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Guias e Dicas
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MARCUSE, H. O Homem Unidimensional., Notas de estudo de Ciências Sociais

Capítulos 4, 5 e 6 da referida obra.

Tipologia: Notas de estudo

2013

Compartilhado em 26/11/2013

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carolina-bertanha-2 🇧🇷

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Baixe MARCUSE, H. O Homem Unidimensional. e outras Notas de estudo em PDF para Ciências Sociais, somente na Docsity! HERBERT MARCUSE fe o) [OIE da Sociedade Industrial O HOMEM UNIDIMENSIONAL AL ge RE (e ZAHAR EDITORES A IDEOLOGIA DA SOCIEDADE INDUSTRIAL INDICE Agradecimentos ..ccicicio INTRODUÇÃO 4 Paralisia da Crítico: Sociedade sem Oposição ........ SOCIEDADE UNIDIMENSIONAL As Novas Formas de Contróôle ....icciiisierisiitiios O Fechamento do Universo Político ....ccicctitios 4 Conquista da Consciência Infeliz: Dessublimação Repressiva Down O Fechumento do Universo da Locução ....ciciriictiis PENSAMENTO UNIDIMENSIONAL 5: Pensamento Negativo: A Derrorada Lógica do Protesto .... Racionalidade Tec- nológica e a Lógica da Dominação .. cereniani nana 6: Do Pensamento Negativo para o Positivo: 7: A Vitória do Pensamento Positivo: Filosofia Unidimensional A OPORTUNIDADE DAS ALTERNATIVAS 8: O Compromisso Histórico da Filosofia . 9: A Calístrofe da Libertação . 19: Conciusão ÍNDICE ONOMÁSTICO 23 38 69 92 125 142 163 191 209 227 237 AGRADECIMENTOS Minha espôsa é, pelo menos em parte, responsável pelas opiniões expendidas neste livro. Sou-lhe infinitamente grato. O meu amigo Barrington Moore, Jr., muito me ajudou com os seus comentários decisivos: em discussões, durante vá- rios anos, êle me levou a esclarecer as minhas idéias. Robert S. Cohen, Arno J. Mayer, Hans J, Meyerhotf e David .Ober leram o manuscrito em suas várias fases e fizeram sugestões valiosas. O Conselho Norte-Americano de Sociedades Eruditas, a Fundação Louis M. Rabinowitz, a Fundação Rockefelier c o Conselho de Pesquisas de Ciências Sociais me concederam do- nativos que facilitaram grandemente a conclusão dêstes estudos. PENSAMENTO NEGATIVO: A DERROTADA LÓGICA DO PRO ESTO I ftA/0 t 710,v7E oi. I~ff' ~ Jl .ef j .L<.- ~t,Dr4?f' ., y 1(/~(aCé.cc! -7 U o ~c.VV' c ( -v f-v (fk J!h I~f ~ . " ... aquilo que é não pode ser verdadeiro." Aos nossos \. t11ti/JI): . olhos e ouvidos bem adestrados, essa declaração é irreverente cJ / ; , e ridícula, ou tão ultrajante quanto a outra, que parece dizer o lAAJ A .lV"'LD' ,.:i/ oposto: "o que é real é racional". No entanto, na tradição do I f~ 17 ; '~ pensamento ocidental, ambas revelam, em formulação provo- /.-.R « ,''< cadoramente resumida, a idéia de Razão que guiou a sua lógica. . Mais ainda, anibas expressam o mesmo conceito, a saber, a es- trutura antagônica da realidade, e do pensamento tentando com- preender a realidade, O mundo da experiência imediata - o mundo em que nos encontramos vivendo - deve ser compre- endido, transformado e até subvertido para se tornar aquilo que verdadeiramente é. N a equação Razão = Verdade = Realidade, que reúne os mundos subjetivo e objetivo numa unidade antagônica, a Razão é o poder subversivo, o "poder do negativo" que esta- belece, como Razão teórica e prática, a verdade para os ho- mens e as coisas - isto é, as condições nas quais os homens e as coisas se tornam o que realmente são. A tentativa de de- monstrar que essa verdade da teoria e da prática não é uma condição subjetiva, mas objetiva, foi a preocupação original do pensamento ocidental e a origem de sua lógica - lógica, não no sentido de uma disciplina especial da Filosofia, mas como o modo de pensar apropriado para compreender o real como racional. O universo totalitário da racionalidade tecnológica é a mais recente transmutação da idéia de Razão. Tentarei, neste capítulo e nos que se seguem, identificar algumas das principais etapas do desenvolvimento dessa idéia - o processo pelo qual \ )' 125 v~~ \~<,,~ ji/- rr .~ ~ \:\\--..\", '\'- . _d &I - Quem é, na concepção clássica, o sujeito que compreende a condição ontológica de verdade e inverdade? E o mestre da 'ij contemplação pura (teoria) e o mestre de uma prática orientada u pela teoria, isto é, o filósofo-estadista, De fato, a verdade que t \ ele conhece e expõe é potencialmente acessível a todos, Guiado pelo filósofo, o escravo, em Meno, de Platão, é capaz de captar a verdade de um axioma geométrico, isto é, uma verdade que se situa além da mudança e da corrupção. Mas como a verdade é tanto um estado de ser como do pensame~mo'''este .é a eXI>fessãõêã ~nifestaçã~ do outro, o acesso à verdade per- ~ ..•.._ ._,:,_,,;,Q,o.. .••• ;. ''ff' ,,... - manece mera potencialidade enquanto não vive na verdade e '"'~ .,.. ~ . '~.-' .•. '-4<..-, ~., ''",-'' -,.,." com ela. E essa modalidade de existência é fechadaao escravo - e a"ü,do aquele que tem de passar a vida buscando as neces- sidades da vida: Conseqüentemente, se o homem não mais ~i- vesse de passar a vida no aomínioda necessiãâcte, a verdade e uma existência humana verdadeira seriam univêisais>eç; sentido estato e real:AFilosofiãvisüallzã ã igüãídadeéiitre õShómenS'; m'ãs;ãc;~smo tempo, se submete à negação real da igualdade. Porque, na realidade em questão, a busca das necessidades é o trabalho de uma vida inteira para a maioria, e as necessidades têm de ser buscadas e servidas, de modo que a verdade (que é a liberdade das necessidades materiais) possa existir. Aqui, a barreira histórica detém c deforma a busca da ve~~s,ã<?:-~lI~ffiõ:Qôfémâ·~dlgniâãde·dé~Uiú.íl condição ontoló~a. Se verdade 2res~uE~e lib.erdade da l!.Q»ta l\~1~1 -'. e ~~ssa lib~rdaae é, .na.reãii~ade s~cial, a p.~r~IJ.0g;.llYa}e.ujlla. '1 !'.; . ~~~j mmona, entao a realIdade so permite uma a,gr2!!m~é!o <!ç~sa i,'\ ,~\ veraaae e para um grupo priVilêgiâdo. Esse estado de coisas R\ con~diz o caráter universal da verdade, <que define e "pres- p~/ cr~e" não apenas uma meta-.:~~~a, ~as. a_melh~r vida =. ."l'~ / homem como homem, com relaçao a essenciã'llo-homem---:-Pàra \_____._ .• -_ "",,, ." _~.,_____ aI. • ..•~ ,t; a Filosofia, a contradição é insolúvel, ou então não aparece como uma contradição porque é a estrutura da sociedade do ' / escravo ou servo que essa Filosofia não transcende. Assim, ela deix~ hj!,!ó.r.iapara trás, não-dominada, e eleva a ve~ãae,· em. - está mais na maneira pela qual a subordinação às necessidades da vida - a "ganhar a vida" - é organizada, e nas novas mo- dalidades de liberdade e não-liberdade, verdade e falsidade que correspondem a essa· organização. 130 "JI ~v I lt~1\"-0WW v .. isegurany'realidade hist2fi2'.c ~y~r4\'~.p~; .. vãaãintfctá~ íião-cumo""Urt'iâ{êaIização do céu ou no -céu, mas t co~nqúiSta'do pe'nsamento - liifacta porque a sua I própria noçãô expressa a percepção introspectiva de que aqüêles II --cDJ§iêãr!i.Ji~vid~.a ganhar a vida são Incepazes de viver lima , existência humana. ! #~ O con:ei~~·;;~Ó;~·~b~e ~v;~;~~:'~~~á.~~ c~~t~~~e ~ma IÓ'~' ~ l u!?M1 gica que pode servir de modelo de racionalidade pré-tecn~lógica. ,v~~o f'Y g a racionalidade de um universo bidimensional da locução que contrasta com formas de pensamento e comportamento uni-/ ~ dimensionais que se desenvolvem na execução dp projeto Jtecnológico. __ .. ~->~'"....,"....# ••~i\..:-•..~_•• ~':O""" <;''','' ___ t>'•. •••_--" •••..->- ..R p{ ~ r~~~/<.fi C{:~A '. Aristóteles usa a expressão "lagos apofântico" para distin- I/~Í'.It~"i guir um tipo específico de Logos (palavra, comunicação) - 1'· aquele que descobre a verdade e a falsidade e é, em seu desen- ,L volvimento, determinado pela d!fe~\W-çª_entr:e•.Y_erdade_~sidade Irws..tOla (De lnt~rpretatf~ne, 16b-17a)L.s. a ló.glc.~.do julga~~to mas . no sentido enfático de uma sentença (Judlclal): atnbum o (p) a (S) porque e até onde pertence a (S), como uma propriedade de (S); ou negando (p) a (S) porque e até onde não pertence a (S); etc. Partim!o dessa base ontológica, a Filosofia aristo-6:: télli:~J2assa a estabelecer as "fonri~~ ~§ra!~JfD~s-~ ..p~e~ê1i- -". -.:.... cações verdãõelt!1s·-te·-falsas')-·pú'!"sl'VêlS;"elase torna a lógica ~ fõfriiãr-dm-iUlgifmé1'ítõs:--'~'"'''''''>'~"-_.''--~~_._"... _._.,,_.~~_._'-- . E1; -~Õuanáõ~llusset[i~ssu~çitou a i~ia_<ie uma lógica apoíân- tica, frisou ã'"S\íã"intenção crítica original. E~..f.ob~i.!L~.s.a intenção précísámefite na idéia de uma lógica de julgamentos - is@é,no_fato. ~e. ..9. pensa.ID.-eo. to~nã".oesta.r.~d.iretam ..ente inter.essa- \\ do no SeL(das Seiend~, selbst), mas em "Qretensões", em propo- §lÇ6es sbbrêõset:1'Husserl ~::n~iSa_owiitaçãQ sobn<:j.u1ga- ~ mentos uma restr~_ão e l!m pres..onceit().~cS!mrespeito à tarefa e ao alcance da lógica. --- .- "". A idéia clássica de lógica apresenta de fato um preconceito ontológico _ a estrutura do julgamento (proposição) se refere a uma realidade dividida. A locução se desloca entre a expe- riência de Ser e Não-Ser, essência e fato, geração e corrupção, L l '~ 1 Husserl, Formole U1!d Transzendentale Logik (Halle, Niemeyer, 1929), esp. pp. 42 e segs. e 115 e segs. 131 . ; potencialidade e realidade. O Organon aristotélico abstrai dessa unidade de opostos as formas gerais de proposições e de suas conexões (corretas ou incorretas); ainda assim, partes decisivas dessa lógica formal continuam comprometidas com a metafísica arístotélíca.ê Anteriormente a essa formalização, a experiência do mundo dividido encontra sua lógica na dialética platônica. Aqui, os termos "Ser", "Não-Ser", "Movimento", "o Um e os Muitos", "Identidade" e "Contradição" são metodicamente mantidos abertos, ambíguos e não definidos por inteiro. Têm um hori- zonte aberto, todo um universo de significado que é gradativa- mente estruturado no próprio processo de comunicação, mas que jamais é fechado. As proposições são submetidas, desenvolvidas e postas à rova num'-dtá1õgo no qua o mterlocutor éfuvaClQ_lI qüêstlOnar o universo a ~{erWiiCia e a alavra,.J!QIJJ!!l.!!!~e iííconteste e a entrar numa nova dimensão da locução - em ou- trãSCrrêunsfâncias-61é....'é 'livre7 e'ã,cloctição éP"focàmilôa 'emsua libérdade, , Espera-se ~qué elevá além "do que lhe é" aprese~t~do Í'='-poiSõ orador, em sua proposição, vai além da disposição inicial dos termos, Esses termos têm muitos significados porque as condições às quais se referem têm muitas facetas, implicações e efeitos que não podem ser isolados e estabilizados. Seu de- senvolvimento lógico corresponde ao processo da realidade, ou Sache selbst. A§Jeis o ensamento são leis da realidade, ou, antes, se tornam leis da realidade se o p~nsam'fntõCoíllprêênde asefd~D.a_~?cp,.!llif~ig jfii~.(fi~ã:q,õÍno a aparência ae outra verdade, que é a das verdadeiras Formas dareãliâãde - ãas Idéiãs. Assim, há~êõi.'itra ição em vez: de correspon encia en e pensâmento dialético e a realidade em questão; o verdadeiro julgamento não julga a realidade em seus próprios termos, mas em termos que visualizam sua subversão. E nessa subversão a realidade che a à sua ró ria verdade. .- Na lógica clássica, o julgamento que constituía o cerne original do pensamento dialético foi formalizado na forma pro- posicional "S é p". Mas essa forma esconde, em vez de revelar a proposição dialética õãsicaque éít(frrcia~o-'caráter ile'gãhvõ-õa r~ãaeei!lÉ~i~êà: 'Julgadôs- iClui·'deSüãessêIiêiâTiãeiã::§S homens e as coisas existem diferentemente do que são' conse----~~-"'"' ~.....