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Políticas de Saúde Mental, Notas de estudo de Enfermagem

A partir da experiência acumulada, particularmente na gestão do CAPS Itapeva, concluímos ser fundamental contribuir para um debate aberto e profundo a respeito dos princípios, estratégias e modelos de gestão que guiam o cuidado em saúde mental no País.

Tipologia: Notas de estudo

2017

Compartilhado em 22/10/2017

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Baixe Políticas de Saúde Mental e outras Notas de estudo em PDF para Enfermagem, somente na Docsity! P ol ít ic as d e sa ú d e m en ta l Ba se ad o no c ur so P ol íti ca s p úb lic as d e sa úd e m en ta l, do C A PS P ro fe ss or L ui z da R oc ha C er qu ei ra oferta de mais e melhores serviços de saúde mental à população ul- trapassa o interesse dos especialistas da área e atende a necessidade de resolução de um grave problema. Partindo de nossa vivência de ges- tão hospitalar e sensibilizados com as necessidades da área, tivemos a satisfação, na direção do Hospital Geral de Pirajussara, em Taboão da Serra, de inaugurar a unidade de internação psiquiátrica dessa institui- ção. Posteriormente, compromissados com a inserção do hospital na rede locorregional de saúde, criamos tam- bém, em suas proximidades, o Centro Comunitário de Saúde Mental (hoje CAPS II daquela cidade localizada na Grande São Paulo). A iniciativa foi tão proveitosa – tanto no atendimento de uma demanda até então reprimida na região, quanto no crescimento da instituição como um todo – que, a partir de então, todos os novos hospitais gerais geridos pela SPDM foram abertos com unidades de internação psiquiátrica, em consonân- cia com o poder público. Administra- das com a mesma efi ciência e espírito de responsabilidade e compromisso social que são a marca da adminis- tração de nossas instituições afi liadas, O curso Políticas públicas de saúde mental, do CAPS Luiz R. Cerqueira, e este livro nasceram do desejo de aprofundarmos conceitos para a troca de ideias sobre saúde mental. Os textos aqui presentes não pretendem propor manifestos, prescrições ou soluções mágicas e devem ser entendidos como tentativas de enriquecer o repertório de abordagens da realidade extremamente complexa dos problemas em saúde mental. essas unidades utilizam mecanismos gerenciais fl exíveis e dinâmicos, foca- dos no paciente e suas necessidades, ganhando resolubilidade e produtivi- dade no sistema. A partir da experiência acumu- lada, particularmente na gestão do CAPS Itapeva, concluímos ser fundamental contribuir para um de- bate aberto e profundo a respeito dos princípios, estratégias e modelos de gestão que guiam o cuidado em saúde mental no País. Com este objetivo, foi criado o cur- so Políticas públicas de saúde mental, em 2008, no CAPS Professor Luiz da Rocha Cerqueira – o CAPS Itapeva, destinado, principalmente, a gestores de serviços e articuladores de saúde mental do Estado de São Paulo e dos municípios. De suas aulas nasceu este livro, cuja meta, mais do que relatar experiências, é buscar enriquecer o debate, organizando e esclarecen- do conceitos que serão úteis a todo trabalhador em saúde. Prof. Dr. Nacime Salomão Mansur Superintendente Hospitais Afi liados - SPDM A POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL 2 3 Políticas de saúde mental Baseado no curso Políticas públicas de saúde mental, do CAPS Professor Luiz da Rocha Cerqueira São Paulo, 2013 Mário Dinis Mateus (Org.) POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL 4 Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo Secretário de Estado da Saúde de São Paulo: Giovanni Guido Cerri Instituto de Saúde Diretora: Luiza Sterman Heimann Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina – SPDM Presidente do Conselho Administrativo: Prof. Dr. Rubens Belfort Jr Superintendente Hospitais Afi liados: Prof. Dr. Nacime Salomão Mansur Imagem da capa: Paul Klee/Betroffener Ort, 1922/Zentrum Paul Klee, Bern Foto da quarta capa: CAPS Professor Luiz da Rocha Cerqueira/Osmar Bustos Revisão, capa e tratamento de imagens: Moacir Barbosa Projeto gráfi co e editoração: Lafgraf Design Editorial CTP, impressão e acabamento: Imprensa Ofi cial do Estado de São Paulo Tiragem: 2.000 exemplares Todos os direitos reservados Instituto de Saúde Rua Santo Antonio, 590 – Bela Vista São Paulo-SP – CEP: 01314-000 Tel.: (11) 3116-8500 Fax: (11) 3105-2772 www.isaude.sp.gov.br Políticas de saúde mental: baseado no curso Políticas públicas de saúde mental, do CAPS Luiz R. Cerqueira / organizado por Mário Dinis Mateus. São Paulo: Instituto de Saúde, 2013. 400p. ISBN: 978-85-88169-227 1. Saúde Mental 2. Assistência em Saúde Mental 3. Serviços de Saúde Mental 4. Políticas de Saúde I. Mateus, Mário Dinis. FICHA CATALOGRÁFICA Preparada pela Biblioteca do Centro de Apoio Técnico Científi co. Instituto de Saúde SPDM – Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina Rua Dr. Diogo de Faria, 1036 Vila Clementino – São Paulo / SP CEP: 04037-003 www.spdm.org.br 5 Alexandra Virgínia G. Oliveira Auro Danny Lescher Cássia Gomes Cecília Cruz Villares Cristiane Silvestre de Paula Daniel Almeida Gonçalves Denise Razzouk Edith Lauridsen Ribeiro Fernanda Nicácio Gastão Wagner S. Campos Jair de Jesus Mari Jorge Cândido de Assis José F. Quirino dos Santos Leon Garcia Marcelo Niel Maria Cecília Galletti Mauricio Lucchesi Mônica Rolim Neury José Botega Oswaldo Y. Tanaka Ronaldo Laranjeira Sandra Fischeti Sergio Baxter Andreoli Sergio M. Paschoal Sergio Nicastri Teng Chei Tung Tereza Gonçalves Wagner Silva Ribeiro Aos alunos do curso, que tanto nos ensinaram (e que nem frio, calor, chuva ou trânsito de São Paulo intimidaram!); à equipe administrativa do CAPS Itapeva: as secretárias Sabrina dos Santos e Karina Romano, do Núcleo de Ensino e Pesquisa (NEP); à sra. Simone Baldon, Coordenadora Administrativa, que incansavelmente organiza toda a estrutura logística para a realização do curso; à Cássia Gomes, Assistente Técnica da Direção, que trabalha na divulgação do curso, trocas de e-mails, organização dos textos de referência, entre outras coisas que o coordenador nem imagina; aos professores Edith Lauridsen Ribeiro, Jair de Jesus Mari e José Francisco Quirino dos Santos, inspiradores, conspiradores e mantenedores deste curso; ao nosso corpo docente, que doou-se generosamente para este projeto: Agradecimentos POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL 8 pesquisa do Projeto Quixote, para a formação de educadores. Consultora da área da infância e juventude, colabora também em projetos relaciona- dos a inclusão social de jovens em situação de risco. PROF. DR. JAIR DE JESUS MARI Psiquiatra, Professor Titular do Departamento de Psiquiatria da Unifesp, Pesquisador I-A do CNPQ, coordenador da Pós-Gradua ção do Departa- mento de Psiquiatria da Unifesp, Professor Honorário do King´s College, Instituto de Psiquiatria, Londres. JORGE CÂNDIDO DE ASSIS Portador de esquizofrenia há 26 anos, atualmente é vice-presidente da Asso- ciação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Esquizofrenia (Abre). Tem participado e ministrado aulas para o curso de Medicina da Universi- dade Federal de São Paulo (Unifesp), membro do Advisory Group do Move- ment for Global Mental Health. JOSÉ ALBERTO ORSI Engenheiro civil pela Poli/USP e MBA pela University of Southern Mis- sissippi, é também diretor adjunto da Abre – Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Esquizofrenia. É portador de esqui- zofrenia desde 1994. PROF. DR. JOSÉ FRANCISCO QUIRINO DOS SANTOS Trabalha em antropologia médica, sendo formado e doutorado pela USP. Fez pós-doc na Faculdade de Medicina da Universidade de Toronto, onde foi aluno de Sackett, obtendo o título de epidemiologista. Foi professor visitante na McMaster University por um ano, quando apresentou várias técnicas de coleta e análise de dados apropriadas às pesquisas não quan- titativas. Leciona e pesquisa na Unifesp, onde é orientador permanente, e na USP. Basicamente preocupado com a temática da organização de si dos indivíduos em várias culturas, desenvolve presentemente estudos sobre os ecos culturais da doença mental. LILIAN RIBEIRO CALDAS RATTO Psiquiatra. Coordenadora da Unidade de Álcool e Drogas do Caism Vila Mariana, Irmandade Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e médica segundo assistente no Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário – Ir- mandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Mestre em Me- dicina e Doutora em Ciências pelo Departamento de Medicina Preven- tiva da FMUSP. Professora assistente do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. MARCELO NIEL Psiquiatra clínico e psicoterapeuta. Mestre em Ciências pela Unifesp. Co- laborador da Divisão de Perícia Médica da Unifesp, atuando como psi- quiatra forense. Médico assistente do Setor de Emergências do Centro de 9 Atenção Integrada à Saúde Mental (Caism) da Santa Casa de São Paulo. Supervisor Clínico-Institucional no âmbito público e privado. MÁRCIA RODRIGUES SETÚBAL Psicóloga da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e atua no Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário. Trabalhou por 30 anos na Secretaria de Administração Penitenciária, dos quais sete na Coorde- nadoria de Saúde do Sistema Penitenciário, desenvolvendo atividades e projetos relacionados à implementação de políticas de atenção à saúde da população prisional. MARIA CECÍLIA GALLETTI Terapeuta ocupacional, psicanalista e analista institucional, Mestre e Dou- tora em Psicologia Clínica. Coordena o Centro de Convivência e Coope- rativa Parque Previdência em São Paulo. MÁRIO DINIS MATEUS Psiquiatra e Professor Afi liado do Departamento de Psiquiatria da Unifesp. Mestre e Doutor em Saúde Mental pela Unifesp. Diretor técnico do CAPS Itapeva, de 2007 a 2010. Coordenador de Saúde Mental do Município de São Paulo no primeiro semestre de 2005. Coordenou a implementação da Enfermaria de Psiquiatria do Hospital Geral de Pirajussara e do Centro Co- munitário de Saúde Mental (hoje CAPS II de Taboão da Serra), de 1999 a 2004. Em coo pe ração internacional, implantou Enfermaria de Psiquiatria do Hospital Baptista de Sousa e participou da remodelação da assistência em saúde mental na Ilha de São Vicente, Cabo Verde, de 1994 a 1996. MÔNICA ROLIM Terapeuta ocupacional especialista em Saúde Mental pelo Ceto – Cen- tro de Especialidades em Terapia Ocupacional, desde 1992 trabalhan- do com saúde pública na Prefeitura Municipal de São Paulo. A partir de 1993, envolveu-se com as questões da moradia assistida em saúde mental e sua interface com a clínica, tendo atuado como acompanhante terapêutico (A.T.) da “República”, moradia assistida ligada ao Instituto “A Casa”, por 10 anos. Foi coordenadora do CAPS II Mandaqui e, pos- teriormente, do CAPS II Jaçanã/Tremembé. Participou da implantação dos SRTs na cidade de São Paulo, tendo coordenado o SRT Mandaqui I, entre 2008 e 2010. É interlocutora de Saúde Mental da Supervisão Técnica de Saúde Santana/Jaçanã. PROF. DR. NEURY JOSÉ BOTEGA Psiquiatra, professor titular do Departamento de Psicologia Médica e Psi- quiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas. REYNALDO MAPELLI JÚNIOR Formado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo. Foi integrante do Grupo de POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL 10 Atuação Especial da Saúde Pública e da Saúde do Consumidor (GAESP), Grupo de Promotores de Justiça Especializado em Saúde Pública na Ca- pital de São Paulo, Assessor do Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo e Coordenador de Saúde Pública do Ministério Público do Es- tado de São Paulo. Integrou a Comissão Permanente de Defesa da Saúde (COPEDS), órgão de assessoria do Conselho Nacional de Procuradores- Gerais do Ministério Público dos Estados e da União (CNPG). Palestrante e professor em diversas instituições, como a Escola Superior do Ministério Público (ESMP), Escola Paulista da Magistratura (EPM), Escola Superior da Advocacia (ESA) da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção de São Paulo, e Instituto de Direito Administrativo de Goiás (IDAG). Tem diver- sos artigos doutrinários publicados sobre Direito Sanitário e saúde mental e é coautor do livro Direito Sanitário, juntamente com Mário Coimbra e Yolanda Alves Pinto Serrano de Matos, bem como é coordenador do pro- jeto e do livro O controle da infecção hospitalar no Estado de São Paulo, com o médico Paulo de Tarso Puccini. Foi chefe de gabinete da Secretaria de Estado da Saúde e atualmente é o Coordenador do Núcleo de Assuntos Jurídicos (NAJ) do gabinete do Secretário. ROSÁLIA BARDARO Advogada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com especialização em Direito Administrativo e Direito Sanitário. Assis- tente Técnico do Núcleo de Assuntos Jurídicos – NAJ, da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. SOLANGE APARECIDA GONÇALVES DE MEDEIROS PONGELUPI Psicóloga, com título de Especialista em Psicologia Jurídica. Trabalha há 22 anos no sistema prisional paulista, três dos quais como coordenadora de Saúde do Sistema Penitenciário e coordenadora do Programa de Controle de Tuberculose no Sistema Prisional. PROF. DR. TENG CHEI TUNG Psiquiatra supervisor do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medi- cina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP). Coordenador do Ser- viço de Interconsultas do IPq-HCFMUSP (Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP). Doutorado em Medicina na área de Psiquiatria – FMUSP. Presidente da Comissão Científi ca da Abrata – Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtorno Afetivo. WAGNER SILVA RIBEIRO Psicólogo, Doutor em Ciências pelo Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), com estágio no Institute of Psychiatry – King’s College, London. Como psicólogo, trabalhou por mais de oito anos no sistema penitenciário do Estado de São Paulo, três dos quais na Coordenadoria de Saúde do Sistema Penitenciário. Pesquisador no Setor de Psiquiatria Social do Departamento de Psiquiatria da Unifesp e pesquisador associado do Health Section and Population Research De- partment – Institute of Psychiatry – King’s College, London. 