Baixe MARCUSE, H. O Homem Unidimensional. e outras Notas de estudo em PDF para Ciências Sociais, somente na Docsity! HERBERT
MARCUSE
fe o) [OIE
da Sociedade
Industrial
O HOMEM UNIDIMENSIONAL
AL ge RE (e
ZAHAR
EDITORES
A IDEOLOGIA DA SOCIEDADE
INDUSTRIAL
INDICE
Agradecimentos ..ccicicio
INTRODUÇÃO
4 Paralisia da Crítico: Sociedade sem Oposição ........
SOCIEDADE UNIDIMENSIONAL
As Novas Formas de Contróôle ....icciiisierisiitiios
O Fechamento do Universo Político ....ccicctitios
4 Conquista da Consciência Infeliz: Dessublimação Repressiva
Down
O Fechumento do Universo da Locução ....ciciriictiis
PENSAMENTO UNIDIMENSIONAL
5: Pensamento Negativo: A Derrorada Lógica do Protesto ....
Racionalidade Tec-
nológica e a Lógica da Dominação .. cereniani nana
6: Do Pensamento Negativo para o Positivo:
7: A Vitória do Pensamento Positivo: Filosofia Unidimensional
A OPORTUNIDADE DAS ALTERNATIVAS
8: O Compromisso Histórico da Filosofia .
9: A Calístrofe da Libertação .
19: Conciusão
ÍNDICE ONOMÁSTICO
23
38
69
92
125
142
163
191
209
227
237
AGRADECIMENTOS
Minha espôsa é, pelo menos em parte, responsável pelas
opiniões expendidas neste livro. Sou-lhe infinitamente grato.
O meu amigo Barrington Moore, Jr., muito me ajudou
com os seus comentários decisivos: em discussões, durante vá-
rios anos, êle me levou a esclarecer as minhas idéias.
Robert S. Cohen, Arno J. Mayer, Hans J, Meyerhotf e
David .Ober leram o manuscrito em suas várias fases e fizeram
sugestões valiosas.
O Conselho Norte-Americano de Sociedades Eruditas, a
Fundação Louis M. Rabinowitz, a Fundação Rockefelier c o
Conselho de Pesquisas de Ciências Sociais me concederam do-
nativos que facilitaram grandemente a conclusão dêstes estudos.
PENSAMENTO NEGATIVO: A DERROTADA LÓGICA DO PRO ESTO I ftA/0 t 710,v7E oi. I~ff' ~ Jl .ef j .L<.- ~t,Dr4?f' ., y 1(/~(aCé.cc! -7 U o ~c.VV' c ( -v f-v (fk J!h I~f ~ . " ... aquilo que é não pode ser verdadeiro." Aos nossos \. t11ti/JI): . olhos e ouvidos bem adestrados, essa declaração é irreverente cJ / ; , e ridícula, ou tão ultrajante quanto a outra, que parece dizer o lAAJ A .lV"'LD' ,.:i/ oposto: "o que é real é racional". No entanto, na tradição do I f~ 17 ; '~ pensamento ocidental, ambas revelam, em formulação provo- /.-.R « ,''< cadoramente resumida, a idéia de Razão que guiou a sua lógica. . Mais ainda, anibas expressam o mesmo conceito, a saber, a es- trutura antagônica da realidade, e do pensamento tentando com- preender a realidade, O mundo da experiência imediata - o mundo em que nos encontramos vivendo - deve ser compre- endido, transformado e até subvertido para se tornar aquilo que verdadeiramente é. N a equação Razão = Verdade = Realidade, que reúne os mundos subjetivo e objetivo numa unidade antagônica, a Razão é o poder subversivo, o "poder do negativo" que esta- belece, como Razão teórica e prática, a verdade para os ho- mens e as coisas - isto é, as condições nas quais os homens e as coisas se tornam o que realmente são. A tentativa de de- monstrar que essa verdade da teoria e da prática não é uma condição subjetiva, mas objetiva, foi a preocupação original do pensamento ocidental e a origem de sua lógica - lógica, não no sentido de uma disciplina especial da Filosofia, mas como o modo de pensar apropriado para compreender o real como racional. O universo totalitário da racionalidade tecnológica é a mais recente transmutação da idéia de Razão. Tentarei, neste capítulo e nos que se seguem, identificar algumas das principais etapas do desenvolvimento dessa idéia - o processo pelo qual \ )' 125 v~~ \~<,,~ ji/- rr .~ ~ \:\\--..\", '\'- . _d &I - Quem é, na concepção clássica, o sujeito que compreende a condição ontológica de verdade e inverdade? E o mestre da 'ij contemplação pura (teoria) e o mestre de uma prática orientada u pela teoria, isto é, o filósofo-estadista, De fato, a verdade que t \ ele conhece e expõe é potencialmente acessível a todos, Guiado pelo filósofo, o escravo, em Meno, de Platão, é capaz de captar a verdade de um axioma geométrico, isto é, uma verdade que se situa além da mudança e da corrupção. Mas como a verdade é tanto um estado de ser como do pensame~mo'''este .é a eXI>fessãõêã ~nifestaçã~ do outro, o acesso à verdade per- ~ ..•.._ ._,:,_,,;,Q,o.. .••• ;. ''ff' ,,... - manece mera potencialidade enquanto não vive na verdade e '"'~ .,.. ~ . '~.-' .•. '-4<..-, ~., ''",-'' -,.,." com ela. E essa modalidade de existência é fechadaao escravo - e a"ü,do aquele que tem de passar a vida buscando as neces- sidades da vida: Conseqüentemente, se o homem não mais ~i- vesse de passar a vida no aomínioda necessiãâcte, a verdade e uma existência humana verdadeira seriam univêisais>eç; sentido estato e real:AFilosofiãvisüallzã ã igüãídadeéiitre õShómenS'; m'ãs;ãc;~smo tempo, se submete à negação real da igualdade. Porque, na realidade em questão, a busca das necessidades é o trabalho de uma vida inteira para a maioria, e as necessidades têm de ser buscadas e servidas, de modo que a verdade (que é a liberdade das necessidades materiais) possa existir. Aqui, a barreira histórica detém c deforma a busca da ve~~s,ã<?:-~lI~ffiõ:Qôfémâ·~dlgniâãde·dé~Uiú.íl condição ontoló~a. Se verdade 2res~uE~e lib.erdade da l!.Q»ta l\~1~1 -'. e ~~ssa lib~rdaae é, .na.reãii~ade s~cial, a p.~r~IJ.0g;.llYa}e.ujlla. '1 !'.; . ~~~j mmona, entao a realIdade so permite uma a,gr2!!m~é!o <!ç~sa i,'\ ,~\ veraaae e para um grupo priVilêgiâdo. Esse estado de coisas R\ con~diz o caráter universal da verdade, <que define e "pres- p~/ cr~e" não apenas uma meta-.:~~~a, ~as. a_melh~r vida =. ."l'~ / homem como homem, com relaçao a essenciã'llo-homem---:-Pàra \_____._ .• -_ "",,, ." _~.,_____ aI. • ..•~ ,t; a Filosofia, a contradição é insolúvel, ou então não aparece como uma contradição porque é a estrutura da sociedade do ' / escravo ou servo que essa Filosofia não transcende. Assim, ela deix~ hj!,!ó.r.iapara trás, não-dominada, e eleva a ve~ãae,· em. - está mais na maneira pela qual a subordinação às necessidades da vida - a "ganhar a vida" - é organizada, e nas novas mo- dalidades de liberdade e não-liberdade, verdade e falsidade que correspondem a essa· organização. 130 "JI ~v I lt~1\"-0WW v .. isegurany'realidade hist2fi2'.c ~y~r4\'~.p~; .. vãaãintfctá~ íião-cumo""Urt'iâ{êaIização do céu ou no -céu, mas t co~nqúiSta'do pe'nsamento - liifacta porque a sua I própria noçãô expressa a percepção introspectiva de que aqüêles II --cDJ§iêãr!i.Ji~vid~.a ganhar a vida são Incepazes de viver lima , existência humana. ! #~ O con:ei~~·;;~Ó;~·~b~e ~v;~;~~:'~~~á.~~ c~~t~~~e ~ma IÓ'~' ~ l u!?M1 gica que pode servir de modelo de racionalidade pré-tecn~lógica. ,v~~o f'Y g a racionalidade de um universo bidimensional da locução que contrasta com formas de pensamento e comportamento uni-/ ~ dimensionais que se desenvolvem na execução dp projeto Jtecnológico. __ .. ~->~'"....,"....# ••~i\..:-•..~_•• ~':O""" <;''','' ___ t>'•. •••_--" •••..->- ..R p{ ~ r~~~/<.fi C{:~A '. Aristóteles usa a expressão "lagos apofântico" para distin- I/~Í'.It~"i guir um tipo específico de Logos (palavra, comunicação) - 1'· aquele que descobre a verdade e a falsidade e é, em seu desen- ,L volvimento, determinado pela d!fe~\W-çª_entr:e•.Y_erdade_~sidade Irws..tOla (De lnt~rpretatf~ne, 16b-17a)L.s. a ló.glc.~.do julga~~to mas . no sentido enfático de uma sentença (Judlclal): atnbum o (p) a (S) porque e até onde pertence a (S), como uma propriedade de (S); ou negando (p) a (S) porque e até onde não pertence a (S); etc. Partim!o dessa base ontológica, a Filosofia aristo-6:: télli:~J2assa a estabelecer as "fonri~~ ~§ra!~JfD~s-~ ..p~e~ê1i- -". -.:.... cações verdãõelt!1s·-te·-falsas')-·pú'!"sl'VêlS;"elase torna a lógica ~ fõfriiãr-dm-iUlgifmé1'ítõs:--'~'"'''''''>'~"-_.''--~~_._"... _._.,,_.~~_._'-- . E1; -~Õuanáõ~llusset[i~ssu~çitou a i~ia_<ie uma lógica apoíân- tica, frisou ã'"S\íã"intenção crítica original. E~..f.ob~i.!L~.s.a intenção précísámefite na idéia de uma lógica de julgamentos - is@é,no_fato. ~e. ..9. pensa.ID.-eo. to~nã".oesta.r.~d.iretam ..ente inter.essa- \\ do no SeL(das Seiend~, selbst), mas em "Qretensões", em propo- §lÇ6es sbbrêõset:1'Husserl ~::n~iSa_owiitaçãQ sobn<:j.u1ga- ~ mentos uma restr~_ão e l!m pres..onceit().~cS!mrespeito à tarefa e ao alcance da lógica. --- .- "". A idéia clássica de lógica apresenta de fato um preconceito ontológico _ a estrutura do julgamento (proposição) se refere a uma realidade dividida. A locução se desloca entre a expe- riência de Ser e Não-Ser, essência e fato, geração e corrupção, L l '~ 1 Husserl, Formole U1!d Transzendentale Logik (Halle, Niemeyer, 1929), esp. pp. 42 e segs. e 115 e segs. 131 . ; potencialidade e realidade. O Organon aristotélico abstrai dessa unidade de opostos as formas gerais de proposições e de suas conexões (corretas ou incorretas); ainda assim, partes decisivas dessa lógica formal continuam comprometidas com a metafísica arístotélíca.ê Anteriormente a essa formalização, a experiência do mundo dividido encontra sua lógica na dialética platônica. Aqui, os termos "Ser", "Não-Ser", "Movimento", "o Um e os Muitos", "Identidade" e "Contradição" são metodicamente mantidos abertos, ambíguos e não definidos por inteiro. Têm um hori- zonte aberto, todo um universo de significado que é gradativa- mente estruturado no próprio processo de comunicação, mas que jamais é fechado. As proposições são submetidas, desenvolvidas e postas à rova num'-dtá1õgo no qua o mterlocutor éfuvaClQ_lI qüêstlOnar o universo a ~{erWiiCia e a alavra,.J!QIJJ!!l.!!!~e iííconteste e a entrar numa nova dimensão da locução - em ou- trãSCrrêunsfâncias-61é....'