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Assalto ao Poder - Carlos Amorim, Notas de estudo de Engenharia de Produção

assalto ao poder

Tipologia: Notas de estudo

2017

Compartilhado em 18/10/2017

daniel-carvalho-x5j
daniel-carvalho-x5j 🇧🇷

4.8

(18)

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Baixe Assalto ao Poder - Carlos Amorim e outras Notas de estudo em PDF para Engenharia de Produção, somente na Docsity! DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo Sobre nós: O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.site ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link. "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível." Modo de acesso: World Wide Web ISBN 978-85-01-40-025-3 [recurso eletrônico] 1. Crime organizado - Brasil. 2. Violência - Brasil. 3. Livros eletrônicos. I. Título. 12- 2950 CDD: 364.120981 CDU: 343.1(81) Copyright © Carlos Amorim, 2010 Composição de miolo da versão impressa: Abreu's System Capa: Marcelo Martinez/ Laboratório Secreto Texto revisado segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Direitos exclusivos desta edição reservados pela EDITORA RECORD LTDA. Rua Argentina 171 – 20921- 380 Rio de Janeiro, RJ – Tel.: 2585-2000 Produzido no Brasil Dedicado a Tião, menino pobre das favelas do Rio. Ele não viveu o bastante para entender os motivos de sua própria morte. Por todas as noites em que acordei de um sono precário para acrescentar uma frase ao livro. Porque — aflito — tentava corrigir uma informação, acertar um nome, uma data, lembrar um rosto. Por todas as vezes em que o dia me surpreendeu enquanto olhava para o teclado, meu grande inimigo nesses quase mil dias de redação. Para quem não sabe, escrever é um tormento — quase uma tortura. Sobrevivi a este livro e espero não fazer outro igual. Sumário Prefácio INTRODUÇÃO: Para ler com medo PRIMEIRA PARTE: O imperialismo do crime e o fantasma da guerra civil SEGUNDA PARTE: O maior negócio da Terra TERCEIRA PARTE: A radicalização do confronto Nota do autor Agradecimentos Índice remissivo Prefácio E o monstro de nove letras cresce diante de nossa mudez ensurdecedora SE CAÍSSE NA TENTAÇÃO de praticar um exercício descarado de autolouvação, Carlos Amorim poderia pendurar um aviso na parede do escritório, quando estivesse trabalhando: “Aviso aos transeuntes: Jornalista puro-sangue em atividade.” Pausa para uma pequena digressão de natureza jornalística. Posso garantir que o bicho é, sim, um jornalista puro-sangue. Ninguém me contou. Eu vi. Amorim pertence à tribo dos que não jogam jornalismo no lixo, não sonegam nada ao público, não tratam as histórias da vida real a pontapés. Trabalhamos juntos na tevê, por um período curto mas intenso. Falo com conhecimento de causa. Posso declarar, portanto, diante deste tribunal imaginário, que o senhor Carlos Amorim é um desses jornalistas que, diante da descoberta de um fato ou de um personagem interessante, registra imediatamente uma súbita, discreta e persistente elevação dos batimentos cardíacos. Vai logo avisando: “Isso dá chamada!” Os batimentos só voltam ao ritmo normal quando ele descobre a melhor maneira de fazer a única coisa decente que um jornalista pode fazer: transmitir ao público — da maneira mais atraente possível — esta inesgotável coleção de acontecimentos, minúsculos ou grandiosos, que formam a Grande Marcha dos Fatos, matéria-prima insubstituível do jornalismo. Tudo deveria ser simples assim: jornalista existe para publicar a vida, não para jogar notícias, histórias, relatos e personagens no lixo. Ponto final. Mas não é o que se vê na vida real. Qualquer ser bípede que já tenha passado dez minutos assim seja! As bancas estão majoritariamente povoadas por peruas siliconadas e figuras risíveis recitando beatitudes nas revistas de celebridades, idiotas posando com seus talheres na sala de jantar: o exibicionismo mais vulgar — e a vulgaridade mais exibicionista — triunfando em todas as instâncias. As tevês promovem o infindável, o barulhento, o estridente desfile de cabeças de vento em busca de prêmios. Os jornais vão assinando, por livre e espontânea vontade, a própria sentença de morte, ao repetir obsessivamente, como se fossem novidades, as informações que o leitor minimamente interessado já consumiu desde a véspera, na TV ou na internet. Quer mergulhar a fundo num assunto? Resta o livro-reportagem. Ei-lo. Amorim lançou mão da arma ideal — um livro-reportagem — para atacar nossa cegueira e nossa ignorância sobre a violência, este monstro de nove letras que cresce (e se move e se infiltra e se insinua e se espalha) diante de nossa mudez ensurdecedora. Geneton Moraes Neto Jornalista, vive no Rio. Entre seus livros estão Cartas ao Planeta Brasil, Nitroglicerina pura, Porto Maldito e O dossiê Drummond. Atualmente é editor-chefe do Fantástico, da Rede Globo. INTRODUÇÃO: Para ler com medo O CRIME ORGANIZADO PRETENDE o poder. Precisa de leis que protejam seus lucros inacreditáveis — e que garantam imunidade a seus integrantes e sócios. Precisa de uma justiça complacente, aberta a fianças, cheia de dispositivos que permitam responder processos em liberdade. Via de regra, “responder em liberdade” vira o passaporte para a fuga dos acusados. Em todos os ciclos da História, a acumulação de riquezas, ilegalmente ou por meio da força bruta, produziu castas e segmentos inimputáveis. Acima da ordem comum das coisas. A história do pós-guerra está repleta de situações em que isto é uma realidade inegável. Após o fim da União Soviética, com a queda de um império que governou mais de 500 milhões de pessoas, o crime organizado se instalou no poder em vários países do Leste Europeu e na Ásia Central, além da África. Isso deu início a uma fase em que os próprios governantes passaram a comandar atividades criminosas em larga escala, inclusive por meio dos sistemas financeiros. Aqui no Brasil há exemplos fartos e variados dessa aspiração ao poder. A infiltração de organizações ilegais nas instituições democráticas, corrompendo os sistemas executivo e judiciário, comprando gente nas polícias e nos governos, dá o tom de uma orquestração em que somos alvo de uma conspiração nacional e internacional para “legalizar” o crime e o dinheiro de origem desconhecida ou imprópria. É disso que este livro trata. É o terceiro volume da trilogia sobre criminalidade e violência urbana no Brasil, que iniciei, em 1994, com Comando Vermelho — A história secreta do crime organizado. Dez anos depois, em 2004, publiquei CV-PCC — A irmandade do crime. Nos dois primeiros livros tratei das origens das organizações criminosas e tentei Jornal da Tarde mostra um preso algemado segurando um revólver e apontando diretamente para o fotógrafo, numa pose a que foi obrigado pelos tiras. Quando a foto foi ampliada, viu-se que a arma estava carregada. Este é o Brasil que se acostumou com as ilegalidades. E que se diverte com elas. Aqui o leitor vai conhecer a história de dona Geralda, favelada, lavadeira que sustentou a família sozinha depois de abandonada pelo marido, funcionário de uma empresa de transportes coletivos do Rio de Janeiro. Ele, o ex-provedor do barraco que dividiam no morro dos Prazeres, também um Geraldo, sambista nas horas vagas e amante de um cavaquinho, sumiu de uma hora para outra. Nunca mais se ouviu falar dele. Geralda, nordestina migrante dos anos 1960, teve o azar de nascer bonita. Negra de traços finos, boca carnuda, seios pequenos, coxas grossas e bunda empinada, tornou-se troféu na favela de Santa Teresa, zona central do Rio. Teve três filhos de dois homens diferentes. Tião virou “soldado do tráfico” com pouco mais de 10 anos de idade. Aos 13, apareceu morto num carro roubado, com um tiro na cabeça. Martinha, a filha do meio, virou prostituta. Herdara os atributos da mãe. Foi vista pela última vez fazendo michê na Avenida Atlântica, em Copacabana. Dela ninguém soube mais nada. Zilda, a menor, desapareceu quando mendigava na Rua Gomes Freire, na Lapa. Tinha uns 9 anos de idade. A tragédia de dona