçulmanos. Em vez disso, o califado islâmico levou a cartografia para uma direção diferente. Um dos primeiros indícios dessa mudança cartográfica aparece nas obras de Ibn Khurradadhbih (c.820-911), o diretor dos correios e da espionagem em Bagdá e Samarra. Por volta de 846, ele produziu um dos primeiros livros conhecidos com o título de Kitab al-masalik wa-al-mamalik (“Livro de rotas e províncias”). Embora reconhecesse abertamente a influência de Ptolomeu e não contivesse mapas, seu livro marcava uma mudança na consciência geográfica islâmica em relação à aparência do mundo conhecido. Em contraste com a tradição surat al-ard, o Kitab al- masalik reflete o envolvimento de Ibn Khurradadhbih no movimento do comércio, dos peregrinos e da correspondência postal em todas as províncias do dar al-Islam e o crescimento do império sob uma autoridade centralizada. O livro mostra pouco interesse pelas regiões de soberania não islâmica, conhecidas como dar al-harb, e praticamente nenhum vestígio do oikoumené grego. Em vez disso, concentra-se em rotas postais e de peregrinação, bem como na medição de distâncias em todo o mundo islâmico. O caminho marítimo para a China está descrito, mas Ibn Khurradadhbih está interessado principalmente em lugares que tenham uma relação direta com o mundo islâmico.16 No final do século IX, o islã já era puxado em duas direções geopolíticas diferentes. Ao mesmo tempo em que se centralizava sob o califado abássida em Bagdá, a rápida expansão do islã em todo o mundo habitado levava inevitavelmente a divisão e separação. O conflito mais óbvio ocorreu com a ascensão do califado omíada em al-Andalus, mas dinastias do século X como os fatímidas, os turcos seljúcidas e os almorávidas berberes criaram todas seus próprios Estados hereditários, que começaram a desafiar a supremacia abássida. No momento em que al-Idrisi estava compilando seu Entretenimento, o dar al-Islam era composto por pelo menos quinze Estados separados.17 Embora cada um fosse nominalmente muçulmano, muitos eram abertamente hostis ou indiferentes ao domínio político ou teológico de Bagdá. Essa dispersão da autoridade centralizada teve consequências óbvias para a cartografia, a mais importante das quais foi uma erosão ainda maior das tradições gregas e o aumento do interesse pela descrição de rotas e províncias recomendada por Ibn Khurradadhbih, que agora se tornava mais importante do que nunca para a compreensão de um mundo muçulmano cada vez mais difuso. O resultado foi um tipo visivelmente diferente de mapeamento do mundo, não mais centrado no califado abássida de Bagdá, mas que punha a península Arábica no centro do mundo, com Meca e a Caaba, o lugar mais sagrado da fé islâmica, em seu coração. Essa tradição de cartografia é normalmente chamada de Escola Balkhi de Geografia, nome de um erudito nascido no nordeste do Irã, Abu Zayd Ahmad ibn Sahl al-Balkhi (m.934). Pouco se sabe de sua vida e carreira, exceto que passou a maior parte de sua existência em Bagdá e escreveu um breve comentário sobre uma série de mapas, intitulado Suwar al-aqalim (ou “Retrato dos climas”), nenhum dos quais subsiste. Sua obra, no entanto, influenciou um grupo posterior de estudiosos que produziu mapas regionais e mundiais em que deixavam explícita sua dívida para com ele. A tradição Balkhi baseava-se no exemplo de Ibn Khurradadhbih de compilar itinerários geográficos detalhados, com a diferença crucial de que também acrescentava mapas. Um dos discípulos de al-Balkhi escreveu que seu mestre “pretendia em seu livro fazer principalmente a representação da Terra por meio de mapas”,18 e a importância desses mapas é que logo desenvolveram um formato que se parece tanto com um atlas moderno que um crítico disse que representavam um “islã-atlas”.19 Os seguidores de al- Balkhi produziram tratados que continham um mapa mundial, precedido por mapas do Mediterrâneo, do oceano Índico e do mar Cáspio, e depois dezessete mapas regionais do Império Islâmico, tal como era no século X. Os mapas regionais são retangulares, sem nenhuma projeção ou escala, embora indiquem as distâncias entre lugares, medidas em termos de mardalah, ou dia de viagem. Em contraste, os mapas do mundo são VIII e IX, quando foi a capital do califado omíada, Córdoba era uma das maiores cidades do mundo, com uma população estimada em mais de 300 mil habitantes. Exibia a terceira maior mesquita do mundo, fundada em 786, e tinha o que foi possivelmente a primeira universidade da Europa, que produziu alguns dos maiores intelectuais do mundo medieval, entre eles o filósofo muçulmano Ibn Rushd (Averróis) e o rabino, filósofo e médico Moisés ben Maimon (Maimônides).20 A cidade foi outro dos primeiros exemplos de convivencia, pois estudiosos muçulmanos, cristãos e judeus tiveram relativa liberdade para fazer de Córdoba a rival intelectual (embora não mais política) da Bagdá abássida. Segundo um comentarista islâmico da época, Córdoba tornou-se “a pátria da sabedoria, seu começo e seu fim; o coração da Terra, a fonte da ciência, a cúpula do islã, a sede do imã; o lar do raciocínio correto, o jardim dos frutos das ideias”.21 Trata-se de uma descrição compreensível: os omíadas sustentavam mais de quatrocentas mesquitas, novecentos banhos, 27 escolas livres e uma biblioteca real com 400 mil volumes que rivalizava com as grandes coleções de Bagdá e do Cairo. Além de ser um centro para o estudo e a prática da jurisprudência islâmica, a universidade e as escolas da cidade ensinavam ciências e uma variedade de outras disciplinas, que iam da medicina e da astronomia à poesia, à geografia e à filologia (incluindo uma próspera indústria de tradução de textos clássicos gregos para o árabe). Escrevendo mais de trinta anos depois, em seu Entretenimento, sobre a cidade onde foi educado, al-Idrisi a chamou de “a joia mais bonita de al- Andalus”.22 Mas, quando ele chegou lá, o califado era uma lembrança distante, tendo desmoronado em 1031 e dado lugar a uma série de pretendentes menores ao poder, até ser finalmente tomada em 1091 pelos almorávidas, uma dinastia berbere vista com profunda desconfiança pelos habitantes da cidade na época em que al-Idrisi começou seus estudos, mas que, no entanto, representava a única esperança de salvação diante da crescente ameaça da