é 'livre7 e'ã,cloctição éP"focàmilôa 'emsua libérdade, , Espera-se ~qué elevá além "do que lhe é" aprese~t~do Í'='-poiSõ orador, em sua proposição, vai além da disposição inicial dos termos, Esses termos têm muitos significados porque as condições às quais se referem têm muitas facetas, implicações e efeitos que não podem ser isolados e estabilizados. Seu de- senvolvimento lógico corresponde ao processo da realidade, ou Sache selbst. A§Jeis o ensamento são leis da realidade, ou, antes, se tornam leis da realidade se o p~nsam'fntõCoíllprêênde asefd~D.a_~?cp,.!llif~ig jfii~.(fi~ã:q,õÍno a aparência ae outra verdade, que é a das verdadeiras Formas dareãliâãde - ãas Idéiãs. Assim, há~êõi.'itra ição em vez: de correspon encia en e pensâmento dialético e a realidade em questão; o verdadeiro julgamento não julga a realidade em seus próprios termos, mas em termos que visualizam sua subversão. E nessa subversão a realidade che a à sua ró ria verdade. .- Na lógica clássica, o julgamento que constituía o cerne original do pensamento dialético foi formalizado na forma pro- posicional "S é p". Mas essa forma esconde, em vez de revelar a proposição dialética õãsicaque éít(frrcia~o-'caráter ile'gãhvõ-õa r~ãaeei!lÉ~i~êà: 'Julgadôs- iClui·'deSüãessêIiêiâTiãeiã::§S homens e as coisas existem diferentemente do que são' conse----~~-"'"' ~.....•.•.. "", 2 Carl Prantl, Geschichte der Loglk im Abendlande, Darmstadt, 1957, vol. I, pp. 135, 211. Para o argumento contra essa interpretação, ver p. 136, adiante, 132 qüentemente, O pensamen!O S,9~tra_diz.~~ é (dado), opõe sua'J _" l: veraãcJe àãã rêalitla<lêêm questão. A'verdaoe vlsüãl'iZlrd'á~~~ ~ , penSãnleniõ7ãTd61ã~t~õinõiãicla--r~'-a reai~:~~;".\ em questão, "mera" Idéia, "mera" essência - potencialidade. \ /' Mas a potencialidade essencial não é como as muitas pos- ?:\. sibilidades contidas no universo da locução e ação em questão; ~." a potencialida,de essenc,ia,l é de ordem muito diferente. Sua rea- W, lização compreende a subversão da ord~m estabelecida, pois ( •.\\ pensar, de acordo com a verdade é um compromisso de existir '\ J _ ,i\. I de acordo com a verdade. (Em Platão, são os seguintes os \ i(f . conceitos extremos que exemplificam essa subversão: morte \ \j . como começo da vida do filósofo, e a violenta libertação da I ~\ " i~ Caverna). As~, o caráter subversivo da verdade impõe ao i \..~ l ensamento urrrn.Jll! riômie lmpera iva. "i\-lõgl'êa e co ce ra i~\-.em julgamentos que são, como proposições demonstrativas, im-" ~ ~ perat~:s: -:t~oP:edi;:~::~~~~~~~~::a~:;::e;e:idimensional é. '!.:~a forma mfima não ;iP.enas tlãTógiéê~dial~tica,-rnas-també.m ~ •'- "~.'~y" d~~j~e r.re9cul?e _~oma re~Ima~Asp'tõ'p'ó"" , \.~?:.'\' siçõe~ q~e d~finem realidade afirm~muiii" algõ. vérdadei.ro que ! "\' '"(5 não e (imediatamente) o caso; assl~, contradlze~ aq~Ilo que ~ ~ .\ ••..1 é o caso e negam a sua verdade. O Julgamento afirmativo con-l ~ r ::s \ (§:Jém uma negação que desaparece na forma proposicional (S é p). r \, \) Pot exemplo, "virtude é conhecimento"; ','justiça é aquele estado ~ ~ '..:3 no qual todos desempenham a função para a qual a sua natureza ,~ é mais bem apropriada"; "o perfeitamente reàl é perfeitamente 10 conhecível"; "verum est id, quod est"; "o homem é livre"; "o Estado é a realidade da Razão". c Para que essas proposições possam ser verdadeiras, o verbo f "é" declara um "deve", um desiderato. Julga condições nas I,>: <- j. quais virtude não é conhecimento, nas quais os homens não ~ ~ desempenham funções para as quais a sua natureza mais bem os , ~ ~ credencia, nas quais não são livres etc. Ou, a forma categórica+.s. ~~ "'- S-p declara que (S) não é (S); (S) é definido como outro que1-Ç. <:;;::, não ele próprio. A verüicação da proposição compreende um)luA .íeJ j . ~ ~ processo tanto em fato como em pensamento: (S) deve tornar- ", dJ c c'r?- ~~. . ~ Õ ~e aquil.o que -. ~ dec~aração categórica se. torna: ..a~m.~ umOfA/[;K/--(, .'/ ~ ,;Ij " ~1'!!Eeratr:,o categonco; nao declara ,um fato, mas a n;;es~~de /)' ,L{.-vJ.~t~.\:).de .2paslOnar um fato. Por' exem 10 a eclara ao oü"êIla/:l~ :P~ ) ,:} 133 ! - t' >1~ fi' O~.~~~ lU lJ{/ '---"\.. ~t::; . lida do seguinte modo: o homem não é (de fato) livre, dotado de direitos inalienáveis etc., mas deve ser, porque é livre aos olhos de Deus, por natureza etc.! o pensamento dialético compreende a tensão crítica entre "é" e "deve" primeiramente como uma condição ontológica pertencente à própria estrutura do Ser. Contudo,_o~x:eeonheci- mento desse estado de Ser .=._J;ua_teoria ---riiieiítà, llêSdé -ó - iriídtr;uma-pr&tiêa- conérgª-, Vistos à luz de uma verdade qôé ap~-m:terfâfsificada ou negada, os próprios fatos em ques- tão parecem falsos e negativos. Conseqüentemente, o pensamento é levado, pela situação de seus objetos, a medir a verdade destes em termos de outra- lógica, de outro universo da locução. E ~ta lógica ~jet,a outr-ª f! .m~dade_d.ê... existência: a. rea~~çã~_ da~era~ª~ f!~.P~. e os atos do homem. E, VIsto como este projeto compreende/I\ o-íiôãiém- cõmou~ "animal social", a polis, o movimento do pensamento tem um conteúdo político. Assim, a locução socrá- fica é uma locução política porquanto contradiz as instituições políticas estabelecidas. A busca da definição correta, do "con- ceito" de virtude, justiça, piedade e conhecimento se torna uma empresa subversiva, pois o conceito intenta uma nova polis . O pensamento não tem poder algum para ocasionar tal modificação, a não ser que transcenda a si mesmo para a prática, e a própria dissociação da prática material, em que se origÍna a Filosofia, dá ao pensamento filosófico sua qualidade abstrata e ideológica. Em virtude dessa dissociação, o pensamento filosó- fico crítico é necessariamente transcendente e abstrato. A Filo- sofia partilha essa abstração com todo o pensamento genuíno, pois não pensa realmente quem não faz abstração daquilo que é dado, quem não relaciona os fatos com os fatores que os fi- zeram, quem não desfaz - em sua mente - os fatos. ~- 1ra&.io-.é-ª-QróPJia v~_º-Re.ns.ª-meg.tQ,,_º_ indício d~- ticidade. 3 Mas por que a proposição não diz. udeve" se significa "deve"? Por que a negação desaparece na afirmação? Terão as origens metafísicas da lógica talvez determinado a forma proposicional? Tanto o pensamento pré-socrâtico como o so- crâtíco antecipam a separação entre lógica e ética. Se somente o que é verdadeiro (o Logos; a Idéia) realmente é; então a realidade da experiência imediata participa J,L1, o~, ou daquilo que não· é. -No entanto, este ".11J ov é, e para a experiência imediata (que é a única realidade para a maioria dos homens) ele é a única realidade que i. O dúplice significado de "6" expressaria, assim, a estrutura bidimensional de um mundo 56. 134 i .~ I I I ~J ,. Mas há abstrações verdadeiras e falsas. Abstrasão é uma /ocQ,rrêiiCiãlíiStõnCã num c-ofitfilüô "1iistorlco.· Desenrõl;-se e;;; ( --- .:;------.- ~ .---~.. --~ / ba~~.t.h!§lóricas ~permane~e r~~~dª~c_Qm as~próp(@sj2-é\S,eS I dasquaís se .inicia: ç J!.nive.rs9_soci-ªLe_sJa~Je_çid_o. Até mesD1g I quando a abstração crítica chega à negação do universo da ! locução estabelecido, as bases sobrevivem na negação (subver- \ são) e limitam as possibilidades do novo ponto de vista. .- Nas origens clássicas do pensamento filosóficu, os concei- I tO..8transcendentes permanec~prometidos com a sep:;t':' -ªSão prevalecente entre trabalho intelectual e manual - co a sociedade escravista estabelecida, O Estado "ideal" de Platão cõiiSerVã-erêfõ'rma a escravização, embora organizando-a de acordo com uma verdade eterna. E em Aristóteles, o rei-filósofo (no qual a Filosofia e a prática ainda estavam combinadas) J _ cede à supremacia do bios theoreticos, que dificilmente se pode invocar uma função e um conteúdo subversivos. Os que supor- taram o impacto da falsa realidade e que, portanto, pareciam os mais necessitados de alcançar a sua subversão, não constituíram preocupação da Filosofia. Ela se abstraiu e continuou a se abstrair deles. Nesse sentido, o "idealismo" era adequado ao pensamento filosófico, porquanto a noção de supremacia de pensamento (consciência) também pronuncia a impotência do pensamento ~ num mundo ernpírico que a Filosofia transcende e corrige - em j pensamento. A racionalidade, em nome do que a Filosofia fez I os ,seus j~g~~.':1tos, alcançou ace!.~ii':Pllre~a'~ã'Fstfata E-ge;~_., que a tornou imune ao mundo em que se tinha de viver. Com 1 a ~x~çãõd<?s i''Fér~Ücos'' 'iriateriallS'fas, õpéii~ª,mento lfIQsbfISp , raramente foi p~rturQa,dõ, ~ãS.Jlliç~-;$!.,_~xis~~~2-~ll1a.Il':', 'A Paradoxalmente, e precisamente o intento cntíco do pensa-v . mento filosófico que leva à purificação idealista - um intento crítico que visa ao mundo empírico como um todo e não meramente a certas modalidades de pensamento e comportamento dentro dele. Definindo os seus conceitos em termos de um tipJL,..9L~'2t.2 e _~xi~s!~ essencialmeriíTOífêrente, a trítica filosófica se acha bloqueadapelã-realidacre-da-qua-l-s'e di~·õciií:e-p_a~ã:.a constr:uií::"tim':r:éiq,o ClFRazão--purgãdu-de- , c()fitingência empírica; As duas dimensões do pensaménto =- ~a da verdade essencial e a da verdade aparente - não mais interferem uma na outra, e sua relação dialética concreta se torna uma relação abstrata epistemológica ou ontológica. Os julgamentos da realidade em questão são substituídos por propo- fi (" ! j 1 l i I i, .~ t I j 1 ! ~, 135 i j I I, I i 1 ,~ ~. '~j r~"\~. "':*-' racionalidade do real. É a racionalidade da contradição, da
oposição de fôrças, tendências, elementos, o que constitui o
movimento do real e, se compreendido, o conceito do real.