13 Apresentação O curso Políticas públicas de saúde mental foi criado em 2008, no CAPS Professor Luiz da Rocha Cerqueira – o CAPS Itapeva, sendo destinado principalmente a gestores de serviços e articuladores de saúde mental do Estado de São Paulo e dos municípios, tendo como objetivos: • desenvolver conhecimentos para elaboração e avaliação crí- tica de projetos em saúde mental; • capacitar esses profi ssionais para melhor compreender, organizar e desenvolver ações integradas de cuidado à saúde, na perspectiva da atenção integral à saúde individual e coletiva; • instrumentalizar esses profi ssionais para o trabalho inter- disciplinar, visando o desenvolvimento de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde mental na comunidade. Organizado pelo dr. Mário Dinis Mateus, com quem tive- mos a oportunidade e o prazer de trabalhar na coordenação do CAPS Itapeva no período de 2007 a 2010, este livro é a prova concreta de sua capacidade de articular temas variados e rele- vantes para a construção conjunta de políticas de saúde mental, mediante a união de profi ssionais reconhecidos na área, que aqui dividem seu conhecimento. Foram 277 alunos que completaram o curso nesses quatro anos, dentre os quais pós-graduandos de Saúde Mental do De- partamento de Psiquiatria da Unifesp e, nos dois últimos anos, POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL 14 alunos de associações de portadores de transtorno mental e fa- miliares, cuja participação trouxe enriquecimento e abertura ainda maior ao leque de discussões sobre as políticas de saúde mental na sociedade. Embora limitado em seu tempo (manhãs de terça-feira do segundo semestre) e na disponibilidade do corpo docente (todos voluntários), o desejo de ampliar seu alcance resultou, entre ou- tros planos, no projeto deste livro. Parabenizamos a todos os alunos que, ao longo desses qua- tro anos, mais que motivaram os organizadores do curso a conti- nuar, indicando o caminho a ser seguido, além de terem avaliado, a cada ano, as estratégias adotadas para melhoria do projeto. Marcel Higa Kaio Diretor Técnico – CAPS Itapeva Vladimir de Freitas Junior Diretor Clínico – CAPS Itapeva 15 Prefácio A Secretaria de Estado da Saúde vem dialogando com os diversos setores da saúde, do poder público e da sociedade civil para construir consensos que favoreçam o debate, considerando o cuidado de qualidade, a valorização do indivíduo e a garantia de direitos como metas a serem alcançadas e princípios norteado- res das ações em saúde mental no Estado de São Paulo. As questões relacionadas à saúde mental se apresentam no contexto político e social brasileiro como um grande desafi o na busca da garantia de direitos de cidadãos com transtornos men- tais. Os avanços que acompanham as transformações na condução do cuidado em saúde mental também são desafi os aos gestores, que são chamados a redirecionar o modelo de atenção e implantar uma série de recursos de saúde com potencial técnico para efeti- var tal transformação. E, nessa perspectiva, mudar o modelo de atenção não se resume simplesmente à abertura de novos serviços. Implantar Centros de Atenção Psicossocial, Residências Te- rapêuticas, Centros de Convivência, Unidades de Acolhimento, Enfermarias de Saúde Mental em Hospital Geral requer, além da vontade política do gestor, recursos fi nanceiros, administrativos e técnicos de que muitas vezes os municípios não dispõem. O potencial humano também impõe barreiras na expansão da rede psicossocial. Algumas categorias profi ssionais são ausentes em diversos territórios do Estado de São Paulo e certamente na maior parte dos País, questão essa que compromete signifi cativa- mente a implantação da rede psicossocial e deve estar pautada nas POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL 18 19 Introdução à política de saúde mentalI POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL 20 Introdução O Brasil tem um sistema de saúde mental inovador, centra- do nos cuidados na comunidade, mas ainda enfrentando grandes desafi os em sua implementação. As críticas ao modelo de assistência centrado nos hospitais psiquiátricos e experiências localizadas de mudança da forma de atendimento vão se acumulando, principalmente a partir da dé- cada de 1960 (Cerqueira, 1984), mas foi somente a partir do fi nal da década de 1980 que a reforma psiquiátrica brasileira toma vul- to e implanta-se como política de governo (Resende, 1987; Me- deiros, 1992). 1 O contexto político-administrativo 1.1 O Sistema Único de Saúde Em 1990 é promulgada a lei n.º 8.080, que estabelece o Sis- tema Único de Saúde (SUS), adotando os princípios da univer- salidade de acesso, integralidade de assistência, descentralização dos serviços para os municípios, regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde, e a equidade na distribuição dos recursos (Souza, 2002). O advento do SUS permite que diversos fatores de mudança se aglutinem e as duas últimas décadas assistem à efetivação da O sistema de saúde mental brasileiro: avanços e desafi os Mário Dinis Mateus Jair de Jesus Mari CAPÍTULO1 23 o montante gasto pelo governo federal com saúde mental dimi- nuiu (Andreolli et al., 2007), ou seja, nem toda a verba antes gasta com internações psiquiátricas é hoje investida em serviços e ações comunitários, mas essa redução foi contestada pela coordenação de saúde mental do Ministério da Saúde (Delgado, 2007). 1.5 Acesso à medicação Existe no País uma lista de medicamentos chamados “essen- ciais”, distribuídos gratuitamente nas Unidades Básicas de Saúde e ambulatórios dotados de farmácias de dispensação de medica- mentos. Uma relação de medicamentos para o programa de saúde mental está nessa lista de medicamentos essenciais (Negri, 2002). Em 1999 foi instituído o Programa para Aquisição de Medica- mentos para Saúde Mental que, seguindo o princípio da descen- tralização, permite que a programação e as compras acompanhem a estrutura e as particularidades de cada local. O Ministério da Saúde envia diretamente aos fundos de saúde o equivalente a 80% dos gastos, que estão condicionados a uma contrapartida de 20% do total. Em 2001 foram destinados a esse programa R$ 22,9 mi- lhões por parte do governo federal. O Ministério da Saúde tam- bém trabalha com uma lista de medicamentos chamados “de alto custo” ou “excepcionais”, de valor elevado e utilizados, em geral, em tratamentos por longos períodos, como os destinados a doen- ças psiquiátricas, neurológicas, osteoporose, hepatite e transplan- tes (no caso da saúde mental, fundamentalmente os antipsicóticos de segunda geração). A aquisição e a distribuição desses medica- mentos são de responsabilidade dos estados, sendo fi nanciadas com recursos do Ministério da Saúde (Negri, 2002). 1.6 Contexto político Thornicroft e Tansella (2006) nos fornecem uma estratégia para relacionarmos legislação, governo e sociedade (“opinião pública”) na evolução das políticas de saúde mental (Figura 1): numa contínua e mútua infl uência, a política de saúde mental faz- se muito além das tomadas técnicas de decisão para esta ou aque- la estratégia. Se isso já é verdade para todo o sistema de saúde, o caráter subjetivo da saúde mental deu margem a que os debates 1 O sistema de saúde mental brasileiro: avanços e desafi os POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL 24 sociais sobre os critérios de normalidade e doença, os tratamentos preconizados, e o mandato social dos profi ssionais da área, fossem acirrados e antagonizados. Nesse jogo de infl uências, chamamos atenção para a ação de grupos organizados, ligados a entidades representativas de usuários e familiares ou de categorias profi ssio- nais (sindicatos, associações, conselhos profi ssionais) e grupos da comunidade acadêmica. Esses grupos tomam posição e lutam por infl uenciar opinião pública e políticos para a condução da política de saúde mental de acordo com os princípios que defendem. No Capítulo 2 apresentaremos um detalhamento históri- co da chamada reforma da assistência psiquiátrica, mas pode- mos separar, no Brasil, três grandes grupos de infl uência: a) os contrários à reforma; b) os defensores da reforma favoráveis à psiquiatria comunitária; e c) defensores do modelo da reforma italiana (ou antimanicomiais). • Ação de grupos de interesse e organizações de profissionais • Experiências pessoais • Mídia • Visibilidade (gravidade, prevalência) dos problemas • Atitudes e valores sobre liberdade civil, segurança pública etc. • Ação de grupos de interesse e organização de profissionais • Experiências pessoais • Pressão da mídia • “Máquina” administrativa • Evidências de pesquisas e inquéritos • Situação econômica • Arranjos políticos • Competição com outros setores do governo • Proximidade das eleições OPINIÃO PÚBLICA POLÍTICOS Leis e políticas de saúde mental z z z Figura 1 – Influências do governo e da opinião pública nas leis e políticas de saúde mental Adaptado de Thornicroft e Tansella, 2006. 25 Os princípios da política de saúde mental brasileira costu- mam ser sintetizados com base nas resoluções da Declaração de Caracas (Uzcátegui e Levav, 1990): 1. Que a reestruturação da assistência psiquiátrica ligada ao Aten- dimento Primário da Saúde, no quadro dos Sistemas Locais de Saúde, permite a promoção de modelos alternativos, centrados na comunidade e dentro de suas redes sociais. 2. Que a reestruturação da assistência psiquiátrica na região im- plica a revisão crítica do papel hegemônico e centralizador do hospital psiquiátrico na prestação de serviços. 3. Que os recursos, cuidados e tratamentos dados devem: a) salvaguardar, invariavelmente, a dignidade pessoal e os direi- tos humanos e civis; b) estar baseados em critérios racionais e tecnicamente ade- quados; c) propiciar a permanência do enfermo em seu meio comu- nitário. 4. Que as legislações dos países devem ajustar-se de modo que: a) assegurem o respeito aos direitos humanos e civis dos doen- tes mentais; b) promovam a organização de serviços comunitários de saúde mental que garantam seu cumprimento. 