reconquista cristã que avançava para o sul. Ao mesmo tempo em que ele absorveu a erudição multicultural que a cidade tinha a oferecer, também aprendeu que a geografia política do mundo islâmico ao seu redor podia mudar rapidamente. A decisão de al-Idrisi de deixar Córdoba foi sábia. Pego entre seus ocupantes almorávidas e o avanço dos exércitos cristãos de Castela, o futuro da cidade devia parecer sombrio (e em 1236 ela seria tomada pelas forças de Castela). Na década de 1130, al-Idrisi já havia partido. Viajou pela Ásia Menor, França, Inglaterra, Marrocos e o restante de al-Andalus. Não subsistem registros da época para explicar os motivos de sua chegada à Sicília por volta de 1138. O interesse de Rogério por al-Idrisi talvez fosse motivado por considerações mais políticas do que intelectuais: durante seu reinado, o soberano normando anexou partes da costa norte-africana (inclusive Trípoli) e instalou governantes marionetes de ascendência islâmica; a possibilidade de usar um nobre ilustre muçulmano como al- Idrisi dessa forma pode ter lhe interessado.23 Com efeito, os Hauteville já tinham um histórico de abrigar seus parentes hamudidas: em 1058, quando Muhammad ibn Abd Allah, o último dos governantes hamudidas, fugiu de Málaga, foi recebido na Sicília pelo pai de Rogério, Rogério I, conde da Sicília.24 Escrevendo no século XIV, o estudioso damasceno al-Safadi (1297-1362) fez um relato dos motivos de Rogério para abrigar al-Idrisi: Rogério, rei dos francos e senhor da Sicília, adorava homens cultos de filosofia, e foi ele que mandou buscar al-Sharif al-Idrisi no norte da África. … Quando ele chegou, Rogério recebeu seu convidado cerimoniosamente, fazendo todos os esforços para render-lhe homenagem … Rogério o convidou a ficar com ele. Para persuadi-lo a aceitar, disse-lhe: “Você é da casa do califa, e se estivesse sob domínio muçulmano, seus senhores tentariam matá-lo, mas se ficar comigo, estará a salvo.” Depois que al-Idrisi aceitou o convite do rei, este concedeu-lhe uma renda tão grande a ponto de ser principesca. Al-Idrisi estava acostumado a ir até o rei em uma mula, e quando ele chegou, Rogério se levantou e foi ao seu encontro e, depois, os dois sentaram-se juntos.25 Este é o único relato que subsiste do primeiro encontro entre os dois homens, escrito quase duzentos anos após o evento. Está redigido na língua intemporal do patrono sábio e benévolo e seu súdito silencioso e grato. Mas também capta algo da habilidade perspicaz de Rogério de juntar política com erudição, e sua consciência de que a linhagem de al-Idrisi o tornava um alvo tanto para seus correligionários como para o rei. Ambos os homens haviam aprendido, por razões muito diferentes, a se acomodar aos costumes e rituais de outras culturas, em uma época que oficialmente desaprovava esse comportamento. Ambos eram estrangeiros numa terra estranha, a centenas de quilômetros de distância de suas regiões natais. E ambos estavam longe de ser ortodoxos na postura perante a religião. O governante que al-Idrisi encontrou em sua chegada a Palermo herdara uma posição ambivalente em relação a sua religião e um ceticismo saudável quanto às reivindicações políticas feitas em nome dela. Em meados do século XI, os normandos haviam tomado partes do sul da Itália e a Sicília do domínio bizantino, assumindo o controle de Calábria, Apúlia, Reggio e Brindisi, apesar da oposição contínua de praticamente todos os poderes da cristandade, que tinham interesses por esses territórios. O papado suspeitava compreensivelmente da dominação normanda dos estados ao sul de Roma, enquanto a dinastia Hohenstaufen, na Alemanha, que também reivindicava áreas da Itália, fazia objeções à invasão dos Hauteville de seu território. Até mesmo os imperadores bizantinos de Constantinopla reagiram furiosamente ao que consideravam usurpação dos Hauteville de seus direitos tradicionais à Sicília e chamavam Rogério de “tirano”.26 Apesar das forças enfileiradas contra ele, Rogério mostrou-se um adversário ardiloso. Em 1128, pouco antes de al-Idrisi chegar a Palermo, o papa Honório II recusou-se a sancionar as reivindicações de Rogério à Apúlia, e chegou mesmo a emitir uma bula de excomunhão e incentivar uma cruzada contra ele. Quando isso falhou, enfraquecendo a posição do papa, ele concordou relutantemente em endossar as reivindicações italianas de Rogério. Após a morte de Honório, em fevereiro de 1130, Rogério aproveitou a confusão que surgiu do subsequente cisma papal e apoiou Anacleto II contra seu rival, Inocêncio II. Na tentativa de garantir o apoio militar de Rogério, o politicamente enfraquecido Anacleto emitiu uma bula papal no final de 1130 que lhe conferia o título de rei da Sicília. No entanto, em 1138, o reino de Rogério mergulhou em mais uma crise. O papa Anacleto morreu e quem assumiu o papado foi Inocêncio II, com o apoio dos governantes germânicos, hostis ao reino siciliano de Rogério, que se viu diante da oposição implacável de outro papa. No ano seguinte, Inocêncio excomungou Rogério mais uma vez, mas num confronto militar posterior foi capturado pelas forças de Rogério. Ele teve de encarar a humilhação de aceitar a soberania do rei e retirar o apoio a qualquer contestação futura ao domínio dele sobre a Sicília.27 A oposição ao domínio de Rogério perdurou durante toda a década de 1140. Apesar de ter neutralizado a oposição papal, Rogério teve de enfrentar tentativas dos governantes bizantinos e germânicos para derrubá-lo, mas todas fracassaram. Então, quando o reino entrou em um dos seus poucos períodos relativamente estáveis de governo, o rei normando e seu súdito muçulmano começaram a trabalhar juntos no Entretenimento. Ao se instalar em Palermo, al-Idrisi encontrou uma ilha que lhe permitia, como muçulmano e erudito, recorrer a uma ampla variedade de tradições intelectuais. Desde os tempos de Roma, a Sicília tinha uma reputação de riqueza e prosperidade. Como a Alexandria de Ptolomeu, sua posição entre as diferentes culturas e tradições do Mediterrâneo assegurava riqueza comercial e importância política. A ilha era um ponto de parada para os Nos anos seguintes, os eruditos de Rogério recolheram informações meticulosamente. Onde havia acordo sobre pontos específicos, os resultados eram registrados em uma grande