Existindo como a contradição viva entre essência e apa-
rência, os objetos do pensamento são daquela “negatividade in-
tima"? que é a qualidade específica de seu conceito. A definição
dialética define o movimento das coisas daquilo que clas não
são para aquilo que clas são. O desenvolvimento de elementos
contraditórios, que determina a estrutura de seu objeto, determina
também a estrutura do pensamento dialético. O objeto da lógica
dialética não é a forma abstrata e geral de objetividade nem a
forma abstrata e geral de pensamento — nem os dados da expe-
riência imediata. A lógica dialética desfaz as abstrações da lógica
formal e da Filosofia transcendente, nas também nega a con-
creção da experiência imediata. Desde que essa experiência
dependa das coisas conforme se apresentem e sejam, ela é uma
experiência timitada e até mesmo falsa. Alcança sua verdade
caso se liberte da objetividade decepcionante que esconde os
fatôres que motivam os fatos — isto é, se compreende o seu
mundo como um universo kistórico no qual os fatos estabelecidos
são obra da prática histórica do homem. Essa prática (intelec-
tual e material) é a realidade nos dados da experiência, sendo
também a realidade que a lógica dialética compreende.
Quando o contcúdo histórico entra no conceito dialético e
determina metodológicamente seu desenvolvimento e sua função,
o pensamento dialético atinge a concreção que liga a estrutura
do pensamento à da realidade. A verdade lógica se torna ver-
dade histórica. A tensão ontológica entre essência e aparência,
entre “6” e “deve” se torna tensão histórica e a “negatividade
íntima” do mundo-objeto é compreendida como obra do sujeito
histórico — o homem em sua luta com a natureza e a sociedade.
A Razão se torna Razão histórica. Ela contradiz a ordem esta-
belecida dos homens e das coisas em nome das fórças sociais
existentes que revelam o caráter. irracional dessa ordem — pois
“racional” é um modo de pensar e de agir que está orientado
para reduzir a ignorância, a destruição, a brutalidade e a
opressão.
A transformação da dialética ontológica em histórica con-
serva a bidimensionalidade do pensamento filosófico como pensa-
mento crítico e negativo. Mas aí essência e aparência, “é” e
9 Jóid, p. 38.
140
“deve” se defrontam no conflito entre fôrças e faculdades na
sociedade. Mas não se defrontam da mesma forma que Razão
e Anti-Razão, Certo e Errado — porque ambas são parte «
parcela do mesmo universo estabelecido, ambas participam da
Razão e da Anti-Razão, do Certo e do Errado. O escravo é
capaz de abolir os senhores e de cooperar com êles; os senhores
são capazes de melhorar a vida do escravo e de aprimorar à
sua exploração. A idéia de Razão pertence ao movimento do
pensamento e da ação. É uma exigência teórica e prática.
Se a dialética entende a contradição como “necessidade”
pertencente à própria “natureza do pensamento” (zur Natur der
Denkbestimmungen) lº assim o faz porque a contradição per-
tence à própria natureza do objeto do pensamento, à realidade,
onde a Razão é ainda Anti-Razão, « o irracional ainda racional,
Inversamente, tôda realidade estabelecida milita contra a lógica
das contradições — favorece os modos de pensamento que
conservam as formas de vida estabelecidas e os modos de com-
portamento que os reproduzem e aprimoram. A realidade em
questão tem sua própria lógica e sua própria verdade; o esfôrço
para compreendê-las como tal e para as transcender pressupõe
uma lógica diferente, uma verdade contraditória. Pertencem
a modos de pensar que são não-operacionais em sua própria
estrutura; são estranhas tanto ao operacionalismo científico como
ao do senso comum; sua concreção histórica milita contra a
quantificação c a matematização, de um lado, e, de outro,
contra o positivismo e o empirismo. Assim, êsses modos de
pensar parecem ser uma relíquia do passado, como tôda Filo-
sofia não-científica e não-empírica. Recuam diante da teoria
e prática da Razão mais eficazes.
16 Ibtd.
[o
DO PENSAMENTO NEGATIVO PARA O POSITIVO:
RACIONALIDADE TECNOLÓGICA E A LÓGICA
DA DOMINAÇÃO
Na realidade social, a dominação do homem pelo homem
ainda é, a despeito de tôda transformação, o contínuo histórico
que une Razão pré-tecnológica e Razão tecnológica. Contudo,
a sociedade que projeta e empreende a transformação tecnológica
da natureza altera a base da dominação pela substituição grada-
tiva da dependência pessoal (o escravo, do senhor; o servo,
do senhor da herdade; o senhor, do doador do feudo etc.) pela
dependência da “ordem objetiva das coisas” (das leis econô-
micas, do mercado etc.). Sem dúvida, a “ordem objetiva das
coisas” é, ela própria, o resultado da dominação, mas é, não
obstante, verdade que a dominação agora gera mais elevada
racionalidade — a de uma sociedade que mantém sua estrutura
hierárquica enquanto explora com eficiência cada vez maior
os recursos naturais e mentais e distribui os benefícios dessa
exploração em escala cada vez maior. Os limites dessa raciona-
lidade e sua fôrça sinistra aparecem na escravização progressiva
do homem por um aparato produtor que perpetua a luta pela
existência, estendendo-o a uma luta total internacional que
arruína a vida dos que constroem e usam êsse aparato.
A esta altura se torna claro que algo deve estar errado na
racionalidade do próprio sistema. O que está errado é a forma
pela qual os homens organizaram seu trabalho social. Isso não
mais está em questão no presente, quando, de um lado, os
grandes empresários estão êles próprios desejosos de sacrificar
as bênçãos da emprêsa privada e “livre” competição às bênçãos
das ordens e regulamentações governamentais, enquanto, de
outro lado, a construção socialista continua a prosseguir através
da dominação progressiva. Contudo, a questão não pode parar
142
aqui. A organização errônea da sociedade exige maior expli-
cação, em vista da situação da sociedade industrial avançada,
na qual a integração de fôrças sociais antes negativas e transcen-
dentes com o sistema estabelecido parece criar uma nova
estrutura social.
Essa transformação de oposição negativa em positiva indica
o problema: a organização “errônea”, ao se tornar totalitária
em bases internas, refuta as alternativas. Certamente é assaz
natural, parecendo não exigir uma explicação em profundidade,
o fato de os benefícios tangíveis do sistema serem considerados
dignos de defesa — especialmente em vista da fôrça repulsiva
do comunismo atual, que parece ser a alternativa histórica.
Mas é natural apenas para um modo de pensar e de comporta-
mento que não deseja e talvez mesmo seja incapaz de compre-
ender o que se está passando e porque está acontecendo, um
modo de pensar e de comportamento que é imune a qualquer
outra racionalidade estabelecida. Desde que correspondam à
realidade em questão, o pensamento e o comportamento expres-
sam uma falsa consciência, reagindo à preservação de uma
falsa ordem dos fatos e contribuindo para ela. E essa falsa
consciência se corporificou no aparato técnico prevalecente, o
qual, por sua vez, a reproduz.
Nascemos e morremos racional e produtivamente. Sabemos
que a destruição é o preço do progresso, como a morte é o
preço da vida, que a renúncia e a labuta são os requisitos para
a satisfação e o prazer, que os negócios devem prosseguir e que
as alternativas são utópicas. Essa ideologia pertence ao aparato
social estabelecido; é um requisito para o seu funcionamento
contínuo e parte de sua racionalidade.
Contudo, o aparato derrota o seu próprio objetivo se êste
é criar uma existência humana com base numa natureza huma-
nizada. E se êsse não é o seu propósito, sua racionalidade se
torna ainda mais suspeita. Mas ela é também mais lógica porque,
de início, o negativo está no positivo, o desumano está na
humanização, a escravização na libertação. Essa dinâmica é a
da realidade e não da mente, mas de uma realidade na qual
a mente científica teve papel decisivo em unir a razão teórica e
prática.
A sociedade se reproduz num crescente conjunto técnico
de coisas e relações que incluiu a utilização técnica do homem
— em outras palavras, a luta pela existência e a exploração
143
do homem e da natureza se tornaram cada vez mais científicas
e racionais. O duplo significado de “racionalização” é relevante
nesie contexto, A gerência científica e a divisão científica do
trabalho aumentaram enormemente a produtividade do empre-
endimento econômico, político e cultural. Resultado: o mais
elevado padrão de vida. Ao mesmo tempo e com os mesmos
fundamentos, êsse empreendimento racional produziu um padrão
“ mente e comportamento que justificou e absolveu até mesmo
as particularidades mais destrutivas e opressivas do empreendi-
mento. A racionalidade e a manipulação técnico-científicas estão
fundidas em novas formas de contrôle social. Pode alguém con-
tentar-se com a suposição de que esta consequência anticientífica
seja o resultado de uma aplicação social específica da ciência?
Creio que a direção geral em que foi aplicada era inerente à
ciência pura até mesmo onde não eram objetivados propósitos
práticos, e que pode ser identificado o ponto em que a Razão
teórica se torna prática social. Nesta tentativa, recordarei ligei-
ramente as origens metudológicas da nova racionalidade, con-
trastando-a com as particularidades do modêlo pré-tecnológico
discutido no capítulo anterior.
A quantificação da natureza, que levou à sua explicação
em têrmos de estruturas matemáticas, separou a realidade de
todos os fins inerentes c, consequentemente, separou o verda-
deiro do bem, a ciência da ética. Independentemente de como
a ciência possa agora definir a objetividade da natureza e as
inter-relações entre as suas partes, ela não pode concebê-la
cientificamente em têrmos de “causas finais”. E independente-
mente do quãc constitutivo possa ser o papel do objeto como
ponto de observação, medição e cálculo, êsse objeto não pode
desempenhar o seu papel científico como agente ético, estético
ou político. A tensão entre Razão, de um lado, e, de outro, as
necessidades e carências da população subjacente (que tem sido
o objeto da Razão, mas raramente seu sujeito), tem existido
desde o início do pensamento filosófico € científico. A “natureza
Jas coisas”, incluindo a da sociedade, foi definida de modo a
justificar a repressão e até mesmo a supressão como perfeita-
mente racionais. O verdadeiro conhecimento e a verdadeira
razão exigem o domínio sôbre os sentidos, se não mesmo a
iibertação deles. A união de Logos e Eros já havia levado Platão
à supremacia de Logos; em Aristóteles, a relação entre o deus
“o mundo movido por êle é “erótica” sômente em têrmos de
144
analogia. Então o elo ontológico precário entre Logos e Eros
é rompido, e a racionalidade científica emerge como essencial-
mente neutra. Aquilo por que a natureza (incluindo o homem)
pode estar batalhando é cientificamente racional sômente em
têrmos das leis do movimento — físico, químico ou biológico.
Fora dessa racionalidade, vive-se num mundo de valóres,
e os valôres retirados da realidade objetiva se tornam subjetivos.
O único modc de salvar alguma validez abstrata e inofensiva
para êles parece ser uma sanção metafísica (lei divina e natural).
Mas tal sanção não é verificável, não sendo, portanto, realmente
objetiva. Os valôres podem ter uma dignidade mais elevada
(moral e espiritualmente), mas não são reais e, assim, têm
menos importância no assunto real da vida — quanto menos
assim fôr, tanto mais serão elevados acima da realidade.
A mesma desrealização afeta tôdas as idéias que, por sua
própria natureza, não podem ser verificadas pelo método cien-
tífico. Independentemente do quanto possam ser reconhecidas,
respeitadas e santificadas, em seu próprio direito, sofrem por
serem não-objetivas. Mas precisamente sua falta de objetividade
as transforma em fatóres de coesão social, As idéias humani-
tárias, religiosas e morais são apenas “ideais”; não perturbam
indevidamente o estilo de vida estabelecido e não são invalidadas
pelo fato de sere.n contraditadas por um comportamento ditado
pelas necessidades diárias dos negócios e da política.