5. Que a capacitação dos recursos humanos em Saúde Mental e Psiquiatria deve fazer-se apontando para um modelo, cujo eixo passa pelo serviço de saúde comunitária e propicia a internação psiquiátrica nos hospitais gerais, de acordo com os princípios que regem e fundamentam essa reestruturação. Hoje, no entanto, esses princípios apresentam contradições frente às posições “basaglianas”. Por exemplo, Borges e Baptista (2008), a respeito do encontro “Saúde mental e cidadania no con- texto dos sistemas locais de saúde”, realizado em 1991, comentam: Esse encontro foi marcado pela articulação das propostas ba- saglianas com os princípios da Declaração de Caracas. (...) Essa articulação abria possibilidade de dubiedade da ação que passaria a ser desenvolvida pela Coordenação Nacional de Saúde Mental. Os pressupostos que embasam cada vertente apresentam incon- 1 O sistema de saúde mental brasileiro: avanços e desafi os POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL 28 na assistência em saúde mental. O movimento pela reforma psi- quiátrica por vezes é apresentado como sobreposto ao chamado “movimento da luta antimanicomial”, mas na verdade conta com outros atores que não acompanham este último em vários mo- mentos históricos, como, por exemplo, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) (Jorge e França, 2006). Apesar da CGSM contar com frequente apoio desse movi- mento, a lista de reivindicações atribuíveis a este último não é consensual, nem foi ofi cialmente encampada pela política nacio- nal, ao menos no que diz respeito às suas posições mais radicais, como, por exemplo, a extinção de toda e qualquer internação psiquiátrica, ou o princípio que vai contra o modelo de saúde e doença presente na medicina contemporânea. Se a Atenção Bási- ca ou a política para medicamentos de alto custo, por exemplo, exigem orientações dentro do referencial tradicional da saúde (como o uso de diagnósticos psiquiátricos e níveis de gravida- de, desenvolvimento de protocolos etc.), é nesse registro que se opera, mas sempre buscando estratégias como a equipe multi- profi ssional, ou o estímulo aos métodos alternativos à medica- ção. Se grupos de profi ssionais (por exemplo, Conselho Federal de Psicologia, 2009) e usuários reivindicam a proibição da ele- troconvulsionoterapia (ECT), ou que na Atenção Básica não se deve “medicalizar” o “sofrimento mental” (expressão utilizada no lugar aos transtornos mentais mais prevalentes) (Brasil, Conse- lho Nacional de Saúde, 2002), a negociação prossegue fazendo acordos e compromissos (por exemplo, o ECT não é proibido, mas instituições hospitalares que o utilizam são penalizadas com pontuação menor na avaliação do Ministério). 2 Programas e serviços 2.1 Cobertura de leitos psiquiátricos Temos hoje evidências de que um “balanço” entre serviços comunitários e hospitalares (Thornicroft e Tansella, 2004) atende melhor as necessidades dos usuários do que um sistema planeja- do unicamente com o componente hospitalar ou o comunitário. A superação do hospital psiquiátrico (HP) é uma premissa da 29 política de saúde mental brasileira mas, ao fi nal das mudanças em curso, ainda não está claro como fi cará a oferta de leitos para hos- pitalização nem se toda internação/“acolhimento” será realizada indiferenciadamente nos CAPS III ou em unidades de psiquiatria em hospital geral (UPHG) (voltaremos ao tema no adendo ao fi nal deste capítulo). O planejamento proposto nas Diretrizes para a Programação Pactuada e Integrada da Assistência à Saúde (Brasil, Ministério da Saúde, 2006) utiliza o conceito de “leitos integrais em saúde men- tal”, que seriam a soma dos leitos psiquiátricos em HG, HP, leitos de CAPS III e prontos-socorros, para calcular a cobertura de lei- Tabela 1 – Total de leitos no Brasil, SUS (públicos e conveniados) e particulares, em 2006 Total de Estabelecimentos Leitos Leitos/ Leitos par- Leitos/ Total de leitos/ SUS mil hab. ticulares mil hab. leitos mil hab. HG com leitos de psiquiatria 1.094 0,0059 130 0,0007 1.224 0,0066 HG com unidade psiquiátrica 1.939 0,0104 420 0,0022 2.359 0,0126 Pronto-socorro especializado psiquiatria 45 0,0002 0 0,0000 45 0,0002 Leitos em CAPS III 74 0,0004 0 0,0000 74 0,0004 Leitos integrais em saúde mental (sem hospital psiquiátrico) 3.152 0,0169 550 0,0029 3.702 0,0198 Hospital psiquiátrico público ou conveniado 43.039 0,2304 4.900 0,0262 47.939 0,2567 Hospital psiquiátrico não SUS 0 0,0000 3.232 0,0173 3.232 0,0173 Total 46.191 0,2473 8.682 0,0465 54.873 0,2938 Fonte: CNES, junho de 2006. População do País, em 01/07/2006, de 186.770.562 habitantes (Brasil. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, 2009). 1 O sistema de saúde mental brasileiro: avanços e desafi os POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL 30 tos por habitante, determinando que esta deva ser de 0,1 a 0,16 leitos/1.000 habitantes para “municípios com rede substitutiva efetiva” e de 0,16 a 0,24 leitos/1.000 habitantes para “municípios com hospital psiquiátrico e sem rede substitutiva efetiva”. Mu- nicípios que tenham cobertura acima desses números deveriam diminuir o número de leitos em hospital psiquiátrico. A Tabela 1 mostra que, no ano de 2006, a soma dos “leitos integrais de saúde mental” sem os leitos em hospital psiquiátrico, mesmo se somados com os leitos particulares no País, não passa- va de um décimo do proposto para a cobertura em um Município funcionando com a chamada rede substitutiva. Houve uma redução de 31% dos leitos em HP de 1999 a 2004, e o número continua caindo, passando, de 0,23 leitos públi- cos por mil habitantes, em HP, em 2005, para 0,17 leitos públicos por mil habitantes em HP, em 2011 (Brasil, Ministério da Saú- de, 2012). Em termos comparativos, os países de renda “média- alta”, mesma categoria do Brasil, têm, na mediana, 0,77 leitos por mil habitantes, somando-se, neste último índice, leitos em HP e HG (World Health Organization, 2005). Esse índice é ainda mais preo cupante por falarmos da média nacional de leitos, e já que al- guns municípios têm grande concentração de hospitais psiquiá- tricos, todo o restante do País está muito abaixo dessa média. O Programa Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar (Pnash) do Ministério da Saúde avalia os hospitais psiquiátricos, segundo diretrizes da portaria n.º 251 do Gabinete do Ministro, de 2002. A avaliação utiliza um instrumento resultante de dois roteiros: de saúde mental e de vigilância sanitária (condições de higiene, alimentação, farmácia etc.). O Programa já realizou vis- torias em todos os hospitais psiquiátricos públicos e conveniados ao SUS em 2002, 2003/2004 e 2006/2007. Já o Programa de Reestruturação da Assistência Hospitalar (PRH) foi instituído em 2004, visando promover a redução pro- gressiva dos leitos dos macro-hospitais (acima de 600 leitos) e hospitais de grande porte (com 240 a 600 leitos psiquiátricos). Para tanto, são defi nidos no Programa os limites máximos e mí- nimos de redução anual de leitos para cada classe de hospitais. Assim, todos os hospitais com mais de 200 leitos devem reduzir, 33 beram alta hospitalar. O benefício é válido por um ano, podendo ser renovado mediante pedido da equipe de saúde mental que acompanha o caso, e pode ser pago também para moradores dos SRTs. Em 2011 haviam 3.961 pessoas inscritas no Programa (Bra- sil, Ministério da Saúde, 2012). 2.6 Serviços residenciais terapêuticos A portaria n.º 106 do Gabinete do Ministro, de 2000, defi - ne Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) como “moradias ou casas inseridas, preferencialmente na comunidade, destinadas a cuidar dos portadores de transtornos mentais, egressos de inter- nações psiquiátricas de longa permanência, que não possuam su- porte social e laços familiares que viabilizem sua inserção social”. Esse programa vem crescendo continuamente: em 2002 existiam 85 SRTs, em 2008 já tínhamos 625, com 3.470 moradores (Bra- sil, Ministério da Saúde, 2012), o que é ainda muito pouco para atender a demanda de usuários que hoje permanecem nos HPs por não ter condições de suporte social e de tratamento na co- munidade, caso recebam alta hospitalar. Somente no Estado de São Paulo, onde se realizou um “censo dos moradores de hospital psiquiátrico”, em 2008, encontraram-se 6.349 pacientes de longa permanência (mais de um ano), 65% destes internados há mais de 10 anos e 26% sem informações sobre os familiares (Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, 2008). Um ponto positivo na proposta dos SRTs é que a verba para sua implantação vem da quantia anteriormente gasta no leito ocupado pelo paciente no HP (com a saída do paciente, a vaga deixa de existir), garantindo assim a transferência de recurso hospitalar para o recurso comunitário. As maiores difi culdades encontradas são a necessidade de equipes de saúde mental (no geral dos CAPS) preparadas para supervisionar o SRT e tratar os seus moradores, e o risco desses pacientes serem “instituciona- lizados na comunidade”, ou seja, serem transferidos para áreas degradadas da cidade (onde os vizinhos não colocaram empe- cilhos à abertura do serviço) e confi nados à sua nova moradia (Furtado, 2006). Os SRTs são tema do Capítulo 9. 1 O sistema de saúde mental brasileiro: avanços e desafi os POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL 34 2.7 Saúde mental na Atenção Básica Ainda existe muita discrepância no estágio da atenção à saú- de mental nos municípios, havendo a necessidade de desenvolver sistemas de informação que possam dar subsídios para compre- ender o impacto dessas ações. Em janeiro de 2008, a portaria n.º 154 do Ministério da Saúde criou os núcleos de apoio à saúde da família (NASF), visando “A res- ponsabilização compartilhada entre as Equipes Saúde da Família e as equipes do NASF na comunidade [que] prevê a revisão da prática atual do encaminhamento com base nos processos de referência e contrarreferência, ampliando-a para um processo de acompanha- mento longitudinal de responsabilidade da equipe de Atenção Bási- ca/Saúde da Família (...)” (Brasil, Ministério da Saúde, 2009a). Os profi ssionais da área da saúde mental dos NASFs devem realizar um trabalho conjunto com as equipes do PSF, que “con- siste nas ações de supervisão, atendimento compartilhado e ca- pacitação em serviço, realizado por uma equipe de saúde mental para equipes ou profi ssionais da Atenção Básica” (Brasil, Minis- tério da Saúde, 2007). O CAPS também pode compor equipes de referência em saúde mental, e tanto as sediadas no CAPS como no NASF devem ser responsáveis, cada uma, pelo acompanha- mento matricial de seis até nove equipes do PSF ou da Atenção Básica em geral. Ainda não temos estudos acerca da efetividade e efi ciência dessa forma de capacitação e atendimento. As iniciativas para treinamento dos profi ssionais na Atenção Básica estão hoje centradas nas ações de matriciamento (como ve- remos no Capítulo 6), mas um número não conhecido de progra- mas de capacitação em saúde mental ocorre em diversos municí- pios. Apenas uma pequena parcela dos técnicos de Atenção Básica realiza treinamento em manejo de psicotrópicos, intervenções psi- cossociais ou outros temas de saúde mental; não existe um conteú- do mínimo padronizado para essas atualizações. O matriciamento encontra difi culdades em sua implementação, pois ainda são pou- cos os profi ssionais de saúde mental formados para trabalhos nesse referencial. Em 2005 já havia 24.600 equipes do PSF implantadas, o que geraria a necessidade de pelo menos 2.730 equipes de matri- ciamento em saúde mental, para a cobertura do PSF. 35 Não faz parte da política nacional o estímulo ao desenvolvi- mento e adoção de protocolos ou diretrizes de ação para os proble- mas mais frequentes em saúde mental. Aqui, a política brasileira contrasta com as recomendações de ações voltadas para cuidados essenciais dos principais transtornos mentais da população, que trabalham com base na criação de diretrizes de diagnóstico e tra- tamento (World Health Organization, 2001 e 2003; Patel et al., 2007; Lancet Global Mental Health Group, 2007). Uma exceção a essa observação é o Programa de Prevenção do Suicídio, que ado- tou material desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde, notadamente o “Manual para Profi ssionais da Saúde em Atenção 1 O sistema de saúde mental brasileiro: avanços e desafi os Tabela 2 – Número de profissionais atuando em serviços de saúde mental por 100.000 habitantes, por profissão (item 4.1.1 do WHO-AIMS Brasil, comparado com dados do Atlas 2005) Profissionais atuando em Países de renda serviços de saúde mental Brasil Américas média-alta 1. Psiquiatras 3,26 2,00 2,70 2. Outros médicos, sem especialidade em psiquiatria* 0,58 – – 3. Enfermeiras psiquiátricas** 1,70 2,60 5,35 4. Psicólogos 10,19 2,80 1,80 5. Assistentes sociais*** 1,08 1,00# 1,50# 6. Terapeutas ocupacionais 1,95 – – * Não temos o total. O número de clínicos gerais trabalhando em HP foi de 758 e, em CAPS, foi de 307. ** Enfermeiras habilitadas como enfermeiras psiquiátricas = 680; enfermeiras trabalhando em HP = 1.450; e em CAPS = 989. *** Havia 14.338 assistentes sociais nos serviços de saúde como um todo. Não temos o número de assistentes sociais dedicados exclusivamente à saúde mental, mas existiam 949 nos HP e 1.036 trabalhando nos CAPS. # Em outros países, a função do assistente social (social worker) na saúde mental está voltada para intervenções psicoterápicas e gerenciamento de caso de pa- cientes com transtorno mental grave. Fonte: TABWIN-CNES, dezembro, 2005. World Health Organization, 2005. POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL 38 5 Intersetorialidade O relatório de gestão de 2006 da CGNS (Brasil, Ministério da Saúde, 2007) relata as seguintes ações intersetoriais desenvolvi- das pela política de saúde mental: “inclusão social pelo trabalho”, trabalhando fundamentalmente com a Secretaria Nacional da Economia Solidária do Ministério do Trabalho (Brasil, Ministé- rio da Saúde, 2005a); saúde mental e cultura (com o Ministério da Cultura); e ações que poderíamos agrupar em “ações interse- toriais para grupos ou populações específi cos”: infância e ado- lescência (Brasil, Ministério da Saúde, 2005b), população negra, homossexuais e mulheres. No entanto, não temos ainda dados do impacto dessas ações, nem da extensão que experiências isoladas têm alcançado no País. A IV Conferência de Saúde Mental (Brasil. Conselho Nacional de Saúde, 2010) foi chamada de conferência intersetorial, procurando envolver outros setores do governo e da sociedade nos temas de saúde mental discutidos. 