•.•.. "", 2 Carl Prantl, Geschichte der Loglk im Abendlande, Darmstadt, 1957, vol. I, pp. 135, 211. Para o argumento contra essa interpretação, ver p. 136, adiante, 132 qüentemente, O pensamen!O S,9~tra_diz.~~ é (dado), opõe sua'J _" l: veraãcJe àãã rêalitla<lêêm questão. A'verdaoe vlsüãl'iZlrd'á~~~ ~ , penSãnleniõ7ãTd61ã~t~õinõiãicla--r~'-a reai~:~~;".\ em questão, "mera" Idéia, "mera" essência - potencialidade. \ /' Mas a potencialidade essencial não é como as muitas pos- ?:\. sibilidades contidas no universo da locução e ação em questão; ~." a potencialida,de essenc,ia,l é de ordem muito diferente. Sua rea- W, lização compreende a subversão da ord~m estabelecida, pois ( •.\\ pensar, de acordo com a verdade é um compromisso de existir '\ J _ ,i\. I de acordo com a verdade. (Em Platão, são os seguintes os \ i(f . conceitos extremos que exemplificam essa subversão: morte \ \j . como começo da vida do filósofo, e a violenta libertação da I ~\ " i~ Caverna). As~, o caráter subversivo da verdade impõe ao i \..~ l ensamento urrrn.Jll! riômie lmpera iva. "i\-lõgl'êa e co ce ra i~\-.em julgamentos que são, como proposições demonstrativas, im-" ~ ~ perat~:s: -:t~oP:edi;:~::~~~~~~~~::a~:;::e;e:idimensional é. '!.:~a forma mfima não ;iP.enas tlãTógiéê~dial~tica,-rnas-també.m ~ •'- "~.'~y" d~~j~e r.re9cul?e _~oma re~Ima~Asp'tõ'p'ó"" , \.~?:.'\' siçõe~ q~e d~finem realidade afirm~muiii" algõ. vérdadei.ro que ! "\' '"(5 não e (imediatamente) o caso; assl~, contradlze~ aq~Ilo que ~ ~ .\ ••..1 é o caso e negam a sua verdade. O Julgamento afirmativo con-l ~ r ::s \ (§:Jém uma negação que desaparece na forma proposicional (S é p). r \, \) Pot exemplo, "virtude é conhecimento"; ','justiça é aquele estado ~ ~ '..:3 no qual todos desempenham a função para a qual a sua natureza ,~ é mais bem apropriada"; "o perfeitamente reàl é perfeitamente 10 conhecível"; "verum est id, quod est"; "o homem é livre"; "o Estado é a realidade da Razão". c Para que essas proposições possam ser verdadeiras, o verbo f "é" declara um "deve", um desiderato. Julga condições nas I,>: <- j. quais virtude não é conhecimento, nas quais os homens não ~ ~ desempenham funções para as quais a sua natureza mais bem os , ~ ~ credencia, nas quais não são livres etc. Ou, a forma categórica+.s. ~~ "'- S-p declara que (S) não é (S); (S) é definido como outro que1-Ç. <:;;::, não ele próprio. A verüicação da proposição compreende um)luA .íeJ j . ~ ~ processo tanto em fato como em pensamento: (S) deve tornar- ", dJ c c'r?- ~~. . ~ Õ ~e aquil.o que -. ~ dec~aração categórica se. torna: ..a~m.~ umOfA/[;K/--(, .'/ ~ ,;Ij " ~1'!!Eeratr:,o categonco; nao declara ,um fato, mas a n;;es~~de /)' ,L{.-vJ.~t~.\:).de .2paslOnar um fato. Por' exem 10 a eclara ao oü"êIla/:l~ :P~ ) ,:} 133 ! - t' >1~ fi' O~.~~~ lU lJ{/ '---"\.. ~t::; . lida do seguinte modo: o homem não é (de fato) livre, dotado de direitos inalienáveis etc., mas deve ser, porque é livre aos olhos de Deus, por natureza etc.! o pensamento dialético compreende a tensão crítica entre "é" e "deve" primeiramente como uma condição ontológica pertencente à própria estrutura do Ser. Contudo,_o~x:eeonheci- mento desse estado de Ser .=._J;ua_teoria ---riiieiítà, llêSdé -ó - iriídtr;uma-pr&tiêa- conérgª-, Vistos à luz de uma verdade qôé ap~-m:terfâfsificada ou negada, os próprios fatos em ques- tão parecem falsos e negativos. Conseqüentemente, o pensamento é levado, pela situação de seus objetos, a medir a verdade destes em termos de outra- lógica, de outro universo da locução. E ~ta lógica ~jet,a outr-ª f! .m~dade_d.ê... existência: a. rea~~çã~_ da~era~ª~ f!~.P~. e os atos do homem. E, VIsto como este projeto compreende/I\ o-íiôãiém- cõmou~ "animal social", a polis, o movimento do pensamento tem um conteúdo político. Assim, a locução socrá- fica é uma locução política porquanto contradiz as instituições políticas estabelecidas. A busca da definição correta, do "con- ceito" de virtude, justiça, piedade e conhecimento se torna uma empresa subversiva, pois o conceito intenta uma nova polis . O pensamento não tem poder algum para ocasionar tal modificação, a não ser que transcenda a si mesmo para a prática, e a própria dissociação da prática material, em que se origÍna a Filosofia, dá ao pensamento filosófico sua qualidade abstrata e ideológica. Em virtude dessa dissociação, o pensamento filosó- fico crítico é necessariamente transcendente e abstrato. A Filo- sofia partilha essa abstração com todo o pensamento genuíno, pois não pensa realmente quem não faz abstração daquilo que é dado, quem não relaciona os fatos com os fatores que os fi- zeram, quem não desfaz - em sua mente - os fatos. ~- 1ra&.io-.é-ª-QróPJia v~_º-Re.ns.ª-meg.tQ,,_º_ indício d~- ticidade. 3 Mas por que a proposição não diz. udeve" se significa "deve"? Por que a negação desaparece na afirmação? Terão as origens metafísicas da lógica talvez determinado a forma proposicional? Tanto o pensamento pré-socrâtico como o so- crâtíco antecipam a separação entre lógica e ética. Se somente o que é verdadeiro (o Logos; a Idéia) realmente é; então a realidade da experiência imediata participa J,L1, o~, ou daquilo que não· é. -No entanto, este ".11J ov é, e para a experiência imediata (que é a única realidade para a maioria dos homens) ele é a única realidade que i. O dúplice significado de "6" expressaria, assim, a estrutura bidimensional de um mundo 56. 134 i .~ I I I ~J ,. Mas há abstrações verdadeiras e falsas. Abstrasão é uma /ocQ,rrêiiCiãlíiStõnCã num c-ofitfilüô "1iistorlco.· Desenrõl;-se e;;; ( --- .:;------.- ~ .---~.. --~ / ba~~.t.h!§lóricas ~permane~e r~~~dª~c_Qm as~próp(@sj2-é\S,eS I dasquaís se .inicia: ç J!.nive.rs9_soci-ªLe_sJa~Je_çid_o. Até mesD1g I quando a abstração crítica chega à negação do universo da ! locução estabelecido, as bases sobrevivem na negação (subver- \ são) e limitam as possibilidades do novo ponto de vista. .- Nas origens clássicas do pensamento filosóficu, os concei- I tO..8transcendentes permanec~prometidos com a sep:;t':' -ªSão prevalecente entre trabalho intelectual e manual - co a sociedade escravista estabelecida, O Estado "ideal" de Platão cõiiSerVã-erêfõ'rma a escravização, embora organizando-a de acordo com uma verdade eterna. E em Aristóteles, o rei-filósofo (no qual a Filosofia e a prática ainda estavam combinadas) J _ cede à supremacia do bios theoreticos, que dificilmente se pode invocar uma função e um conteúdo subversivos. Os que supor- taram o impacto da falsa realidade e que, portanto, pareciam os mais necessitados de alcançar a sua subversão, não constituíram preocupação da Filosofia. Ela se abstraiu e continuou a se abstrair deles. Nesse sentido, o "idealismo" era adequado ao pensamento filosófico, porquanto a noção de supremacia de pensamento (consciência) também pronuncia a impotência do pensamento ~ num mundo ernpírico que a Filosofia transcende e corrige - em j pensamento. A racionalidade, em nome do que a Filosofia fez I os ,seus j~g~~.':1tos, alcançou ace!.~ii':Pllre~a'~ã'Fstfata E-ge;~_., que a tornou imune ao mundo em que se tinha de viver. Com 1 a ~x~çãõd<?s i''Fér~Ücos'' 'iriateriallS'fas, õpéii~ª,mento lfIQsbfISp , raramente foi p~rturQa,dõ, ~ãS.Jlliç~-;$!.,_~xis~~~2-~ll1a.Il':', 'A Paradoxalmente, e precisamente o intento cntíco do pensa-v . mento filosófico que leva à purificação idealista - um intento crítico que visa ao mundo empírico como um todo e não meramente a certas modalidades de pensamento e comportamento dentro dele. Definindo os seus conceitos em termos de um tipJL,..9L~'2t.2 e _~xi~s!~ essencialmeriíTOífêrente, a trítica filosófica se acha bloqueadapelã-realidacre-da-qua-l-s'e di~·õciií:e-p_a~ã:.a constr:uií::"tim':r:éiq,o ClFRazão--purgãdu-de- , c()fitingência empírica; As duas dimensões do pensaménto =- ~a da verdade essencial e a da verdade aparente - não mais interferem uma na outra, e sua relação dialética concreta se torna uma relação abstrata epistemológica ou ontológica. Os julgamentos da realidade em questão são substituídos por propo- fi (" ! j 1 l i I i, .~ t I j 1 ! ~, 135 i j I I, I i 1 ,~ ~. '~j r~"\~. "':*-' racionalidade do real. É a racionalidade da contradição, da oposição de fôrças, tendências, elementos, o que constitui o movimento do real e, se compreendido, o conceito do real. Existindo como a contradição viva entre essência e apa- rência, os objetos do pensamento são daquela “negatividade in- tima"? que é a qualidade específica de seu conceito. A definição dialética define o movimento das coisas daquilo que clas não são para aquilo que clas são. O desenvolvimento de elementos contraditórios, que determina a estrutura de seu objeto, determina também a estrutura do pensamento dialético. O objeto da lógica dialética não é a forma abstrata e geral de objetividade nem a forma abstrata e geral de pensamento — nem os dados da expe- riência imediata. A lógica dialética desfaz as abstrações da lógica formal e da Filosofia transcendente, nas também nega a con- creção da experiência imediata. Desde que essa experiência dependa das coisas conforme se apresentem e sejam, ela é uma experiência timitada e até mesmo falsa. Alcança sua verdade caso se liberte da objetividade decepcionante que esconde os fatôres que motivam os fatos — isto é, se compreende o seu mundo como um universo kistórico no qual os fatos estabelecidos são obra da prática histórica do homem. Essa prática (intelec- tual e material) é a realidade nos dados da experiência, sendo também a realidade que a lógica dialética compreende. Quando o contcúdo histórico entra no conceito dialético e determina metodológicamente seu desenvolvimento e sua função, o pensamento dialético atinge a concreção que liga a estrutura do pensamento à da realidade. A verdade lógica se torna ver- dade histórica. A tensão ontológica entre essência e aparência, entre “6” e “deve” se torna tensão histórica e a “negatividade íntima” do mundo-objeto é compreendida como obra do sujeito histórico — o homem em sua luta com a natureza e a sociedade. A Razão se torna Razão histórica. Ela contradiz a ordem esta- belecida dos homens e das coisas em nome das fórças sociais existentes que revelam o caráter. irracional dessa ordem — pois “racional” é um modo de pensar e de agir que está orientado para reduzir a ignorância, a destruição, a brutalidade e a opressão. A transformação da dialética ontológica em histórica con- serva a bidimensionalidade do pensamento filosófico como pensa- mento crítico e negativo. Mas aí essência e aparência, “é” e 9 Jóid, p. 38. 