Se o Bem e o Belo, a Paz e à Justiça, não podem ser
extraídos de condições ontológicas ou científico-racionais, não
podem, lôgicamente, invocar para si validez e realização uni-
versais. Em têrmos de razão científica, permanecem uma questão
de preferência e nenhuma ressurreição de algum tipo de Filosofia
aristotélica ou tomística pode salvar a situação, porque ela é
refutada a priori pela razão científica. O caráter anticientífico
dessas idéias enfraquece fatalmente a oposição à realidade esta-
belecida; as idéias se tornam meros ideais, e seu conteúdo
concreto e crítico se evapora na atmosfera ética ou metafísica.
Paradoxalmente, contudo, o mundo objetivo, deixado
equipado apenas com qualidades quantificáveis, se torna cada
vez mais, em sua objetividade, dependente do sujeito. O longo
processo começa com a algebrização da Geometria, que substitui
figuras geométricas “visíveis” por operações puramente mentais.
Ele encontra sua forma extrema em algumas concepções da
145
A ciência da natureza se desenvolve sob o a priori tecno-
lógico que projeta a natureza como instrumento potencial,
material de contrôle e organis "ção. E a apreensão da natureza
como instrumento (hipotético) precede o desenvolvimento de
tôda organização técnica particular:
“O homem moderno toma o Ser em sua inteiveza como matéria-prima
para a produção e submete à inteireza do mundo-objeto à varredura €
à ordem da produção (Herstellenp. ”...o uso da maquinaria e a pro-
dução de máquinas não são técnica em si mas meramente um instru-
mento adequado para a realização (Einrichtung) da essência da técnica
em sua matéria-prima objetiva”. 13
O a priori tecnológico é um a priori político considerando-
se que a transformação da uatureza compreende a do homem,
e que as “criações de autoria do homem” partem de um conjunto
social e reingressam nêle. Poder-se-á ainda insistir em que a
maguinaria do universo tecnológico é, “como tal”, indiferente
aos fins políticos — pode revolucionar ou retardar uma socie-
dade. Um computador eletrônico pode servir ao mesmo tempo
a uma administração capitalista ou socialista; um ciclótron pode
ser uma ferramenta igualmente eficiente para um grupo bélico
ou um grupo pacifista. Essa neutralidade é contestada na dis-
cutida declaração de Marx de que “o engenho manual dá-lhe
sociedade com o senhor feudal; o engenho a vapor, com o capi-
talista industrial”. E essa declaração é mais adiante modifi-
cada pela própria teoria marxista: o modo social de produção,
e não a técnica, é o fator histórico básico. Contudo, quando
a técnica se torna a forma universal de produção material,
circunscreve tôda uma cultura; projeta uma totalidade histórica
— um “mundo”.
Poderemos dizer que a evolução do método científico mera-
mente “reflete” a transformação da realidade natural em reali-
dade técnica no processo da civilização industrial? Formular
dessa mancira a relação entre ciência e sociedade é admitir dois
campos e acontecimentos que se encontram, a saber, 1) a
ciência e o pensamento científico, com seus conceitos internos
33 Martin Heidegger, Holzwege (Frankfurt, Klostermann, 1950), pp. 266 e segs.
(radução nossa). Ver também Vortrâge und Aujsâtze (Pfúllingen, Ginther Neske,
1954), pp. 22, 29.
Já, The Poreny of Philosophy, capítulo IL, “Second Observation”. em A Hand.
book of Marxsm, ed. E. Burns, Nova York, 1935, p.
150
e sua verdade interna, e 2) o uso e a aplicação da ciência na
realidade social. Em outras palavras, independentemente do
quão estreita a conexão entre os dois acontecimentos, êles não
se implicam e definem mútuamente. Ciência pura não é ciência
aplicada; conserva sua identidade e a sua validez independente-
mente de sua utilização. Mais ainda, essa noção de neutralidade
essencial da ciência é também estendida à técnica. A máquina
é indiferente aos usos sociais que lhe são dados, desde que
tais usos permaneçam dentro de suas possibilidades técnicas.
Em vista do caráter instrumentalista interno do método
científico, essa interpretação parece inadequada, Uma relação
mais estreita parece existir entre o pensamento científico e sua
aplicação, entre o universo da locução científica e o da locução
€ comportamento comuns — uma relação na qual ambas se
movem sob a mesma lógica e racionalidade de dominação.
Num acontecimento paradoxal, os esforços científicos para
estabelecer a objetividade rígida da natureza levaram a uma
crescente desmaterialização da natureza:
A idéia de natureza infinita existindo como tal, essa idéia que temos de
abandonar, é o mito da ciência moderna. A ciência começou por destruir
o mito da Idade Média. E agora a ciência é forçada por sua própria
consistência a se aperceber de que meramente criou outro mito em
substituição àquele.15
O processo que começa pela eliminação de substâncias
independentes e causas finais chega à ideação da objetividade.
Mas trata-se de uma ideação muito específica, na qual o objeto
se constitui em relação assaz prática com o sujeito:
E que é matéria? Em Física Atômica, a matéria é definida por suas
possíveis relações com as experiências humanas e pelas leis matemáticas
— isto é, intelectuais — a que obedece, Estamos definindo a matéria
como um possível objeto de manipulação do bomem.is
E se êsse for o caso, então a ciência se tornou ela própria
tecnológica:
A ciência pragmática tem a visão da natureza apropriada a uma era
tecnológica. i?
15 C. P. von Weizsácker, The History of Nature, toc. cit, p. 11.
16 Ibido p. 142 (a ênfase é nossa).
17 Ibida po 1
151
Desde que êsse operacionalismo se torne o centro do em-
preendimento científico, a racionalidade assume a forma de
construção metodológica; organização e manuseio da matéria
como mero material de contrôle, como instrumento que se
presta a todos os propósitos e fins — instrumento per se, “em si”.
A atitude “correta” com relação ao instrumento é a ma-
neira tecnológica de considerar, O logos correto é tecno-logia,
que projeta e reage a uma realidade tecnológica. ls Nessa reali-
dade, tanto a matéria como a ciência são “neutras”; a objetividade
não tem um telos em si, tampouco é estruturada no sentido de
um selos. Mas é precisamente êsse caráter nentro o que relaciona
a objetividade com um Sujeito histórico específico — a saber,
à consciência que predomina na sociedade pela qual e para
a qual essa neutralidade é estabelecida. Opera nas próprias
abstrações que constituem a nova racionalidade — mais como
um fator interno do que externo. O operacionalismo puro €
aplicado, a razão teórica c prática, a emprêsa científica e
comercial executam a redução das qualidades secundárias a
primárias, a quantificação e a abstração dos “tipos particulares
de entidades”.
Sem dúvida, a racionalidade da ciência pura é livre de
valôres e não estipula quaisquer fins práticos, é “neutra” a
quaisquer valôres estranhos que lhe possam ser impostos. Mas
essa neutralidade é um caráter positivo. A racionalidade cienti-
fica favorece uma organização social específica precisamente
porque projeta mera forma (ou mera matéria — aqui, os têrmos
de outro modo opostos convergem) que pode atender prática-
mente a todos os fins. A formalização e a funcionalização
constituem, anteriormente à tôda aplicação, a “forma pura” de
uma prática social concreta. Enquanto a ciência libertou a
natureza de fins inerentes e despojou a matéria de tódas as
qualidades que não as quantificáveis, a sociedade livrou os
homens da hierarquia “natural” da dependência pessoal, rela-
cionando-os entre si de acôrdo com qualidades quantificáveis
— a saber, como unidades da fôrça de trabalho abstratas,
18 Coniio em que não serei mal interpretado como tendo sugerido que os
conceitos da Física Matemática sejam concebidos como “instrumentos”, que tenham
um intento técnico, prático, Tecno-tógica é, antes, a “intuição” ou apreensão aprio-
sística do universo no qual a ciência se move, no qual cia se constitui em ciência
pura. Talvez seja mais claro falar de horizonte instrumentalista da Física M
mática. Ver Suzanne Bachelard, La Conscience de rarionalité (Patis, Presses U
versitaires, 1958), p. 31
152
calculáveis em unidades de tempo. “Em virtude da racionalização
das formas de trabalho, a eliminação das qualidades é transfe-
rida do universo da ciência para o da experiência cotidiana."!º
Haverá, entre os dois processos de quantificação científica
e social, paralelismo e causação, ou será sua conexão simples-
mente obra de percepção sociológica tardia? A discussão anterior
propôs a idéia de que a nova racionalidade científica estava
contida em si mesma, em sua própria abstração e pureza,
operacional na medida em que se desenvolveu sob horizonte
instrumentalista. A observação e a experimentação, a organi-
zação e a coordenação metódicas dos dados, proposições e
conclusões nunca prosseguem em espaço teórico não-estruturado
e neutro. O projeto de cognição envolve operações sôbre o
objeto, ou abstração dos objetos que ocorrem num determinado
universo da locução e ação. A ciência observa, calcula € teoriza
de uma posição no universo. As estrêlas que Galileu observou
eram as mesmas na antiguidade clássica, mas o universo diferente
da locução e da ação — em suma, a realidade social diferente
— abriu a nova direção e o nôvo raio de observação, bem
como as possibilidades de ordenar os dados observados. Não
me preocupo aqui com a relação histórica entre racionalidade
científica e social no início do período moderno. O meu propó-
sito é demonstrar o caráter instrumentalista interno dessa
racionalidade científica em virtude da qual ela é tecnologia
apriorística, e o a priori de uma tecnologia específica — a saber,
tecnologia como forma de contrôle e dominação social.
Visto como o pensamento científico moderno é puro, êle
não projeta metas práticas particulares nem formas particulares
de dominação. Contudo, não existe uma dominação per se.
Ao prosseguir, a teoria se abstrai de um contexto teleológico
real ou o rejeita — o do universo concreto da locução e da
ação em questão. É dentro dêsse próprio universo que 0 pro-
jeto científico ocorre ou não ocorre, que a teoria concebe ou
não concebe as possíveis alternativas, que as suas hipóteses
subvertem ou ampliam a realidade preestabelecida.
Os princípios da ciência moderna foram uma estrutura
apriorística de tal modo que puderam servir de instrumentos
conceptuais para um universo de contrôle produtor automotor;
o operacionalismo teórico passou a corresponder ao operaciona-
19 M. Horkheimer e T. W. Adorno, Dialektik der Aufklrung, loc. cl, p. 50
(tradução nossa).
153
lismo prático. O método científico que levou à dominação cada
vez mais cficaz da natureza forneceu, assim, tanto os conceitos
puros como Os instrumentos para a dominação cada vez maior
do homem pelo homem por meio da dominação da natureza.
A razão teórica, permanecendo puta e neutra, entrou para o
serviço da razão prática. A fusão resultou benéfica para ambas.
Hoje, a dominação se perpetua e se estende não apenas através
da tecnologia, mas como tecnologia, e esta garante a grande
legitimação do crescente poder político que absorve tôdas as
esferas da cultura.
Nesse universo, a tecnologia também garante a grande
racionalização da não-liberdade do homem e demonstra a impos-
sibilidade “técnica” de a criatura ser autônoma, de determinar a
sua própria vida. Isso porque essa não-liberdade não parece
irracional nem política, mas antes uma submissão ao aparato
técnico que amplia as comodidades da vida e aumenta a produti-
vidade do trabalho. A racionalidade tecnológica protege, assim,
em vez de cancelar, a legitimidade da dominação, e o horizonte
instrumentalista da razão se abre sôbre uma sociedade racional-
mente totalitária:
On pourrait nommer philosophie autocratique des techniques celle qui
prend tensemble sechnique comme un licu oú fon utilise les machines
pour obrenir de la puissance. La machine est seulement un moyen:
la fin est la conquête de la nature, la domesticarion des forces naturelles
au moyen d'un premier asservissement: la machine est un esclave qui
sert à faire d'autres esclaves. Une pareille inspiration dominatrice ef
esclavagiste peut se rencontrer avec une requête de liberié pour Vhommie.