Geralda, corriqueira, desimportante, não saiu nos jornais. Mas é a tragédia de um país inteiro. Este livro inclui depoimentos e entrevistas inéditos, que recolhi ao longo de todos esses anos de pesquisas sobre o tema. Foram tomados de gente armada e usando capuzes — ou foram ouvidos de pessoas cobertas pela máscara da dor de perder suas crianças numa guerra urbana em larga escala que sequer conseguem entender. Confesso também a minha incapacidade de compreender toda a dimensão do drama que se abate sobre o meu povo e o meu país. Quem há de compreendê-la, em um lugar tão rico, tão privilegiado, e ao mesmo tempo tão sem oportunidades para a gente comum? Minha conclusão pessoal — talvez perversa, provocada pela minha própria sensação de insegurança — é a de que temos um grave problema de governantes. Ou são todos despreparados, e não entendem a gravidade do que vivemos, ou são cínicos, e fazem de conta que não estão vendo. A terceira alternativa é a pior de todas: eles sabem o que está acontecendo e são impotentes para resolver o problema da violência e da criminalidade. Em qual dessas hipóteses, caro leitor, você apostaria as suas fichas? Tudo isso, no entanto, parece pouco quando ouço o barulho aterrador dos tiros e dos gritos perto da minha casa. Sempre às sextas-feiras e aos sábados, durante a madrugada. É quando o bairro onde moro, a pouco mais de 20 quilômetros do centro da cidade de São Paulo, se agita com festas, pagodes, bailes funk e coisas do gênero. É quando o reinado do tráfico de drogas se instala nas esquinas, nos becos e nos bares da zona sul da capital. Depois dos disparos — apenas cinco minutos depois —, posso escutar as sirenes da polícia. Em geral é tarde demais. Algo terrível já aconteceu. Nem abro a janela para acompanhar o que pode ter sido. Moro nos arredores da área mais conflagrada da capital paulista. É palco de incontáveis matanças, território das drogas e da bandidagem em geral. Procuro nos jornais do dia seguinte as notícias do que pode ter havido na vizinhança. E não encontro nada. É tudo indigno de figurar nas páginas, tal é a banalização da violência. Mas o ruído da “batalha” fica grampeado na minha mente. Muitas vezes me pego rezando por mim, minha mulher e meus filhos, que eventualmente estão fora de casa, tentando levar uma vida normal. Não há mais normalidade em nossas cidades. O velho e bom “Pai Nosso” também não me socorre muito nessas noites de sobressalto. Certa vez, uma bala perdida atingiu o espelho retrovisor lateral direito do meu carro. Assim, do nada, às 10 horas da manhã. Aconteceu quando eu passava por uma ponte — percebam a ironia — chamada Socorro, na zona sul de São Paulo. Na oficina de reparos, o técnico me disse: — Foi uma calibre 22. Olha aqui a marca. — Ele sabia de cor o que tinha acontecido. O lugar onde vivo é um bairro tombado pelo patrimônio ambiental da cidade. Uma das maiores concentrações de área verde, com milhares de árvores e pássaros. É comum ver bandos de papagaios e araras coloridas, voando livres ao entardecer. Estamos perto de um lago com 1.900 metros de circunferência, onde há patos selvagens e — dizem — quatro jacarés-de-papo-amarelo, uma espécie em extinção. Esquilos e macacos também são frequentadores assíduos do local. Há gaviões, corujas grandes e pica-paus. Minha casa é uma construção antiga, no estilo colonial espanhol, com grandes arcos de pedra, varandas, enormes janelas envidraçadas. No terreno temos 16 árvores e coqueiros, grama e vários tipos de plantas nativas. É como se pudéssemos crer que vivemos numa bolha de ar puro e tranquilidade. Um parêntese no cenário feroz de São Paulo. Infelizmente, o bairro, que reúne umas quarenta quadras e cerca de mil residências, é corredor de passagem entre a parte rica e opulenta da cidade e as zonas mais pobres e agressivas da capital paulista. Por isso, a guerra urbana chega até nós durante as madrugadas. Às 2 horas, madrugada do sábado 7 de julho de 2007, eu assistia a um filme num dos canais Telecine quando ouvi dois disparos a certa distância de casa. Uma arma poderosa, talvez calibre 12. Em seguida, gritos de duas mulheres, interrompidos por uma longa rajada de balas, uns 15 ou 20 tiros de uma só vez. No final de julho de 2008, assistíamos a um outro filme na televisão, quando começou um tiroteio seguido de uma insistente queima de morteiros. Provavelmente, a polícia havia surpreendido o tráfico de drogas em algum dos bairros populares que cercam a região. E os “fogueteiros” da boca de fumo dispararam seus rojões para avisar que os policiais estavam “entrando”. Foi num sábado, também por volta das 2 horas. Minha filha mais velha, sentada num sofá de costas para a janela, foi imediatamente para o chão e ficou abaixada. Ato reflexo, ela tentava se proteger das chamadas balas perdidas. Depois disso, a prefeitura de São Paulo fechou os bares e casas de shows da região, a maioria na Avenida Robert Kennedy. O bairro, com essa simples medida burocrática, voltou a viver em tranquilidade e silêncio. Mas, para isso, dois jovens perderam a vida, executados por supostos seguranças de uma boate, crime nunca esclarecido. Me impressiona que uma medida administrativa qualquer tenha tido tanta importância para o lugar onde vivo. braços e peito. Além disso, os bandidos tinham uma arma de defesa pessoal que produz choques elétricos, dessas que a gente conhece dos seriados de televisão — e que pode ser comprada livremente pela internet, com entrega domiciliar. Foi usada nele diversas vezes. O bando deixou a casa três horas e meia depois, após concluir que não havia grandes valores a arrecadar. Foram roubados cerca de 700 reais em moeda estrangeira, alguns eletrônicos, roupas, cartões de crédito e talões de cheque. Avisaram que voltariam para matá-lo se as contas fossem bloqueadas. O único troféu que o ataque rendeu aos assaltantes foi um sobretudo de couro que meu desafortunado vizinho trouxe de uma viagem à Europa. O chefe do bando, o mais agressivo, que comandou as torturas, pouco antes de se retirar, declarou: — Com essa roupa de Schwarzenegger [de O exterminador do futuro] vou matar muita gente por aí. Meu vizinho sobreviveu. Tecnicamente, a ocorrência foi daquelas desimportantes. Acionada pelo 190, a Polícia Militar enviou uma preguiçosa patrulha. Os policiais se limitaram a recomendar que o dono da casa fosse à delegacia mais próxima para registrar um boletim de ocorrência. Não foram feitas buscas na região. Não foram tiradas impressões digitais, que deveriam ser abundantes. Nenhum carro da fuga foi identificado. Nenhuma testemunha foi ouvida. Nada. Simplesmente nada. Algum tempo depois, a quadrilha foi surpreendida em novo assalto a uma residência da região. A polícia chegou em cima do lance, mandou bala neles. Prendeu alguns. Outros fugiram. Os moradores comentam que a PM matou dois dos assaltantes. Procurei nos noticiários e não encontrei uma única linha. De novo, ocorrências banais. Já em 2009, num sábado, por volta de duas horas da tarde, abri uma das janelas de casa e dei de cara com uns oito policiais na rua, em três viaturas da Força Tática da PM. Sob uma chuva fina bem paulista, estavam checando uma casa à venda, fechada há um bom tempo. Fui conversar com eles, e o sargento que comandava a equipe me disse que os vizinhos tinham alertado para uma invasão do imóvel. Antes de me despedir, o sargento comentou: — Olha, se o senhor perceber qualquer movimento estranho por aqui, não hesite em nos chamar. Essa região se tornou um lugar muito perigoso. Um lugar muito perigoso. Moro por aqui há 12 anos. Me acostumei a ver a garotada livre pelas ruas, com bicicletas, patins, skates. À noite, os moradores passeavam com os cachorros. Em casa, até esquecíamos de trancar as portas. Uma década depois, as ruas ficaram quase desertas. Muros foram erguidos onde antes havia jardins abertos para a rua. Foi num espaço de tempo muito pequeno, considerado historicamente, que a violência mudou todas as rotinas. Apenas anoitece e as ruas ficam vazias. Este livro, portanto, é fruto do