6 Sistemas de informação No Brasil, as principais fontes de dados utilizadas para mo- nitorar os procedimentos de saúde mental são os bancos de da- dos Datasus (Brasil. Ministério da Saúde, 2009b) e CNES (Brasil. Ministério da Saúde, 2009c). No entanto, o Datasus traz limita- ções ao monitoramento do sistema de saúde mental, quer pela falta de informações relevantes apenas para o sistema de saúde mental, quer pelo fato de não contabilizar os procedimentos rea- lizados na chamada medicina complementar (convênios de saú- de, cooperativas médicas e serviços particulares). Os dados da medicina complementar são muito importantes para a avaliação do setor público; por exemplo, para verifi car se o modelo atual está gerando aumento da procura por leitos particulares. Outra difi culdade trazida pelo uso do Datasus é que, sendo um sistema de dados fundamentalmente criado para o controle do repasse de verbas aos estados, municípios e prestadores de serviço con- veniados, seus números podem apresentar um viés pelo risco de superfaturamento. 39 7 Pesquisa O investimento canalizado para os programas de pós-gra- dua ção na formação de recursos humanos, por meio de bolsas de estudos e fomento à pesquisa, tem permitido ao País uma mo- desta mas crescente presença na pesquisa em saúde mental no cenário internacional (Mari et al., 2006). O CNPq, em parceria com o Ministério da Saúde, abriu, em 2008, uma seleção pública de propostas de pesquisa sobre saúde mental, que abordem um dos seguintes temas: Saúde mental na Atenção Primária; Desinstitucionalização e inclusão social e Gestão e organização da atenção (Brasil. Conselho Nacional de Desenvol- vimento Científi co e Tecnológico, 2009). No que se refere ao en- volvimento do sistema de saúde com a produção científi ca, ainda é pequena a participação dos técnicos dos serviços de saúde men- tal que produzem pesquisa científi ca nos seus locais de trabalho. Conclusões Apesar de, hoje, a maioria dos países desenvolverem políticas específi cas para a área da saúde mental, a avaliação dessas políti- cas nacionais ainda é um desafi o sobre o qual há pouca produção científi ca e muito pouco consenso. A avaliação da política nacio- nal de saúde mental brasileira é especialmente difícil, dada a di- mensão e complexidade de nosso sistema de saúde. A reforma do sistema de saúde mental brasileiro apresentou, nas duas últimas décadas, intensa mudança no modelo de assistência, no destino dos recursos fi nanceiros, e no arcabouço legislativo. Podemos dizer que o sistema de saúde mental no Brasil apoia-se sobre uma política híbrida, que avança sobre uma cons- tante tensão entre concepções diferentes da reforma da atenção psiquiátrica. O sistema baseia-se hoje numa ênfase às ações no âmbito do CAPS, havendo uma mudança de um sistema hospita- locêntrico para um modelo de enfoque comunitário. O acesso ao tratamento (não só ao atendimento, mas tam- bém à medicação, quando necessária) está amplamente garan- tido por lei e programas do SUS. Neste estudo não se realizou 1 O sistema de saúde mental brasileiro: avanços e desafi os POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL 40 uma comparação entre Estados ou regiões do País, mas a va- riação dos índices de serviços ou recursos humanos por habi- tante, nas diferentes regiões, indica que as mais carentes (em especial a Região Norte) têm dificuldade em oferecer acesso ao tratamento. A redução de leitos em hospitais psiquiátricos é objeto de planejamento para que ocorra de forma gradual e acompanhada por programas de apoio, como a abertura de SRTs e a bolsa De Volta Para Casa. No entanto, as más condições de muitos hos- pitais psiquiátricos conveniados e a falta de estímulo fi nanceiro para que estes invistam em sua infraestrutura podem estar levan- do a um descredenciamento não previsto de hospitais, com risco de crises de falta de assistência. Novos serviços, os CAPS e os SRTs foram priorizados na po- lítica nacional e alcançaram grande expansão nos últimos anos. Não há, porém, investimentos na UPHG com a intensidade que se viu nos CAPS, e a aposta implícita de que os leitos nos CAPS III suplantarão a falta de leitos em hospital geral pode gerar difi cul- dades para o paciente e a equipe de saúde mental, nos casos mais graves ou com comorbidades clínicas. A Atenção Básica passa neste momento por um grande in- vestimento em saúde mental: a contratação de equipes de saúde mental nos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). O in- vestimento em equipes de saúde mental (dos NASF ou dos CAPS), realizando o chamado apoio matricial, no lugar da estratégia tra- dicional de referência e contrarreferência entre serviços da Aten- ção Básica e serviços de saúde mental, ainda necessita de mais estudos sobre sua efetividade e efi ciência no sistema de saúde. 43 (2007). “Treatment and prevention of mental disorders in low-income and middle-income countries”. The Lancet. 370 (9594): 991-1.005. Resende, H. (1987). “Política de saúde mental no Brasil: uma visão his- tórica”. In: Tundis et al. (orgs.), Cidadania e loucura: políticas de saú- de mental no Brasil. Petrópolis: Vozes. Rodrigues, J.; Brognoli, F. F.; Spricigo, J. S. (2006). “Associação dos usuá- rios de um Centro de Atenção Psicossocial: Desvelando sua Signifi - cação”. Texto Contexto Enferm., 15(2): 240-5. Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (2008). 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Dis- ponível em [http://www.who.int/mental_health/evidence/atlas/ global_results.pdf] [citado 2009 maio 15]. 1 O sistema de saúde mental brasileiro: avanços e desafi os POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL 44 Adendo: um novo capítulo na política de saúde mental brasileira Neste primeiro capítulo apresentamos a ideia de que a polí- tica de saúde mental brasileira evolui ao longo da história do SUS de maneira híbrida, compondo valores e princípios por vezes contraditórios ou ambivalentes. Nos últimos anos o Ministério da Saúde publicou uma série de portarias que apontam para uma virada nesse “equilíbrio instável” de posições (que serão mais de- talhadas no Capítulo 2 e ao longo deste livro). A importância dessa série de portarias está principalmente em explicitar princípios e estratégias já presentes no discurso da Coordenação Nacional de Saúde Mental ou em resoluções das conferências de saúde mental, mas nunca diretamente assumidos pelo Ministério. Destacaremos neste texto duas portarias: • Portaria n.º 3.088/SAS, de 23 de dezembro de 2011. • Portaria n.º 854/SAS, de 22 de agosto de 2012. Portaria n.º 3.088, de 23 de dezembro de 2011 “Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde.” A Rede de Atenção Psicossocial, da mesma forma que a Rede de Atenção às Urgências e a Rede Cegonha (atenção ao parto), fazem parte da estratégia da Rede de Atenção à Saúde (RAS) lançada pelo Ministério em 2010 (portaria n.º 4.279, de 30 de dezembro de 2010). Na portaria n.º 3.088, a Rede de Atenção Psi- cossocial (RAPS) é apresentada em seus princípios, seus compo- nentes (com seus “pontos de atenção” ou serviços de saúde que os compõem) e o processo local que deve ser realizado para imple- mentar ou complementar a RAPS. No art. 5.º, os componentes da RAPS são listados (Figura 1): I – Atenção Básica em Saúde; II – Atenção Psicossocial Especializada; III – Atenção de Urgência e Emergência; IV – Atenção Residencial de Caráter Transitório; 45 V – Atenção Hospitalar; VI – Estratégias de Desinstitucionalização; e VII – Reabilitação Psicossocial. I – Atenção Básica em Saúde Pontos de atenção: a) Unidade Básica de Saúde: “A Unidade Básica de Saúde como ponto de atenção da Rede de Atenção Psicossocial tem a responsabilidade de desenvolver ações de promoção de saúde mental, prevenção e cuidado dos transtornos mentais, ações de redução de danos e cuidado para pessoas com necessidades de- correntes do uso de crack, álcool e outras drogas, compartilhadas, sempre que necessário, com os demais pontos da rede (...).” O Núcleo de Apoio à Saúde da Família: (...) “atuando direta- mente no apoio matricial e, quando necessário, no cuidado com- partilhado junto às equipes das unidades nas quais o Núcleo de Apoio à Saúde da Família está vinculado”. Além dos NASF, cria- dos para aumentar a capacidade resolutiva da AB em saúde men- tal, já existem experiências como a do município de Guarulhos, SP, de criar Núcleos de Apoio à Atenção Básica (NAAB) voltados para as equipes das UBS tradicionais. b) Equipes de Atenção Básica para populações em situações específi cas: • Equipe de Consultório na Rua • Equipe de apoio aos serviços do componente Atenção Resi- dencial de Caráter Transitório c) Centro de Convivência (que será discutido no Capítulo 8). II – Atenção psicossocial especializada Os CAPS, que são discutidos nos Capítulos 7 e 17, são apre- sentados como único ponto de atenção psicossocial especializada. Apesar do trabalho em rede, por defi nição, não ter um “centro”, fi ca claro que todos os demais pontos de atenção dependem, ao menos para as situações de maior gravidade, da articulação do CAPS (Figura 1), e que regiões com redes psicossociais sem CAPS 1 O sistema de saúde mental brasileiro: avanços e desafi os POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL 48 do cuidado estará sob a responsabilidade do Centro de Aten- ção Psicossocial ou da Atenção Básica, garantindo permanente processo de cogestão e acompanhamento longitudinal do caso” (portaria n.º 3.088). O CAPS pode atender consultas individuais periódicas, mas no geral não tem espaços adequados (salas com privacidade, lo- cal para espera) e seus profi ssionais estão imersos no cuidado in- tensivo, com todas as intercorrências que dele decorrem, mais os atendimentos de casos novos que chegam em crise. Para evitar um número grande desses usuários, os CAPS defi nem com fre- quência que quadros ansiosos e depressivos, mesmo que graves, “não têm perfi l” para o serviço e os reencaminham para a AB (no que deveria ser o processo de cogestão referido, mas que com grande frequência só alcança a simples troca de papeis de enca- minhamento e contraencaminhamento). Ainda no exemplo aci- ma, mesmo que incorporada ao CAPS, uma parte dessas pessoas não se adapta à dinâmica das atividades do CAPS e abandona o tratamento, ou só procura o CAPS nos momentos críticos, ou ainda para elas é apenas reproduzido o ambulatório de má qua- lidade, onde se comparece para consultas rápidas (“para retirar o remédio”) e pouco efetivas. III – Atenção de urgência e emergência Pontos de atenção: a) Os pontos de atenção da Rede de Atenção às Urgências – SAMU 192, Sala de Estabilização, UPA 24 horas, as portas hos- pitalares de atenção à urgência/pronto-socorro, Unidades Básicas de Saúde, entre outros – são responsáveis, em seu âmbito de atu- ação, pelo colhimento, classifi cação de risco e cuidado nas situa- ções de urgência e emergência (...) b) Os Centros de Atenção Psicossocial realizam o acolhi- mento e o cuidado das pessoas em fase aguda do transtorno mental, (...) devendo, nas situações que necessitem de internação ou de serviços residenciais de caráter transitório, articular e co- ordenar o cuidado. Os CAPS são apresentados na rede como responsáveis também pelo atendimento de urgência especializado em saú- 49 de mental, e discutiremos o papel do acolhimento à crise psi- cossocial nos CAPS a seguir. Podemos citar como prováveis exemplos de emergência psiquiátrica os casos de extrema agressividade; os de alto risco de suicídio e de confusão mental, exigindo constante monitoramento (além da investigação de causas orgânicas) etc. Nesses quadros, a presença de sintomas pode ser tão intensa que o acolhimento pela equipe do CAPS não basta. O risco de agressão, suicídio, fuga, é muito alto e o CAPS não deveria se transformar em uma enfermaria para dar conta dessa demanda. O ambiente de uma