Mais il est difficile de se libérer en transférant Vesclavage sur dautres
êtres, hommes, animaux ou machines; régner sur un peuple de machines
asservissant le monde entier, c'est encore régner, et toui rêgne suppose
Pacceptation des schêmes d'asservissement20
A dinâmica incessante do progresso técnico se tornou per-
meada de conteúdo político e o Logos da técnica foi transformado
20 «Poder-se-á chamar autocrática uma filosofia da técnica que toma o todo
técnico como local em que as máquinas são usadas para obter fórça. As máquinas
São apenas um meio; o fim é a conquista da natureza, à domesticação das fôrças
naturais por meio de uma escravização primordial: a máquina é um escravo que
serve para fazer outros escravos. Tal impulso dominador e escravizador pode
caminhar paralelamente com a busca da liberdade humana. Mas é difícil que à
pessoa se liberte pela transferência da escravidão para outros séres, homens, ammais
Ou máquinas; reinar sobre uma população de máquinas subjugando e mundo
inteiro ainda é reinar, e todo «tino supie a aceitação dos planos de sujeição.”
Gilbert Simondon, Du Mode d'existence des objets techniques (Paris, Aubier, 1958),
po 127
154
em Logos da servidão contínua. A fôrça libertadora da tecno-
logia — a instrumentalização das coisas — se torna o grilhão
da libertação; a instrumentalização do homem.
Essa interpretação ligaria o projeto científico (método é
teoria) a um projeto social específico, anteriormente a foda
aplicação e utilização, e veria a ligação precisamente na mai
íntima forma de racionalidade científica, isto é, no caráter
funcional de seus conceitos. Em outras palavras, o universo
científico (isto é, não as proposições específicas sôbre a estru-
tura da matéria, energia, sua inter-relação etc., mas a projeção
da natureza como matéria quantificável, como orientação da
apreciação hipotética — e a expressão jógico matemática a Sa
objetividade) seria o horizonte de uma prática social Ea rea
que seria preservada no desenvolvimento do projeto cien io.
Mas mesmo admitindo o instrumentalismo interno da
racionalidade científica, essa suposição não estabeleceria a validez
sócio-lógica do projeto científico. Admitindo-se que a formação
dos conceitos científicos mais abstratos ainda preserva à ini e
relação entre sujeito e objeto num determinado universo da
locução e da ação, o elo entre jotão teárioa e razão prática p
tendido de maneiras assaz diferentes. .
e “Tal interpretação diferente é oferecida por Jean Piaget em
sua “epistemologia genética”. Piaget interpreta a formação e
conceitos científicos em têrmos de diferentes abstrações de uma
inter-relação geral entre sujeito e objeto. A abstração não
procede do mero objeto, de modo que o sujeito funcione apenas
como o ponto neutro de observação e medição, nem do sujeito
como veículo de Razão cognitiva pura. Piaget distingue entre Os
processos de cognição em Matemática e em Física O primeiro
é abstração “à 'intéricur de Paction comme telle
Contrairement à ce que Fon dit souvent, tes óires mathémaiques me
é f i tir des objets, m
résultent donc pas d'une abstraction à par! mais
abstraction effectuée au sein des actions comme telles. Réunir, ordonner,
déplacer, etc. sont des actions plus générales que penser, pousser, Ee
parce aueltes tiennent à la coordination même de toutes les actions pe e
culiêres et entrent en chacune d'elles à titre de jacteur coordinaieur...
2 “Contrariamente ao que é com frequência afirmado. as entidades matemávicas
não são, portanto, 6 resultado de uma absiração baseada em objetos, mas, antes, de
uma, HOsGação q arSo empsrtr “etc, porque. imisicm na, própria
õ o que » ,
Ea E ad pi Co, Eta Panda
Como fator coordenador.” Introduction à Pépistimologie .
(Presses Universitaires, Paris, 1950), pág. 287
155
A discussão precedente parece sugerir não apenas as limi-
tações e os preconceitos íntimos do método científico como
também sua subjetividade histórica. Mais ainda, parece implicar
a necessidade de algum tipo de “Física qualitativa”, ressurreição
das Filosofias teológicas etc. Admito que tal suspeita seja
justificada, mas, a esta altura, posso apenas asseverar que não
foram visadas tais idéias obscurantistas.?s
Independentemente de como se definam verdade e objetivi-
dade, elas continuam relacionadas com os agentes humanos da
teoria e da prática e com a capacidade dêstes para compreender
e modificar o seu mundo. Esta capacidade depende, por sua
vez, do quanto a matéria (seja ela o que fôr) seja reconhecida e
entendida como aquilo que ela é em tôdas as formas particulares.
Nesses têrmos, a ciência contemporânea tem validez objetiva
imensamente maior do que as suas predecessoras. Poder-se-á
até acrescentar que, no presente, o método científico é o único
a que se pode atribuir tal validez; a influência recíproca de hipó-
teses e fatos observáveis valida as hipóteses e estabelece os
fatos. O ponto que estou tentando mostrar é que a ciência, em
virtude de seu próprio método e de seus conceitos, projetou e
promoveu um universo no quai a dominação da natureza per-
maneceu ligada à dominação do homem -— uma ligação que
tende a ser fatal para êsse universo em seu todo. A natureza,
cientificamente compreendida e dominada, reaparece no aparato
técnico da produção e destruição que mantém e aprimora a
vida dos indivíduos enquanto os subordina aos senhores do
aparato. Assim, a hierarquia racional se funde com a social.
Se êsse fôr o caso, então a mudança na direção do progresso,
que pode romper essa ligação fatal, também afetaria a própria
estrutura da ciência —. o projeto científico. Suas hipóteses, sem
perder seu caráter racional, se desenvolveram num contexto
experimental essencialmente diferente (o de um mundo apazi-
guado); consegientemente, a ciência chegaria a conceitos de
natureza essencialmente diferente e estabeleceria fatos essencial-
mente diferentes. A sociedade racional subverte a idéia de Razão.
Mostrei que os elementos dessa subversão, as noções de
outra racionalidade, estiveram presentes na história do pensa-
mento desde o seu irlcio. A idéia antiga de um estado no qual
o Ser atinge sua realização, no qual a tensão entre o “é” e o
“deve” é resolvida no ciclo de um retômmo eterno, participa da
pítutos 9 e 10, adiante.
160
metafísica da dominação. Mas também pertence à metafísica
da libertação — à reconciliação de Logos e Eros. Essa idéia
visualiza à interrupção da produtividade repressiva da Razão, o
fim da dominação na satisfação.
As duas racionalidades contrastantes não podem ser sim-
plesmente correlacionadas com o pensamento clássico e moderno,
respectivamente, como na formulação de John Dewey do gõro
contempiativo para a manipulação c o contrôle eficazes”, e
“do conhecimento como um gôzo das propriedades da natu-
reza... para o conhecimento como um meio de contrôle
secular” 2? O pensamento clássico foi suficientemente compro-
metido com a lógica do contrêle secular e há um componente
suficiente de acusação e recusa no pensamento moderno para
viciar a formulação de John Dewey. À Razão, como pensamento
e comportamento conceptuais, é necessáriamente profundo
conhecimento, dominação. Logos é lei, regra, ordem, em virtude
do conhecimento. Ao subordinar casos particulares sob um
universal, ao submetê-lo ao seu universal, o pensamento alcança
domínio sôbre os casos particulares. Torna-se capaz não apenas
de compreendê-los como também de agir sôbre êles, de os
controlar. Contudo, embora todo pensamento fique sob o jugo
da lógica, a manifestação dessa lógica é diferente nos vários
modos de pensar. A lógica formal clássica e a lógica simbólica
moderna, a lógica transcendente e a lógica dialética — dominam,
cada uma deias, um universo diferente da locução e da experi-
ência, Tôdas se desenvolveram dentro do contínuo histórico da
dominação ao qual rendem tributo. E êsse contínuo confere
aos modos de pensar positivos seu caráter conformista e ideoló-
gico; aos de pensar negativo, seu caráter especulativo e utópico.
Podemos agora, à guisa de resumo, tentar identificar com
maior clareza o sujeito oculto da racionalidade científica e os
fins ocultos, em sua forma pura. O conceito científico de uma
natureza universalmente controlável projetou a natureza como
matéria-em-função infindável, mero material da teoria € da
prática. Sob essa forma, o mundo-objeto entrou na construção
de um universo tecnológico — um universo de instrumentos
mentais e físicos, de meios em si. Assim, trata-se de um sistema
verdadeiramente “hipotético”, dependendo de um sujeito vali-
dador e verificador.
23 John Dewey, The Quest for Certainty (Nova York, Minton, Balch and Co.
19293, pp. 95, TLO,
161
Os processos de validação e verificação podem ser pura-
mente teóricos, mas jamais ocorrem no vácuo e jamais terminam
numa mente privada, individual. O sistema hipotético de formas
e funções se torna dependente de outro sistema — um universo
preestabelecido de fins, no qual e para o qual se desenvolve.
O que pareceu estranho, alheio ao projeto teórico se revela
como parte de sua própria estrutura (método e conceito); a
objetividade pura se revela como objeto para uma subjetividade
que garante o Telos, os fins. Na construção da realidade tecno-
lógica, não há uma ordem científica puramente racional; o
processo da racionalidade tecnológica é um processo político.
Sômente no medium da tecnologia, o homem e a natureza
se tornam objetos fungíveis de organização. A eficácia e à
produtividade universais do aparato ao quat são subordinados
vela os interêsses particulares que organizam o aparato. Em
outras palavras, a tecnologia se tornou o grande veículo de
espoliação — espoliação em sua forma mais madura e eficaz.
A posição social do indivíduo e sua relação com os demais
não apenas parecem determinadas por qualidades e leis objetivas,
mas também essas leis v qualidades parecem perder seu caráter
misterioso c incontrolável; aparecem como manifestações calculá-
veis da racionalidade (científica). O mundo tendes a tornar-se
o material da administração total, que absorve até os adminis-
tradores. A teia da dominação tornou-se a teia da própria Razão,
e esta sociedade está fatalmente emaranhada nela. E os modos
transcendentes de pensar parece transcenderem a própria Razão.
Sob tais condições, o pensamento científico (científico no
sentido mais amplo, em contraposição a pensamento toldado,
metafísico, emocional, ilógico) assume, fora das Ciências Físicas,
a forma de um formalismo puro e auto-suficiente (simbolismo),
de um lado, e, de outro, a de um empirismo total. (O contraste
não é um conflito. Veja-se a aplicação assaz empírica da Mate-
mática e da lógica simbólica nas indústrias eletrônicas.) Com
relação ao universo estabelecido da locução e do comportamento,
a não-contradição e a não-transcendência são os denominadores
comuns. O empirismo total revela sua função ideológica na
Filosofia contemporânea. Com respeito a essa função, alguns
aspectos da análise lingúística serão discutidos no capítulo
seguinte. Essa discussão se destina a preparar o terreno para
a tentativa de mostrar as barreiras que impedem êsse empirismo
de entrar em luta com a realidade e de estabelecer (ou antes,
restabelecer) os conceitos que podem romper essas barreiras.
162
7
A VITÓRIA DO PENSAMENTO POSITIVO:
FILOSOFIA UNIDIMENSIONAL
A redefinição do pensamento que ajuda a coordenar as
operações mentais com as da realidade social visa a uma terapia.
O pensamento está em consonância com a realidade quando é
curado da transgressão além de uma estrutura conceptual que
é puramente axiomática (Lógica, Matemática ) ou então co-
extensiva com o universo estabelecido da locução = do comporta-
mento. Assim, a análise lingiústica alega curar o pensamento e
a palavra das noções metafísicas que confundem — de fan-
tasmas” de um passado menos amadurecido e menos científico
que ainda assombram a mente, embora não designem e não
expliquem. A ênfase é dada à função terapêutica da análise
filosófica — correção do comportamento anormal no pensa-
mento e na palavra, remoção de obscuridades, ilusões e extra-
vagâncias, ou, pelo menos, seu desmascaramento.