meu próprio medo. Medo da violência de que já fui vítima aqui em São Paulo. Uma violência que já atingiu também uma das minhas filhas, como o leitor verá adiante. Todas as pessoas que conheço na maior cidade do país já passaram por episódios de risco pessoal. Meus amigos, companheiros de trabalho, vizinhos. Todos estiveram frente a frente com gente armada e ansiosa por “tomar” algum dinheiro ou objeto de valor. Pode ser o carro, um relógio, o tênis de grife, 100 reais. A violência se democratizou no Brasil moderno, atingindo pessoas de todas as classes sociais. Não há mais fronteiras seguras em nenhum lugar. Quem imagina se proteger por trás de muros, cercas elétricas, cães e condomínios fechados, está iludido. A violência vai alcançá-las ao chegar e ao sair. Várias declarações citadas neste terceiro volume partem de pessoas que não são identificadas — ou que são designadas apenas por apelidos e iniciais. Hoje é praticamente impossível obter declarações de viva voz, acompanhadas de um nome completo. Os telejornais nos mostram toda noite aquelas vozes tecnicamente distorcidas e aqueles rostos cobertos por retículas eletrônicas. Somos um país com medo, que mergulha mais e mais na clandestinidade. Mesmo no banal, no vulgar das coisas. A vítima de um assalto sai da delegacia cobrindo o rosto com a camiseta. A vítima. Ela teme a represália que pode vir do mundo do crime. O bandido é o vizinho, a pior ameaça. Está na porta ao lado. No mesmo bairro. A poucos quilômetros de distância, como no meu caso. E — é claro — a autoridade não protege nenhum de nós. Minha sogra foi assaltada no portão de casa, a 20 metros de um posto da Guarda Civil Metropolitana de São Paulo. Avisados do roubo, os integrantes da GCM disseram, singelamente: — É preciso ligar para 190 e chamar a PM. Nós não podemos sair daqui. Parece irreal, mas é verdade. Eles estavam a 20 metros da cena de um crime e não fizeram nada. A GCM de São Paulo tem 6.365 guardas, espalhados por dezenas de bairros da cidade, cuja função é cuidar do patrimônio público. Custa aos cofres municipais muitos milhões de reais por ano, incluindo uma força de choque, que é usada contra camelôs e vendedores ambulantes, com treinamento na PM. Nós é que pagamos por tudo isso. Mas não serve para socorrer uma senhora de 80 anos atacada por assaltantes praticamente na porta de uma das suas unidades. A bolsa da cidadã, certamente, não é um patrimônio público. Para confirmar a situação absurda, a Assembleia Legislativa de São Paulo acaba de aprovar um projeto de lei que impede que o nome das vítimas e testemunhas de crimes constem dos boletins de ocorrências policiais. Isso é para impedir que sejam constrangidas pelos criminosos ou que sofram represálias. A chamada “qualificação” dessas pessoas, que inclui seus nomes completos, endereços, telefones e outros dados pessoais, por esse projeto de lei, ficaria confinada a um envelope lacrado, ao qual só a Justiça teria acesso. Fato que revela a incapacidade do poder público de proteger não apenas o cidadão, mas também aquele que se torna vítima de crimes. Na verdade, o Estado não promove nenhuma segurança pessoal, a não ser para seus próprios integrantes, políticos, governantes e executivos. E mesmo assim de forma precária. Quando o Primeiro Comando da Capital (PCC), a maior organização criminosa de São Paulo e talvez do país, ameaçou sequestrar juízes e secretários de governo, foi preciso desenvolver “um plano de emergência” para rever o quesito segurança dos mandatários. O projeto de lei para tirar o nome das vítimas e testemunhas dos boletins de ocorrência foi uma iniciativa da bancada governamental na Assembleia Legislativa paulista. Os deputados do PSDB argumentaram que isso se aplicaria apenas aos casos em que a vida dos citados estivesse em perigo. Mas a Ordem dos Advogados do estado protestou, ressaltando que o projeto era inconstitucional e que cerceava a ampla liberdade de defesa. Ficou para o governador José Serra decidir. Até o fechamento deste livro, não havia uma conclusão. não existe mais nenhum usuário de computador no Brasil que não tenha programas, games, filmes e softwares especializados falsificados. Eu mesmo comprei vários, a preços ridículos, só para testar o alcance da pirataria. A série 9mm: São Paulo, por exemplo, pode ser comprada na Rua Galvão Bueno, no bairro da Liberdade, em São Paulo, numa embalagem que contém os quatro primeiros capítulos. Os piratas fizeram, inclusive, uma capa que usa o material gráfico de divulgação da FOX. No mercado fonográfico, então, é brincadeira. A pirataria via internet e a compra de CDs falsificados já diminuiu em quase 40% o total de vendas do setor no Brasil. Em seu livro de memórias, Eric Clapton — A autobiografia (Planeta, 2007), o chamado “deus das cordas” chega a dizer que as gravadoras atuais não estarão mais no mercado dentro de dez anos. Em 2008, a polícia apreendeu meio milhão de CDs e DVDs piratas em São Paulo. Só na capital. Como pesquisador da matéria, à qual dediquei, sem alegrias, muitos anos da minha vida, chego à conclusão quase inevitável: após duas ou três décadas de ignorância, conivência, corrupção e impotência geral do sistema diante do avanço da criminalidade, talvez não haja alternativas a não ser olhar para um futuro muito mais adiante. Esta geração, agora envolvida com o tráfico e o crime organizado, está perdida. É necessário focar as crianças, as próximas gerações. Certa vez perguntaram ao Bill do Borel (Nelson da Silva, chefe de uma das maiores quadrilhas ligadas ao Comando Vermelho) o que ele faria para resolver o problema: — Tirem as crianças das ruas! — foi a resposta, publicada pelo Estado de S. Paulo. Bill foi preso, passou uns dez anos atrás das grades, saiu em liberdade condicional, reassumiu o comando do tráfico na favela. E deixou de cumprir o que restava da pena. É parente do Isaías do Borel, hoje um dos mais importantes chefões do Comando Vermelho, ainda trancado. Mesmo com esse currículo, é preciso prestar atenção nas palavras do traficante. Quando é o próprio bandido quem diz que precisamos cuidar das crianças — e ele começou nessa vida torta aos 10 anos —, a gente deve ficar ligado. Se o Brasil conseguir desenvolver políticas públicas de longo prazo nas áreas de saúde, educação, emprego, habitação e saneamento básico, talvez possamos reduzir o fornecimento de mão de obra para o crime nas próximas décadas. No entanto, bilhões de reais escoam pelo ralo da corrupção. Os governantes, em todos os níveis, pagam aos parlamentares para aprovar suas políticas. As emendas parlamentares ao Orçamento da União, verdadeira farra do boi, são as principais formas de desvio dos recursos públicos. Todo mundo sabe disso. Nos estados e municípios, o processo se repete, e não é de hoje. Esse dinheiro, desaparecido corriqueiramente no exercício da política no Brasil, daria para sanear todas as favelas, construir escolas, creches e postos de saúde. Possibilitaria montar uma rede de policiamento comunitário (o único que vale a pena) e ainda financiar programas de distribuição de renda. Aqui também poderia estar o dinheiro dos remédios para a velhice do trabalhador aposentado. Se houvesse decência, muita gente teria três simples refeições por dia. Alguns autores costumam escrever — e parece brincadeira — que a corrupção representa 20% do PIB, algo em torno de 200 bilhões de reais. É quase inacreditável. Mas é possível, tamanha a bandalheira instituída. Vejam só — e isso faz mais de 25 anos — como revela o grau de desvios anotado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento: em 1984, o BID informava que “a corrupção na América Latina era um dado econômico”. Durma- se com esse barulho! Só não resolvemos isso porque o país apodreceu. E porque não há vontade popular para punir esses canalhas. Em todos os lugares pobres onde foram implantados projetos de educação popular alternativa, fora das redes oficiais, com trabalhos relacionados a artes, música, dança e esportes, houve uma drástica redução do envolvimento