mesa de desenho, da qual um imenso mapa do mundo começou lentamente a surgir: Ele queria certificar-se da precisão do que essas pessoas haviam concordado quanto a longitudes e latitudes [e em medidas entre lugares]. Então, mandara trazer uma mesa de desenho [lauhal-tarsim] e traçara nela com instrumentos de ferro item por item o que havia sido mencionado nos livros acima citados, juntamente com a mais autêntica das decisões dos estudiosos.33 O primeiro resultado dessa labuta não foi um dicionário geográfico na tradição ptolomaica, mas um enorme mapa circular do mundo, feito de prata. Al-Idrisi nos conta que Rogério ordenou que fosse produzido um disco [da ira] em prata pura em grande tamanho e de 400 ratls romanos de peso, cada ratl de 112 dirhams, e quando estava pronto mandou gravar nele um mapa dos sete climas e suas terras e regiões, suas linhas costeiras e interiores, golfos e mares, cursos de água e locais de rios, suas partes habitadas e desabitadas, que [distâncias] havia entre cada localidade, fosse ao longo de estradas movimentadas ou em milhas determinadas ou medições autenticadas e portos conhecidos de acordo com a versão que aparecia na mesa de desenho.34 Esse extraordinário mapa do mundo em prata e a mesa de desenho geográfico não sobreviveram, mas al-Idrisi explica que, após a conclusão do mapa, Rogério encomendou “um livro explicando como chegaram àquela forma, acrescentando o que haviam deixado de mencionar quanto às condições das terras e dos países”. Esse livro descreveria “todas as coisas maravilhosas relativas a cada [país] e onde eles estavam em relação aos sete climas, bem como uma descrição dos povos e seus costumes e hábitos, aparência, roupas e linguagem. O livro se chamaria Nuzhat al-mushtaq fi khtiraq al-afaq. Isso tudo foi concluído no primeiro terço de janeiro, concordando com o mês de Shawwal no ano de 548 d.H.”.35 O livro concluído é o que resta das ambições geográficas de Rogério. Ao folheá-lo hoje, fica óbvio por que o rei queria a ajuda de al-Idrisi. Além de recorrer a fontes geográficas gregas e latinas, como Ptolomeu e Orósio, o livro incorpora a terceira tradição fundamental que al-Idrisi trouxe para o projeto: mais de trezentos anos de saber geográfico árabe. O Entretenimento representa a primeira tentativa séria de integrar as três tradições mediterrâneas clássicas de erudição grega, latina e árabe em um compêndio do mundo conhecido. Condizente com alguém não necessariamente formado em astronomia e cosmografia, al-Idrisi gastou pouco tempo na descrição das origens da Terra, além de afirmar que era esférica, com uma circunferência estimada em razoavelmente precisos 37 mil quilômetros, e que ela permanecia “estável no espaço como a gema de um ovo”. Pouco do que ele disse em seu prefácio era particularmente profundo ou inovador e mantinha-se próximo das autoridades gregas e islâmicas costumeiras; o que não tinha precedentes era seu método de organizar as diversas informações coletadas pelos colaboradores de Rogério. Baseando-se em Ptolomeu, al- Idrisi dividiu o resto de seu livro em sete climas longitudinais que iam de leste para oeste, mas orientou seu mapa com o sul na parte superior. O primeiro clima ia da África equatorial até a Coreia. “Este primeiro clima”, diz ele, “começa a oeste do mar Ocidental, chamado de mar das Sombras. É que para além dele ninguém sabe o que existe. Existem neste mar duas ilhas, chamadas de al-Khalidat (as ilhas Afortunadas), a partir das quais Ptolomeu começa a contar longitudes e latitudes.”36 O sétimo e último clima cobria as modernas Escandinávia e Sibéria. Sua inovação mais ousada foi subdividir então cada clima em dez seções, que se reunidas resultariam em uma grade do mundo composta de setenta áreas retangulares. Al-Idrisi nunca considerou unificar seus mapas desse modo – montado, o mapa seria simplesmente grande demais para ser de alguma utilidade, mesmo em uma situação cerimonial –, mas era uma nova maneira de executar uma descrição geográfica do mundo todo. No Entretenimento, cada um dos setenta mapas regionais vinha depois de descrições escritas das regiões enfocadas, possibilitando que o leitor visualizasse o território depois de ler sobre ele. No prefácio, al-Idrisi explica a motivação por trás de sua decisão de dividir o mundo desse modo, o que proporciona um dos mais detalhados relatos pré-modernos de como os mapas complementam e melhoram a descrição geográfica escrita: E nós incluímos em cada divisão o que lhe pertencia de cidades, distritos e regiões, para que quem olhasse pudesse observar o que normalmente estaria escondido de seus olhos, ou não chegaria normalmente a sua compreensão, ou não seria capaz de alcançar por causa da natureza impossível da rota e das diferenças de natureza dos povos. Desse modo, ele pode corrigir esta informação olhando para ela. Assim, o número total desses mapas seccionais é de setenta, sem contar os dois limites extremos em duas direções, sendo um deles o limite sul de habitação humana causado pelo calor excessivo e falta de água e o outro, o limite norte de habitação humana causado pelo excessivo frio. Esse relato demonstrava o poder do mapa para visualizar lugares que o observador jamais poderia imaginar visitar por causa das distâncias e perigos envolvidos. Mas al-Idrisi também reconhecia que seus mapas regionais tinham limites na informação fornecida. Depois de reiterar a importância de descrever a geografia física, ele diz: Agora está claro que, quando o observador olha para estes mapas e estes países explicados, ele vê uma descrição verdadeira e uma forma agradável, mas, além disso, ele precisa aprender descrições das províncias e a aparência de seus povos, suas roupas e seus adornos, e as estradas praticáveis e as suas milhagens e farsangs [uma unidade de medida persa] e todas as maravilhas de suas terras tal como testemunhadas por viajantes e mencionadas por escritores itinerantes e confirmadas por narradores. Assim, depois de cada mapa, registramos tudo o que achamos necessário e adequado em seu devido lugar no livro. Esta eloquente declaração sobre o poder e as limitações da cartografia reconhecia a importância de dar uma “forma”, ou ordem geométrica, ao mundo habitado, tal como Ptolomeu o havia descrito, mas também admitia