enfermaria é protegido por um controle de quem entra ou sai, objetos perigosos são controlados e o pró- prio número de estímulos é reduzido na medida do necessário para cada caso. A medicação, muitas vezes utilizada na crise em altas doses ou em associações novas para o paciente, necessita ser constantemente monitorada para efeitos indesejáveis. A presença de intercorrências clínicas é frequente e pode exigir exames subsi- diários e interconsultas com outras especialidades (por exemplo, um paciente com anorexia nervosa, internado por risco de vida por desnutrição). Ao menos no Estado de São Paulo, observa-se que vários municípios que possuem um ou mais CAPS III (São Paulo, Cam- pinas, Santos, Santo André, entre outros) optaram por manter ou criar também serviços especializados de urgência em saúde mental: plantonistas de psiquiatria (em alguns serviços também psicólogos) em pronto-socorro geral, equipe especializada (com psiquiatra) do SAMU. Como será discutido no Capítulo 10, as equipes de urgência em saúde mental são dispositivos potentes no atendimento de diversas demandas em saúde mental e na integração com o restante do sistema de saúde, em especial nas grandes cidades. IV – Na atenção residencial de caráter transitório Pontos de atenção: a) A Unidade de Acolhimento b) Serviços de Atenção em Regime Residencial, dentre os quais Comunidades Terapêuticas 1 O sistema de saúde mental brasileiro: avanços e desafi os POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL 50 Esse foco de atenção na rede nasce dentro das políticas de enfrentamento do crack, mas deve se expandir para uma série de circunstâncias em que a situação de rua ou a precariedade do ambiente familiar causam um agravamento insustentável do quadro enfrentado. V – Atenção hospitalar Pontos de atenção: a) Enfermaria especializada b) O Serviço Hospitalar de Referência [realiza] por meio de internações de curta duração, para usuários de álcool e/ou outras drogas, em situações assistenciais que evidenciarem indicativos de ocorrência de comorbidades de ordem clínica e/ou psíquica (...) VI – Estratégias de desinstitucionalização a) Serviços Residenciais Terapêuticos b) Programa De Volta para Casa O futuro dos leitos psiquiátricos no País “§ 1º – O hospital psiquiátrico pode ser acionado para o cuidado das pessoas com transtorno mental nas regiões de saúde enquan- to o processo de implantação e expansão da Rede de Atenção Psicossocial ainda não se apresenta sufi ciente. Estas regiões de saúde devem priorizar a expansão e qualifi cação dos pontos de atenção da Rede de Atenção Psicossocial para dar continuidade ao processo de substituição dos leitos em hospitais psiquiátri- cos” (portaria n.º 3.088). Aqui fi ca clara a posição do Ministério, há tempos propalada, mas nunca ofi cializada, na normatização do SUS: todos os hos- pitais psiquiátricos deverão ser substituídos pela Rede, ou seja, já hoje não pertencem a ela (a não ser em caráter complementar e temporário), e não se trata de apenas desospitalizar o paciente de longa permanência, mas se aponta claramente que toda interna- ção hospitalar se dará em enfermarias especializadas e unidades de desintoxicação, ambas em hospital geral. Adotando-se esse princípio de ação, a discussão passa por sabermos quantos leitos e unidades especializadas teremos que 53 Ação de hospitalidade [diurna/noturna] realizada nos CAPS como recurso do projeto terapêutico singular de usuários já em acompa- nhamento no serviço, que recorre ao seu afastamento de situações confl ituosas e vise ao manejo de situações de crise motivadas por sofrimento decorrente de transtornos mentais – incluídos aqueles por uso de álcool e outras drogas e que envolvem confl itos relacionais caracterizados por rupturas familiares, comunitárias, limites de comunicação e/ou impossibilidades de convivência e que objetive a retomada, o resgate e o redimensionamento das relações interpessoais, o convívio familiar e/ou comunitário. (Portaria n.º 854, grifos nossos.) A noção anterior de intensidade no cuidado, ao criar o cui- dado intensivo, dava conta de que o usuário do serviço passaria o dia no CAPS, mas não deixava claro que essa deveria ser uma situação justifi cada pela crise, motivando situações em que a pes- soa poderia passar anos frequentando o CAPS diariamente, den- tro de seu projeto terapêutico. Se a equipe avaliar que a situação crítica não cessou, poderemos ter usuários do serviço por longos períodos no “acolhimento diurno”, mas a defi nição mais clara de crise psicossocial indica uma organização do serviço que usa do acolhimento diurno/noturno como um recurso temporário du- rante a resolução de uma crise. Todos os CAPS, e não somente os CAPS III, podem agora oferecer o acolhimento noturno desde que credenciem seus “leitos de acolhimento noturno”. Outra questão para o debate, que surge desta defi nição de cri- se psicossocial, é sua diferença com a urgência psiquiátrica. John- son e Thornicroft (2008) apresentam uma revisão sobre o tema: Alguns autores distinguem emergências psiquiátricas e crise psi- cossocial (Segal, 1990; Rosen, 1997). Emergências tendem a ser defi nidas como situações nas quais há a necessidade de ação ime- diata, geralmente por conta de um nível alto de risco. (...) Frequen- temente também se defi ne uma emergência psiquiátrica como algo ocorrendo apenas no contexto de uma doença mental (Katschnig e Konieczna, 1990). Em contraste, o uso clássico de “crise” origina-se na teoria da crise (Caplan, 1961, 1964) e descreve uma resposta humana geral ao estres- se psicossocial grave, mais do que à manifestação de uma doença. (...) 1 O sistema de saúde mental brasileiro: avanços e desafi os POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL 54 Na prática clínica, no entanto, é difícil estabelecer fronteiras entre emergência e crise. (...) O uso destes termos tem, deste modo, mu- dado, e recentes discussões na organização e avaliação de serviços tem frequentemente usado o termo crise de modo mais pragmá- tico para descrever situações nas quais há uma urgente necessida- de de intervenção profi ssional, surgindo pelo menos em parte por problemas de saúde mental. Como comentamos no tópico sobre as emergências na Rede, permanece a dúvida se o acolhimento nos CAPS dará conta também das emergências psiquiátricas, contando apenas com o apoio dos serviços de emergência não especializados e leitos de saúde mental nos hospitais gerais. Conclusão Mesmo em países em que a reforma se deu com grande par- ticipação dos nela envolvidos e com maior clareza de princípios e estratégias adotadas, como por exemplo o Canadá, o modelo de assistência em saúde mental mantém-se em intenso debate para seu aperfeiçoamento (Clarke Institute of Psychiatry,1997; Mental Health Commission of Canada, 2012). Ainda é cedo para dizer que as mudanças em curso consoli- dam a reforma da assistência psiquiátrica no caminho defendido pelo movimento antimanicomial, até porque, passadas algumas décadas do início do movimento e da reforma, mais e mais as ideias defendidas se tensionam e se dividem, saindo de manique- ísmos teóricos para agora dar conta da complexidade do dia-a- dia dos serviços e das necessidades da população. A explicitação de pontos antes ambíguos é um passo importante, mas não resol- ve, por si, nossas contradições, enfrentamentos, carências. No Capítulo 2 retomaremos a história das políticas de saúde mental no Brasil e no mundo, mostrando que esse debate de décadas está longe de terminar. Pensamos que nosso grande desafi o é jus- tamente manter esse debate engrandecido e frutífero, envolvendo mais e mais a sociedade e aprofundando conceitos, para podermos sempre questionar nossas certezas e repactuar nossos compromissos. 55 Referências Andrade, L. 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Se o peso atribuído às medicações na mudança do modelo de tratamento é questionado (Thornicroft e Tansella, 2006, Grob, 2008), é inegável que esse recurso não só facilitou a saída de parte dos pacientes hospitali- zados para tratamentos na comunidade, como criou uma onda de otimismo que, juntamente com novos modelos de tratamento que vinham sendo desenvolvidos, acirrou a ideia de que o hospi- tal psiquiátrico devia deixar de ser o centro do sistema de saúde mental. Esses modelos de mudança, que ofereciam alternativas ao sistema tradicional de atendimento no hospital psiquiátrico, dentro e fora deste, ganham destaque progressivamente, como a higiene mental e a psiquiatria militar nos EUA, as comunidades terapêuticas na Inglaterra e a psiquiatria de setor na França. A psiquiatria preventiva ou higiene mental foi um movi- mento surgido nos EUA, dentro do conceito mais amplo de me- dicina preventiva na saúde pública (Caplan, 1980; Rose, 2001), e trouxe em seu bojo a premissa de que a doença mental é uma doença como as demais, e deve ser prevenida e tratada como tal, desencorajando assim seu isolamento da sociedade. A chamada psiquiatria militar, desenvolvida pelos EUA para atender o contingente de soldados com problemas psiquiátricos, durante e após a 2.ª Guerra Mundial, reforçou princípios que em grande parte serão básicos para o cuidado na comunidade: a ideia de que o tratamento deve se dar tão próximo quanto pos- sível do ambiente onde os sintomas são exibidos; que a identi- fi cação e tratamento precoce do problema podem levar a prog- nósticos mais favoráveis; que o tratamento psiquiátrico deveria consistir em grande parte em repouso, alimentação e suporte social e, fi nalmente, a ideia de que o retorno ao funcionamento anterior era inteiramente possível (Lamb, 1988, citado em Bach- rach e Clark, 1996). 59 Muitas iniciativas se deram dentro do hospital psiquiátrico, em projetos de reformulação do atendimento de enfermarias ou alas, por grupos de profi ssionais que acreditavam que as novas técnicas da chamada psiquiatria administrativa, e o uso racio- nal da medicação e de técnicas psicanalíticas poderiam mudar a natureza do atendimento empreendido no hospital, criando as comunidades terapêuticas dentro desses hospitais (Clark, 1973). A psiquiatria de setor, na França, vai num sentido di- ferente, passando pelo conceito de territorização da demanda, através da criação de centros de saúde mental e de enfermarias de psiquiatria no hospital geral, que obedecem ambos a uma regionalização, e onde equipes de profi ssionais de saúde mental acompanham o paciente tanto na internação, como na comuni- dade (Ey, 1978). Finalmente, no campo cultural, a crítica ao modelo do hos- pital psiquiátrico foi fortemente infl uenciada por fatores socio- culturais, pois durante todo o século XX houve uma crescente preocupação com o respeito aos direitos civis e liberdades indi- viduais, além do questionamento dos limites do Estado no con- trole social dos indivíduos. Essa crítica ganhou forte impulso em momentos cruciais, como o fi nal da 2.ª Guerra Mundial (Messas, 2008) e o fi nal dos anos 60 (Goffman e Joy, 2007). A mudança do modelo chamado hospitalocêntrico para o outro nomeado comunitário (Szmukler e Thornicroft, 2001) tor- nou-se premissa básica no que se convenciona chamar reforma da assistência psiquiátrica, cunhando-se o termo desinstitucio- nalização para as políticas caracterizadas por: a) evitar admissões de casos novos em hospitais psiquiátricos, através de alternativas de tratamento na comunidade; b) devolver à comunidade todos os pacientes institucionalizados que tenham recebido a adequa- da preparação para essa mudança; e c) estabelecer e manter um sistema de suporte e reabilitação na comunidade para as pessoas com transtornos mentais graves. O princípio da desinstitucionalização, agregando todas as críticas e experiências alternativas em desenvolvimento, começa a ganhar a forma de uma política de saúde mental na década de 1950, com a psiquiatria comunitária, conceito 2 Aspectos históricos das políticas de assistência em saúde mental POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL 60 desenvolvido em especial nos países de língua inglesa, e que guarda semelhanças com a política da psiquiatria de setor na França. A psiquiatria comunitária caracteriza-se pelo atendi- mento em saúde mental em serviços na comunidade, sejam especializados ou de saúde em geral, obedecendo a princí- pios como o atendimento territorial, a busca da inserção do paciente na comunidade, e o atendimento multiprofissional (Szmukler e Thornicroft, 2001). Simultanea mente, várias mu- danças contribuíram para o aperfeiçoamento do diagnóstico e tratamento dos transtornos mentais, como a adoção de crité- rios diagnósticos padronizados, a busca de evidências de efeti- vidade das ações, e o apoio dos estudos epidemiológicos para tomadas de decisão. Crítica ao modelo médico na saúde mental Com o tempo, uma segunda vertente é criada dentro das políticas de desinstitucionalização: profi ssionais da saúde, por- tadores de transtornos mentais e pesquisadores de diversas áreas procuraram alternativas ao modelo médico tradicional, descons- truindo todo o arcabouço que o sustenta: as categorias psicopa- tológicas e diagnósticas, a hierarquia decisória sobre o tratamen- to que coloca o psiquiatra como líder de uma equipe, as teorias etiológicas da doença mental ou a própria noção de doença. Essa “desconstrução” se deu de maneira fragmentada e descontínua ao longo do século XX, mas podemos destacar a importância dos trabalhos no campo das ciências humanas, reavaliando a corpo- ração e o saber psiquiátrico (Foucault, 1989; Goffmam, 2007; Stanton e Schwartz, 1954), o movimento da antipsiquiatria (Coo- per, 1982; Laing, 1979) e a Reforma Psiquiátrica italiana (Nicácio, 2003; Basaglia, 1980). A antipsiquiatria não se manteve como movimento organi- zado, propondo alternativas ao tratamento psiquiátrico como o fazia em sua origem, mas até hoje suas críticas são um referencial importante, por vezes explícito, como, por exemplo, em setores do movimento norte-americano de usuários de saúde mental (Rissmiller e Rissmiller, 2006). 