de crianças e jovens com o crime. O projeto Meninos do Morumbi, sustentado pela iniciativa privada, em São Paulo, é um grande exemplo. A Oficina de Dança da Rocinha, no Rio, já mandou dois bailarinos para o balé Bolshoi, de Moscou. O projeto Mangueira do Futuro, na favela carioca, visitado pelo príncipe Charles e por Bill Clinton, reduziu em 80% as ocorrências policiais envolvendo crianças na área. Alguns traficantes da Mangueira obrigavam seus filhos a frequentar os projetos sociais no morro. Chegavam, inclusive, a cobrar a presença de crianças de outros moradores. Sabiam que era a única maneira de suas crianças construírem uma vida nova. Uma oportunidade que esses bandidos, quando meninos, não tiveram. O escritor americano Samuel Langhorne (1835-1910), mais conhecido pelo pseudônimo de Mark Twain, legou ao mundo uma obra extraordinária, na qual se destacam As aventuras de Tom Sawyer e O príncipe e o mendigo. Ele concorda com Bill do Borel. Mark Twain escreveu sobre os conflitos sociais e o abandono da infância na segunda metade do século XIX. Em seu livro Mark Twain’s Speeches (The Echo Library, Londres, 2006), de 1877, há uma frase lapidar sobre o assunto: “Para cada escola fechada, é preciso construir uma cadeia.” Se os governantes focassem a sua atuação na infância e na juventude, se esquecessem um pouco o poder inconsistente da repressão policial (para cada bandido morto há cem voluntários na fila de espera), talvez pudéssemos acalentar maiores esperanças. As classes abastadas, que geram os formadores de opinião, os proprietários dos meios de produção, executivos e os governantes, estão de várias maneiras envolvidas na ilegalidade. Corrupção generalizada, caixa dois, sonegação e todos os tipos de fraude são acusações comuns. A naturalidade é tão grande, que eles se espantam quando surge alguma reação: “Mas o que é isso? Sempre foi assim!!!” Cansamos de ler coisas do gênero nos jornais. “A lei foi feita para os pobres”, costumam alegar, como a aliviar a própria consciência. Às mulheres, filhos, parentes e amigos, vendem a tese de que “o mundo é dos espertos” e que, ao cuidar de seus interesses, continuam sendo “homens de negócio”. Como os capos da Máfia, que se consideravam “homens de honra”, costumavam dizer: “Just business” (apenas negócios). Durante mais de um século, a frase justificou todo tipo informava aos leitores, perplexos como eu, que 17% dos congressistas brasileiros estavam envolvidos com um lobby das cervejarias, destinado a impedir que leis para restringir propaganda de bebidas alcoólicas fossem aprovadas no Congresso. Nesta edição, o jornal afirmava: Dos 513 parlamentares, 87 têm concessões de rádio e televisão e/ou receberam doações de campanha da indústria de bebidas e de comunicações. Nesta semana, o projeto que restringe a propaganda de bebidas com baixo teor alcoólico, inclusive a cerveja (e os vinhos), entre 6h e 21h em rádio e televisão, foi retirado da pauta de votações da Câmara, a pedido do governo, após resistência dos líderes partidários. A Folha também disse que as cervejarias doaram 2 milhões de reais a deputados, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). É claro que a parte não oficial pode ser muito maior do que isto. Me dei o trabalho de pesquisar, junto ao sindicato das indústrias cervejeiras (www.sindcerv.com.br), qual o tamanho do problema e por que o Congresso se rende tão facilmente na questão. O que encontrei foi o seguinte: o Brasil está em nono lugar no ranking mundial de consumo da bebida, de acordo com informações do ano de 2007; são 47 litros de cerveja per capita/ano; a produção de cerveja, segundo o sindicato da categoria, representa 10,34 bilhões de litros por ano. Uma latinha de cerveja, de 350 ml, custa em torno de 1 real. Faça a conta, caro leitor. Não precisa ser nenhum gênio da lâmpada para imaginar o imenso poder corruptor de um segmento econômico como esse. Ou — para soar mais agradável — a imensa influência política de uma indústria que ocupa as primeiras posições na produção de riquezas num país emergente (e ainda pobre) chamado Brasil. Especialmente num país onde o álcool, associado às drogas mais pesadas, está na base da questão da violência, tema do qual me ocupo neste trabalho. A indústria do álcool é uma das maiores compradoras de mídia, especialmente na televisão. Alegria, juventude, música, louras espetaculares são a marca registrada da cerveja brasileira. Nada contra, meus amigos. Mas também nada a favor, quando um dos maiores jornais do país denuncia a “compra” do Legislativo brasileiro. E não para por aí: na segunda-feira, 15 de setembro de 2008, a Folha abriu a página C6 com a manchete “Fumo ajudou a eleger 13 congressistas”. A indústria do cigarro, nas eleições de 2006, havia financiado mais de cem candidatos. Por quê? Porque este é um setor da economia fortemente pressionado pelas leis e pela opinião pública. De modo que não faz mal ter alguns votos de algibeira dentro do Parlamento. O sindicato das empresas declarou à Folha que acompanha com atenção a tramitação de projetos de interesse do setor no Congresso Nacional. Mas negou que faça lobby — claro! No início de setembro de 2008, a Assembleia Legislativa de São Paulo voltava a discutir sobre cigarros, pretendendo liberar aos fumantes apenas as áreas ao ar livre e os domicílios. O Brasil já possui duas leis contra o cigarro, ambas aprovadas em 1996, mas ainda pouco praticadas. A intenção dos legisladores é arrochar o cumprimento das leis, com pesadas multas para o comércio, as instituições e até para as pessoas comuns. Por ocasião da celeuma, o presidente Lula foi flagrado fumando um charutinho no seu gabinete no Palácio do Planalto. Com o ato singelo, violava as leis, que proíbem expressamente o tabaco em repartições públicas. “Eu defendo o fumo em qualquer lugar”, disse Lula. E acrescentou, provocador: “Na minha sala sou eu quem mando” (ver caderno Cotidiano, na Folha de 4 de setembro). Depois, pressionado pelo ministério, que achou que as declarações não pegaram muito bem, o presidente prometeu não fumar no gabinete. Essas informações dão bem a medida do interesse da indústria do fumo junto aos parlamentares. O sindicato patronal, o Sindfumo, garante que o brasileiro consome 140 bilhões de cigarros por ano. Nossos fumantes, dados do Instituto Nacional do Câncer, somam 30 milhões, dos quais 12 milhões são mulheres. Talvez seja impossível lidar com esse problema quando um quinto da população está envolvido. Os políticos, porém, que precisam de votos a cada quatro anos, não podem se manter alheios a isso. E a mídia, que tem parte considerável de seu faturamento no álcool e no fumo, menos ainda. A revista Veja e os jornais O Globo e a Folha de S. Paulo, em julho de 2008, ao entrar em vigor a legislação eleitoral para o pleito municipal de 5 de outubro, brindaram seus leitores com uma informação patética: cerca de 40% dos parlamentares brasileiros têm antecedentes criminais, muitos deles já condenados. A denúncia estava baseada em uma campanha iniciada pela Associação Brasileira dos Magistrados e Promotores Eleitorais, além de outras 35 entidades, destinada a obter 1,2 milhão de assinaturas da população para dar suporte a um projeto de lei, a ser apresentado ao Congresso. O objetivo da nova lei seria impugnar “candidaturas sujas”. O presidente da Associação dos Magistrados, juiz Marion Reis, disse inclusive que “se trata de um dispositivo indispensável ao eleitor, para garantir o exercício da democracia no país”. Assim começava o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), inaugurado no Rio de Janeiro, com apoio até da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (a CNBB, católica) e de algumas igrejas evangélicas. Em agosto de 2008, o vice-presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, desembargador Alberto Motta Moraes, declarou aos repórteres: “Só no Rio de Janeiro há pelo menos cem candidatos às próximas eleições que são acusados de homicídio, ou que já foram condenados por terem matado