140 “deve” se defrontam no conflito entre fôrças e faculdades na sociedade. Mas não se defrontam da mesma forma que Razão e Anti-Razão, Certo e Errado — porque ambas são parte « parcela do mesmo universo estabelecido, ambas participam da Razão e da Anti-Razão, do Certo e do Errado. O escravo é capaz de abolir os senhores e de cooperar com êles; os senhores são capazes de melhorar a vida do escravo e de aprimorar à sua exploração. A idéia de Razão pertence ao movimento do pensamento e da ação. É uma exigência teórica e prática. Se a dialética entende a contradição como “necessidade” pertencente à própria “natureza do pensamento” (zur Natur der Denkbestimmungen) lº assim o faz porque a contradição per- tence à própria natureza do objeto do pensamento, à realidade, onde a Razão é ainda Anti-Razão, « o irracional ainda racional, Inversamente, tôda realidade estabelecida milita contra a lógica das contradições — favorece os modos de pensamento que conservam as formas de vida estabelecidas e os modos de com- portamento que os reproduzem e aprimoram. A realidade em questão tem sua própria lógica e sua própria verdade; o esfôrço para compreendê-las como tal e para as transcender pressupõe uma lógica diferente, uma verdade contraditória. Pertencem a modos de pensar que são não-operacionais em sua própria estrutura; são estranhas tanto ao operacionalismo científico como ao do senso comum; sua concreção histórica milita contra a quantificação c a matematização, de um lado, e, de outro, contra o positivismo e o empirismo. Assim, êsses modos de pensar parecem ser uma relíquia do passado, como tôda Filo- sofia não-científica e não-empírica. Recuam diante da teoria e prática da Razão mais eficazes. 16 Ibtd. [o DO PENSAMENTO NEGATIVO PARA O POSITIVO: RACIONALIDADE TECNOLÓGICA E A LÓGICA DA DOMINAÇÃO Na realidade social, a dominação do homem pelo homem ainda é, a despeito de tôda transformação, o contínuo histórico que une Razão pré-tecnológica e Razão tecnológica. Contudo, a sociedade que projeta e empreende a transformação tecnológica da natureza altera a base da dominação pela substituição grada- tiva da dependência pessoal (o escravo, do senhor; o servo, do senhor da herdade; o senhor, do doador do feudo etc.) pela dependência da “ordem objetiva das coisas” (das leis econô- micas, do mercado etc.). Sem dúvida, a “ordem objetiva das coisas” é, ela própria, o resultado da dominação, mas é, não obstante, verdade que a dominação agora gera mais elevada racionalidade — a de uma sociedade que mantém sua estrutura hierárquica enquanto explora com eficiência cada vez maior os recursos naturais e mentais e distribui os benefícios dessa exploração em escala cada vez maior. Os limites dessa raciona- lidade e sua fôrça sinistra aparecem na escravização progressiva do homem por um aparato produtor que perpetua a luta pela existência, estendendo-o a uma luta total internacional que arruína a vida dos que constroem e usam êsse aparato. A esta altura se torna claro que algo deve estar errado na racionalidade do próprio sistema. O que está errado é a forma pela qual os homens organizaram seu trabalho social. Isso não mais está em questão no presente, quando, de um lado, os grandes empresários estão êles próprios desejosos de sacrificar as bênçãos da emprêsa privada e “livre” competição às bênçãos das ordens e regulamentações governamentais, enquanto, de outro lado, a construção socialista continua a prosseguir através da dominação progressiva. Contudo, a questão não pode parar 142 aqui. A organização errônea da sociedade exige maior expli- cação, em vista da situação da sociedade industrial avançada, na qual a integração de fôrças sociais antes negativas e transcen- dentes com o sistema estabelecido parece criar uma nova estrutura social. Essa transformação de oposição negativa em positiva indica o problema: a organização “errônea”, ao se tornar totalitária em bases internas, refuta as alternativas. Certamente é assaz natural, parecendo não exigir uma explicação em profundidade, o fato de os benefícios tangíveis do sistema serem considerados dignos de defesa — especialmente em vista da fôrça repulsiva do comunismo atual, que parece ser a alternativa histórica. Mas é natural apenas para um modo de pensar e de comporta- mento que não deseja e talvez mesmo seja incapaz de compre- ender o que se está passando e porque está acontecendo, um modo de pensar e de comportamento que é imune a qualquer outra racionalidade estabelecida. Desde que correspondam à realidade em questão, o pensamento e o comportamento expres- sam uma falsa consciência, reagindo à preservação de uma falsa ordem dos fatos e contribuindo para ela. E essa falsa consciência se corporificou no aparato técnico prevalecente, o qual, por sua vez, a reproduz. Nascemos e morremos racional e produtivamente. Sabemos que a destruição é o preço do progresso, como a morte é o preço da vida, que a renúncia e a labuta são os requisitos para a satisfação e o prazer, que os negócios devem prosseguir e que as alternativas são utópicas. Essa ideologia pertence ao aparato social estabelecido; é um requisito para o seu funcionamento contínuo e parte de sua racionalidade. Contudo, o aparato derrota o seu próprio objetivo se êste é criar uma existência humana com base numa natureza huma- nizada. E se êsse não é o seu propósito, sua racionalidade se torna ainda mais suspeita. Mas ela é também mais lógica porque, de início, o negativo está no positivo, o desumano está na humanização, a escravização na libertação. Essa dinâmica é a da realidade e não da mente, mas de uma realidade na qual a mente científica teve papel decisivo em unir a razão teórica e prática. A sociedade se reproduz num crescente conjunto técnico de coisas e relações que incluiu a utilização técnica do homem — em outras palavras, a luta pela existência e a exploração 143 do homem e da natureza se tornaram cada vez mais científicas e racionais. O duplo significado de “racionalização” é relevante nesie contexto, A gerência científica e a divisão científica do trabalho aumentaram enormemente a produtividade do empre- endimento econômico, político e cultural. Resultado: o mais elevado padrão de vida. Ao mesmo tempo e com os mesmos fundamentos, êsse empreendimento racional produziu um padrão “ mente e comportamento que justificou e absolveu até mesmo as particularidades mais destrutivas e opressivas do empreendi- mento. A racionalidade e a manipulação técnico-científicas estão fundidas em novas formas de contrôle social. Pode alguém con- tentar-se com a suposição de que esta consequência anticientífica seja o resultado de uma aplicação social específica da ciência? Creio que a direção geral em que foi aplicada era inerente à ciência pura até mesmo onde não eram objetivados propósitos práticos, e que pode ser identificado o ponto em que a Razão teórica se torna prática social. Nesta tentativa, recordarei ligei- ramente as origens metudológicas da nova racionalidade, con- trastando-a com as particularidades do modêlo pré-tecnológico discutido no capítulo anterior. A quantificação da natureza, que levou à sua explicação em têrmos de estruturas matemáticas, separou a realidade de todos os fins inerentes c, consequentemente, separou o verda- deiro do bem, a ciência da ética. Independentemente de como a ciência possa agora definir a objetividade da natureza e as inter-relações entre as suas partes, ela não pode concebê-la cientificamente em têrmos de “causas finais”. E independente- mente do quãc constitutivo possa ser o papel do objeto como ponto de observação, medição e cálculo, êsse objeto não pode desempenhar o seu papel científico como agente ético, estético ou político. A tensão entre Razão, de um lado, e, de outro, as necessidades e carências da população subjacente (que tem sido o objeto da Razão, mas raramente seu sujeito), tem existido desde o início do pensamento filosófico € científico. A “natureza Jas coisas”, incluindo a da sociedade, foi definida de modo a justificar a repressão e até mesmo a supressão como perfeita- mente racionais. O verdadeiro conhecimento e a verdadeira razão exigem o domínio sôbre os sentidos, se não mesmo a iibertação deles. A união de Logos e Eros já havia levado Platão à supremacia de Logos; em Aristóteles, a relação entre o deus “o mundo movido por êle é “erótica” sômente em têrmos de 144 analogia. Então o elo ontológico precário entre Logos e Eros é rompido, e a racionalidade científica emerge como essencial- mente neutra. Aquilo por que a natureza (incluindo o homem) pode estar batalhando é cientificamente racional sômente em têrmos das leis do movimento — físico, químico ou biológico. Fora dessa racionalidade, vive-se num mundo de valóres, e os valôres retirados da realidade objetiva se tornam subjetivos. O único modc de salvar alguma validez abstrata e inofensiva para êles parece ser uma sanção metafísica (lei divina e natural). Mas tal sanção não é verificável, não sendo, portanto, realmente objetiva. Os valôres podem ter uma dignidade mais elevada (moral e espiritualmente), mas não são reais e, assim, têm menos importância no assunto real da vida — quanto menos assim fôr, tanto mais serão elevados acima da realidade. A mesma desrealização afeta tôdas as idéias que, por sua própria natureza, não podem ser verificadas pelo método cien- tífico. Independentemente do quanto possam ser reconhecidas, respeitadas e santificadas, em seu próprio direito, sofrem por serem não-objetivas. Mas precisamente sua falta de objetividade as transforma em fatóres de coesão social, As idéias humani- tárias, religiosas e morais são apenas “ideais”; não perturbam indevidamente o estilo de vida estabelecido e não são invalidadas pelo fato de sere.n contraditadas por um comportamento ditado pelas necessidades diárias dos negócios e da política. Se o Bem e o Belo, a Paz e à Justiça, não podem ser extraídos de condições ontológicas ou científico-racionais, não podem, lôgicamente, invocar para si validez e realização uni- versais. Em têrmos de razão científica, permanecem uma questão de preferência e nenhuma ressurreição de algum tipo de Filosofia aristotélica ou tomística pode salvar a situação, porque ela é refutada a priori pela razão científica. O caráter anticientífico dessas idéias enfraquece fatalmente a oposição à realidade esta- belecida; as idéias se tornam meros ideais, e seu conteúdo concreto e crítico se evapora na atmosfera ética ou metafísica. Paradoxalmente, contudo, o mundo objetivo, deixado equipado apenas com qualidades quantificáveis, se torna cada vez mais, em sua objetividade, dependente do sujeito. O longo processo começa com a algebrização da Geometria, que substitui figuras geométricas “visíveis” por operações puramente mentais. Ele encontra sua forma extrema em algumas concepções da 145 A ciência da natureza se desenvolve sob o a priori tecno- lógico que projeta a natureza como instrumento potencial, material de contrôle e organis "ção. E a apreensão da natureza como instrumento (hipotético) precede o desenvolvimento de tôda organização técnica particular: “O homem moderno toma o Ser em sua inteiveza como matéria-prima para a produção e submete à inteireza do mundo-objeto à varredura € à ordem da produção (Herstellenp. ”...o uso da maquinaria e a pro- dução de máquinas não são técnica em si mas meramente um instru- mento adequado para a realização (Einrichtung) da essência da técnica em sua matéria-prima objetiva”. 