No capítulo 4, discuti o empirismo terapêutico da Sociolo-
gia ao expor e corrigir o comportamento anormal nas instalações
industriais, um procedimento que implicou a exclusão de con-
ceitos críticos capazes de relacionar tal comportamento com à
sociedade em scu todo. Em virtude dessa restrição, o procedi-
mento teórico se torna imediatamente prático. Idealiza métodos
de melhor gerência, plancjamento mais seguro, maior eficiência
e cálculos mais aproximados. A análise termina em afirmação
via correção e melhoramento; o empirismo se reafirma como
pensamento positivo.
A análise filosófica não tem essa aplicação imediata. Com-
parado às realizações da Sociologia e da Psicologia, o tratamento
terapêutico do pensamento continua acadêmico. . De fato, o
pensamento exato, a libertação de espectros metafísicos e noções
163
sem significado bem podem ser considerados um fim em si. Mais
ainda, o tratamento do pensamento na análise linguística é seu
próprio assunto e seu próprio direito. Scu caráter ideológico
não deve ser prejulgado pela correlação da luta contra a transcen-
dência conceptual além do universo da locução estabelecido com
a luta contra a transcendência política além da sociedade
estabelecida.
À semelhança de qualquer Filosofia digna do nome, a
linguagem língiústica fala por si e define sua própria atitude
para com a realidade. Identifica como sua principal preocupação
a denúncia de conceitos transcendentes; proclama como sua
estrutura de referência o uso comum das palavras, a variedade
do comportamento comum. Com tais características, circuns-
creve sua posição na tradição filosófica — a saber, no pólo
oposto ao dos modos de pensar que elaboraram seus conceitos
em tensão e até em contradição com o universo prevalecente
da locução e do comportamento.
Em têrmos do universo estabelecido, tais modos de pensar
contraditórios são pensamento negativo. “O poder do negativo”
é o princípio que governa o desenvolvimento de conceitos, e a
contradição se torna a qualidade distintiva da Razão (Hegel).
Essa qualidade do pensamento não ficou limitada a certo tipo
de racionalismo; foi também um elemento decisivo na tradição
empirista. O empirismo não é necessâriamente positivo; sua
atitude para com a realidade estabelecida depende da dimensão
particular da experiência que funciona como fonte de conheci-
mento e como estrutura básica de referência, Por exemplo, pa-
rece que o sensualismo e o materialismo são negativos per se
quanto a uma sociedade na qual as necessidades instintivas e
materiais não são atendidas. Em contraste, o empirismo da
análise lingistica se move numa cstrutura que não permite tal
contradição — a restrição auto-imposta ao universo behaviorista
prevalecente favorece uma atitude intrinsecamente positiva. A
despeito da atitude rigidamente neutra do filósofo, a análise
previamente comprometida sucumbe ao poder do pensamento
positivo.
Antes de tentar demonstrar o carúter intrinsecamente ideo-
lógico da análise lingúística, tentarei justificar o uso aparente-
mente arbitrário, derrogatório que dou aos têrmos “positivo”
e “positivismo” por meio de ligeiro comentário sôbre as origens
dêsses térmos. Desde que foi pela primeira vez usado, provâvel-
mente na escola de Saint-Simon, o têrmo “positivismo” abrangeu:
164
1) a validação do pensamento cognitivo pela experiência dos
fatos; 2) a orientação do pensamento cognitivo para as Ciências
Físicas como um modêlo de certeza c exatidão; 3) a crença de
que o progresso do conhecimento depende dessa orientação.
Consegiientemente, o positivismo é uma luta contra tôdas as
idéias metafísicas, contra todos os transcendentalismos e contra
todos os idealismos como formas de pensamento obscurantistas
e regressivas. O positivismo encontra na sociedade o meio para
a realização (e validação) de seus conceitos — harmonia entre
teoria e prática, verdade e fatos — desde que a realidade em
questão seja cientificamente compreendida e transformada, desde
que a sociedade se torne industrial c tecnológica. O pensamento
filosófico se transforma em pensamento afirmativo; a crítica
filosófica critica dentro da estrutura social e estigmatiza noções
não-positivas como mera especulação, sonhos ou fantasias.!
O universo da locução e do comportamento que começa a
ter expressão no positivismo de Saint-Simon é o da realidade
tecnológica. Nêle, o mundo-objeto está sendo transformado em
instrumento. Muito do que ainda está fora do mundo instru-
mental — natureza virgem, selvagem — se apresenta agora aq
alcance do progresso científico e técnico. A dimensão metafí-
sica, antes um campo genuíno do pensamento racional, se torna
irracional e anticientífica. Com base em suas próprias reali-
zações, a Razão repele a transcendência. Na fase posterior do
positivismo contemporâneo, não mais é o progresso científico e
técnico o que motiva a repulsão; contudo, a contradição do
pensamento não é menos séria, por ser auto-imposta — o pró-
prio método da Filosofia. O esfórço contemporâneo para redu-
zir o alcance e a verdade da Filosofia é tremendo, e os próprios
filósofos proclamam a modéstia e a ineficiência da Filosofia.
Ela deixa intocada a realidade estabelecida; abomina a trans-
gressão.
O tratamento desdenhoso das alternativas para o uso co-
mum das palavras, de Austin, e sua difamação do que “con-
cebemos à tarde em nosso gabinete”; a afirmação de Wittgen-
1 A atitude conformista do positivismo vis.a-vis de modos radicalmente não
conformistas de pensar aparece talvez pela primeira vez na denúncia positivista de
Fourier. O próprio Fourier (em La Fausse Indusirie, 1835, vol. T. p. 409) viu O
comercialismo total da sociedade burguesa como O fruto de “nosso progresso em
racionalismo e positivismo”. Citado em André Lalande, Vocabulaire Technique et
Critique de la Philosophie (Paris, Presses Universitaires de France, 1956), p. 792
Para as várias conotações do têrmo “positivo” na nova Ciência Social e em
oposição a “negativo”, ver Docirine de Saint-Simon, ed. Bouglé et Halévy (Paris,
Riviêre, 1924), pp. 181 e segs.
165
severas e autoritárias: “A Filosofia não pode de modo algum
interferir no uso real da linguagem”? “E não podemos apre-
sentar espécic alguma de teoria, Não deve haver coisa hipo-
tética alguma em nossas considerações. Devemos abolir tóda
explicação e somente a descrição deve tomar o seu lugar”.!o
Poder-se-á perguntar: que resta da Filosofia? Que resta do
pensamento, da inteligência, sem algo hipotético, sem qualquer
explicação? Contudo, o que está em jôgo não é a definição ou
a dignidade da Filosofia; é, antes, a oportunidade de preservar
e proteger o direito, a necessidade de pensar e falar em têrmos
outros que não os do uso comum — térmos que são significati-
vos, racionais e válidos precisamente pelo fato de serem outros
têrmos. O que está implicado é a disseminação de uma nova
ideologia que empreende a descrição do que está acontecendo
(e é tencionado) pela eliminação dos conceitos capazes de
compreender o que está acontecendo (e é tencionado) .
Para começar, existe uma diferença irredutível entre o
universo do pensamento cotidiano e a linguagem, de um lado, e,
de outro, o do pensamento filosófico e a linguagem. Em cir-
cunstâncias normais, a linguagem ordinária é de fato bchavio-
rista — um instrumento prático. Quando alguém de fato diz:
“Minha vassoura está no canto”, provavelmente imagina que
outro alguém que tenha perguntado pela vassoura vá retirá-la
ou deixá-la onde se encontra, estará satisfeita, ou aborrecida,
com a resposta. De qualquer forma, a sentença preencheu a
sua função ao causar uma reação behaviorista: “o efeito devora
a causa; O fim absorve os meios”. !!
Em contraste, se, num texto ou locução filosóficos, a pala-
vra “substância”, “idéia”, “homem”, ou “alienação” se torna o
sujeito de uma proposição, não ocorre tal transformação do sig-
nificado em ação behaviorista, nem se tenciona que ocorra. A
palavra permanece, por assim dizer, não-preenchida — exceto
no pensamento, no qual pode dar origem a outros pensamentos.
E, através de longa séric de mediações dentro de um contínuo
histórico, a proposição pode ajudar a formar e guiar uma
prática, Mas até mesmo assim a proposição continua não-pre-
enchida — sômente a Aybris do idealismo absoluto afirma a tese
9 Ibid. p. 49,
to Ibid, p. 47.
W Paul Valéry, “Poésie et penste abstraite”, em Oeuvres, Joc cl, p 13
Também “Les Droits du poête sur la langue”, em Piêces sur Fart (Paris, Gallimarg,
1934), pp. 47 e ep.
170
de uma identidade final entre o pensamento e o seu objeto. Às
palavras pelas quais a Filosofia se interessa jamais podem, por-
tanto, ter um uso “tão simples... quanto o das palavras “mesa”,
lâmpada", 'porta”,
Assim, a exatidão e a clareza não podem ser, em Filosofia,
atingidas dentro do universo da locução ordinária. Os conceitos
filosóficos visam a uma dimensão do fato e do significado que
clucida as frases ou palavras atomizadas da locução ordinária
“do exterior” ao mostrar que êsse “exterior” é essencial à com-
preensão da locução ordinária. Ou, se o próprio universo da
locução ordinária se torna o objeto da análise filosófica, a lin-
guagem da Filosofia se torna uma “metalinguagem”.? Até
mesmo quando ela se move nos têrmos simples da locução or-
dinária, permanece antagônica. Dissolve o contexto experimen-
tal do significado estabelecido no de sua realidade; ela se abstrai
da concreção imediata a fim de atingir a verdadeira concreção.
Vistos sob êsse aspecto, os exemplos de análise lingiística
acima citados se tornam questionáveis como objetos válidos de
análise filosófica. Poderá a mais exata e esclarecedora descrição
da degustação de algo que pode ou não saber a abacaxi contri-
buir para a cognição filosófica? Poderá jamais servir de crítica
na qual estejam em jôgo condições humanas controversas —
outras que não as de degustação médica ou psicológica, que não
eram, sem dúvida, intentadas na análise de Austin? O objeto
de análise, retirado do contexto mais amplo e mais denso no
qual o orador fala e vive, é removido do meio universal no qual
os conceitos são formados e se tornam palavras. Qual será êsse
contexto universal e mais amplo no qual as criaturas falam e
agem e que dá à sua palavra o seu significado — êsse contexto
que não aparece na análise positivista, que é a priori deixado
de fora tanto pelos exemplos como pela própria análise?
Esse contexto da experiência mais amplo, ésse mundo em-
pírico real, é ainda, hoje em dia, o das câmaras de gás e dos
campos de concentração, de Hiroxima e Nagasáqui, dos
Cadillacs americanos e Mercedes alemães, do Pentágono e do
Kremlin, das cidades nucleares e das comunas chinesas, de Cuba,
das lavagens da mente e dos massacres. Mas o mundo empírico
é também aquêle em que essas coisas são tidas como fatos con-
12 Ver p. 18
Yi
ate
sumados ou esquecidas ou reprimidas ou desconhecidas, no qual
as criaturas são livres. E um mundo no qual à vassoura que
está no canto ou o gôsto de algo como o abacaxi são impor-
tantes, no qual a labuta diária c as comodidades diárias são
talvez as únicas coisas que constituem tóda experiência. E êsse
segundo universo empírico restrito é parte do primeiro; os po-
déres que dirigem o primeiro moldam também a experiência
restrita.