implicitamente o problema do akoe (“rumor”) fornecido por “escritores itinerantes”. Os relatos de viajantes eram claramente necessários para a geografia humana detalhada que Rogério queria, mas como esses relatos poderiam ser verificados e “confirmados por narradores”? Para al-Idrisi, a geometria básica do mapa era inquestionável e podia ser reproduzida com confiança, ao contrário dos relatos parciais fornecidos até pelo mais experiente viajante. Al-Idrisi estava diante do mesmo problema enfrentado por Heródoto mais de 1.500 anos antes. Sua solução ia contra a corrente das tradições cartográficas herdadas do mundo clássico e da primeira cartografia muçulmana, e tomava uma rota não científica para representar a realidade local do mundo habitado. Isso produziria uma das descrições geográficas mais exaustivamente detalhadas do mundo medieval, mas também faria com que seu trabalho fosse negligenciado e deixado de lado, à medida que a ideologia política adotava visões cartográficas cada vez mais moralizadas do mundo. Como al-Idrisi reagiu à história precedente da cartografia, da corte de al- Mamun a Ibn Hawqal, é complicado porque ele diz relativamente pouco a respeito de suas fontes, e também devido aos problemas de circulação e intercâmbio de ideias dentro de sua cultura de manuscritos. Dependemos das cópias posteriores feitas por escribas medievais do Entretenimento (bem como de seus mapas) para avaliar suas realizações. Do mesmo modo, sua educação e início de carreira nas extremidades ocidentais do mundo islâmico tornam difícil saber quais textos podem ter chegado a ele, fosse em Córdoba ou na Sicília. Seu aparente silêncio sobre a influência de alguém como al-Masudi é pura ignorância, ou representa algum conflito intelectual ou ideológico mais obscuro? Talvez nunca saibamos. Mas juntando as fontes que ele cita com seus mapas e descrições geográficas declarada em todo o Entretenimento, mas ele parece indiferente à valorização de uma tradição intelectual ou religiosa em detrimento de outra. O Entretenimento engrandece claramente o lugar de Rogério no mapa do mundo. A Sicília – descrita como “uma pérola de pérolas” – avulta maior do que qualquer outra ilha do Mediterrâneo, seu governante é louvado como “adorno do império e enobrecedor da soberania”.43 Mas isso é consequência da exigência política e um exemplo típico de mapeamento egocêntrico, por meio do qual al-Idrisi engrandece tanto sua localização como a de seu soberano. Em um nível mais básico, nem a geometria de Ptolomeu nem a geografia sagrada da Escola Balkhi de cartografia têm precedência no Entretenimento. Nenhum dos mapas de al-Idrisi contém uma escala ou mensuração consistente de distâncias. Em contraste com os mapas desenhados por Ibn Hawqal, os de al-Idrisi retratam um mundo sem hadd, o termo islâmico para limites, fronteiras ou o fim de um determinado país, cidade ou continente.44 O patrocínio contínuo de Rogério do projeto durante tantos anos indica que o rei estava satisfeito com ele enquanto geografia política, mas para al-Idrisi, seu Entretenimento era claramente outra coisa: adab, a busca refinada e culta de obras eruditas de edificação, recreação – ou entretenimento. Um adib – alguém que possuía adab – procurava saber algo sobre tudo, e o livro de geografia enciclopédica representava um dos melhores veículos para sua expressão.45 O MUITO ELOGIADO espírito de convivencia, o intercâmbio multicultural e a transmissão de objetos, ideias e crenças que deram origem ao Entretenimento de al-Idrisi foram um fenômeno transitório. Quando ele começou a se desfazer, perto do final da vida de Rogério, as realizações geográficas de al-Idrisi foram abandonadas, consequência da crescente polarização ideológica entre cristãos e muçulmanos que deixava pouco espaço para um cartógrafo muçulmano em uma corte cristã poliglota. Em 1147, enquanto al-Idrisi compilava o Entretenimento, Rogério apoiava entusiasticamente os planos para a Segunda Cruzada, com o objetivo último de expulsar os muçulmanos de Jerusalém. Astuto como sempre, Rogério planejava explorar o seu envolvimento na cruzada para promover sua própria causa política, mas também era um sinal dos tempos o fato de ele achar cada vez mais difícil contornar o confronto crescente entre as duas religiões. Com sua morte, em 1154, Rogério foi sucedido por seu filho, Guilherme I. Embora desse continuidade ao apoio entusiasmado de seu pai ao saber, faltava-lhe a perspicácia política de Rogério. De acordo com um relato contemporâneo do reinado de Guilherme, “depois de pouco tempo, toda essa tranquilidade esfumou-se e desapareceu”, e o reino da Sicília logo caiu no partidarismo e conflito interno.46 Talvez, assim como fugira de Córdoba quando jovem, al-Idrisi tenha entendido que seu momento havia passado e deixou a Sicília em sua última viagem, de volta ao norte da África, provavelmente para Ceuta, onde morreu em 1165, aos 65 anos. Sua partida coincidiu com o crescimento da rebelião muçulmana contra seus senhores normandos. Frederico Barbarossa, sobrinho de Rogério, sacro imperador romano e rei da Sicília (de 1198 a 1250), adotou uma postura muito diferente em relação à comunidade muçulmana da ilha, deportando muitos deles. Ele também assumiu o manto da santa cruzada e comandou a Sexta Cruzada, que culminou em sua coroação como rei de Jerusalém, em 1229. Na época de sua morte, os últimos muçulmanos da ilha estavam no exílio ou haviam sido vendidos como escravos. O experimento normando de convivencia na ilha chegara a um final amargo e, com ele, a erradicação da presença muçulmana na Sicília para sempre.47 As fronteiras culturais movediças do mundo mediterrâneo do final do século XII e o clima de intercâmbio intelectual amigável que haviam criado fizeram com que o legado geográfico de al-Idrisi fosse limitado. É difícil imaginar um livro tão grande e complexo como o Entretenimento sendo facilmente transmitido da Sicília para todo o mundo islâmico e, de qualquer modo, muitos estudiosos muçulmanos consideravam al-Idrisi um renegado de sua religião. Alguns escritores islâmicos posteriores recorreram aos seus textos e copiaram seus mapas, entre eles, o famoso erudito norte- africano Ibn Kaldun (1332-1406), cuja família também fugira da lenta desintegração de al-Andalus. Sua