13 O a priori tecnológico é um a priori político considerando- se que a transformação da uatureza compreende a do homem, e que as “criações de autoria do homem” partem de um conjunto social e reingressam nêle. Poder-se-á ainda insistir em que a maguinaria do universo tecnológico é, “como tal”, indiferente aos fins políticos — pode revolucionar ou retardar uma socie- dade. Um computador eletrônico pode servir ao mesmo tempo a uma administração capitalista ou socialista; um ciclótron pode ser uma ferramenta igualmente eficiente para um grupo bélico ou um grupo pacifista. Essa neutralidade é contestada na dis- cutida declaração de Marx de que “o engenho manual dá-lhe sociedade com o senhor feudal; o engenho a vapor, com o capi- talista industrial”. E essa declaração é mais adiante modifi- cada pela própria teoria marxista: o modo social de produção, e não a técnica, é o fator histórico básico. Contudo, quando a técnica se torna a forma universal de produção material, circunscreve tôda uma cultura; projeta uma totalidade histórica — um “mundo”. Poderemos dizer que a evolução do método científico mera- mente “reflete” a transformação da realidade natural em reali- dade técnica no processo da civilização industrial? Formular dessa mancira a relação entre ciência e sociedade é admitir dois campos e acontecimentos que se encontram, a saber, 1) a ciência e o pensamento científico, com seus conceitos internos 33 Martin Heidegger, Holzwege (Frankfurt, Klostermann, 1950), pp. 266 e segs. (radução nossa). Ver também Vortrâge und Aujsâtze (Pfúllingen, Ginther Neske, 1954), pp. 22, 29. Já, The Poreny of Philosophy, capítulo IL, “Second Observation”. em A Hand. book of Marxsm, ed. E. Burns, Nova York, 1935, p. 150 e sua verdade interna, e 2) o uso e a aplicação da ciência na realidade social. Em outras palavras, independentemente do quão estreita a conexão entre os dois acontecimentos, êles não se implicam e definem mútuamente. Ciência pura não é ciência aplicada; conserva sua identidade e a sua validez independente- mente de sua utilização. Mais ainda, essa noção de neutralidade essencial da ciência é também estendida à técnica. A máquina é indiferente aos usos sociais que lhe são dados, desde que tais usos permaneçam dentro de suas possibilidades técnicas. Em vista do caráter instrumentalista interno do método científico, essa interpretação parece inadequada, Uma relação mais estreita parece existir entre o pensamento científico e sua aplicação, entre o universo da locução científica e o da locução € comportamento comuns — uma relação na qual ambas se movem sob a mesma lógica e racionalidade de dominação. Num acontecimento paradoxal, os esforços científicos para estabelecer a objetividade rígida da natureza levaram a uma crescente desmaterialização da natureza: A idéia de natureza infinita existindo como tal, essa idéia que temos de abandonar, é o mito da ciência moderna. A ciência começou por destruir o mito da Idade Média. E agora a ciência é forçada por sua própria consistência a se aperceber de que meramente criou outro mito em substituição àquele.15 O processo que começa pela eliminação de substâncias independentes e causas finais chega à ideação da objetividade. Mas trata-se de uma ideação muito específica, na qual o objeto se constitui em relação assaz prática com o sujeito: E que é matéria? Em Física Atômica, a matéria é definida por suas possíveis relações com as experiências humanas e pelas leis matemáticas — isto é, intelectuais — a que obedece, Estamos definindo a matéria como um possível objeto de manipulação do bomem.is E se êsse for o caso, então a ciência se tornou ela própria tecnológica: A ciência pragmática tem a visão da natureza apropriada a uma era tecnológica. i? 15 C. P. von Weizsácker, The History of Nature, toc. cit, p. 11. 16 Ibido p. 142 (a ênfase é nossa). 17 Ibida po 1 151 Desde que êsse operacionalismo se torne o centro do em- preendimento científico, a racionalidade assume a forma de construção metodológica; organização e manuseio da matéria como mero material de contrôle, como instrumento que se presta a todos os propósitos e fins — instrumento per se, “em si”. A atitude “correta” com relação ao instrumento é a ma- neira tecnológica de considerar, O logos correto é tecno-logia, que projeta e reage a uma realidade tecnológica. ls Nessa reali- dade, tanto a matéria como a ciência são “neutras”; a objetividade não tem um telos em si, tampouco é estruturada no sentido de um selos. Mas é precisamente êsse caráter nentro o que relaciona a objetividade com um Sujeito histórico específico — a saber, à consciência que predomina na sociedade pela qual e para a qual essa neutralidade é estabelecida. Opera nas próprias abstrações que constituem a nova racionalidade — mais como um fator interno do que externo. O operacionalismo puro € aplicado, a razão teórica c prática, a emprêsa científica e comercial executam a redução das qualidades secundárias a primárias, a quantificação e a abstração dos “tipos particulares de entidades”. Sem dúvida, a racionalidade da ciência pura é livre de valôres e não estipula quaisquer fins práticos, é “neutra” a quaisquer valôres estranhos que lhe possam ser impostos. Mas essa neutralidade é um caráter positivo. A racionalidade cienti- fica favorece uma organização social específica precisamente porque projeta mera forma (ou mera matéria — aqui, os têrmos de outro modo opostos convergem) que pode atender prática- mente a todos os fins. A formalização e a funcionalização constituem, anteriormente à tôda aplicação, a “forma pura” de uma prática social concreta. Enquanto a ciência libertou a natureza de fins inerentes e despojou a matéria de tódas as qualidades que não as quantificáveis, a sociedade livrou os homens da hierarquia “natural” da dependência pessoal, rela- cionando-os entre si de acôrdo com qualidades quantificáveis — a saber, como unidades da fôrça de trabalho abstratas, 18 Coniio em que não serei mal interpretado como tendo sugerido que os conceitos da Física Matemática sejam concebidos como “instrumentos”, que tenham um intento técnico, prático, Tecno-tógica é, antes, a “intuição” ou apreensão aprio- sística do universo no qual a ciência se move, no qual cia se constitui em ciência pura. Talvez seja mais claro falar de horizonte instrumentalista da Física M mática. Ver Suzanne Bachelard, La Conscience de rarionalité (Patis, Presses U versitaires, 1958), p. 31 152 calculáveis em unidades de tempo. “Em virtude da racionalização das formas de trabalho, a eliminação das qualidades é transfe- rida do universo da ciência para o da experiência cotidiana."!º Haverá, entre os dois processos de quantificação científica e social, paralelismo e causação, ou será sua conexão simples- mente obra de percepção sociológica tardia? A discussão anterior propôs a idéia de que a nova racionalidade científica estava contida em si mesma, em sua própria abstração e pureza, operacional na medida em que se desenvolveu sob horizonte instrumentalista. A observação e a experimentação, a organi- zação e a coordenação metódicas dos dados, proposições e conclusões nunca prosseguem em espaço teórico não-estruturado e neutro. O projeto de cognição envolve operações sôbre o objeto, ou abstração dos objetos que ocorrem num determinado universo da locução e ação. A ciência observa, calcula € teoriza de uma posição no universo. As estrêlas que Galileu observou eram as mesmas na antiguidade clássica, mas o universo diferente da locução e da ação — em suma, a realidade social diferente — abriu a nova direção e o nôvo raio de observação, bem como as possibilidades de ordenar os dados observados. Não me preocupo aqui com a relação histórica entre racionalidade científica e social no início do período moderno. O meu propó- sito é demonstrar o caráter instrumentalista interno dessa racionalidade científica em virtude da qual ela é tecnologia apriorística, e o a priori de uma tecnologia específica — a saber, tecnologia como forma de contrôle e dominação social. Visto como o pensamento científico moderno é puro, êle não projeta metas práticas particulares nem formas particulares de dominação. Contudo, não existe uma dominação per se. Ao prosseguir, a teoria se abstrai de um contexto teleológico real ou o rejeita — o do universo concreto da locução e da ação em questão. É dentro dêsse próprio universo que 0 pro- jeto científico ocorre ou não ocorre, que a teoria concebe ou não concebe as possíveis alternativas, que as suas hipóteses subvertem ou ampliam a realidade preestabelecida. Os princípios da ciência moderna foram uma estrutura apriorística de tal modo que puderam servir de instrumentos conceptuais para um universo de contrôle produtor automotor; o operacionalismo teórico passou a corresponder ao operaciona- 19 M. Horkheimer e T. W. Adorno, Dialektik der Aufklrung, loc. cl, p. 50 (tradução nossa). 153 lismo prático. O método científico que levou à dominação cada vez mais cficaz da natureza forneceu, assim, tanto os conceitos puros como Os instrumentos para a dominação cada vez maior do homem pelo homem por meio da dominação da natureza. A razão teórica, permanecendo puta e neutra, entrou para o serviço da razão prática. A fusão resultou benéfica para ambas. Hoje, a dominação se perpetua e se estende não apenas através da tecnologia, mas como tecnologia, e esta garante a grande legitimação do crescente poder político que absorve tôdas as esferas da cultura. Nesse universo, a tecnologia também garante a grande racionalização da não-liberdade do homem e demonstra a impos- sibilidade “técnica” de a criatura ser autônoma, de determinar a sua própria vida. Isso porque essa não-liberdade não parece irracional nem política, mas antes uma submissão ao aparato técnico que amplia as comodidades da vida e aumenta a produti- vidade do trabalho. A racionalidade tecnológica protege, assim, em vez de cancelar, a legitimidade da dominação, e o horizonte instrumentalista da razão se abre sôbre uma sociedade racional- mente totalitária: On pourrait nommer philosophie autocratique des techniques celle qui prend tensemble sechnique comme un licu oú fon utilise les machines pour obrenir de la puissance. La machine est seulement un moyen: la fin est la conquête de la nature, la domesticarion des forces naturelles au moyen d'un premier asservissement: la machine est un esclave qui sert à faire d'autres esclaves. Une pareille inspiration dominatrice ef esclavagiste peut se rencontrer avec une requête de liberié pour Vhommie. Mais il est difficile de se libérer en transférant Vesclavage sur dautres êtres, hommes, animaux ou machines; régner sur un peuple de machines asservissant le monde entier, c'est encore régner, et toui rêgne suppose Pacceptation des schêmes d'asservissement20 A dinâmica incessante do progresso técnico se tornou per- meada de conteúdo político e o Logos da técnica foi transformado 20 «Poder-se-á chamar autocrática uma filosofia da técnica que toma o todo técnico como local em que as máquinas são usadas para obter fórça. As máquinas São apenas um meio; o fim é a conquista da natureza, à domesticação das fôrças naturais por meio de uma escravização primordial: a máquina é um escravo que serve para fazer outros escravos. Tal impulso dominador e escravizador pode caminhar paralelamente com a busca da liberdade humana. Mas é difícil que à pessoa se liberte pela transferência da escravidão para outros séres, homens, ammais Ou máquinas; reinar sobre uma população de máquinas subjugando e mundo inteiro ainda é reinar, e todo «tino supie a aceitação dos planos de sujeição.” Gilbert Simondon, Du Mode d'existence des objets techniques (Paris, Aubier, 1958), po 127 154 em Logos da servidão contínua. A fôrça libertadora da tecno- logia — a instrumentalização das coisas — se torna o grilhão da libertação; a instrumentalização do homem. Essa interpretação ligaria o projeto científico (método é teoria) a um projeto social específico, anteriormente a foda aplicação e