63 pitalização estaria se realizando com prejuízo para os pacientes. Em 2007, todos os hospitais psiquiátricos já estavam fechados, sobrando, dos 78.538 pacientes internados na ocasião da promul- gação da Lei, menos de 2.000 pacientes idosos ainda não transfe- ridos para residências terapêuticas ou clínicas de retaguarda; b) as unidades de internação em hospital geral eram insufi cientes, apesar de consumirem grande parte dos recursos destinados à saúde mental e, sendo frequentemente unidades fechadas dentro do hospital geral, reproduziriam a lógica asilar (Lovell, 1986); c) os serviços comunitários não foram padronizados pela Lei, ten- do cobertura e funcionamento muito diferentes entre as re giões do país, sendo poucas as cidades (Trieste, Arezzo, Ferrara, por exemplo) que possuíam uma rede bem estabelecida de cuidados 24 horas na comunidade (Lovell, 1986); d) a presença crescente de unidades privadas de internação: em 2000, 54% de todos os leitos psiquiátricos de crise eram privados, média muito acima dos 18% de leitos privados no total de leitos do país (Girola- no et al., 2007); e) apesar de estudos recentes de qualidade de vida demonstrarem um bom nível de satisfação dos pacientes, os familiares relatavam uma grande carga no cuidado do paciente (Girolano et al., 2007). Uma parte das críticas pode ser compreendida pela falta de investimentos, uma vez que várias regiões não se engajaram nas mudanças propostas ou não deram prioridade ao investimento em saúde mental. As regiões recebem verba para saúde como um todo, e desta destinam à saúde mental uma parcela que é de- cidida por critérios não padronizados no país (Piccinelli, 2002), acarretando diferenças substanciais nos índices de cobertura. As críticas aos serviços na comunidade que oferecem, por exemplo, tratamento medicamentoso de pouca qualifi cação técnica, ou de que há pouca oferta de programas de reabilitação psicosso- ciais efetivos, na realidade são comuns a vários países europeus (Kohn et al., 2004). A experiência italiana demonstrou que é possível uma política de saúde mental utilizando paradigmas exteriores à medicina. Até hoje foco de grande controvérsia, sua infl uência é um dado fun- damental para entendermos a política de saúde mental brasileira. 2 Aspectos históricos das políticas de assistência em saúde mental POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL 64 A política de saúde mental no Brasil 1 A criação do SUS Até o fi nal da década de 1980, cabia ao Ministério da Saúde apenas campanhas de promoção da saúde e prevenção de doenças, ações pontuais em locais com carências importantes ou para po- pulações específi cas, e a manutenção de alguns hospitais para tu- berculose e psiquiátricos, estes últimos a cargo do Serviço Nacio- nal de Doenças Mentais. A maior parte do atendimento em saúde pública estava a cargo do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), depois chamado de Instituto Nacional de Assistência Mé- dica da Previdência Social (Inamps), ligado a outro ministério, o da Previdência e Assistência Social. O INPS foi o resultado da fusão dos institutos de aposentadorias e pensões de diferentes categorias profi ssionais organizadas na década de 1960, que proporcionava grande parte dos atendimentos de saúde, porém apenas para os tra- balhadores da economia formal e seus dependentes (Souza, 2002). O restante da população que não pudesse pagar pelo aten- dimento particular era atendido por instituições de caráter fi - lantrópico ou nos hospitais-escola das faculdades de Medicina (Jatene, 2008). Nesse sistema, a proporção de investimentos na saúde para cada estado e município era calculada pelo número de trabalhadores com carteira assinada residentes nesses locais, criando uma enorme concentração dos serviços nas regiões mais ricas do País (Souza, 2002). Dentro desse quadro, e na conjuntura das lutas para a rede- mocratização do País, já na década de 1970, vemos manifestações das entidades representativas dos profi ssionais da saúde, centros universitários e setores organizados da sociedade, defendendo a importância de uma gestão efi ciente, justa e participativa do atendimento à saúde, mais tarde dando origem ao denominado “movimento da reforma sanitária” (Campos, 2008). Com o passar dos anos, um conjunto de mudanças é reali- zado para ampliar a cobertura do Inamps, com crescente parti- cipação do Ministério da Saúde e dos estados e municípios, mas a pressão crescente para uma cobertura universal e a crise do 65 fi nanciamento do modelo da assistência médica da previdência social leva a medidas mais abrangentes: primeiramente o Sistema Unifi cado e Descentralizado de Saúde (SUDS), na década de 80, mediante convênios entre o Inamps e os governos estaduais e, logo a seguir, a incorporação do Inamps ao Ministério da Saúde e a criação do SUS, em 1990 (Buss, 1995). Já na Constituição de 1988 os princípios do novo sistema de saúde estão especifi cados nos cinco artigos da seção II (“da Saúde”) do capítulo sobre seguridade social. O primeiro des- tes, o artigo 196, defi ne a saúde como “direito de todos e dever do estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (Brasil. Câmara dos Depu- tados, 2009a). A lei n.º 8.080, de 1990 (Brasil. Câmara dos Deputados, 2009b), aponta os seguintes princípios do SUS: I – universalidade de acesso aos serviços de saúde em to- dos os níveis de assistência; II – integralidade de assistência, entendida como con- junto articulado e contínuo das ações e serviços pre- ventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema; III – preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral; IV – igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie; V – direito à informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde; VI – divulgação de informações quanto ao potencial dos serviços de saúde e a sua utilização pelo usuário; VII – utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação programática; VIII – participação da comunidade; 2 Aspectos históricos das políticas de assistência em saúde mental POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL 68 provisória sua admissão em asilo público ou particular, devendo o diretor do estabelecimento, dentro de 24 horas, comunicar ao juiz competente a admissão do enfermo e relatar-lhe todo o ocorrido a respeito, instruindo o relatório com a observação médica que hou- ver sido feita. Art. 2.º A admissão nos asylos de alienados far-se-ha mediante re- quisição ou requerimento, conforme a reclame autoridade publica ou algum particular. § 1.º No primeiro caso, a autoridade juntará á requisição: (...) b) uma exposição dos factos que comprovem a alienação, e dos motivos que determinaram a detenção do enfermo, caso tenha sido feita, acompanhada, sempre que possivel, de attestados medi- cos affi rmativos da molestia mental.” O decreto vislumbra a possibilidade de tratamento domici- liar, mas atribui ao Estado a fi scalização deste: “Art. 3.º O enfermo de alienação mental poderá ser tratado em do- micilio, sempre que lhe forem subministrados os cuidados neces- sários. Paragrapho unico. Si, porém, a molestia mental exceder o periodo de dous mezes, a pessoa que tenha á sua guarda o enfermo commu- nicará o facto á autoridade competente, com todas as occurrencias relativas á molestia e ao tratamento empregado.” Outros parágrafos de defesa dos direitos dos pacientes já es- tão presentes: “Art. 5.º Em qualquer occasião será permittido ao individuo inter- nado em estabelecimento publico ou particular, ou em domicilio, reclamar, por si ou por pessoa interessada, novo exame de sanida- de, ou denunciar a falta dessa formalidade. Art. 9.º Haverá acção penal, por denuncia do Ministerio Publico em todos os casos de violencia e attentados ao pudor, praticados nas pessoas dos alienados.” O decreto regulamenta também o funcionamento do Hospí- cio Nacional e de manicômios a serem abertos nos Estados. Nas primeiras décadas da República, fi guras proeminentes, 69 como Teixeira Brandão e Franco da Rocha, procuram moderni- zar o atendimento psiquiátrico, criando, por exemplo, as “colônias agrícolas”, com proposta de laborterapia e busca da readaptação do indivíduo na sociedade (fundamentalmente através de sua in- serção em famílias rurais que receberiam uma remuneração para essa função). Essas iniciativas foram perdendo seu objetivo inicial e absorvendo uma população que nunca mais deixaria o hospital. A colônia Franco da Rocha, inicialmente projetada para 800 pacien- tes, chegaria na década de 1950 a albergar 15 mil (Resende, 1987). A legislação de 1903 seria substituída pelo decreto n.º 24.559, de 1934 (Brasil. Câmara dos Deputados, 2009d), que “Dispõe so- bre a profi laxia mental, a assistência e proteção à pessoa e aos bens dos psicopatas, a fi scalização dos serviços psiquiátricos e dá outras providências”. Esse novo decreto segue a estrutura do ante- rior, modernizando-o para dar conta de novas demandas, como: as ações em “profi laxia mental”, propostas pela “liga de higiene mental” (Costa, 2007); o atendimento dos “toxicômanos e os in- toxicados por substâncias de ação analgésica ou entorpecente, por bebidas inebriantes, particularmente as alcoólicas”; a maior complexidade dos serviços de internação psiquiátrica (abertos, fechados ou mistos) e serviços de assistência hetero-familiar (fa- mílias rurais vivendo próximo das colônias agrícolas, que recebe- riam um reembolso governamental por manterem ex-internos), e, fi nalmente, a necessidade de legislação mais elaborada para proteção dos portadores de transtornos mentais. Da propalada “profi laxia das doenças nervosas e mentais”, a lei apenas afi rma que esta se deverá dar pelo estudo das causas da doença no Brasil, organizando-se um centro especializado para aplicação dos preceitos de “higiene preventiva” e incluindo aqui dois parágrafos de caráter xenófobo: o governo organizaria um exame do estado “neuro-mental” de todo estrangeiro requerente de naturalidade brasileira e que “Os portadores de qualquer do- ença mental ou nervosa, congênita ou adquirida, não sendo casa- dos com brasileiros natos ou não tendo fi lhos nascidos no Brasil, poderão ser repatriados, mediante acordo com os governos dos respectivos países de origem”. A expansão dos hospitais psiquiátricos pode ser dividida em 2 Aspectos históricos das políticas de assistência em saúde mental POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL 70 dois momentos: num primeiro passo até o início da década de 1960, essa expansão se faz fundamentalmente por grandes hospi- tais públicos; no momento seguinte, temos uma grande expansão de leitos conveniados ao Inamps, em hospitais particulares. Re- sende (1987) observa que, enquanto na rede conveniada o nú- mero de internações passou de 35 mil, em 1965, para 90 mil, em 1970, na rede pública permaneceu estável no mesmo período. Administrativamente, a reorganização da assistência no início do século XX dá origem ao Serviço Nacional de Doenças Mentais que, mais tarde, em 1974, passará a ser chamado Divisão Nacional de Saúde Mental – Dinsam. Várias mudanças na políti- ca nacional, na linha do cuidado na comunidade, são propostas nos anos 60 e 70 por setores do governo, porém seu caráter não deliberativo e provavelmente o embate com outras forças dentro do sistema de saúde do INPS/Inamps não permitiram mudanças signifi cativas. Em 1973, Luiz Cerqueira, ao defender mudanças na política de saúde, cita uma lista de 14 documentos “consagrado- res de uma assistência psiquiátrica não tradicional” (Cerqueira, 1984), na qual podemos observar que metade foi concebida pelo Ministério da Saúde, ou tem a participação deste. Delgado (2001) acrescenta três documentos posteriores na mesma linha: a portaria interministerial (MS/MPAS) n.