história monumental do mundo, Kitab al- ibar, compara os mapas de al-Idrisi com os de Ptolomeu ao descrever “as montanhas, os mares e rios que se encontram na parte cultivada do mundo”.48 Afora isso, a circulação da obra de al-Idrisi ficou confinada aos círculos eruditos do norte da África. Embora uma versão resumida em latim do Entretenimento tenha sido impressa em Roma, em 1592, a obra já era então considerada uma curiosidade histórica e rejeitada como exemplo do atraso da geografia islâmica. No final do século XX, quando os estudiosos começaram a reconsiderar a importância da cartografia islâmica, a reputação de al-Idrisi foi lentamente reabilitada. A importância de seus mapas e, em particular, a importância do seu mapa do mundo circular poderiam ter continuado a crescer, não fosse por uma extraordinária descoberta recente. Em junho de 2002, o Departamento de Coleções Orientais da Bodleian Library, em Oxford, adquiriu um manuscrito árabe que lançou uma nova luz sobre o desenvolvimento da geografia árabe e contestou alguns dos pressupostos estabelecidos sobre o mapa do mundo de al-Idrisi. Com base em referências políticas e dinásticas de seu autor, o manuscrito original pode ser datado do século XI, mas ele sobreviveu numa cópia do início do século XIII, feita provavelmente no Egito. Seu autor é desconhecido, mas o título, quando traduzido, o coloca no mesmo gênero descritivo do Entretenimento de al-Idrisi. Intitulado O livro de curiosidades das ciências e maravilhas para os olhos, é composto de 35 capítulos escritos em árabe que descrevem os mundos celeste e terrestre. De importância ainda maior é o fato de que o tratado contém nada menos que dezesseis mapas que representam o oceano Índico, o Mediterrâneo, o mar Cáspio, o Nilo, os rios Eufrates, Tigre, Oxus e Indo. Outros mapas incluem Chipre, norte da África e Sicília. Os primeiros capítulos são também ilustrados com dois mapas do mundo, um retangular e um circular, ambos por si só notáveis. O mapa do mundo retangular é diferente de qualquer outro mapa islâmico conhecido. É altamente esquemático, orientado com o sul na parte superior, e mostra o mundo efetivamente composto por dois vastos continentes, Europa, à direita, e a Ásia conjugada a uma África sem limites, à esquerda. A península Arábica é particularmente proeminente, com Meca representada por uma ferradura de ouro. O mapa também contém uma barra de escala que tem uma notável semelhança com o método de Suhrab de projetar um mapa do mundo em uma superfície plana. Ela vai do canto superior direito do mapa ao esquerdo, terminando em algum lugar ao longo da costa oriental africana. Embora o copista claramente não tenha entendido a gratícula (está incorretamente numerada), a presença da escala sugere um grau até então desconhecido de sofisticação na medição de distâncias e da aplicação da escala a mapas do mundo islâmicos.49 O mapa circular é mais familiar: é praticamente idêntico ao mapa do mundo encontrado inserido em pelo menos seis cópias do Entretenimento de al-Idrisi. Como o mapa do Livro de curiosidades antecede o Entretenimento em pelo menos um século, ele abala completamente a atribuição tradicional a al-Idrisi. Há duas possibilidades para explicar seu aparecimento no Entretenimento: ou al-Idrisi copiou esse mapa sem 3. Fé O mapa-múndi de Hereford, c.1300 Orvieto, Itália, 1282 Em 23 de agosto de 1282, o bispo de Hereford, Tomás de Cantalupo,a morreu em Ferente, perto de Orvieto, na Itália. Ex-chanceler da Inglaterra e reitor da Universidade de Oxford, cônego de Londres e York e conselheiro pessoal do rei Eduardo I, Cantalupo foi uma das figuras mais influentes da vida eclesiástica inglesa do século XIII. Nos últimos anos de sua vida, envolveu-se em uma polêmica acirrada com seu superior, John Pecham (ou Peckham), arcebispo da Cantuária. Filho da classe senhorial dominante, Cantalupo acreditava firmemente nos direitos adquiridos pelos clérigos mais velhos de acumular vários benefícios eclesiásticos – terras e propriedades ligadas a títulos religiosos –, uma prática comumente conhecida como pluralismo. Pecham era um crítico feroz do pluralismo, junto com o que ele considerava indisciplina, absentismo e ensino teológico heterodoxo. Após a sua designação para arcebispo em 1279, ele deixou claro ao alto clero, de que Cantalupo fazia parte, que pretendia acabar com essas práticas. Pecham representava um novo tipo de autoridade eclesiástica. Era um firme defensor dos decretos baixados no IV Concílio de Latrão, realizado em Roma em 1215, que queria formalizar a doutrina cristã mediante o reforço do poder de sua elite dominante, a qual ganhou mais autoridade para divulgar os pontos básicos da doutrina aos leigos.1 Pecham endossou com entusiasmo essas reformas, ampliando sua jurisdição sobre as dioceses, mas nesse processo diminuiu a autoridade e os privilégios desfrutados por muitos bispos. Pecham estava particularmente preocupado em pôr o clero galês na linha no que dizia respeito ao pluralismo. Tratava-se de uma questão tanto política quanto religiosa. Ao longo das décadas de 1270 e 1280, o rei Eduardo envolveu-se num longo e encarniçado conflito com os governantes galeses independentes, numa tentativa de incorporar esse reino à Inglaterra. Situada nos Marches (regiões fronteiriças), entre a Inglaterra e o País de Gales, a diocese de Hereford representava o ponto mais distante da autoridade política e eclesiástica inglesa, e Pecham fazia questão que ela respeitasse suas reformas. Embora permanecesse fiel ao rei Eduardo em questões políticas, Cantalupo rejeitava as tentativas de Pecham de contestar o pluralismo e outras práticas profundamente enraizadas na vida religiosa inglesa e resistiu às tentativas do arcebispo de reformar sua diocese. A rixa chegou ao auge em fevereiro de 1282, quando Pecham excomungou dramaticamente Cantalupo no Palácio de Lambeth, residência do arcebispo. O bispo desgraçado foi para o exílio na França e, em março de 1282, estava a caminho de Roma para fazer um apelo direto ao papa Martinho IV contra sua excomunhão.2 Durante o verão de 1282, Cantalupo encontrou-se com o papa e defendeu sua posição. Mas, antes que a questão pudesse ser resolvida, sua saúde começou a deteriorar-se e em agosto ele partiu para a Inglaterra. Pouco