utilização, e veria a ligação precisamente na mai íntima forma de racionalidade científica, isto é, no caráter funcional de seus conceitos. Em outras palavras, o universo científico (isto é, não as proposições específicas sôbre a estru- tura da matéria, energia, sua inter-relação etc., mas a projeção da natureza como matéria quantificável, como orientação da apreciação hipotética — e a expressão jógico matemática a Sa objetividade) seria o horizonte de uma prática social Ea rea que seria preservada no desenvolvimento do projeto cien io. Mas mesmo admitindo o instrumentalismo interno da racionalidade científica, essa suposição não estabeleceria a validez sócio-lógica do projeto científico. Admitindo-se que a formação dos conceitos científicos mais abstratos ainda preserva à ini e relação entre sujeito e objeto num determinado universo da locução e da ação, o elo entre jotão teárioa e razão prática p tendido de maneiras assaz diferentes. . e “Tal interpretação diferente é oferecida por Jean Piaget em sua “epistemologia genética”. Piaget interpreta a formação e conceitos científicos em têrmos de diferentes abstrações de uma inter-relação geral entre sujeito e objeto. A abstração não procede do mero objeto, de modo que o sujeito funcione apenas como o ponto neutro de observação e medição, nem do sujeito como veículo de Razão cognitiva pura. Piaget distingue entre Os processos de cognição em Matemática e em Física O primeiro é abstração “à 'intéricur de Paction comme telle Contrairement à ce que Fon dit souvent, tes óires mathémaiques me é f i tir des objets, m résultent donc pas d'une abstraction à par! mais abstraction effectuée au sein des actions comme telles. Réunir, ordonner, déplacer, etc. sont des actions plus générales que penser, pousser, Ee parce aueltes tiennent à la coordination même de toutes les actions pe e culiêres et entrent en chacune d'elles à titre de jacteur coordinaieur... 2 “Contrariamente ao que é com frequência afirmado. as entidades matemávicas não são, portanto, 6 resultado de uma absiração baseada em objetos, mas, antes, de uma, HOsGação q arSo empsrtr “etc, porque. imisicm na, própria õ o que » , Ea E ad pi Co, Eta Panda Como fator coordenador.” Introduction à Pépistimologie . (Presses Universitaires, Paris, 1950), pág. 287 155 A discussão precedente parece sugerir não apenas as limi- tações e os preconceitos íntimos do método científico como também sua subjetividade histórica. Mais ainda, parece implicar a necessidade de algum tipo de “Física qualitativa”, ressurreição das Filosofias teológicas etc. Admito que tal suspeita seja justificada, mas, a esta altura, posso apenas asseverar que não foram visadas tais idéias obscurantistas.?s Independentemente de como se definam verdade e objetivi- dade, elas continuam relacionadas com os agentes humanos da teoria e da prática e com a capacidade dêstes para compreender e modificar o seu mundo. Esta capacidade depende, por sua vez, do quanto a matéria (seja ela o que fôr) seja reconhecida e entendida como aquilo que ela é em tôdas as formas particulares. Nesses têrmos, a ciência contemporânea tem validez objetiva imensamente maior do que as suas predecessoras. Poder-se-á até acrescentar que, no presente, o método científico é o único a que se pode atribuir tal validez; a influência recíproca de hipó- teses e fatos observáveis valida as hipóteses e estabelece os fatos. O ponto que estou tentando mostrar é que a ciência, em virtude de seu próprio método e de seus conceitos, projetou e promoveu um universo no quai a dominação da natureza per- maneceu ligada à dominação do homem -— uma ligação que tende a ser fatal para êsse universo em seu todo. A natureza, cientificamente compreendida e dominada, reaparece no aparato técnico da produção e destruição que mantém e aprimora a vida dos indivíduos enquanto os subordina aos senhores do aparato. Assim, a hierarquia racional se funde com a social. Se êsse fôr o caso, então a mudança na direção do progresso, que pode romper essa ligação fatal, também afetaria a própria estrutura da ciência —. o projeto científico. Suas hipóteses, sem perder seu caráter racional, se desenvolveram num contexto experimental essencialmente diferente (o de um mundo apazi- guado); consegientemente, a ciência chegaria a conceitos de natureza essencialmente diferente e estabeleceria fatos essencial- mente diferentes. A sociedade racional subverte a idéia de Razão. Mostrei que os elementos dessa subversão, as noções de outra racionalidade, estiveram presentes na história do pensa- mento desde o seu irlcio. A idéia antiga de um estado no qual o Ser atinge sua realização, no qual a tensão entre o “é” e o “deve” é resolvida no ciclo de um retômmo eterno, participa da pítutos 9 e 10, adiante. 160 metafísica da dominação. Mas também pertence à metafísica da libertação — à reconciliação de Logos e Eros. Essa idéia visualiza à interrupção da produtividade repressiva da Razão, o fim da dominação na satisfação. As duas racionalidades contrastantes não podem ser sim- plesmente correlacionadas com o pensamento clássico e moderno, respectivamente, como na formulação de John Dewey do gõro contempiativo para a manipulação c o contrôle eficazes”, e “do conhecimento como um gôzo das propriedades da natu- reza... para o conhecimento como um meio de contrôle secular” 2? O pensamento clássico foi suficientemente compro- metido com a lógica do contrêle secular e há um componente suficiente de acusação e recusa no pensamento moderno para viciar a formulação de John Dewey. À Razão, como pensamento e comportamento conceptuais, é necessáriamente profundo conhecimento, dominação. Logos é lei, regra, ordem, em virtude do conhecimento. Ao subordinar casos particulares sob um universal, ao submetê-lo ao seu universal, o pensamento alcança domínio sôbre os casos particulares. Torna-se capaz não apenas de compreendê-los como também de agir sôbre êles, de os controlar. Contudo, embora todo pensamento fique sob o jugo da lógica, a manifestação dessa lógica é diferente nos vários modos de pensar. A lógica formal clássica e a lógica simbólica moderna, a lógica transcendente e a lógica dialética — dominam, cada uma deias, um universo diferente da locução e da experi- ência, Tôdas se desenvolveram dentro do contínuo histórico da dominação ao qual rendem tributo. E êsse contínuo confere aos modos de pensar positivos seu caráter conformista e ideoló- gico; aos de pensar negativo, seu caráter especulativo e utópico. Podemos agora, à guisa de resumo, tentar identificar com maior clareza o sujeito oculto da racionalidade científica e os fins ocultos, em sua forma pura. O conceito científico de uma natureza universalmente controlável projetou a natureza como matéria-em-função infindável, mero material da teoria € da prática. Sob essa forma, o mundo-objeto entrou na construção de um universo tecnológico — um universo de instrumentos mentais e físicos, de meios em si. Assim, trata-se de um sistema verdadeiramente “hipotético”, dependendo de um sujeito vali- dador e verificador. 23 John Dewey, The Quest for Certainty (Nova York, Minton, Balch and Co. 19293, pp. 95, TLO, 161 Os processos de validação e verificação podem ser pura- mente teóricos, mas jamais ocorrem no vácuo e jamais terminam numa mente privada, individual. O sistema hipotético de formas e funções se torna dependente de outro sistema — um universo preestabelecido de fins, no qual e para o qual se desenvolve. O que pareceu estranho, alheio ao projeto teórico se revela como parte de sua própria estrutura (método e conceito); a objetividade pura se revela como objeto para uma subjetividade que garante o Telos, os fins. Na construção da realidade tecno- lógica, não há uma ordem científica puramente racional; o processo da racionalidade tecnológica é um processo político. Sômente no medium da tecnologia, o homem e a natureza se tornam objetos fungíveis de organização. A eficácia e à produtividade universais do aparato ao quat são subordinados vela os interêsses particulares que organizam o aparato. Em outras palavras, a tecnologia se tornou o grande veículo de espoliação — espoliação em sua forma mais madura e eficaz. A posição social do indivíduo e sua relação com os demais não apenas parecem determinadas por qualidades e leis objetivas, mas também essas leis v qualidades parecem perder seu caráter misterioso c incontrolável; aparecem como manifestações calculá- veis da racionalidade (científica). O mundo tendes a tornar-se o material da administração total, que absorve até os adminis- tradores. A teia da dominação tornou-se a teia da própria Razão, e esta sociedade está fatalmente emaranhada nela. E os modos transcendentes de pensar parece transcenderem a própria Razão. Sob tais condições, o pensamento científico (científico no sentido mais amplo, em contraposição a pensamento toldado, metafísico, emocional, ilógico) assume, fora das Ciências Físicas, a forma de um formalismo puro e auto-suficiente (simbolismo), de um lado, e, de outro, a de um empirismo total. (O contraste não é um conflito. Veja-se a aplicação assaz empírica da Mate- mática e da lógica simbólica nas indústrias eletrônicas.) Com relação ao universo estabelecido da locução e do comportamento, a não-contradição e a não-transcendência são os denominadores comuns. O empirismo total revela sua função ideológica na Filosofia contemporânea. Com respeito a essa função, alguns aspectos da análise lingúística serão discutidos no capítulo seguinte. Essa discussão se destina a preparar o terreno para a tentativa de mostrar as barreiras que impedem êsse empirismo de entrar em luta com a realidade e de estabelecer (ou antes, restabelecer) os conceitos que podem romper essas barreiras. 