º 1.369, de 15/02/1979; as “Diretrizes da Dinsam”, de 1980; e o Programa de Reorientação da Assistência Psiquiátrica, no âmbito da previ- dência social (MPAS/Conasp), de 1982. Toda a movimentação social ao redor do debate sobre a po- lítica de saúde em geral para o País, presente nas décadas de 1970 e 1980, infl uenciou também a área da saúde mental e, em 1978, foi constituído o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental, que foi aos poucos incorporando usuários dos serviços de saúde mental e seus familiares, e que passou a se denominar, em 1987, Movimento da Luta Antimanicomial (Fórum Social por uma So- ciedade sem Manicômios, 2008). Esse movimento terá infl uência nas Conferências de Saúde Mental, nos Conselhos de Saúde e na formulação da política nacional de saúde mental. Em 1989 é apresentado o projeto de lei n.º 3.657 pelo deputa- do Paulo Delgado (Brasil. Câmara dos Deputados, 2009e), que dis- 73 bro de 1990. Disponível em [http://www2.camara.gov.br/internet/ legislacao/legin.html/visualizarNorma.html?ideNorma=365093&P alavrasDestaque=] [citado 2009 maio 15]. Brasil. Câmara dos Deputados (2009c). Decreto n.º 1.132, de 22 de de- zembro de 1903. 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Ao mesmo tempo, associações mistas surgem de iniciativas conjuntas de familiares e usuários ou pacientes, às vezes com a participação de “amigos” ou simpa- tizantes de suas causas; e associações lideradas por profi ssionais, alguns deles a partir da dupla vivência de serem provedores de serviços e familiares ou portadores de transtornos mentais. A saúde mental é sabidamente uma complexa arena de ações porque suas questões são indissociáveis de problemas relativos aos direitos humanos e a questões políticas e sociais de gerência da pobreza e da cidadania. É também um campo onde o poder exercido através do conhecimento tem sido disputado muitas ve- zes a serviço de interesses corporativistas ou econômicos sem que a voz das pessoas diretamente envolvidas e afetadas seja realmen- te ouvida. E, ainda que muito tenhamos caminhado no País em relação às questões de cidadania e direitos civis, que estejamos mais atentos e conscientes e o discurso da responsabilidade so- cial nos faça pensar duas vezes antes de deixar a torneira aberta ou jogar fora um alimento, estamos longe de estar confortáveis com relação a como conviver com as pessoas que apresentam as características e as difi culdades típicas dos graves problemas de saúde mental. Associado ao cenário exposto acima está o fato de que a imensa maioria das pessoas afetadas por problemas de saúde mental vive com um sofrimento e sobrecarga que não deixam espaço para qualquer ativismo, exauridas pelas demandas de cuidado e controle constantes, e pela expectativa de perda do frágil equilíbrio na convivência diária. Além disso, a construção de ações sociais consistentes requer um grau de envolvimento e exposição social que muitas pessoas não suportam, justamente pela carga de preconceito associada à loucura/doença mental. Em outras palavras, vestir a camisa da causa da saúde mental não é 79 3 Associações de usuários e familiares como defender a baleia jubarte ou a Mata Atlântica, pois há em jogo uma delicada questão de credibilidade e julgamento social que frequentemente assusta ou desanima os simpatizantes da causa. Além disso, o envolvimento em ações coletivas demanda tempo, dedicação, paciência e habilidade para dialogar e negociar emoções e posições frequentemente antagônicas e extremadas. Abrir mão do pouco tempo livre que se tem para continuar co- nectado às questões do sofrimento e da doença não é um convite interessante para quem já vive imerso nelas todos os dias. Nos países onde ações da sociedade civil em prol da saúde mental são mais disseminadas, tem-se um conjunto de tradições culturais e de políticas públicas que contribuem para dar susten- tação, credibilidade e visibilidade à participação das pessoas en- volvidas na causa. É, por exemplo, a realidade dos países do norte da Europa e da América do Norte, sobretudo aqueles de predo- minância protestante e cultura anglo-saxônica. Isso não quer di- zer que no restante do mundo inexistam movimentos vigorosos na saúde mental, mas certamente a construção de fortes alian- ças em torno de agendas comuns, marca da Federação Europeia de Associações de Saúde Mental (Eufami) e da norte-americana Nami (National Alliance for the Mentally Ill), é uma articulação que ainda engatinha ou patina em outros países, incluindo-se aí o Brasil. Embora esteja fora do escopo deste texto analisar os pressupostos e estratégias que sustentam esses movimentos, pen- samos ser relevante ressaltar que essa é uma importante estraté- gia para ultrapassar as suas divergências e reivindicações locais, tornando-se mais potentes para reivindicar mudanças no sistema de saúde e na sociedade de maneira geral. Escolhemos evidenciar esse aspecto das organizações inter- nacionais longamente estabelecidas porque o consideramos um bom ponto de partida para alguns dos desafi os que se impõem às associações no Brasil: superar discursos polarizados, ouvir e dar voz a usuários e familiares, contribuir para capacitar e empode- rar lideranças, fomentar a construção de parcerias através de uma rede de ações que dê visibilidade às questões da saúde mental, para além das disputas teóricas e pela validade de modelos de compre- ensão da loucura/doença mental e seus desdobramentos sociais. POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL 80 Assim, o objetivo deste capítulo é contribuir com algumas reflexões a partir do que aprendemos em quase 20 anos de ati- vidades junto a familiares de pessoas com transtornos mentais, em espaços de ajuda mútua e, particularmente desde 2001, nas ações de combate ao estigma associado à esquizofrenia com base no Projeto S.O.eSq. (uma brincadeira com as palavras proposta por portadores, que ganhou o sentido de Serviço de Orientação à Esquizofrenia) e na Abre (Associação de Fami- liares, Amigos e Portadores de Esquizofrenia). Escolhemos, para tanto, apresentar um pouco da história, dos pressupostos e das estratégias de ação da Abre porque entendemos que a nossa ação, embora voltada inicialmente para uma população- alvo delimitada por um diagnóstico psiquiátrico, nunca esteve a serviço da conformação ao discurso e das práticas psiqui- átricas. Procuramos sobretudo problematizar as questões do diagnóstico e da dimensão social e política do adoecimento mental/loucura, do sofrimento, do tratamento e dos caminhos de superação, com uma postura de diálogo permanente en- tre os diversos discursos sobre a esquizofrenia, a loucura e os transtornos mentais; além disso, concebemos nossas ações a partir de pressupostos que entendemos serem úteis a todas as associações em saúde mental, quais sejam: uma postura dia- lógica, geradora de ações colaborativas; a busca de parcerias e ações em rede; e o empoderamento mútuo de profissionais, familiares e usuários. Elegemos também falar da nossa experiência porque, de maneira geral, o pouco que se tem escrito e publicado sobre o tema no Brasil é composto sobretudo de textos escritos por profi ssionais para profi ssionais, por meio de publicações acadê- micas, a partir de investigações sobre a vivência dos familiares e usuários, e algumas análises sobre o funcionamento de associa- ções de saúde mental. Estudos como, por exemplo, de Almeida et al. (2010), Rodrigues et al. (2006) e Sousa (2001), embora contribuam com compreensões sobre a dinâmica e os desafi os das associações no País, não valorizam ou se comprometem com a co-criação de novos textos e práticas para fomentar as trans- formações junto aos protagonistas das associações. Com isso, 83 Então, começamos perguntando: é possível combater o es- tigma da esquizofrenia? Quais as experiências de preconceito e discriminação de cada um? Quais as ideias sobre o que fazer para mudar tal realidade? Com essas indagações iniciais, criamos rodas abertas de conversas, convidando pacientes e familiares atendidos no Proesq (Programa de Psiquiatria da Unifesp) a dialogar sobre sua vivência com a doença. Iniciamos, assim, ouvindo as experi- ências das pessoas diagnosticadas e de seus familiares sobre como entendiam a doença, como conviviam e encontravam soluções cotidianas para as difi culdades, como enfrentavam o preconceito e a discriminação social. As questões que surgiram nesse período de conversas eviden- ciaram o desejo de convidar outras pessoas, sobretudo familiares e profi ssionais de saúde, para dialogar. Refl etindo sobre a novidade daquela maneira de conversar que havíamos co-criado, nos propu- semos a organizar um encontro aberto à comunidade, que batiza- mos de Encontro Conversando sobre a Esquizofrenia. A concepção e a organização dos eventos foram pautadas nas contribuições dos participantes das rodas de conversa. Suas contribuições defi niram quem convidaríamos, quais perguntas endereçaríamos a cada con- vidado, como abriríamos espaço para o diálogo, e assim por diante. A realização do I Encontro, em 2001, nos mostrou que era possível levar o cuidado e o novo das conversas produzidas na- quelas rodas para espaços mais amplos na comunidade. Aprende- mos também que os vocabulários praticados no grupo inicial po- deriam ser ampliados para constituir uma estratégia de educação na comunidade. Assim, ao fi nal de 2002, os encontros educativos já haviam reunido mais de 400 pessoas e vinham sendo bem-re- cebidos e avaliados pelos participantes, que relatavam encontrar nessa atividade um espaço de troca de vivências entre profi ssio- nais da saúde, familiares, portadores e outros profi ssionais, onde o diálogo ocupava o lugar principal. Esses encontros, atualmente organizados a cada quatro me- ses, tornaram-se a principal atividade educativa da Abre na co- munidade, atingindo milhares de pessoas em dez anos de rea- lização. Sua programação continua a ser defi nida levando em conta temas e questões propostas nas avaliações dos participan- 3 Associações de usuários e familiares POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL 84 tes ao fi nal de cada encontro; a organização refl ete a intenção de promover espaços de conversa e dar voz a todos – pessoas com transtornos mentais, familiares, profi ssionais de saúde e todos os interessados no diálogo como caminho de aprendizagem. Pensa- mos que o diálogo permite, além da aquisição de conhecimento e informação, o contato e a experiência conjunta, ingredientes essenciais para a mudança de postura diante da doença em todas as suas dimensões, de vivenciais a políticas. Uma característica importante do projeto inicial do S.O.eSq. também mantida e ampliada na Abre foi a composição de Grupos de Ação nos quais colaboraram pessoas com forma- ção e experiência diversas, muitas delas portadoras de esquizo- frenia e familiares. Desde o início do projeto, elas participaram em todas as instâncias, desde a coordenação e o planejamento, até o desenvolvimento das atividades. Entendemos que essa postura de colaboração e o ato de compartilhar responsabilida- des são fundamentais para o desenho de estratégias e a criação de práticas sociais que podem contribuir para gerar uma visão mais positiva sobre a doença mental em geral e a esquizofrenia em especial. A história de como criamos o nome e a identidade visual do projeto no Grupo de Estratégias de Informação e Comuni- cação, descrita em outra publicação (Villares, 2006), é ilustra- tiva do processo que nomeamos, a posteriori, de construção de autoridade e mudança por meio de uma postura criativa. Naquele período inicial do projeto e de constituição da asso- ciação, desenvolvemos muitos textos conjuntos para diversos meios de divulgação: folhetos informativos, boletins, textos gerados em oficinas de criação literária, um guia de infor- mações para jornalistas, textos para o website do projeto e, a partir de 2003, para o site da associação (www.abrebrasil.org. br). Ao mesmo tempo, mantivemos durante anos um encon- tro semanal de conversa e produção de textos, sempre aberto a visitantes e novos participantes. Esse grupo foi inicialmente coordenado por uma profissional de saúde mental, mas gra- dualmente sua liderança foi sendo assumida por Jorge Assis, um dos portadores participantes, que