depois de sua morte em Ferente, o coração de Cantalupo foi removido e seu corpo fervido para separar a carne dos ossos. A carne foi enterrada em uma igreja de Orvieto, o coração e os ossos foram levados de volta para a Inglaterra. Pecham não permitiu que os ossos fossem enterrados em Hereford até o início de 1283. Graças aos esforços de Richard Swinfield, protegido e sucessor de Cantalupo no bispado de Hereford, os ossos do ex-bispo foram finalmente sepultados na catedral, em 1287. O túmulo foi decorado com soldados em pé sobre bestas monstruosas, uma imagem da Igreja militante lutando contra o pecado e protegendo o virtuoso Cantalupo, que jazia no Jardim do Paraíso, protegido pelos batalhões de Cristo.3 O santuário foi o início de um esforço concertado por Swinfield para canonizar seu mentor, e ele cultivou o túmulo de Cantalupo como lugar de peregrinação para os fiéis de todo o país. Entre 1287 e 1312, foram associados a ele mais de quinhentos “milagres”, que iam desde a cura de loucos e aleijados ao renascimento milagroso de crianças que se acreditavam afogadas, a recuperação do falcão favorito de um cavaleiro pisoteado até a morte por seu escudeiro e a recuperação da fala por um homem de Doncaster, embora sua língua tivesse sido cortada por ladrões. Por fim, em 1320, após repetidas petições à Cúria papal, concedeu-se o status de santo a Cantalupo, o último inglês antes da Reforma a receber tal honra. A HISTÓRIA DA CARREIRA de Cantalupo e seu conflito com Pecham sobre questões de autoridade eclesiástica sintetiza as vicissitudes da fé na Inglaterra católica do século XIII. Mas hoje a vida de Cantalupo e seu lugar de descanso final, cuja base ainda pode ser vista no transepto norte da catedral de Hereford, estão em larga medida esquecidos. A maioria dos turistas que fazem a peregrinação secular até a catedral passa direto pelo túmulo de Cantalupo e vai ao anexo moderno atrás da igreja, projetado para guardar sua mais famosa relíquia: o mapa-múndi de Hereford. O termo mapa-múndi vem do latim mappa – toalha ou guardanapo – e mundus – mundo. Seu desenvolvimento no ocidente de língua latina cristã do final do século VIII nem sempre se referia especificamente a um mapa do mundo; também podia designar uma descrição geográfica escrita. Do mesmo modo, nem todos os mapas do mundo desse período eram chamados de mapas-múndi (mappaemundi, em latim). Outras palavras também eram utilizadas, como descriptio, pictura, tabula ou, como no caso do mapa de Hereford, estoire, ou seja, história.4 Assim como a geografia não era reconhecida então como uma disciplina acadêmica distinta, não havia uma palavra universalmente aceita em latim ou nas línguas vernáculas europeias para indicar o que hoje chamaríamos de mapa. De todos os termos em circulação, no entanto, mapa-múndi tornou-se o mais comum para definir uma descrição escrita e desenhada da Terra cristã por quase seiscentos anos. Dos 1.100 mapas-múndi que subsistem até hoje, a maioria encontra-se em livros manuscritos, alguns de apenas poucos centímetros de tamanho, que ilustram os escritos de alguns dos pensadores mais influentes da época: o clérigo e erudito espanhol Isidoro de Sevilha (c.560- 636), o escritor do final do século IV Macróbio e o pensador cristão do século V Paulo Orósio. O mapa-múndi de Hereford é sem-par: trata-se de um dos mapas mais importantes da história da cartografia e o maior de seu tipo a ter sobrevivido intacto por quase oitocentos anos. É uma visão enciclopédica do mundo de um cristão do século XIII. Ele oferece tanto um reflexo como uma representação das crenças teológicas, cosmológicas, filosóficas, políticas, históricas, zoológicas e etnográficas do mundo cristão medieval. Mas, embora seja o maior mapa medieval existente, continua a ser uma espécie de enigma. Não sabemos exatamente quando foi feito, nem a sua função exata no interior da catedral; tampouco sabemos com certeza por que se encontra na catedral de uma pequena cidade da fronteira anglo- galesa. Ao ir a Hereford hoje e entrar no anexo da catedral para examinar o mapa-múndi, o visitante é primeiro surpreendido pela estranheza do construiu o labirinto para aprisionar o Minotauro, o filho monstruoso da rainha Pasífae, esposa do rei da ilha, Minos. Acima de Creta, o Mediterrâneo se divide: à direita, ele desemboca do Nilo; à esquerda, entra no Adriático e no Egeu. Passando Rodes e os restos de seu Colosso, uma das sete maravilhas do mundo antigo, o mapa atinge o Helesponto, os Dardanelos de hoje, e diretamente acima dele está a capital do Império Bizantino, Constantinopla. A cidade é apresentada em perspectiva oblíqua, com suas formidáveis muralhas e fortificações reproduzidas com uma precisão impressionante. Afastando-se mais do centro, o mapa e a realidade geográfica moderna se distanciam cada vez mais. Quanto mais para cima se olha o mapa, mais os assentamentos se tornam dispersos, as legendas mais elaboradas, e estranhos monstros e efígies começam a erguer suas cabeças. Um lince espreita na Ásia Menor, e a legenda nos diz “que ele vê através das paredes e urina uma pedra negra”. A Arca de Noé está no alto da Armênia, acima da qual dois temíveis animais andam para a frente e para trás em toda a Índia. À esquerda, um tigre, à direita, um “manticore”, ostentando “um conjunto triplo de dentes, o rosto de um ser humano, os olhos amarelos, a cor do sangue, o corpo de um leão, uma cauda de escorpião, uma voz sibilante”. Avançando pela Ásia, o mapa retrata o Velocino de Ouro, o grifo mítico, cenas de canibalismo grotesco e um relato sobre os temíveis citas, que dizem viver em cavernas e “fazer copos de beber dos crânios de seus inimigos”. Por fim, no canto superior esquerdo do mapa, nos limites do mundo conhecido, uma legenda conclui que: Aqui encontram-se todos os tipos de horrores, mais do que se pode imaginar: frio intolerável, um sopro de vento constante das montanhas, que os habitantes chamam de “bizo”. Aqui existem povos extremamente selvagens que comem carne humana e bebem sangue, os filhos malditos de Caim. O Senhor usou Alexandre, o Grande, para bloqueá-los, pois à vista do rei ocorreu um terremoto, e montanhas caíram sobre montanhas ao seu redor. Onde não havia montanhas, Alexandre cercou-os com um muro indestrutível. A