162 7 A VITÓRIA DO PENSAMENTO POSITIVO: FILOSOFIA UNIDIMENSIONAL A redefinição do pensamento que ajuda a coordenar as operações mentais com as da realidade social visa a uma terapia. O pensamento está em consonância com a realidade quando é curado da transgressão além de uma estrutura conceptual que é puramente axiomática (Lógica, Matemática ) ou então co- extensiva com o universo estabelecido da locução = do comporta- mento. Assim, a análise lingiústica alega curar o pensamento e a palavra das noções metafísicas que confundem — de fan- tasmas” de um passado menos amadurecido e menos científico que ainda assombram a mente, embora não designem e não expliquem. A ênfase é dada à função terapêutica da análise filosófica — correção do comportamento anormal no pensa- mento e na palavra, remoção de obscuridades, ilusões e extra- vagâncias, ou, pelo menos, seu desmascaramento. No capítulo 4, discuti o empirismo terapêutico da Sociolo- gia ao expor e corrigir o comportamento anormal nas instalações industriais, um procedimento que implicou a exclusão de con- ceitos críticos capazes de relacionar tal comportamento com à sociedade em scu todo. Em virtude dessa restrição, o procedi- mento teórico se torna imediatamente prático. Idealiza métodos de melhor gerência, plancjamento mais seguro, maior eficiência e cálculos mais aproximados. A análise termina em afirmação via correção e melhoramento; o empirismo se reafirma como pensamento positivo. A análise filosófica não tem essa aplicação imediata. Com- parado às realizações da Sociologia e da Psicologia, o tratamento terapêutico do pensamento continua acadêmico. . De fato, o pensamento exato, a libertação de espectros metafísicos e noções 163 sem significado bem podem ser considerados um fim em si. Mais ainda, o tratamento do pensamento na análise linguística é seu próprio assunto e seu próprio direito. Scu caráter ideológico não deve ser prejulgado pela correlação da luta contra a transcen- dência conceptual além do universo da locução estabelecido com a luta contra a transcendência política além da sociedade estabelecida. À semelhança de qualquer Filosofia digna do nome, a linguagem língiústica fala por si e define sua própria atitude para com a realidade. Identifica como sua principal preocupação a denúncia de conceitos transcendentes; proclama como sua estrutura de referência o uso comum das palavras, a variedade do comportamento comum. Com tais características, circuns- creve sua posição na tradição filosófica — a saber, no pólo oposto ao dos modos de pensar que elaboraram seus conceitos em tensão e até em contradição com o universo prevalecente da locução e do comportamento. Em têrmos do universo estabelecido, tais modos de pensar contraditórios são pensamento negativo. “O poder do negativo” é o princípio que governa o desenvolvimento de conceitos, e a contradição se torna a qualidade distintiva da Razão (Hegel). Essa qualidade do pensamento não ficou limitada a certo tipo de racionalismo; foi também um elemento decisivo na tradição empirista. O empirismo não é necessâriamente positivo; sua atitude para com a realidade estabelecida depende da dimensão particular da experiência que funciona como fonte de conheci- mento e como estrutura básica de referência, Por exemplo, pa- rece que o sensualismo e o materialismo são negativos per se quanto a uma sociedade na qual as necessidades instintivas e materiais não são atendidas. Em contraste, o empirismo da análise lingistica se move numa cstrutura que não permite tal contradição — a restrição auto-imposta ao universo behaviorista prevalecente favorece uma atitude intrinsecamente positiva. A despeito da atitude rigidamente neutra do filósofo, a análise previamente comprometida sucumbe ao poder do pensamento positivo. Antes de tentar demonstrar o carúter intrinsecamente ideo- lógico da análise lingúística, tentarei justificar o uso aparente- mente arbitrário, derrogatório que dou aos têrmos “positivo” e “positivismo” por meio de ligeiro comentário sôbre as origens dêsses térmos. Desde que foi pela primeira vez usado, provâvel- mente na escola de Saint-Simon, o têrmo “positivismo” abrangeu: 164 1) a validação do pensamento cognitivo pela experiência dos fatos; 2) a orientação do pensamento cognitivo para as Ciências Físicas como um modêlo de certeza c exatidão; 3) a crença de que o progresso do conhecimento depende dessa orientação. Consegiientemente, o positivismo é uma luta contra tôdas as idéias metafísicas, contra todos os transcendentalismos e contra todos os idealismos como formas de pensamento obscurantistas e regressivas. O positivismo encontra na sociedade o meio para a realização (e validação) de seus conceitos — harmonia entre teoria e prática, verdade e fatos — desde que a realidade em questão seja cientificamente compreendida e transformada, desde que a sociedade se torne industrial c tecnológica. O pensamento filosófico se transforma em pensamento afirmativo; a crítica filosófica critica dentro da estrutura social e estigmatiza noções não-positivas como mera especulação, sonhos ou fantasias.! O universo da locução e do comportamento que começa a ter expressão no positivismo de Saint-Simon é o da realidade tecnológica. Nêle, o mundo-objeto está sendo transformado em instrumento. Muito do que ainda está fora do mundo instru- mental — natureza virgem, selvagem — se apresenta agora aq alcance do progresso científico e técnico. A dimensão metafí- sica, antes um campo genuíno do pensamento racional, se torna irracional e anticientífica. Com base em suas próprias reali- zações, a Razão repele a transcendência. Na fase posterior do positivismo contemporâneo, não mais é o progresso científico e técnico o que motiva a repulsão; contudo, a contradição do pensamento não é menos séria, por ser auto-imposta — o pró- prio método da Filosofia. O esfórço contemporâneo para redu- zir o alcance e a verdade da Filosofia é tremendo, e os próprios filósofos proclamam a modéstia e a ineficiência da Filosofia. Ela deixa intocada a realidade estabelecida; abomina a trans- gressão. O tratamento desdenhoso das alternativas para o uso co- mum das palavras, de Austin, e sua difamação do que “con- cebemos à tarde em nosso gabinete”; a afirmação de Wittgen- 1 A atitude conformista do positivismo vis.a-vis de modos radicalmente não conformistas de pensar aparece talvez pela primeira vez na denúncia positivista de Fourier. O próprio Fourier (em La Fausse Indusirie, 1835, vol. T. p. 409) viu O comercialismo total da sociedade burguesa como O fruto de “nosso progresso em racionalismo e positivismo”. Citado em André Lalande, Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie (Paris, Presses Universitaires de France, 1956), p. 792 Para as várias conotações do têrmo “positivo” na nova Ciência Social e em oposição a “negativo”, ver Docirine de Saint-Simon, ed. Bouglé et Halévy (Paris, Riviêre, 1924), pp. 181 e segs. 165 severas e autoritárias: “A Filosofia não pode de modo algum interferir no uso real da linguagem”? “E não podemos apre- sentar espécic alguma de teoria, Não deve haver coisa hipo- tética alguma em nossas considerações. Devemos abolir tóda explicação e somente a descrição deve tomar o seu lugar”.!o Poder-se-á perguntar: que resta da Filosofia? Que resta do pensamento, da inteligência, sem algo hipotético, sem qualquer explicação? Contudo, o que está em jôgo não é a definição ou a dignidade da Filosofia; é, antes, a oportunidade de preservar e proteger o direito, a necessidade de pensar e falar em têrmos outros que não os do uso comum — térmos que são significati- vos, racionais e válidos precisamente pelo fato de serem outros têrmos. O que está implicado é a disseminação de uma nova ideologia que empreende a descrição do que está acontecendo (e é tencionado) pela eliminação dos conceitos capazes de compreender o que está acontecendo (e é tencionado) . Para começar, existe uma diferença irredutível entre o universo do pensamento cotidiano e a linguagem, de um lado, e, de outro, o do pensamento filosófico e a linguagem. Em cir- cunstâncias normais, a linguagem ordinária é de fato bchavio- rista — um instrumento prático. Quando alguém de fato diz: “Minha vassoura está no canto”, provavelmente imagina que outro alguém que tenha perguntado pela vassoura vá retirá-la ou deixá-la onde se encontra, estará satisfeita, ou aborrecida, com a resposta. De qualquer forma, a sentença preencheu a sua função ao causar uma reação behaviorista: “o efeito devora a causa; O fim absorve os meios”. !! Em contraste, se, num texto ou locução filosóficos, a pala- vra “substância”, “idéia”, “homem”, ou “alienação” se torna o sujeito de uma proposição, não ocorre tal transformação do sig- nificado em ação behaviorista, nem se tenciona que ocorra. A palavra permanece, por assim dizer, não-preenchida — exceto no pensamento, no qual pode dar origem a outros pensamentos. E, através de longa séric de mediações dentro de um contínuo histórico, a proposição pode ajudar a formar e guiar uma prática, Mas até mesmo assim a proposição continua não-pre- enchida — sômente a Aybris do idealismo absoluto afirma a tese 9 Ibid. p. 49, to Ibid, p. 47. W Paul Valéry, “Poésie et penste abstraite”, em Oeuvres, Joc cl, p 13 Também “Les Droits du poête sur la langue”, em Piêces sur Fart (Paris, Gallimarg, 1934), pp. 47 e ep. 170 de uma identidade final entre o pensamento e o seu objeto. Às palavras pelas quais a Filosofia se interessa jamais podem, por- tanto, ter um uso “tão simples... quanto o das palavras “mesa”, lâmpada", 'porta”, Assim, a exatidão e a clareza não podem ser, em Filosofia, atingidas dentro do universo da locução ordinária. Os conceitos filosóficos visam a uma dimensão do fato e do significado que clucida as frases ou palavras atomizadas da locução ordinária “do exterior” ao mostrar que êsse “exterior” é essencial à com- preensão da locução ordinária. Ou, se o próprio universo da locução ordinária se torna o objeto da análise filosófica, a lin- guagem da Filosofia se torna uma “metalinguagem”.? Até mesmo quando ela se move nos têrmos simples da locução or- dinária, permanece antagônica. Dissolve o contexto experimen- tal do significado estabelecido no de sua realidade; ela se abstrai da concreção imediata a fim de atingir a verdadeira concreção. Vistos sob êsse aspecto, os exemplos de análise lingiística acima citados se tornam questionáveis como objetos válidos de análise filosófica. Poderá a mais exata e esclarecedora descrição da degustação de algo que pode ou não saber a abacaxi contri- buir para a cognição filosófica? Poderá jamais servir de crítica na qual estejam em jôgo condições humanas controversas — outras que não as de degustação médica ou psicológica, que não eram, sem dúvida, intentadas na análise de Austin? O objeto de análise, retirado do contexto mais amplo e mais denso no qual o orador fala e vive, é removido do meio universal no qual os conceitos são formados e se tornam palavras. Qual será êsse contexto universal e mais amplo no qual as criaturas falam e agem e que dá à sua palavra o seu significado — êsse contexto que não aparece na análise positivista, que é a priori deixado de fora tanto pelos exemplos como pela própria análise? Esse contexto da experiência mais amplo, ésse mundo em- pírico real, é ainda, hoje em dia, o das câmaras de gás e dos campos de concentração, de Hiroxima e Nagasáqui, dos Cadillacs americanos e Mercedes alemães, do Pentágono e do Kremlin, das cidades nucleares e das comunas chinesas, de Cuba, das lavagens da mente e dos massacres. Mas o mundo empírico é também aquêle em que essas coisas são tidas como fatos con- 12 Ver p. 18 Yi ate sumados ou esquecidas ou reprimidas ou desconhecidas, no qual as criaturas são livres. E um mundo no qual à vassoura que está no canto ou o gôsto de algo como o abacaxi são impor- tantes, no qual a labuta diária c as comodidades diárias são talvez as únicas coisas que constituem tóda experiência. E êsse segundo universo empírico restrito é parte do primeiro; os po- déres que dirigem o primeiro moldam também a experiência restrita. Sem dúvida, a determinação dessa relação não é trabalho para o pensamento ordinário na palavra ordinária. Caso se trate de encontrar vassouras ou provar abacaxi, a abstração está jus- tificada e o significado pode ser determinado e descrito sem qualquer transgressão do universo político. Mas, cm Filosofia, a questão não é encontrar a vassoura ou provar o abacaxi — e muito menos hoje deve uma Filosofia empírica se basear em experiência abstrata. Tampouco é essa abstração corrigida se à áiise lingiística é aplicada a têrmos e frascs políticos. Todo um ramo da Filosofia analítica está empenhado nessa emprêsa, mas o método exclui de imediato os conceitos de uma análise política, isto é, crítica. A tradução operacional ou behaviorista assimila têrmos como “liberdade”, “pgovêrno”, “Inglaterra” com “vassoura” e “abacaxi”, e a realidade daqueles com a