Sem dúvida, a determinação dessa relação não é trabalho
para o pensamento ordinário na palavra ordinária. Caso se trate
de encontrar vassouras ou provar abacaxi, a abstração está jus-
tificada e o significado pode ser determinado e descrito sem
qualquer transgressão do universo político. Mas, cm Filosofia, a
questão não é encontrar a vassoura ou provar o abacaxi — e
muito menos hoje deve uma Filosofia empírica se basear em
experiência abstrata. Tampouco é essa abstração corrigida se à
áiise lingiística é aplicada a têrmos e frascs políticos. Todo
um ramo da Filosofia analítica está empenhado nessa emprêsa,
mas o método exclui de imediato os conceitos de uma análise
política, isto é, crítica. A tradução operacional ou behaviorista
assimila têrmos como “liberdade”, “pgovêrno”, “Inglaterra” com
“vassoura” e “abacaxi”, e a realidade daqueles com a dêstes.
A linguagem ordinária pode, com seu “uso simples”, ser de
fato de importância vital para o pensamento filosófico crítico,
mas no medium dêsse pensamento as palavras perdem sua sim-
ples humildade e revelam aquêle algo “escondido” que não tem
interêsso algum para Wittgenstein. Considere-se a anátise de
“aqui” e “agora” na Fenomenologia de Hegel, ou (sit venia
verbo!) a sugestão de Lênin sôbre como analisar adequadamente
“Este copo d'água” sôbre a mesa. Tal análise desvenda a histó-
ria? na palavra cotidiana como uma dimensão oculta do signifi-
cado — o domínio da sociedade sóbre sua linguagem. E essa
descoberta destrói a forma natural e espoliada na qual o universo
da locução em questão aparece pela primeira vez. As palavras se
revelam como térmos genuínos não apenas em sentido grama-
tical c lógico-formal, mas também material; a saber, como os
limites que definem o significado e seu desenvolvimento — os
têrmos que a sociedade impõe à locução e ao comportamento.
Essa dimensão histórica do significado não mais pode ser eluci-
1 Ver p sr
172
dada por exemplos como “minha vassoura está no canto” ou
“há queijo sôbre a mesa”. Sem dúvida, tais declarações podem
revelar muitas ambigiidades, quebra-cabeças, esquisitices, mas
estão tôdas no mesmo âmbito dos jogos de linguagem e tédio
acadêmico.
Orientando-se no universo espoliado da locução cotidiana
e expondo e esclarecendo essa locução em têrmos dêsse universo
espoliado, a análise se abstrai do negativo, daquilo que é alheio
e antagônico e não pode ser entendido em têrmos do uso
estabelecido. Classificando e distinguindo significados e man-
tendo-os afastados, purga o pensamento e a palavra de contra-
dições, ilusões e transgressões. Mas as transgressões não são
as da “razão pura”. Não são transgressões metafísicas além dos
limites do conhecimento possível, antes abrindo um campo de
conhecimento além do senso comum e da lógica formal.
Ao barrar o acesso a êsse campo, à Filosofia positivista
monta um mundo auto-suficiente todo seu, fechado e bem pro-
tegido contra a entrada de fatôres externos perturbadores. A
êsse respeito, faz pouca diferença se o contexto validador é o
da Matemática, de proposições lógicas ou do costume e do uso.
De um ou de outro modo, todos os predicados possivelmente
significativos são prejulgados. O julgamento prejulgador pode
ser tão amplo quanto a língua inglêsa falada, ou o dicionário,
ou algum outro código ou convenção. Uma vez aceito, constitui
um a priori empírico que não pode ser transcendido,
Mas essa aceitação radical do empírico viola o empírico,
porque nêle fala o indivíduo mutilado, “abstrato”, que só expe-
rimenta (e expressa) aquilo que lhe é dado (dado em sentido
literal), que dispõe apenas dos fatos e não dos fatôres, cujo
comportamento é unidimensional e manipulado. Em virtude da
repressão real, o mundo experimentado é o resultado de uma
experiência restrita, e a limpeza positivista da mente põe esta em
consonância com a experiência restrita.
Nessa forma expurgada, o mundo empírico se torna o
objeto do pensamento positivo. Com tôda a sua exploração, re-
velação e esclarecimento de ambigiidades e obscuridades, o
neopositivismo não está preocupado com a ambigiiidade e a
obscuridade grandes e gerais, que é o universo da experiência
estabelecido. E deve continuar desinteressado porque o método
adotado por essa Filosofia desacredita ou “traduz” os conceitos
que poderiam guiar a compreensão da realidade estabelecida
em sua estrutura repressiva e irracional -— os conceitos do pen-
173
samento negativo. A transformação do pensamento crítico em
positivo ocorre principalmente no tratamento terapêutico de
conceitos universais; sua tradução em têrmos operacionais c
behavivristas se iguala de perto à tradução sociológica acima
discutida.
O caráter terapêutico da análise filosófica é fortemente
acentuado — para curar de ilusões, decepções, obscuridade,
enigmas insolúveis, perguntas irrespondíveis, de fantasmas e
espectros. Quem é o paciente? Aparentemente, certo tipo de
intelectual cuja mente e linguagem não se amoldam aos têrmos
da locução ordinária. Há, na verdade, boa porção de psicaná-
lise nessa Filosofia — análise sem a introspecção fundamental
de Freud segundo a qual o problema do paciente está arraigado
numa doença geral que não pode ser curada pela terapia
analítica. Ou, em outro sentido, segundo Freud, a doença do
paciente é uma reação de protesto contra o mundo doente em
que êle vive. Mas o médico deve desprezar o problema “moral”.
Tem de restaurar a saúde do paciente, torná-lo capaz de fun-
cionar normalmente em seu mundo.
O filósofo não é médico; seu trabalho não é curar os indi-
víduos, mas compreender o mundo em que êles vivem — enten-
dê-lo em têrmos do que êle tenha feito ao homem e do que pode
fazer ao homem. Pois a Filosofia é (historicamente, e sua his-
tória ainda é válida) o contrário daquilo que Wittgenstein fêz
dela quando êle a proclamou como a renúncia de tôda teoria,
como o empreendimento que “deixa tudo como é”. E a Fil
sofia desconhece “descoberta” mais inútil do que aquela que “dá
paz à Filosofia, de modo que cla não mais é atormentada por
perguntas que põem ela própria em questão".4 E não existe
mote mais antifilosófico do que o pronunciamento de Bishop
Butler que adorna a Principia Ethica de G. E. Moore: “Tudo é
o que é, e não outra coisa” — a menos que “é” seja entendido
como sc referindo à diferença qualitativa entre aquilo que as
coisas realmente são e aquilo que fazem que elas sejam.
A crítica neopositivista ainda orienta o seu principal es-
fórço contra as noções metafísicas e é motivado por uma noção
de exatidão que é da Lógica formal ou da descrição empírica.
14 Phitosophical Investigations, Joc, cit, p. SI.
174
Quer seja à exatidão buscada na pureza analítica da Lógica e
da Matemática, ou de conformidade com a linguagem ordinária
— em ambos os pólos da Filosofia contemporânea está a mesma
rejeição ou desvalorização dos elementos do pensamento e da
palavra que transcendem o sistema de validação aceito. Essa
hostilidade é a mais avassaladora quando assume a forma de
tolerância — isto é, onde um certo valor verdade é concedido aos
conceitos transcendentes numa dimensão separada de significado
e significação (verdade poética, verdade metafísica). Pois
precisamente a separação de um reservatório especial no qual
o pensamento e a linguagem têm permissão para ser legitima-
mente inexatos, vagos e até contraditórios é a maneira mais
eficaz de proteger o universo normal da locução de ser sêria-
mente perturbado por idéias impróprias. Qualquer verdade que
possa estar contida na literatura é uma verdade “poética”, qual-
quer verdade que possa estar contida no idealismo crítico é uma
verdade “metafísica” — sua validez, se de fato existe, não
compromete nem a locução e o comportamento ordinários nem
a Filosofia a êles ajustada. Esta nova forma da doutrina da
“dupla verdade” sanciona uma falsa consciência ao negar a
relevância da linguagem transcendente para o universo da locução
ordinária, ao proclamar a não-interferência total, Enquanto o
valor verdade daquela consiste precisamente em sua relevância
para êste c em sua interferência nêle.
Sob as condições repressivas nas quais os homens pensam
e vivem, o pensamento — qualquer modo de pensar que não
está restrito à orientação pragmática dentro do status quo —
pode reconhecer os fatos e reagir a êles sômente “chegando por
trás” dêles. A experiência ocorre diante de uma cortina que
esconde, e, se o mundo é a aparência de algo que está por trás
da cortina da experiência imediata, então, nas palavras de Hegel,
somos nós mesmos que estamos por trás da cortina. Nós mes-
mos, não como sujeitos do senso comum, como na análise lin-
gúística, nem como os sujeitos “purificados” da medição cien-
tifica, mas como os sujeitos e objetos da luta histórica do homem
com a natureza e a sociedade. Os fatos são o que são como
ocorrências nessa luta. Sua realidade é histórica, até mesmo
onde ainda é a da natureza bruta, inconquistada.
Essa dissolução e até subversão intelectual dos fatos em
questão é a tarefa histórica da Filosofia e a dimensão filosófica.
O método científico também vai além dos fatos e até contra os
175
Contra essa nova mistificação, que transforma a racionali-
dade em seu oposto, deve ser sustentada a distinção. O racional
não é irracional, e a diferença entre um reconhecimento e uma
análise exatos dos fatos, e uma especulação vaga e emocional,
é tão essencial quanto em qualquer época anterior. O problema
está no fato de a estatística, as medições e os estudos locais da
Sociologia empírica e da Ciência Política não serem suficiente-
mente racionais. Tornam-se mistificadores no quanto são iso-
lados do contexto verdadeiramente concreto que faz os fatos e
determina sua função. Esse contexto é maior do que o das
fábricas e oficinas investigadas, das cidades e vilas estudadas, dos
setores e grupos cuja opinião pública é sondada ou cuja probabi-
lidade de sobrevivência é calculada, e diferente déle. E é
também mais real no sentido de criar e determinar os fatos
investigados, registrados e calculados. Esse contexto real no
qual os sujeitos particulares obtêm sua significação real só é
definível dentro de uma teoria da sociedade. Isso porque os
fatôres dos fatos não são dados imediatos da observação, da
medição c da interrogação. Esses só se tornam dados numa
análise capaz de identificar a estrutura que mantém juntos as
partes e os processos da sociedade e que determina sua inter-
relação.
Dizer que êsse metacontexto é a Sociedade (com “S”
maiúsculo) é substancializar o todo para além das partes. Mas
essa substancialização ocorre na realidade, é a realidade, e a
análise só a pode superar reconhecendo-a e compreendendo o
seu alcance e as suas causas. A Sociedade é, na realidade, o
todo que exerce o seu poder independente sóbre os indivíduos,
e essa Sociedade não é nenhum “fantasma” não-identificável.
Tem o seu cerne no sistema de instituições, que são as relações
estabelecidas e congeladas entre os homens. A abstração dessa
sociedade fals s, as inferrogações e os cálculos
— mas os falsifica numa dimensão que não aparece nas medi-
ões, nas interrogações e nos cálculos e que, portanto, não entra
em conflito com êles e não os perturba. Conservam sua exatidão
e são mistificadores em sua própria exatidão.
Ao desmascarar o caráter mistificador de têrmos transcen-
dentes, noções vagas, universais metafísicos e coisas semelhantes,
a análise lingiiística mistifica os têrmos da linguagem ordinária
por deixá-los no contexto repressivo do universo estabelecido
da locução. E dentro dêsse universo repressivo que a explicação
180
behaviorista do significado ocorre — a explicação que se destina
a exorcizar os velhos “fantasmas” lingúísticos do mito cartesiano
e de outros igualmente obsoletos. A anúlise lingiiística sustenta
que se Joe Doe c Richard Roe falam do que tém em mente,
simplesmente se referem às percepções, noções ou disposições
específicas que eventualmente alimentam; a mente é um fantasma
verbalizado. Do mesmo modo, a vontade não é uma faculdade
real da alma, mas simplesmente um modo específico de dispo-
sições, propensões e aspirações específicas. O mesmo se dá
com a “consciência”, o “eu”, a “liberdade” — todos explicáveis
em têrmos que designam maneiras ou modos particulares de
conduta e comportamento. Voltarei depois a êsse tratamento
dos conceitos universais.