legenda funde as versões bíblicas e clássicas bem conhecidas das origens dos povos selvagens, as tribos de Gog e Magog. Trata-se dos descendentes monstruosos de Jafé, filho de Noé, espalhados pelas regiões mais setentrionais do mundo conhecido. O livro do Apocalipse prevê que nos últimos dias Satanás reunirá as tribos de Gog e Magog “dos quatro cantos da Terra”, em um ataque inútil contra Jerusalém (Apocalipse 20:8- 9). As primeiras versões cristãs e corânicas das façanhas de Alexandre, o Grande, afirmam que quando chegou às montanhas do Cáucaso, o rei forjou portões de bronze e ferro para manter afastados Gog e Magog – uma barreira reproduzida no mapa do mundo circular atribuído a al-Idrisi. Para todas essas tradições, Gog e Magog eram os últimos bárbaros, nas margens literais e metafóricas do cristianismo, uma ameaça permanente para qualquer civilização. Indo para o lado direito da representação da Ásia, o mapa imagina um mundo não menos maravilhoso e aterrorizante. Crocodilos, rinocerontes, esfinges, unicórnios, mandrágoras, faunos e uma raça muito infeliz de pessoas “com um lábio proeminente, com o qual protegem o rosto do sol”, habitam as regiões a sudeste. No canto superior direito do mapa, a entrada vermelha em forma de garra retrata o mar Vermelho e o golfo Pérsico, com o Sri Lanka (chamado de “Taphana”, ou Taprobana, de acordo com fontes clássicas) flutuando em sua foz, em vez de estar ao largo da costa sudeste da Índia. Voltando para a parte de baixo do mapa, um rio em forma de girino corre ao longo da costa meridional da África, representando o alto Nilo (que erroneamente se acreditava ser subterrâneo antes de se unir ao baixo Nilo, retratado no mapa mais para o interior). À direita do Nilo há uma África fantasticamente alongada, praticamente desprovida de assentamentos, com exceção do monte Vésper, na costa noroeste, e dos mosteiros de santo Antônio, no canto superior direito (no sul do Egito). O retrato da África não tem relação com qualquer realidade geográfica: sua única função parece ser a de explicar a origem do Nilo e representar um mundo de outros povos “monstruosos”; não Gog e Magog, mas seus homólogos diametralmente opostos no ponto mais meridional do mapa. Ao sul do monte Vésper, o mapa retrata uma série de criaturas fantásticas, com características e comportamentos bizarros, a começar pelos “etíopes gangines”, que são mostrados nus, segurando bengalas e empurrando uns aos outros para longe. A legenda nos diz que “com eles, não há amizade”. Não muito monstruosos, mas antissociais. Mais ao sul, o mapa mostra os “etíopes marminis”, que têm quatro olhos; um povo sem nome que “tem a boca e os olhos nos ombros”; os “blemmyes”, com “a boca e os olhos no peito”; os “philli”, que “testam a castidade de suas esposas expondo seus recém-nascidos a serpentes” (em outras palavras, assassinando filhos ilegitimamente concebidos); e os “himantópodes”, que têm a infelicidade de precisar “arrastar-se mais do que caminhar”. Indo em direção ao sul, onde um mapa moderno localizaria o equador, as raças assumem características ainda mais monstruosas e bizarras. Uma figura de barba e turbante, com um seio de mulher e genitália masculina e feminina, é rotulada de um povo de “ambos os sexos, não natural sob muitos aspectos”, acima de um indivíduo não identificado com “a boca selada”, que só pode comer através de um canudo; abaixo estão os “ciápodes”, que apesar de terem uma perna só são extremamente rápidos e protegidos na sombra pelas solas de seus pés; eles são chamados também de “monoculi”. O mapa retrata os ciápodes não somente com uma única perna (com três dedos a mais), mas também com apenas um olho. Por fim, o catálogo de raças monstruosas termina na costa oriental da África, com “um povo sem orelhas, chamado ambari, cujas solas dos pés são opostas”. Este não é um mapa como o entendemos no sentido moderno. Trata-se da imagem de um mundo definido pela teologia, não pela geografia, em que o lugar é entendido por meio da fé, em vez de pela localização, e a passagem do tempo de acordo com os eventos bíblicos é mais importante do que a representação do espaço territorial. Em seu centro está o lugar que é tão central para a fé cristã: Jerusalém, o local da crucificação de Cristo, representado graficamente acima da própria cidade, que é mostrada com muros circulares, um pouco como um gigantesco dente da engrenagem teológica. Ela assume sua posição no centro do mapa devido ao pronunciamento de Deus no livro de Ezequiel do Antigo Testamento: “Trata-se de Jerusalém, que eu tinha situado em meio às nações, tendo em derredor os povos pagãos” (Ezequiel 5:5). A geografia teológica em camadas da descrição da cidade feita por al-Idrisi se foi, substituída por uma visão exclusivamente cristã. Rastreando a topografia do mapa para fora de Jerusalém em termos de teologia, em vez de geografia, começamos a ver uma lógica mais clara em sua forma. A Ásia está cheia de lugares e cenas do Antigo Testamento. Em torno de Jerusalém estão o monte Efraim, o monte das Oliveiras e o vale de Josafá; mais ao norte veem-se a Torre de Babel e as cidades da Babilônia, Sodoma e Gomorra. À direita encontram-se os “celeiros” de José – uma versão medieval das pirâmides egípcias – e o monte Sinai, onde Moisés é mostrado recebendo os Dez Mandamentos das mãos de Deus. O mapa também tece um itinerário labiríntico do êxodo, que atravessa o mar Morto e o rio Jordão antes de chegar a Jericó, passando por uma série de lugares lendários ao longo do caminho, entre eles a esposa de Ló, transformada em estátua de sal. No meio de toda essa riqueza de detalhes geográficos, bíblicos, míticos e clássicos, o olho do observador é inexoravelmente atraído para cima em direção ao ápice do mapa, e sua teologia organizadora. No alto, logo abaixo da borda circular, encontra-se o Jardim do Éden, o paraíso terrestre, escrito: “Ide por todo o mundo e fazei um relatório para o Senado sobre todos os seus continentes: e para confirmar esta [ordem], afixei meu selo neste documento.” Acima dessa cena outra legenda diz: “Lucas em seu Evangelho: ‘Saiu um decreto de César Augusto para que todo o mundo fosse descrito.’” Na versão do rei Jaime, a frase é traduzida para o inglês como “todo o mundo fosse tributado”, mas essa