dêstes. A linguagem ordinária pode, com seu “uso simples”, ser de fato de importância vital para o pensamento filosófico crítico, mas no medium dêsse pensamento as palavras perdem sua sim- ples humildade e revelam aquêle algo “escondido” que não tem interêsso algum para Wittgenstein. Considere-se a anátise de “aqui” e “agora” na Fenomenologia de Hegel, ou (sit venia verbo!) a sugestão de Lênin sôbre como analisar adequadamente “Este copo d'água” sôbre a mesa. Tal análise desvenda a histó- ria? na palavra cotidiana como uma dimensão oculta do signifi- cado — o domínio da sociedade sóbre sua linguagem. E essa descoberta destrói a forma natural e espoliada na qual o universo da locução em questão aparece pela primeira vez. As palavras se revelam como térmos genuínos não apenas em sentido grama- tical c lógico-formal, mas também material; a saber, como os limites que definem o significado e seu desenvolvimento — os têrmos que a sociedade impõe à locução e ao comportamento. Essa dimensão histórica do significado não mais pode ser eluci- 1 Ver p sr 172 dada por exemplos como “minha vassoura está no canto” ou “há queijo sôbre a mesa”. Sem dúvida, tais declarações podem revelar muitas ambigiidades, quebra-cabeças, esquisitices, mas estão tôdas no mesmo âmbito dos jogos de linguagem e tédio acadêmico. Orientando-se no universo espoliado da locução cotidiana e expondo e esclarecendo essa locução em têrmos dêsse universo espoliado, a análise se abstrai do negativo, daquilo que é alheio e antagônico e não pode ser entendido em têrmos do uso estabelecido. Classificando e distinguindo significados e man- tendo-os afastados, purga o pensamento e a palavra de contra- dições, ilusões e transgressões. Mas as transgressões não são as da “razão pura”. Não são transgressões metafísicas além dos limites do conhecimento possível, antes abrindo um campo de conhecimento além do senso comum e da lógica formal. Ao barrar o acesso a êsse campo, à Filosofia positivista monta um mundo auto-suficiente todo seu, fechado e bem pro- tegido contra a entrada de fatôres externos perturbadores. A êsse respeito, faz pouca diferença se o contexto validador é o da Matemática, de proposições lógicas ou do costume e do uso. De um ou de outro modo, todos os predicados possivelmente significativos são prejulgados. O julgamento prejulgador pode ser tão amplo quanto a língua inglêsa falada, ou o dicionário, ou algum outro código ou convenção. Uma vez aceito, constitui um a priori empírico que não pode ser transcendido, Mas essa aceitação radical do empírico viola o empírico, porque nêle fala o indivíduo mutilado, “abstrato”, que só expe- rimenta (e expressa) aquilo que lhe é dado (dado em sentido literal), que dispõe apenas dos fatos e não dos fatôres, cujo comportamento é unidimensional e manipulado. Em virtude da repressão real, o mundo experimentado é o resultado de uma experiência restrita, e a limpeza positivista da mente põe esta em consonância com a experiência restrita. Nessa forma expurgada, o mundo empírico se torna o objeto do pensamento positivo. Com tôda a sua exploração, re- velação e esclarecimento de ambigiidades e obscuridades, o neopositivismo não está preocupado com a ambigiiidade e a obscuridade grandes e gerais, que é o universo da experiência estabelecido. E deve continuar desinteressado porque o método adotado por essa Filosofia desacredita ou “traduz” os conceitos que poderiam guiar a compreensão da realidade estabelecida em sua estrutura repressiva e irracional -— os conceitos do pen- 173 samento negativo. A transformação do pensamento crítico em positivo ocorre principalmente no tratamento terapêutico de conceitos universais; sua tradução em têrmos operacionais c behavivristas se iguala de perto à tradução sociológica acima discutida. O caráter terapêutico da análise filosófica é fortemente acentuado — para curar de ilusões, decepções, obscuridade, enigmas insolúveis, perguntas irrespondíveis, de fantasmas e espectros. Quem é o paciente? Aparentemente, certo tipo de intelectual cuja mente e linguagem não se amoldam aos têrmos da locução ordinária. Há, na verdade, boa porção de psicaná- lise nessa Filosofia — análise sem a introspecção fundamental de Freud segundo a qual o problema do paciente está arraigado numa doença geral que não pode ser curada pela terapia analítica. Ou, em outro sentido, segundo Freud, a doença do paciente é uma reação de protesto contra o mundo doente em que êle vive. Mas o médico deve desprezar o problema “moral”. Tem de restaurar a saúde do paciente, torná-lo capaz de fun- cionar normalmente em seu mundo. O filósofo não é médico; seu trabalho não é curar os indi- víduos, mas compreender o mundo em que êles vivem — enten- dê-lo em têrmos do que êle tenha feito ao homem e do que pode fazer ao homem. Pois a Filosofia é (historicamente, e sua his- tória ainda é válida) o contrário daquilo que Wittgenstein fêz dela quando êle a proclamou como a renúncia de tôda teoria, como o empreendimento que “deixa tudo como é”. E a Fil sofia desconhece “descoberta” mais inútil do que aquela que “dá paz à Filosofia, de modo que cla não mais é atormentada por perguntas que põem ela própria em questão".4 E não existe mote mais antifilosófico do que o pronunciamento de Bishop Butler que adorna a Principia Ethica de G. E. Moore: “Tudo é o que é, e não outra coisa” — a menos que “é” seja entendido como sc referindo à diferença qualitativa entre aquilo que as coisas realmente são e aquilo que fazem que elas sejam. A crítica neopositivista ainda orienta o seu principal es- fórço contra as noções metafísicas e é motivado por uma noção de exatidão que é da Lógica formal ou da descrição empírica. 14 Phitosophical Investigations, Joc, cit, p. SI. 174 Quer seja à exatidão buscada na pureza analítica da Lógica e da Matemática, ou de conformidade com a linguagem ordinária — em ambos os pólos da Filosofia contemporânea está a mesma rejeição ou desvalorização dos elementos do pensamento e da palavra que transcendem o sistema de validação aceito. Essa hostilidade é a mais avassaladora quando assume a forma de tolerância — isto é, onde um certo valor verdade é concedido aos conceitos transcendentes numa dimensão separada de significado e significação (verdade poética, verdade metafísica). Pois precisamente a separação de um reservatório especial no qual o pensamento e a linguagem têm permissão para ser legitima- mente inexatos, vagos e até contraditórios é a maneira mais eficaz de proteger o universo normal da locução de ser sêria- mente perturbado por idéias impróprias. Qualquer verdade que possa estar contida na literatura é uma verdade “poética”, qual- quer verdade que possa estar contida no idealismo crítico é uma verdade “metafísica” — sua validez, se de fato existe, não compromete nem a locução e o comportamento ordinários nem a Filosofia a êles ajustada. Esta nova forma da doutrina da “dupla verdade” sanciona uma falsa consciência ao negar a relevância da linguagem transcendente para o universo da locução ordinária, ao proclamar a não-interferência total, Enquanto o valor verdade daquela consiste precisamente em sua relevância para êste c em sua interferência nêle. Sob as condições repressivas nas quais os homens pensam e vivem, o pensamento — qualquer modo de pensar que não está restrito à orientação pragmática dentro do status quo — pode reconhecer os fatos e reagir a êles sômente “chegando por trás” dêles. A experiência ocorre diante de uma cortina que esconde, e, se o mundo é a aparência de algo que está por trás da cortina da experiência imediata, então, nas palavras de Hegel, somos nós mesmos que estamos por trás da cortina. Nós mes- mos, não como sujeitos do senso comum, como na análise lin- gúística, nem como os sujeitos “purificados” da medição cien- tifica, mas como os sujeitos e objetos da luta histórica do homem com a natureza e a sociedade. Os fatos são o que são como ocorrências nessa luta. Sua realidade é histórica, até mesmo onde ainda é a da natureza bruta, inconquistada. Essa dissolução e até subversão intelectual dos fatos em questão é a tarefa histórica da Filosofia e a dimensão filosófica. O método científico também vai além dos fatos e até contra os 175 Contra essa nova mistificação, que transforma a racionali- dade em seu oposto, deve ser sustentada a distinção. O racional não é irracional, e a diferença entre um reconhecimento e uma análise exatos dos fatos, e uma especulação vaga e emocional, é tão essencial quanto em qualquer época anterior. O problema está no fato de a estatística, as medições e os estudos locais da Sociologia empírica e da Ciência Política não serem suficiente- mente racionais. Tornam-se mistificadores no quanto são iso- lados do contexto verdadeiramente concreto que faz os fatos e determina sua função. Esse contexto é maior do que o das fábricas e oficinas investigadas, das cidades e vilas estudadas, dos setores e grupos cuja opinião pública é sondada ou cuja probabi- lidade de sobrevivência é calculada, e diferente déle. E é também mais real no sentido de criar e determinar os fatos investigados, registrados e calculados. Esse contexto real no qual os sujeitos particulares obtêm sua significação real só é definível dentro de uma teoria da sociedade. Isso porque os fatôres dos fatos não são dados imediatos da observação, da medição c da interrogação. Esses só se tornam dados numa análise capaz de identificar a estrutura que mantém juntos as partes e os processos da sociedade e que determina sua inter- relação. Dizer que êsse metacontexto é a Sociedade (com “S” maiúsculo) é substancializar o todo para além das partes. Mas essa substancialização ocorre na realidade, é a realidade, e a análise só a pode superar reconhecendo-a e compreendendo o seu alcance e as suas causas. A Sociedade é, na realidade, o todo que exerce o seu poder independente sóbre os indivíduos, e essa Sociedade não é nenhum “fantasma” não-identificável. Tem o seu cerne no sistema de instituições, que são as relações estabelecidas e congeladas entre os homens. A abstração dessa sociedade fals s, as inferrogações e os cálculos — mas os falsifica numa dimensão que não aparece nas medi- ões, nas interrogações e nos cálculos e que, portanto, não entra em conflito com êles e não os perturba. Conservam sua exatidão e são mistificadores em sua própria exatidão. Ao desmascarar o caráter mistificador de têrmos transcen- dentes, noções vagas, universais metafísicos e coisas semelhantes, a análise lingiiística mistifica os têrmos da linguagem ordinária por deixá-los no contexto repressivo do universo estabelecido da locução. E dentro dêsse universo repressivo que a explicação 180 behaviorista do significado ocorre — a explicação que se destina a exorcizar os velhos “fantasmas” lingúísticos do mito cartesiano e de outros igualmente obsoletos. A anúlise lingiiística sustenta que se Joe Doe c Richard Roe falam do que tém em mente, simplesmente se referem às percepções, noções ou disposições específicas que eventualmente alimentam; a mente é um fantasma verbalizado. Do mesmo modo, a vontade não é uma faculdade real da alma, mas simplesmente um modo específico de dispo- sições, propensões e aspirações específicas. O mesmo se dá com a “consciência”, o “eu”, a “liberdade” — todos explicáveis em têrmos que designam maneiras ou modos particulares