alguém.” Na edição de 3 de setembro de 2008 da revista Veja, o articulista José Roberto Guzzo, um dos mais conceituados da mídia brasileira, escreveu: Não é preciso ser doutor em matemática para deduzir que nunca tivemos, na história deste país, tantos homicidas disputando um cargo público. A frase é límpida demais. Mostra o grau de contaminação da delinquência e da ilegalidade na sociedade. Em última análise, estabelece o quanto o crime organizado fincou raízes entre nós. Trata-se — efetivamente — de um assalto ao poder. O crime, com suas imensas fortunas, começa por criar empresas legais; corrompe a polícia e o Judiciário em seguida. E parte para ocupar posições no Legislativo. Até se estabelecer nos altos níveis de governo, onde faz pressões e estabelece imunidades para seus cúmplices. Conheço bem o juiz Motta Moraes, desde o inquérito para esclarecer o assassinato da modelo Cláudia Lessin Rodrigues, ocorrido no Rio em 1977. O (PMDB), prometeu colocar a proposta em votação “o mais breve possível”. Ninguém acreditou. O ano de 2009 foi embora e o projeto não entrou na pauta. Temer também é pré-candidato a vice de Dilma Rousseff nas eleições presidenciais de 2010. Quarenta por cento do Parlamento sob acusação de crimes. Mais de cem candidatos no Rio suspeitos de homicídio, segundo palavras do desembargador. Se isso acontece em Brasília e na segunda maior cidade do país, não é difícil imaginar o que se passa nos rincões deste Brasil. Neste trabalho, coloco a pergunta: que país é este, onde os criminosos podem se candidatar mas os devedores de pequenas quantias são punidos com restrição de crédito? Que leis são essas? O pequeno empreendedor fica “preso” no crédito — e o “grande ladrão” é eleito deputado federal ou senador. Em 17 de fevereiro de 2009, o TSE cassou o mandato do governador da Paraíba, Cássio Cunha Lima (PSDB), e de seu vice, José Lacerda Neto (DEM), ambos acusados de “abuso do poder econômico”. Na eleição de 2006, eles teriam distribuído 35 mil cheques a eleitores, numa visível compra de votos. Com a medida do TSE, assumiu o governo o senador José Maranhão (PMDB), segundo colocado nas eleições. De acordo com a mesma Folha de S. Paulo, o novo mandatário responde a oito ações judiciais. Em seu lugar, assumiu a vaga no Senado Federal o suplente Roberto Cavalcanti Ribeiro (PRB-PB), que em O Globo Online, edição de 18 de fevereiro, às 23h44, diz-se que, “é processado por corrupção e acusado de cinco crimes”. É chocante notar que a política no Brasil se tornou, senão uma atividade criminosa, no mínimo uma atividade suspeita de todo tipo de irregularidades. Em 4 de março de 2009, o TSE cassou o mandato do governador do Maranhão, Jackson Lago (PDT), por suspeita de compra de votos e abuso do poder econômico. No mesmo dia, o Senado elegeu o ex-presidente Fernando Collor de Mello — que havia renunciado, em 29 de dezembro de 1992, para não ser cassado por acusações diversas — como presidente da Comissão de Infraestrutura, responsável pela fiscalização das obras do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). O PAC é o maior projeto do governo Lula, com orçamento de 1,1 trilhão de reais até o ano de 2012. Collor venceu a candidata do PT ao cargo, a senadora Ideli Salvatti, de Santa Catarina, por 13 votos a 10. Com apoio dos senadores José Sarney e Renan Calheiros e, no dizer da imprensa, com a “bênção” do próprio Lula. Renan, como sabemos, renunciou à presidência do Senado (para não ser cassado por falta de decoro) em 4 de dezembro de 2007. A eleição de Collor para a presidência da Comissão de Infraestrutura motivou um artigo do repórter e comentarista Clóvis Rossi, um dos mais conceituados do país, sob o título “Decoro ou falta dele”. Acompanhe: É óbvio que, escravos dessa mentalidade, os políticos sejam, digamos, distraídos na defesa dos interesses públicos. Tão distraídos que deram ontem a presidência da Comissão de Infraestrutura do Senado a Fernando Collor de Mello, o único presidente de uma república bananeira, como o Brasil o foi durante tanto tempo, que conseguiu a façanha de ser cassado por “falta de decoro”. Os grandes jornais lembraram que Collor responde a processos no STF, por crimes contra a ordem tributária, corrupção ativa e passiva, peculato e tráfico de influência. Algumas ações prescreveram ou foram arquivadas. Este é o senador que vai fiscalizar o dinheiro da Viúva. Já em 21 de dezembro de 2008, a Folha de S. Paulo avisava a seus leitores que, dos 18 novos suplentes de deputados que assumiam cadeiras na Câmara Federal, em lugar de eleitos que ocuparam cargos públicos, a metade respondia a ações judiciais, algumas criminais. Disse o jornal: Congressistas que assumem vagas de eleitos nas eleições municipais (como prefeitos) argumentam que processos são disputas políticas. No dia seguinte à cassação do governador maranhense e da eleição de Fernando Collor como “controlador” do PAC, a mesma Folha informava a seus leitores que “11 congressistas investigados no STF presidirão comissões”. No Brasil, todo político acusado de crimes declara que tudo não passa de acusações levianas da imprensa ou perseguição de seus desafetos políticos. No entanto, em artigo publicado por José Roberto Guzzo, na Veja de 18 de fevereiro de 2009, este que é um dos mais respeitados jornalistas do país traça o perfil do deputado federal Edmar Moreira (PMDB-MG), que foi escolhido vice-presidente e corregedor da Câmara dos Deputados, em Brasília, e que renunciou ao ser pressionado pela mídia e por seus próprios pares. “Normalmente esse Edmar, cuja base eleitoral está no interior de Minas Gerais, não deveria chamar maior atenção — não há muito, no fundo, que o torne diferente de boa parte dos deputados e senadores. Ele responde a inquérito no Supremo Tribunal Federal, acusado de embolsar as contribuições feitas ao INSS por funcionários de suas empresas. Não declarou, nem à Justiça Eleitoral nem ao Imposto de Renda, um espantoso castelo de 7.500 metros quadrados construído perto de São João Nepomuceno, em Minas, e que tenta vender por 25 milhões de reais. Está sendo processado, em São Paulo, numa vara cível, por não pagamento de uma dívida de 1,9 milhão de reais ao Banco do Brasil; numa vara penal, é acusado de crimes contra a ordem tributária. Responde a duas mil ações trabalhistas, é suspeito de desviar verbas funcionais e retira seus salários de deputado em dinheiro vivo, na boca do caixa, o que impede a Justiça de bloqueá-los em favor dos credores. Em resumo: o deputado Edmar Moreira é um retrato perfeito do parlamentar brasileiro de hoje.” Este mesmo artigo de José Roberto Guzzo destaca que “uma pesquisa realizada algum tempo atrás revelou que o bicho que os brasileiros acham mais parecido com os políticos é o rato”. Ao longo destas mais de 500 páginas de reflexão e análise do problema, o leitor vai encontrar descrições detalhadas das consequências da ilegalidade na vida prisão em flagrante, para a qual não há desculpas. Mas já não seria hora de rever algumas dessas condições, quando somos assediados por uma violência tão trágica quanto inaceitável? E em quem deveríamos confiar? Em nossos legisladores, que, segundo a mídia, estão envolvidos com crimes em 40% dos casos? Ou deveríamos esperar pela “divina providência, que tarda mas não falha”? Esta é a base da desilusão e da desesperança de um povo que sabe: não pode contar com os altos poderes. Se cometer uma infração de trânsito, será punido. Mas assiste todos os dias ao festival de impunidades nos noticiários das TVs e dos jornais. Como a sociedade civil brasileira não se organiza para exigir seus direitos na vida cotidiana — e só se mobiliza nos grandes episódios —, provavelmente vamos amargar mais algumas décadas de silêncio e submissão. Há casos muito graves de envolvimento das elites em financiamento de drogas, contrabando e pirataria. Tudo sob o manto impenetrável da impunidade. O famoso você sabe com quem está falando? realmente prosperou num país rico de recursos e possibilidades mas que se perdeu na venda