tornou-se ao longo dos 85 anos o principal articulador de ações da associação e é hoje seu vice-presidente. Quando fundamos a Abre, em 2002, o fi zemos principal- mente para fomentar atividades de apoio e parcerias em defesa dos direitos e para dar sustentabilidade jurídica às ações iniciadas com o projeto S.O.eSq. Mas desejávamos, também, ampliar a ex- periência que havíamos adquirido como protagonistas na cons- trução daquele projeto de ações e, a partir desse novo lugar de agentes de mudança social, queríamos estender as oportunidades de aprendizado de colaboração e construção conjuntas de um lu- gar de autoridade a outros possíveis parceiros. Mas o que entendemos por “parceria”? Oferecemos, aqui, a definição de Janet Meagher, no livro“Partnership or Pre- tence” – um manual para portadores, consumidores, usuá - rios ou pacientes de serviços psiquiátricos, escrito e publi- cado por essas pessoas, visando facilitar sua participação no sistema de saúde mental. Segundo Meagher (2002), consti - tuir uma parceria é associar-se num empenho comum, avançando, juntos, através do processo de aprender sobre as habilidades, o conhecimento, as capacidades e o potencial de cada um, num movimento de crescimento mútuo. Esse con- ceito esteve sempre presente como tecido das ações colabo- rativas construídas ao longo dos dez anos de existência da Abre, sustentando o processo de legitimação de autoridade e empoderamento de seus participantes frente às propostas de ação da associação. Resumidamente, as principais atividades regulares promovi- das pela associação desde a sua fundação apoiam-se nas seguintes composições de estratégias e visam: 1 – Atividades por meio das quais buscamos criar espaços de Apoio +Educação + Empoderamento Grupo de apoio a familiares, grupo de acolhimento a pessoas com esquizofrenia, encontros abertos “Conversando sobre a Es- quizofrenia”, aulas e palestras em universidades e apresentações na comunidade, participações em fóruns de associações e confe- rências regionais e estaduais de saúde mental. 3 Associações de usuários e familiares POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL 88 ciona como um espaço de apoio mútuo, de colaboração e troca de informações sobre diagnóstico, tratamento e convivência; que é um território seguro para compartilhar depoimentos sobre a experiência com a doença e para se pedir ajuda em momentos de crise e solidão; além disso, os integrantes o utilizam para circular e divulgar textos e eventos. Ouvimos também que o grupo virtual se constitui numa rede de solidariedade e de amizade e que pro- picia o fortalecimento, o empoderamento e a participação social de seus integrantes. Nesse contexto de avaliação do grupo, publicamos um breve texto (Villares, Assis & Orsi, 2010) onde nos perguntamos quais parâmetros seriam úteis para pensar a efetividade dessa ação dentro da missão da associação e refl etimos sobre a pertinência de avaliarmos o grupo segundo o seu potencial para promover o empoderamento de seus participantes. Nesse sentido, também encontramos no artigo de Bacigalupe questões úteis para refl etir, por exemplo, sobre como essas novas tecnologias sociais podem propiciar experiências relacionais tão ricas e signifi cativas quan- to aquelas de contextos relacionais não virtuais, ou de como po- dem funcionar como um convite ao desenvolvimento de novas competências culturais. Assim, temos acompanhado com en- tusiasmo alguns desdobramentos da evolução de nosso grupo, como a articulação de grupos presenciais de familiares em mais de uma cidade em diferentes estados do Brasil e a circulação de informações que tem facilitado o acesso ao tratamento para tan- tos de seus participantes. Conclusão A Abre é ainda uma pequena associação; no entanto, dez anos de atividades já nos permitem compartilhar aprendizados e con- quistas que resumimos a seguir, na intenção de convidar todos os interessados em somar seus esforços e experiências para contri- buir com as mudanças que desejamos para a saúde mental no País. As ações para reduzir o estigma associado aos transtornos mentais e lutar pelos direitos das pessoas afetadas por práticas de exclusão usualmente se desenvolvem a partir de três estratégias 89 principais – protesto, educação e contato. Protesto é uma estraté- gia reativa, normalmente pontua o que não se considera aceitável, mas pouco contribui para a construção de atitudes mais positivas na sociedade. As ações educativas e aquelas que promovem con- tato entre portadores de transtornos mentais/usuários de serviços de saúde mental e a comunidade na qual se pretende atuar pa- recem ser mais efetivas quando planejadas e implementadas em co-participação entre usuários, familiares, amigos e profi ssionais de saúde, e direcionadas a grupos específi cos – que podem com- preender os próprios familiares de pacientes e os profi ssionais de um determinado serviço, educadores, alunos de ensino médio ou estudantes de graduação, profi ssionais da mídia ou legisladores, e outros segmentos de uma comunidade. Nessas circunstâncias, a ação desejada pode atender de maneira mais específi ca às deman- das de cada grupo em questão. Sabemos que uma multiplicidade de ações de apoio, edu- cação e defesa de direitos têm sido propostas e implementadas através de associações de saúde mental, da mesma maneira como muitas vezes conduzimos as ações da Abre: na raça, no impro- viso, com parcos recursos, muita criatividade e alguma ousadia. Todos temos atingido resultados imediatos mais ou menos po- sitivos, mas os ganhos perdem efetividade diante da força do es- tigma associado aos transtornos mentais e da desarticulação de nossas iniciativas. Ainda sabemos pouco sobre como tornar mais efetivas e duradouras as conquistas de nossas associações, mas já aprendemos que as estratégias são mais efi cientes se, por exemplo: • constituímos espaços de diálogo, troca de experiências e in- formações e envolvemos usuários e familiares em todas as esferas de atividade da associação; • mantemos uma postura de respeito aos diferentes olhares e sentidos sobre uma mesma condição; • evitamos o isolamento que mina as forças de qualquer ini- ciativa a longo prazo, e buscamos construir parcerias num contí- nuo exercício de dialogar e negociar espaços, agendas e responsa- bilidades; • avaliamos as ações empreendidas para aprender com acer- tos e erros. 3 Associações de usuários e familiares POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL 90 Baseando-nos nessas e noutras diretrizes, a organização das nossas atividades refl ete a intenção de pôr em prática a multi- vocalidade, ou seja, ouvir a voz de todos – usuários/portadores, familiares e profi ssionais – e incentivar o diálogo como caminho de aprendizagem, estratégia de ação e processo de transformação pessoal e social. Sustentando essa proposta de ação estão duas posturas fun- damentais frente ao conhecimento e ao empoderamento. Primei- ro, a de que somos todos construtores desse conhecimento, cada um com sua experiência e seu “saber fazer”. E, segundo, que para gerar mudanças efetivas, precisamos refl etir juntos sobre como conhecemos o que conhecemos, como construímos as ideias que temos das coisas e como atuamos a partir desses saberes. Nesse processo, não há saber que seja maior ou melhor – é a combina- ção de todos, através do diálogo, que abre caminho para cons- truirmos outras narrativas sobre a doença mental que propo- nham lugares novos e ampliados, com autoridade e autonomia para enfrentarmos o desafi o de transformar práticas e abrir espa- ços de convivência possível entre discursos, limites e necessidades em uma sociedade em que todos sejam cidadãos de fato. Referências Almeida, K. S.; Dimenstein, M.; Severo, A. 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Figura 1 – Temas de interesse para a psiquiatria social Na Figura 1 temos um esquema da interrelação das áreas de interesse da psiquiatria social: • Distribuição e impacto dos transtornos mentais na comu- nidade, família, sociedade (A). Como os indivíduos doentes se distribuem na sociedade, por idade, gênero, área geográfi ca, ocu- Distribuição da doença e impacto social (A) Procura de tratamento e oferta de recursos (C) Etiologia e evolução (B) Oferta de recursos e procura de casos (D) INDIVÍDUO DOENTE COMUNIDADE TRATAMENTO (SERVIÇO DE SAÚDE) P P P P 4 Princípios dos cuidados de saúde mental na comunidade POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL 94 pação etc.? Qual é a letalidade, morbidade, taxa de incapacidade, quais os custos diretos e indiretos trazidos por essa doença na- quela sociedade? • Infl uência dos determinantes sociais na etiologia e evolu- ção dos transtornos mentais (B). Como os fatores socioculturais infl uenciam a saúde mental dos indivíduos, causando ou favore- cendo um melhor ou pior prognóstico? • Itinerários terapêuticos (percursos de busca de tratamentos ofi cial e alternativo) e recursos comunitários para o tratamento/ reinserção social (“como levar a comunidade até as ações em saú- de mental”) (C). • Organização dos serviços de saúde mental; busca ativa de casos, programas de prevenção e promoção da saúde mental (“como levar as ações em saúde mental até a comunidade”) (D). Apesar da produção de conhecimento na psiquiatria social ter como foco o coletivo, não devemos nos pautar por uma sim- ples oposição entre atenção ao individual versus atenção ao cole- tivo. Na atenção ao indivíduo com problemas mentais, utilizamos todo o conhecimento disponível na psicodinâmica, neurociência e psiquiatria social, pois não podemos imaginá-lo como um ser isolado no universo, desconsiderando entre outros o contexto so- ciocultural em que se insere, a epidemiologia da doença que por- ventura apresenta, o sistema de tratamento disponível e o acesso que poderá ter a estes. Do mesmo modo seria empobrecedor, senão impossível, pensar o coletivo (por exemplo, em estudos sobre como uma do- ença se distribui na população ou num planejamento de como melhorar o tratamento dessa doença) ignorando que esse coleti- vo se faz com indivíduos, cada qual com corpo, história de vida e inserção social únicos. 2 Influência dos determinantes sociais na etiologia e evolução dos transtornos mentais No Capítulo 15 (sobre promoção de saúde e prevenção) abordaremos algumas ideias a respeito da ação do social sobre as condições de saúde e doença mental dos indivíduos. Focaremos 95 aqui em um assunto importante para a elaboração de políticas e programas de saúde mental: a infl uência dos fatores sociocul- turais na inserção de indivíduos com transtorno mental grave e persistente (TMGP). Apesar de vários dos conceitos aqui expos- tos poderem ser estendidos aos pacientes com transtornos men- tais leves, optamos por limitar nosso tema, para um maior apro- fundamento da discussão. Teoria da rotulação social A teoria da rotulação social (por exemplo, Waxler, 1974) aborda os efeitos das experiências sociais sobre uma pessoa, des- de o início do processo no qual a sociedade reconhecerá nela um “doente”, independentemente das causas primárias da doença re- conhecidas pela medicina, ou mesmo se o conhecimento médico concordaria tratar-se de uma patologia, mental ou orgânica. O paciente modela seu comportamento dentro das expec- tativas de pessoas relevantes, dos familiares e dos responsáveis pelo seu tratamento, além de utilizar suas próprias crenças sobre doença mental trazidas pela cultura e experiências pessoais. Ao aceitar o papel social de doente (aceitar ajuda, mostrar-se frágil e dependente, por exemplo), receberá atenção especial e será dis- pensado de uma série de obrigações; caso contrário, poderá ser visto não como doente, e sim como “preguiçoso”, “malandro” etc. Porém, se essa rotulação permanece por muito tempo, o status do indivíduo cai, podendo ser estigmatizado por sua doença. Fatores como o poder e status do paciente e de sua família na sociedade, assim como seu grau de instrução, conhecimento e capacidade de autoavaliação, pesarão para que ele resista à rotu- lação de doente. Se já houve diagnóstico e tratamento prévio, o efeito poderá ser inverso, facilitando essa rotulação. Waxler (1979) (Quadro 1), na tentativa de explicar por que os nativos do Sri Lanka com esquizofrenia teriam, em sua pesqui- sa, uma melhor evolução que a esperada em países industrializa- dos, argumenta que os cingaleses usualmente explicam a doença mental como sendo proveniente de uma causa externa, natural ou sobrenatural. A loucura é identifi cada como problemática e merecedora de tratamento, mas não incurável. Se, por exemplo, 4 Princípios dos cuidados de saúde mental na comunidade
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