de conduta e comportamento. Voltarei depois a êsse tratamento dos conceitos universais. A Filosofia analítica freguentemente dissemina a atmosfera de denúncia e investigação por comitê. O intelectual é chamado a depor. Que quer você dizer quando diz...? Não está ocultando algo? Você fala uma linguagem suspeita. Você não fala como nós, como o homem comum, mas como um estranho que não pertence ao nosso meio. Temos de reduzilo às suas devidas proporções, desmascarar os seus truques, expurgá-lo. Vamos ensiná-lo a dizer o que tem em mente, a “ser claro”, a “pôr as cartas na mesa”. Naturalmente, não nos impomos a você, à sua liberdade de pensamento e de palavra; você poderá pensar como quiser. Mas, se falar, terá de nos comunicar o seu pensamento — na nossa ou na sua linguagem. Certamente, você poderá falar a sua própria linguagem, mas esta deve ser traduzível e será traduzida. Poderá fazer poesia — está certo. Adoramos a poesia. Mas queremos entender a sua poesia e só poderemos fazê-lo se compreendermos os seus símbolos, suas metáforas e imagens em têrmos da linguagem ordinária. O poeta poderá responder que de fato deseja que a sua poesia seja compreensível e compreendida (essa é a razão para que êle a escreva), mas, se o que êle diz pudesse ser dito em têrmos da linguagem ordinária, provavelmente tê-lo-ia feito logo de início. Ele poderá dizer: A compreensão de minha poesia pressupõe o colapso e a invalidação precisamente daquele universo da locução c do comportamento no qual vocês querem traduzila. A minha linguagem pode ser aprendida como qual- quer outra (na verdade, é também a sua linguagem) e, então, transparecerá que os meus símbolos, as minhas metáforas e não são simbolos. metáforas etc. significando exatamente o que dizem. Vocês têm uma tolerância decepcionante. Ao reservarem 181 para mim um nicho especial de significado e significação, vocês me garantem isenção da sanidade e da razão, mas, a meu ver, o manicômio está em algum cutro lugar. O pocta pude também achar que a sólida sobriedade da Filosofia Lingiística fala uma linguagem assaz imbuída de pre- conceito e emocional — a dos velhos ou jovens exacerbados. No vocabulário dêstes há abundância de “impróprio”, “excên- trico”, “absurdo”, “embaraçoso”. “esquisito”, “tagarelice” e “palavreado”, As esquisitices impróprias e embaraçosas têm de ser removidas para que possa prevalecer o entendimento percep- tível. A comunicação não pode estar fora do alcance das criaturas; os conteúdos que estão além do sentido comum e científico não devem perturbar o universo acadêmico e o uni- verso ordinário da locução. Mas a análise crítica deve dissociar-se daquilo que ela se esforça por compreender; os têrmos filosóficos devem ser dife- rentes dos ordinários para que possam elucidar o pleno signifi- cado dêstes."” Pois o universo estabelecido da locução se faz sentir em tôda a extensão dos modos específicos de dominação, organização c manipulação aos quais estão sujeitos os membros de uma sociedade. As criaturas dependem, para ganhar a vida, de patrões, de políticos, de empregos e de vizinhos que fazem que elas falem e s2 portem como o fazem; são compelidas, pela necessidade social, a identificar a “coisa” (incluindo sua própria pessoa, sua mente, seus sentimentos) com as suas funções. Come sabemos disso? Vendo televisão, ouvindo rádio, lendo jornais e revistas, falando com os demais. Sob tais circunstâncias, a frase falada é uma expressão do indivíduo que a fala e também daqueles que o fazem falar como fala, bem como de qualquer tensão ou contradição que os possa inter-relacionar. Ao falar a sua própria linguagem, as criaturas falam também a linguagem de seus senhores, de seus benfeitores, de seus anunciantes. Assim, clas não apenas expressam a si mesmas, Os seus próprios conhecimentos, sentimentos e aspira- ções, mas também algo diferente delas mesmas. Ao descreverem “por si mesmas” a situação política, seja a de sua cidade natal, seja a do cenário internacional, elas (e o têrmo “elas” também inclui a nós os intelectuais que conhecemos a situação e a criti- 19 A Fitosofia analítica contemporânea reconheceu de seu próprio modo essa necessidade como o problema da meralinguagem; ver pp. l7t e 184. 182 camos) descrevem o que o “seu” meio de comunicação em massa lhes diz — e isso se funde com o que elas realmente pensam, vêem e sentem. Ao descrevermos uns para Os outros os nossos amôres e ódios, sentimentos e ressentimentos, devemos usar os têrmos de nossos anúncios, nossos cinemas, nossos políticos e nossos best sellers. Devemos usar os mesmos têrmos para descrever os nossos automóveis, alimentos e móveis, colegas e competidores — e nos entendemos uns aos outros perfeitamente. Tem neces- sariamente de ser assim, porque à linguagem nada tem de parti- cular e pessoal, ou, antes, porque o particular c pessoal é mediado pelo material linguístico disponível, que é material social. Mas essa situação impede a linguagem ordinária de preencher a função validadora que ela desempenha na Filosofia analítica, “O que as criaturas querem dizer quando dizem...” se relaciona com o que não dizem. Ou, o que elas intentam dizer não pode ser considerado em seu sentido imediato — não porque estejam mentindo, mas porque o universo do pensamento e da prática em que vivem é um universo de contradições manipuladas. Circunstâncias como essas podem ser irrelevantes para à análise de declarações como “tenho comichões” ou “êle come papoulas”, ou “isso me parece vermelho”, mas podem tornar-se sêriamente relevantes quando as criaturas de fato dizem algo (“ela simplesmente o amava”, “ele é insensível”, “isso não é justo”, “que posso fazer?”) e são vitais para a análise lingiística da ética, da política etc. A não ser isso, a análise linguística não pode alcançar qualquer outra exatidão empírica que não a extorquida das criaturas pelo estado de coisas existente, e nenhuma outra clareza lhes é permitida nesse estado de coisas — isto é, a análise permanece dentro dos limites da locução mistificada e decepcionante. Onde ela parece ir além da locução, como em suas purifica- ções lógicas, resta apenas o arcabouço do mesmo universo — um fantasma muito mais fantasmagórico do que os combatidos pela anátise. Se a Filosofia é mais do que uma simples ocupação, tem de mostrar os metivos que transformaram a locução num universo mutilado e decepcionante. Entregar essa tarefa a uma de suas colegas dos setores de Sociologia e Psicologia é trans- formar em princípio metodológico a divisão estabelecida do trabalho acadêmico. Tampouco pode a tarefa ser jogada de lado pela modesta insistência em que a análise lingúística tem 183 apenas o humilde propósito de esclarecer o pensamento e a palavra “turvados”. Se êsse esclarecimento vai além da mera enumeração € classificação dos possíveis significados em contextos possíveis, deixando a escolha inteiramente acessível a qualquer um de acôrdo com as circunstâncias, então ela nada mais é do que uma humilde tarefa. Tal esclarecimento abrangeria a anúlise da linguagem ordinária em setores realmente controversos, o reconhecimento do pensamento turvado onde êle pareça menos turvado, a revelação da falsidade no uso normal e claro. Então, a análise lingiústica atingiria o nível no qual os processos sociais específicos que moldam e limitam o universo da locução se tornam visíveis e compreensíveis. Aqui surge o problema da “metalinguagem”; os têrmos que analisam o significado de certos têrmos devem ser diferentes dêstes ou distinguíveis déles. Devem ser mais do que meros sinônimos que ainda pertencem ao mesmo universo (imediato) da locução, c diferentes disso. Mas para que essa metalinguagem possa realmente transper o propósito totalitário do universo estabelecido da locução, no quai as diversas dimensões da linguagem estão integradas c assimiladas, deve ser capaz de denotar os processos sociais que determinaram e “fecharam” o universo estabelecido da locução. Consegiientemente, não pode ser uma metalinguagem técnica, construída principalmente com uma visão de clarcza semântica ou lógica. O desiderato é, antes, fazer que a própria linguagem estabelecida fale o que ela esconde ou exclui, porquanto o que deve ser revelado ou denunciado é operante dentro do universo da locução c ação ordinárias, e a linguagem prevalecente contém à metalinguagem. Esse desiderato foi realizado na obra de Karl Kraus. Ele demonstrou como um exame “interno” da palavra escrita e falada, da pontuação c até mesmo dos erros tipográficos pode revelar todo um sistema moral ou político. Ésse exame ainda se move dentro do universo ordinário da locução; não necessita de qualquer linguagem artificial ou de “alto nível” para extra- polar e esclarecer a linguagem examinada. A palavra € à forma sintática são lidas no contexto em que aparecem — por exemplo, num jornal que, num determinado país ou cidade, esposa determinadas opiniões através da pena de determinadas pessoas. O contexto lexicográfico e sintático se abre, assim, para outra dimensão — que não é estranha ao significado e à função da palavra, mas construtiva dos mesmos — a da imprensa vicnense durante a Primeira Guerra Mundial e depois dela; a 184 atitude de seus redatores em face do morticínio, da monarquia, da República etc. A luz dessa dimensão, o uso da palavra, a estrutura da sentença assumem um significado e uma função que não aparecem na leitura “não-mediada”. Os crimes contra a linguagem, que aparecem no estilo do jornal, pertencem ao seu estilo político. A sintaxe, a gramática e o vocabulário se tornam atos morais e políticos. Ou, o contexto pode ser estético e filo- sófico: crítica literária, um discurso perante uma sociedade erudita ou coisa semelhante. Aqui, a análise lingiíística de um poema ou de um ensaio confronta o material (a linguagem do respectivo poema ou ensaio) em questão (imediato) com aquête encontrado pelo escritor na tradição literária e por êle transfor- mado. Para tal análise, o significado de um têrmo ou de uma forma exige o seu desenvolvimento num universo multidimen- sional, em que qualquer significado expressado participa de vários “sistemas” inter-relacionados, que se sobrepôsm e são antagônicos. Por exemplo, cla pertence: a) a um projeto individual, isto é, a comunicação especi- fica (um artigo de jornal, um discurso) feita numa ocasião específica com uma finalidade específica; b) a um sistema supra-individual estabelecido de idéias, valóres e objetivos do qual participa o projeto indi- vidual; c) a uma determinada sociedade que integra ela própria projetos individuais e supra-individuais diferentes e até contrastantes. Exemplificando: um certo discurso, artigo de jornal ou até comunicação particular é redigido por um determinado indi- víduo que é o porta-voz (autorizado ou não) de um determinado grupo (ocupacional, residencial, político ou intelectual) numa sociedade específica. fsse grupo tem seus próprios valôres, objetivos, códigos de pensamento e comportamento que entram — afirmados ou contraditados —, em diversos graus de per- cepção e clareza, na comunicação individual. Esta “individua- liza”, portanto, um sistema supra-individual de significado que constitui uma dimensão diferente da comunicação individual, conquanto fundido com cla. E êsse sistema supra-individual é, 185
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