fácil de suas esperanças. Aqui se compra um guarda de trânsito por 10 reais, evitando assim uma multa ou a apreensão da carteira de habilitação e do próprio carro. (Olha que agora temos a legislação mais dura do mundo em relação a álcool e direção.) Aqui se compra sexualmente uma criança de 10, 12 ou 13 anos por 25 reais. Tanto faz se é um menino ou uma menina. Pode até custar menos, nos rincões do país, onde os pais vendem meninas aos caminhoneiros por meros 15 reais. Aqui se pode comprar uma sentença de um Tribunal Superior por 1 milhão de reais. É o que se lê todas as manhãs na brava imprensa brasileira, uma das poucas ferramentas de cobrança, reclamação e protesto. Apesar de que essa mesma força de oposição se envolve em questões particulares, às vezes familiares, às vezes por interesses financeiros, e distorce tudo conforme a vontade própria. Verdade ou mentira? Neste país de tantas questões, a mídia é frequentemente acusada de fazer acusações levianas — algumas “pagas” — para denegrir o caráter ou a carreira de alguém, especialmente políticos e governantes. O fato, porém, observando a posição de jornais, rádios e emissoras de televisão nos últimos cinquenta anos, é que esta mesma maltratada imprensa tem sido o principal fator de contestação dos regimes e dos governos. Sem ela, não haveria as denúncias de Pedro Collor, que resultaram, em última análise, na queda do irmão, Fernando. Assim como não haveria denúncias de torturas e massacres do regime militar. E não teríamos as receitas de bolo publicadas na primeira página de O Estado de S. Paulo, substituindo as notícias censuradas pela ditadura. Ou não teríamos aquela espetacular edição do Jornal do Brasil, organizada pelo editor-chefe Alberto Dines, no dia da publicação do AI-5, em 13 de dezembro de 1968, em que a previsão do tempo informava que “ventos furiosos varrem todo o país”. Não teríamos a denúncia do “mensalão”, a compra de votos no Congresso, que sacudiu o primeiro governo Lula e derrubou a cúpula do PT. Políticos e analistas, surpreendidos, disseram: “Mas como? Isso sempre existiu!!!” Curioso: as sacanagens e o acadelamento na política sempre existiram. Fatos normais! O primeiro governo Lula (2003-2007) vai entrar para a história como o momento em que houve mais denúncia de corrupção no poder, com a renúncia de parlamentares, execração pública de líderes partidários e demissões de ministros. Nisto, sem dúvida, o Brasil afirmou a qualidade da sua democracia. Mesmo com a dissolução da imagem ética do Partido dos Trabalhadores, que se orgulhava da incorruptibilidade de seus integrantes, o governo seguiu adiante e o presidente Lula continuou desfrutando dos maiores índices de popularidade jamais registrados, chegando aos extraordinários 84% de aceitação em fevereiro de 2009. Não há dúvidas de que Lula se tornou o político mais respeitado da República — e esta talvez tenha sido a sua maior contribuição para a democracia. Especialmente num país onde os políticos, na opinião do povo, “são todos ladrões”. Apesar de todas as denúncias, a imagem do presidente não foi atingida. No auge da crise do “mensalão”, a empregada doméstica que trabalha na minha casa, Dona Cida, cunhou uma frase lapidar sobre a situação política: — Esses políticos são mesmo uns safados. Não vê o que eles estão tentando fazer com o Lula? Pois é. A bandalheira jamais colou na imagem do presidente. O retirante de Garanhuns, interior de Pernambuco, operário metalúrgico em São Bernardo do Campo, sobreviveu a todas as críticas. Isso é surpreendente, num país onde a sacanagem dos políticos é antológica. Em 1924, durante o governo de Arthur Bernardes, quando foi criada a Receita Federal e o Imposto de Renda, os congressistas votaram uma lei que isentava os produtores rurais de prestar contas. Claro: a maioria do Congresso era composta de proprietários de terras. Inúmeras outras leis foram criadas, ao longo do tempo, para proteger as elites econômicas. E o povo que se dane. É por isso que os políticos nunca aprovam leis que possam atingi-los. O Código Penal, dos anos 1940, nunca foi reformado. Lula é um homem do povo, miserável na origem, operário lutador e inconformado com as condições de vida e de trabalho da classe operária brasileira. Por isso é reconhecido mundialmente. Barack Obama olhou para ele e declarou: “Esse é o cara!” E por isso o seu povo o reconhece como um igual. Uma pesquisa CNI/Ibope, de 10 de dezembro de 2009, registrava extraordinários 83% de aprovação para o seu governo. Venceria qualquer eleição presidencial no primeiro turno — e talvez faça justamente isso em 2014. Portanto, apesar de todos os seus defeitos e de todas as eventuais acusações, continuamos sabendo que uma imprensa livre é o principal sinal de que um país continua vivo. Eu, que sou jornalista por vocação, me mantenho orgulhoso da profissão; mesmo tendo estado sob a mira de armas durante o exercício das minhas tarefas, no Rio de Janeiro ou em países estrangeiros; ainda que tenha sido mal pago e perseguido durante muitos anos. Frequentemente, legisladores e governantes tentam criar mecanismos de controle da informação, uma vontade que parece própria da natureza dos poderosos. Nos regimes autoritários de todos os tempos, a primeira providência sempre foi a censura. A liberdade de informação é a primeira vítima das ditaduras. Mesmo no governo do socialista Lula, assistimos a duas tentativas. Se os motivos eram mais puros do que a simples censura, não conseguimos entender. A primeira proposta: um “conselho ético” da informação (Conselho Federal de Jornalismo, destinado a “orientar, disciplinar e fiscalizar” a categoria), justo no momento em que o governo era bombardeado por denúncias de corrupção. E a segunda: “classificação indicativa” de idades para os programas de televisão, em que representantes do governo estabeleceram critérios para o que poderia ser visto em determinados horários. As duas propostas foram demolidas pela mídia. E o Na atual “guerra global ao terrorismo”, desencadeada pelo presidente americano George W. Bush após os atentados de 11 de setembro de 2001, a censura à imprensa adquiriu forma inovadora. Escaldados com a cobertura sem restrições da guerra no Vietnã, que banhava de sangue os telejornais enquanto levava à opinião pública norte-americana toda a violência do conflito no Sudeste Asiático, os especialistas em mídia da Casa Branca e do Pentágono optaram por um modelo diferente. Repórteres, fotógrafos e cinegrafistas foram “incorporados” às Forças Armadas. Obrigados a usar uniformes iguais aos das tropas, com capacetes Kevlar e coletes à prova de balas, não se distinguiam dos soldados comuns. E estavam submetidos à disciplina militar. Como todos os demais, “cumpriam ordens” dos oficiais comandantes. Assim, tinham hora e lugares certos para transmitir seus boletins. Isso levou a uma cobertura “americanizada” da guerra no Afeganistão e no Iraque. Brindados com cenas reais de combate, que ajudam a conquistar audiência, os jornalistas estavam, no entanto, limitados no conteúdo. Rick Atkinson, editor sênior do Washington Post durante vinte anos, vencedor do prêmio Pulitzer, foi incorporado às tropas da 101ª Divisão Aerotransportada no Iraque. Escreveu um relato imperdível sobre a guerra, focando-se no lado americano. Esteve na linha de frente e conviveu de perto com os comandantes da divisão. Em seu livro Na companhia de soldados (Bertrand Brasil, 2008), Rick Atkinson nos dá uma ideia bem clara de como foi a incorporação dos jornalistas às forças armadas dos Estados Unidos: Comandantes de unidades receberam “conselhos formais sobre a mídia” na forma de uma ordem com 27 páginas que essencialmente insistia que eles colaborassem. Um livrinho preparado pela 101ª. Divisão Aerotransportada, O guia do soldado para a República do Iraque, continha uma seção de quatro páginas intitulada “Lidando com a mídia”. O conselho incluía “oito passos para uma entrevista bem-sucedida”. (Passo 4 — responda à pergunta.) O capítulo seguinte, “Animais Perigosos”, avisava