interpretação não foi seguida por traduções posteriores, e a referência que está no mapamúndi é claramente a topografia, não a população.6 4. Mapa da Palestina, são Jerônimo, Liber locorum, século XII. Quaisquer que tenham sido as realizações científicas da agrimensura e da cartografia romanas, muitos dos padres latinos – entre eles, Tertuliano, são Cipriano, são Hilário e santo Ambrósio – tinham pouco interesse por essas inovações. O mártir cristão do século III são Damião certamente rejeitava essas atividades. “O que os cristãos podem ganhar da ciência?”, perguntou ele.7 Os padres intelectualmente mais aventureiros, como santo Agostinho (354-430) e seu quase contemporâneo são Jerônimo (c.360- 420), tiveram uma atitude bastante diferente. Agostinho admitia que o estudo clássico de physica, o mundo criado, era necessário para compreender a sapientia, que ele mesmo definia como “o conhecimento das coisas divinas”.8 Para Agostinho, sem um conhecimento “da terra, dos céus e dos outros elementos deste mundo”, não podemos entender a Bíblia, nem, por consequência, ser bons cristãos. Ele sustentava que a época e a história bíblica deviam ser estudadas juntamente com o espaço e a geografia para uma melhor compreensão da criação divina. Em seu livro Sobre a doutrina cristã, Agostinho defendeu habilmente o estudo da geografia e da história, sem sugerir que isso significasse, de alguma forma, uma contestação de Deus pelo homem. “Desse modo”, sugeria ele, “quem narra a ordem do tempo não a compõe ele mesmo”, e da mesma forma, “quem mostra a localização dos lugares ou a natureza dos animais, plantas ou minerais não mostra coisas instituídas pelos homens; e quem demonstra as estrelas e seu movimento não demonstra nada instituído por ele mesmo”. Essas observações somente refletiam sobre a glória das criações de Deus, e permitiam que aqueles que empreendiam esse estudo “a aprendessem ou a ensinassem”.9 São Jerônimo retomou a sugestão de Agostinho de listar locais bíblicos. Jerônimo é mais conhecido hoje por ter traduzido e padronizado a Vulgata, uma versão latina da Bíblia, a partir de suas várias versões antigas hebraicas e gregas. Mas, por volta de 390, ele também escreveu um livro, Sobre a localização e os nomes dos lugares hebreus, frequentemente chamado apenas de Liber locorum, que fazia uma descrição alfabética dos nomes de lugares da Bíblia. O livro de Jerônimo baseava-se num texto de Eusébio (c.260-340), bispo de Cesareia, que escreveu uma das primeiras histórias da Igreja cristã; ele também foi assessor de Constantino I (272- 337), o fundador de Constantinopla, capital do que veio a ser o Império Bizantino, e o primeiro imperador romano a se converter ao cristianismo. Por volta de 330, Eusébio terminou seu texto grego Onomasticon, “uma lista de nomes próprios de pessoas ou lugares”, um dicionário topográfico que arrolava quase mil locais bíblicos. Jerônimo corrigiu e atualizou o texto de Eusébio para fazer uma abrangente geonímia latina de nomes de lugares bíblicos, de tal modo “que alguém que conhece os sítios de cidades e lugares antigos e seus nomes, sejam os mesmos ou alterados, olhará de forma mais clara para a Sagrada Escritura”.10 Eusébio, Agostinho e Jerônimo, como todos os outros primeiros Padres da Igreja, viviam à sombra do declínio do Império Romano clássico e sua cristianização gradual. A conversão do imperador Constantino, por volta de 312, deu a sanção final para a religião, mas a adoção do cristianismo ocorreu tendo por pano de fundo a erosão do domínio militar e político de Roma e a decisão de Constantino de dividir o império nas esferas oriental e ocidental, sendo Constantinopla a capital imperial do leste. O saque de Roma pelos visigodos em 410 fez alguns perceberem o que durante séculos parecera impensável: que, no fim das contas, Roma podia não ser eterna. Isso causou mais problemas para os Padres da Igreja. Até a conversão de Constantino, Roma representara o passado pagão, repressivo, mas no final do século IV Roma já havia adotado o cristianismo como sua religião oficial. Muitos achavam agora que o declínio político do império estava de alguma forma ligado à sua recém-adotada religião. Agostinho trouxe uma resposta teológica e intelectual profunda em A Cidade de Deus, escrito como resposta direta ao saque de Roma. Ele usou a metáfora da cidade de Roma para propor que havia duas cidades: a cidade terrena dos homens, representada por Roma, seus deuses pagãos e a busca da glória, e a cidade eterna de Deus, uma comunidade religiosa de peregrinos terrenos que habitavam temporariamente este mundo, dedicados à divina capital dos céus. Para Agostinho, Roma e cidades e impérios anteriores (como Babilônia e Pérsia) eram prefigurações históricas necessárias da criação definitiva da Cidade de Deus. Essa narrativa de fé e salvação se tornaria o centro da teologia cristã posterior. Para os cristãos, a Cidade de Deus não era um local físico, mas uma comunidade espiritual. Então, de que maneira pensadores como Jerônimo e Agostinho visualizavam o mundo terrestre, de modo a ser coerente com as Escrituras? Como representavam o mundo cristão em um mapa plano? Jerônimo deu uma resposta em seu Liber locorum. Cópias do livro do final do século XII feitas em Tournai contêm mapas regionais da Palestina e da Ásia, destinados a ilustrar o catálogo de lugares de Jerônimo. O texto e os mapas que o acompanham influenciaram mapas-múndi como o de Hereford no uso de nomes de lugares bíblicos e sua localização geográfica. No mapa da Palestina de Jerônimo, Jerusalém está no centro, representada por um círculo fortificado que se distingue pela torre de Davi. À direita está o Egito, com as duas versões do Nilo, que reaparecem no mapa-múndi de Hereford. Acima de Jerusalém, os rios Ganges, Indo, Tigre e Eufrates aparecem descendo do Cáucaso e da Armênia, onde uma legenda diz que ali a Arca de Noé veio descansar, a qual também é reproduzida no mapa de Hereford. Embora se trate de um mapa explicitamente bíblico, com a maioria de seus 195 locais tirados das Escrituras, ele também mostra uma influência bastante confusa da mitologia greco-romana. No topo do mapa, na Índia, estão os altares de Alexandre, ao lado das proféticas ou
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