A Filosofia analítica freguentemente dissemina a atmosfera
de denúncia e investigação por comitê. O intelectual é chamado
a depor. Que quer você dizer quando diz...? Não está
ocultando algo? Você fala uma linguagem suspeita. Você não
fala como nós, como o homem comum, mas como um estranho
que não pertence ao nosso meio. Temos de reduzilo às suas
devidas proporções, desmascarar os seus truques, expurgá-lo.
Vamos ensiná-lo a dizer o que tem em mente, a “ser claro”, a
“pôr as cartas na mesa”. Naturalmente, não nos impomos a
você, à sua liberdade de pensamento e de palavra; você poderá
pensar como quiser. Mas, se falar, terá de nos comunicar o
seu pensamento — na nossa ou na sua linguagem. Certamente,
você poderá falar a sua própria linguagem, mas esta deve ser
traduzível e será traduzida. Poderá fazer poesia — está certo.
Adoramos a poesia. Mas queremos entender a sua poesia e só
poderemos fazê-lo se compreendermos os seus símbolos, suas
metáforas e imagens em têrmos da linguagem ordinária.
O poeta poderá responder que de fato deseja que a sua
poesia seja compreensível e compreendida (essa é a razão para
que êle a escreva), mas, se o que êle diz pudesse ser dito em
têrmos da linguagem ordinária, provavelmente tê-lo-ia feito logo
de início. Ele poderá dizer: A compreensão de minha poesia
pressupõe o colapso e a invalidação precisamente daquele
universo da locução c do comportamento no qual vocês querem
traduzila. A minha linguagem pode ser aprendida como qual-
quer outra (na verdade, é também a sua linguagem) e, então,
transparecerá que os meus símbolos, as minhas metáforas e
não são simbolos. metáforas etc. significando exatamente o que
dizem. Vocês têm uma tolerância decepcionante. Ao reservarem
181
para mim um nicho especial de significado e significação, vocês
me garantem isenção da sanidade e da razão, mas, a meu ver,
o manicômio está em algum cutro lugar.
O pocta pude também achar que a sólida sobriedade da
Filosofia Lingiística fala uma linguagem assaz imbuída de pre-
conceito e emocional — a dos velhos ou jovens exacerbados.
No vocabulário dêstes há abundância de “impróprio”, “excên-
trico”, “absurdo”, “embaraçoso”. “esquisito”, “tagarelice” e
“palavreado”, As esquisitices impróprias e embaraçosas têm de
ser removidas para que possa prevalecer o entendimento percep-
tível. A comunicação não pode estar fora do alcance das
criaturas; os conteúdos que estão além do sentido comum e
científico não devem perturbar o universo acadêmico e o uni-
verso ordinário da locução.
Mas a análise crítica deve dissociar-se daquilo que ela se
esforça por compreender; os têrmos filosóficos devem ser dife-
rentes dos ordinários para que possam elucidar o pleno signifi-
cado dêstes."” Pois o universo estabelecido da locução se faz
sentir em tôda a extensão dos modos específicos de dominação,
organização c manipulação aos quais estão sujeitos os membros
de uma sociedade. As criaturas dependem, para ganhar a vida,
de patrões, de políticos, de empregos e de vizinhos que fazem
que elas falem e s2 portem como o fazem; são compelidas, pela
necessidade social, a identificar a “coisa” (incluindo sua própria
pessoa, sua mente, seus sentimentos) com as suas funções.
Come sabemos disso? Vendo televisão, ouvindo rádio, lendo
jornais e revistas, falando com os demais.
Sob tais circunstâncias, a frase falada é uma expressão do
indivíduo que a fala e também daqueles que o fazem falar como
fala, bem como de qualquer tensão ou contradição que os possa
inter-relacionar. Ao falar a sua própria linguagem, as criaturas
falam também a linguagem de seus senhores, de seus benfeitores,
de seus anunciantes. Assim, clas não apenas expressam a si
mesmas, Os seus próprios conhecimentos, sentimentos e aspira-
ções, mas também algo diferente delas mesmas. Ao descreverem
“por si mesmas” a situação política, seja a de sua cidade natal,
seja a do cenário internacional, elas (e o têrmo “elas” também
inclui a nós os intelectuais que conhecemos a situação e a criti-
19 A Fitosofia analítica contemporânea reconheceu de seu próprio modo essa
necessidade como o problema da meralinguagem; ver pp. l7t e 184.
182
camos) descrevem o que o “seu” meio de comunicação em massa
lhes diz — e isso se funde com o que elas realmente pensam,
vêem e sentem.
Ao descrevermos uns para Os outros os nossos amôres e
ódios, sentimentos e ressentimentos, devemos usar os têrmos de
nossos anúncios, nossos cinemas, nossos políticos e nossos best
sellers. Devemos usar os mesmos têrmos para descrever os
nossos automóveis, alimentos e móveis, colegas e competidores
— e nos entendemos uns aos outros perfeitamente. Tem neces-
sariamente de ser assim, porque à linguagem nada tem de parti-
cular e pessoal, ou, antes, porque o particular c pessoal é
mediado pelo material linguístico disponível, que é material
social. Mas essa situação impede a linguagem ordinária de
preencher a função validadora que ela desempenha na Filosofia
analítica, “O que as criaturas querem dizer quando dizem...”
se relaciona com o que não dizem. Ou, o que elas intentam
dizer não pode ser considerado em seu sentido imediato — não
porque estejam mentindo, mas porque o universo do pensamento
e da prática em que vivem é um universo de contradições
manipuladas.
Circunstâncias como essas podem ser irrelevantes para à
análise de declarações como “tenho comichões” ou “êle come
papoulas”, ou “isso me parece vermelho”, mas podem tornar-se
sêriamente relevantes quando as criaturas de fato dizem algo
(“ela simplesmente o amava”, “ele é insensível”, “isso não é
justo”, “que posso fazer?”) e são vitais para a análise lingiística
da ética, da política etc. A não ser isso, a análise linguística
não pode alcançar qualquer outra exatidão empírica que não
a extorquida das criaturas pelo estado de coisas existente, e
nenhuma outra clareza lhes é permitida nesse estado de coisas
— isto é, a análise permanece dentro dos limites da locução
mistificada e decepcionante.
Onde ela parece ir além da locução, como em suas purifica-
ções lógicas, resta apenas o arcabouço do mesmo universo —
um fantasma muito mais fantasmagórico do que os combatidos
pela anátise. Se a Filosofia é mais do que uma simples ocupação,
tem de mostrar os metivos que transformaram a locução num
universo mutilado e decepcionante. Entregar essa tarefa a uma
de suas colegas dos setores de Sociologia e Psicologia é trans-
formar em princípio metodológico a divisão estabelecida do
trabalho acadêmico. Tampouco pode a tarefa ser jogada de
lado pela modesta insistência em que a análise lingúística tem
183
apenas o humilde propósito de esclarecer o pensamento e a
palavra “turvados”. Se êsse esclarecimento vai além da mera
enumeração € classificação dos possíveis significados em contextos
possíveis, deixando a escolha inteiramente acessível a qualquer
um de acôrdo com as circunstâncias, então ela nada mais é do
que uma humilde tarefa. Tal esclarecimento abrangeria a
anúlise da linguagem ordinária em setores realmente controversos,
o reconhecimento do pensamento turvado onde êle pareça menos
turvado, a revelação da falsidade no uso normal e claro. Então,
a análise lingiústica atingiria o nível no qual os processos sociais
específicos que moldam e limitam o universo da locução se
tornam visíveis e compreensíveis.
Aqui surge o problema da “metalinguagem”; os têrmos que
analisam o significado de certos têrmos devem ser diferentes
dêstes ou distinguíveis déles. Devem ser mais do que meros
sinônimos que ainda pertencem ao mesmo universo (imediato)
da locução, c diferentes disso. Mas para que essa metalinguagem
possa realmente transper o propósito totalitário do universo
estabelecido da locução, no quai as diversas dimensões da
linguagem estão integradas c assimiladas, deve ser capaz de
denotar os processos sociais que determinaram e “fecharam”
o universo estabelecido da locução. Consegiientemente, não
pode ser uma metalinguagem técnica, construída principalmente
com uma visão de clarcza semântica ou lógica. O desiderato
é, antes, fazer que a própria linguagem estabelecida fale o que
ela esconde ou exclui, porquanto o que deve ser revelado ou
denunciado é operante dentro do universo da locução c ação
ordinárias, e a linguagem prevalecente contém à metalinguagem.
Esse desiderato foi realizado na obra de Karl Kraus. Ele
demonstrou como um exame “interno” da palavra escrita e
falada, da pontuação c até mesmo dos erros tipográficos pode
revelar todo um sistema moral ou político. Ésse exame ainda
se move dentro do universo ordinário da locução; não necessita
de qualquer linguagem artificial ou de “alto nível” para extra-
polar e esclarecer a linguagem examinada. A palavra € à forma
sintática são lidas no contexto em que aparecem — por exemplo,
num jornal que, num determinado país ou cidade, esposa
determinadas opiniões através da pena de determinadas pessoas.
O contexto lexicográfico e sintático se abre, assim, para outra
dimensão — que não é estranha ao significado e à função
da palavra, mas construtiva dos mesmos — a da imprensa
vicnense durante a Primeira Guerra Mundial e depois dela; a
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atitude de seus redatores em face do morticínio, da monarquia,
da República etc. A luz dessa dimensão, o uso da palavra, a
estrutura da sentença assumem um significado e uma função
que não aparecem na leitura “não-mediada”. Os crimes contra
a linguagem, que aparecem no estilo do jornal, pertencem ao seu
estilo político. A sintaxe, a gramática e o vocabulário se tornam
atos morais e políticos. Ou, o contexto pode ser estético e filo-
sófico: crítica literária, um discurso perante uma sociedade
erudita ou coisa semelhante. Aqui, a análise lingiíística de um
poema ou de um ensaio confronta o material (a linguagem do
respectivo poema ou ensaio) em questão (imediato) com aquête
encontrado pelo escritor na tradição literária e por êle transfor-
mado.
Para tal análise, o significado de um têrmo ou de uma
forma exige o seu desenvolvimento num universo multidimen-
sional, em que qualquer significado expressado participa de
vários “sistemas” inter-relacionados, que se sobrepôsm e são
antagônicos. Por exemplo, cla pertence:
a) a um projeto individual, isto é, a comunicação especi-
fica (um artigo de jornal, um discurso) feita numa
ocasião específica com uma finalidade específica;
b) a um sistema supra-individual estabelecido de idéias,
valóres e objetivos do qual participa o projeto indi-
vidual;
c) a uma determinada sociedade que integra ela própria
projetos individuais e supra-individuais diferentes e até
contrastantes.
Exemplificando: um certo discurso, artigo de jornal ou até
comunicação particular é redigido por um determinado indi-
víduo que é o porta-voz (autorizado ou não) de um determinado
grupo (ocupacional, residencial, político ou intelectual) numa
sociedade específica. fsse grupo tem seus próprios valôres,
objetivos, códigos de pensamento e comportamento que entram
— afirmados ou contraditados —, em diversos graus de per-
cepção e clareza, na comunicação individual. Esta “individua-
liza”, portanto, um sistema supra-individual de significado que
constitui uma dimensão diferente da comunicação individual,
conquanto fundido com cla. E êsse sistema supra-individual é,
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