que “há 46 espécies de cobras venenosas na região”. Engraçado que os militares americanos colocassem os jornalistas na vizinhança de animais peçonhentos. Talvez dando conta da ameaça sutil que representavam. Rick Atkinson também explica que alguns comandantes davam aos correspondentes de guerra o tratamento equivalente a tenentes, capitães e majores, conforme a importância do profissional e do veículo para o qual trabalhavam. Isso concedia, por exemplo, prioridades nas filas do refeitório. O autor de Na companhia de soldados conta mais: Ninguém sabia que 16 jornalistas logo estariam mortos (no primeiro ano da guerra), de acordo com números posteriormente publicados pela Columbia Journalism Review, ou que seria mais perigoso ser um repórter nessa guerra do que um piloto de combate. (...) Um capitão relações-públicas me entregou o meu novo crachá laminado. Um aviso dizia que “o usuário deve usá-lo em toda e qualquer situação”, uma ordem que foi imediatamente ignorada por todos. Eu já não era mais um turista com bagagens demais. Eu era, de acordo com a credencial pendurada no pescoço, “Jornalista Credenciado 03-063-018”. Nos alojamentos da 101ª. Divisão, um cartaz colocado pelos militares responsáveis por relações públicas e contrainformação (curiosamente do mesmo departamento), dizia: “O que você fez para ganhar o coração e a mente dos iraquianos hoje?” Nos violentos combates em Bagdá, Najaf, Fallujah e Tikrit, onde dezenas de milhares de vidas civis, incluindo mulheres e crianças, foram sacrificadas, a cobertura da televisão americana se limitou à movimentação das tropas aliadas. Apenas jornalistas árabes independentes, especialmente das TVs Al Jazira, do Catar, e da Al Arabya, do Dubai, documentaram o drama da população iraquiana. Mostravam a loucura dos hospitais de campanha, instalados a céu aberto; as bombas que caíam em áreas residenciais, escolas e creches. Os ataques equivocados das forças aéreas americana e inglesa, contra alvos civis em vez de militares, só apareceram na mídia árabe. Aviões americanos e grupos de tanques chegaram a disparar seguidas vezes contra instalações das duas televisões árabes no Iraque. Ao ocupar Bagdá, um tanque Abrams do exército americano abriu fogo com um canhão 120mm contra o Hotel Palestina, onde estava concentrada a imprensa mundial. A explosão destruiu um dos andares do hotel e provocou um incêndio. Dois jornalistas morreram e outras 15 pessoas ficaram feridas. O presidente Bush ameaçou um ataque contra a Al Jazira no território do Catar, a milhares de quilômetros de distância do conflito. O então secretário de Defesa da Casa Branca, Donald Rumsfeld, chegou a assinar a ordem de ataque. Mas foi impedido por pressão dos aliados ingleses. Para quem se interessa pelo tema, há duas publicações de leitura obrigatória. A primeira é De casa em casa em Fallujah (Larousse Editorial, 2007), diário de combate do sargento de infantaria dos Estados Unidos David Bellavia, um soldado profissional que relata toda a tragédia da batalha que durou dez dias e que resultou na morte de cerca de oitocentos membros da resistência islâmica contra o agressor estrangeiro, além de mais de 2 mil feridos, entre combatentes e civis. O confronto na cidade sagrada muçulmana custou a vida de 150 militares americanos. Foi uma batalha parecida (em termos) com a de Stalingrado, na Rússia, durante a Segunda Guerra Mundial: no meio dos escombros, entre prédios destruídos e incêndios. Havia 5 mil soldados americanos no cerco a Fallujah, com seus veículos blindados Bradley, os tanques Abrams, aviões A10-Thunderbolt e F-118 Hornet, os helicópteros Black Hawk e Apache. Não havia no arsenal da insurgência árabe nenhuma munição capaz de perfurar a blindagem dessas máquinas de guerra. Isto talvez explique a enorme desproporção entre as baixas. Boa parte das perdas americanas e aliadas foram causadas por combates mano a mano, em que facas, baionetas e pistolas valiam mais do que o resto. Os mujahidins, “guerreiros de Alá”, foram os principais responsáveis por levar a luta a esses extremos, combatendo com coragem suicida. A segunda leitura obrigatória é o livro do jornalista americano Jeremy Scahil, veterano das guerras nos Bálcãs, nos anos 1990, como a da Bósnia. Ele esteve em Sarajevo, relatou os massacres patrocinados pelos sérvios, herdeiros da herança nazista no leste da Europa. Vencedor do prêmio George Polk de Jornalismo, um dos mais importantes dos Estados Unidos, em 2007, revelou ao mundo a ocidentais uma cobertura cheia de emoções e muito favorável. Mas o drama de iraquianos e afegãos ficou de lado. No conflito do Vietnã, as empresas de comunicação bancavam as despesas de seus repórteres, fotógrafos e cinegrafistas. Essas mesmas empresas se responsabilizavam por transporte, hospedagem e deslocamento das equipes. Mantinham escritórios em Saigon e até em Hanói, a capital comunista inimiga. Recrutavam seguranças e intérpretes vietnamitas. Na “guerra global ao terrorismo” todas elas são reféns da coalizão aliada. Só podem se deslocar junto com as tropas. Isso nos remete ao controle da informação dos militares sobre a imprensa durante a invasão da Normandia, na Segunda Guerra Mundial, em 6 de junho de 1944, quando oitocentos repórteres e fotógrafos também foram incorporados ao exército dos Estados Unidos. Os jornalistas estavam “engajados” principalmente no 2º Regimento dos Rangers e na 1ª Divisão dos Marines, que formavam a onda de choque da invasão, precedida pelo mais descomunal bombardeio naval da História. Foi uma cobertura altamente positiva, até porque a invasão da Europa dominada pelos nazistas foi bem- sucedida. Foi preciso esperar cinquenta anos até que o historiador americano Stephen E. Ambrose, autor de O dia D (Civilização Brasileira, 1998), revelasse às pessoas comuns todo o drama da maior operação naval de desembarque. Ambrose, neste livro de 755 páginas, conta que os americanos perderam 7.400 vidas para caminhar 150 metros sobre a praia de Omaha, nome de código para o litoral de Saint Maire Eglise, uma cidadezinha francesa que era um dos cinco alvos da invasão. (No ataque japonês a Pearl Harbor, na manhã de 7 de dezembro de 1941, 2.400 americanos morreram, número semelhante ao do atentado às Torres Gêmeas, em Nova York.) A batalha da Normandia envolveu 2,5 milhões de combatentes e resultou, em cerca de oitenta dias, em mais de 800 mil baixas. A Operação Overlord, nome de código para o ataque, abriu caminho para liberar a Europa Ocidental, enquanto milhões de russos desciam pela Frente Oriental com destino a Berlim. O terceiro Reich desabou em dez meses. O que pretendo dizer com isso é o seguinte: toda vez que a imprensa se reduz ao papel de “reprodutora” de informações cuja base objetiva não foi verificada, deixa de cumprir o papel histórico e social a que deveria estar atenta. Isso se aplica à situação de deterioração das condições brasileiras. A violência instalada em nossa sociedade, com verdadeiras batalhas campais no Rio de Janeiro, em que repórteres usam coletes à prova de balas com a inscrição “imprensa”, é transmitida ao público de forma banal, sem que os veículos de comunicação aprofundem ao público o real significado do problema. Fazem de conta que é assim mesmo. Só mais um tiroteio corriqueiro. Só mais umas balas perdidas. Só mais uns “civis” atingidos. Quando é que vamos dizer aos poderes que as coisas passaram dos limites? Ou vamos esperar cinquenta anos para que um historiador estrangeiro conte a nossa história? Em tempos de internet, há enorme variedade de opções entre realidade e fantasia. Bom exemplo dessa barafunda é a quantidade de falsas notícias que circulam pela web. Em maio de 2006, com seu jeitão galhofeiro e divertido, o cronista Arnaldo Jabor, comentarista da TV Globo, reproduziu em sua coluna uma suposta entrevista com o líder da organização paulista PCC, Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, tido como um dos chefões do crime organizado em São Paulo. Era brincadeira, mas passou como verdade. Na coluna, publicada no jornal O Globo no dia 23 e reproduzida na rádio CBN, o líder do autodenominado Partido do Crime respondia a seis perguntas de um jornalista anônimo. Acompanhe um trecho do que seria a opinião de Marcola: Solução? Não há solução, cara... A própria ideia de “solução” já é um erro. Já olhou o tamanho das 560 favelas do Rio? Já andou de helicóptero por cima da periferia de São Paulo? Solução como? Só viria com muitos bilhões de dólares gastos organizadamente, com um governante de alto nível, uma imensa vontade política, crescimento econômico, revolução na educação, urbanização geral; e tudo isso teria de ser sob a batuta quase que de uma “tirania esclarecida”, que pulasse por cima da paralisia burocrática secular, que passasse por cima do legislativo cúmplice (ou você acha que os 287 sanguessugas vão agir? Se bobear, vão roubar até o PCC...) e do Judiciário, que impede punições. (...) E tudo isso custaria bilhões de dólares e implicaria uma mudança psicossocial profunda na estrutura política do país. Ou seja: é impossível. Não há solução. É até possível que Marcola pense algo nessa linha, seguindo a tradição dos “bandidos sociais” inaugurada com o Comando Vermelho — que já era nossa conhecida desde Tião Medonho e Lúcio Flávio, sem falar dos cangaceiros. Mas a entrevista, certamente, não ocorreu. Hoje se questiona inclusive se Jabor foi ou não autor da coluna. Em 8 de setembro de 2008, mandei um e-mail para o jornalista com três perguntas, procurando esclarecer a questão. Ele não respondeu até a conclusão deste livro. Como na internet tudo é muito atrapalhado, nem sei se ele recebeu o e-mail. Mas a mídia brasileira continua sendo — graças a Deus — um excelente fórum de debates. Mesmo quando os assuntos raspam a trave da vida real e são apresentados como humor e entretenimento. Mas a internet é palco também de uma série de crimes, inclusive com a proliferação de sites ligados ao crime organizado, com “páginas oficiais” do Comando Vermelho Jovem e do PCC. A polícia consegue tirar alguns desses sites do ar, mas no mesmo dia surgem dezenas de outros. A web também serve para organizar as brigas de torcidas, marcando hora e local para os confrontos, antes e depois das partidas de futebol, muitas vezes resultando em mortes e dezenas de feridos. Em 26 de março de 2009, a polícia paulista prendeu 112 pessoas, dentre as quais 87 menores, que haviam combinado pela internet uma briga de torcidas. Foi em Diadema, Grande São Paulo. A PM teve que interditar o estacionamento de um McDonald’s para reunir todos os detidos, cercados por dezenas de policiais. A internet também virou o principal meio para compra e venda de drogas sintéticas, com entrega domiciliar. Em 2008, a polícia prendeu mais de uma centenas de jovens de classe alta ou média, a maioria universitários, envolvidos com essa nova variação do crime de tráfico. Esses rapazes não precisam disso para sobreviver — eles precisam é da adrenalina que a vida do crime oferece, em que cada dia é uma aventura prazerosamente perigosa. Quando a polícia bate às suas portas, mantêm uma postura arrogante e orgulhosa. Sabem que terão ampla maneira. A sofisticação do crime eletrônico, muito além do poder das polícias e dos governos, é um fator fundamental na análise da infiltração das organizações criminosas na vida dos cidadãos, nas empresas e nas instituições democráticas. Faz parte do projeto mais amplo que chamo de “assalto ao poder”. Em maio de 2008, um hacker, pirata de computadores, invadiu os servidores de rede de um órgão do governo federal brasileiro. Sobre isso, o jornalista Fernando Rodrigues, da sucursal de Brasília da Folha, publicou matéria exclusiva em 8 de dezembro de 2009. Baseado num país do Leste Europeu, o pirata mudou a senha dos serviços de informática de um dos nossos ministérios e passou a exigir US$ 350 mil pelo resgate da senha. Os especialistas em informática conseguiram neutralizar a bomba virtual, porque descobriram que o sistema ainda usava a senha básica fornecida pelos fornecedores do software, um erro primário. Disse o jornal: Decidiu-se por não pagar. Esse órgão ficou 24 horas sem operar, com cerca de 3 mil pessoas sem ter acesso aos dados daquele servidor — relata Raphael Mandarino Júnior, 55, o matemático responsável no cargo de diretor do Departamento de Segurança da Informação e Comunicação do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República. Além disso, agências de informaçao do governo dos Estados Unidos já diziam que os hackers haviam invadido empresas de energia elétrica no Brasil, provocando apagões em várias cidades. Num discurso, em maio de 2009, Barack Obama dizia: “Nós sabemos que esses invasores cibernéticos têm colocado à prova nosso sistema interligado de energia e que, em outros países (referindo-se ao Brasil), ataques assim jogaram cidades inteiras na escuridão.” Além das páginas e paginas de notícias sobre a bandalheira oficial ao longo do dia, ao chegar em casa depois de um dia de trabalho o cidadão assiste na televisão à trágica rotina do tiroteio nosso de cada dia e das gravações telefônicas da interminável corrupção. O Brasil moderno vive uma embriaguez de liberdades democráticas, desde 1985, com a queda do regime militar. É como se um novo país houvesse surgido — na verdade, um jovem de vinte e poucos anos que abusa das suas virtudes e que esconde as suas tragédias e desonestidades com grande habilidade. Entre nós, a cidadania agora começa com uma renda mensal de vinte salários mínimos. A partir deste padrão econômico-social, as leis funcionam, a polícia é cautelosa, os advogados são competentes e os juízes, tolerantes. Durante mais de duas décadas, varremos a desigualdade, a pobreza e a violência para debaixo do tapete. Pior: criamos um apartheid social e demográfico, por meio do qual toda a porcaria do sistema ficava circunscrita às periferias e favelas, aos pobres, àqueles que não chegaram lá, incapazes de comprar seus títulos de cidadania. Como antes se compravam títulos de alforria. Agora tudo isso se volta contra nós, como uma grande onda que se ergueu do mar das desigualdades. O crime, a corrupção e a violência se espalharam por toda a sociedade. Estamos envolvidos no mesmo drama. Todas as fronteiras desabaram. Vivemos num país onde as autoridades e o poder constituído não garantem a punição. Só 1% dos crimes resulta em condenações no Brasil. Temos cerca de 450 mil prisioneiros, dos quais quase 150 mil só no estado de São Paulo. Nos Estados Unidos, onde as leis são aplicadas, há em torno de 5 milhões de sentenciados. Contudo, no patropi, o Brasil ensolarado, o número de testemunhas mortas supera com folga o de criminosos levados para atrás das grades. Os acertos de contas, a justiça com as próprias mãos, são mais eficientes do que todo o sistema judiciário. Este é o faroeste brasileiro. Um caso emblemático é o do ciclista bêbado que pedalava tortuoso por uma rua do Grajaú, zona sul de São Paulo, e acabou atropelado por uma professora que levava no carro os dois filhos menores para a escola. O homem, que sofreu apenas um arranhão na perna direita, deu um murro na cara da professora, sacou um revólver e a matou com dois tiros, diante das crianças. Em seguida, o assassino pegou a bicicleta e seguiu seu caminho trôpego por mais um quarteirão. Saltou, entrou num bar e pediu mais uma cerveja e um copo de cachaça. Tranquilamente. Certo de que não aconteceria nada. Só que a população local se mobilizou para um linchamento, o que acabou atraindo a polícia. Foi preso candidamente, sem oferecer nenhuma resistência. E não admitiu ter feito nada de errado. Isso aconteceu em 2004. Caso mais impressionante foi registrado em maio de 2007: um criminoso que ficou sete anos preso por violência sexual contra a filha, dez dias depois de deixar a cadeia, em liberdade condicional por bom comportamento, invadiu uma casa na Vila Ema, zona leste de São Paulo, e matou o casal de moradores. Enterrou Jorge de Araújo, 53 anos, e a mulher, Maria da Graça Santos, 70, na garagem. Cobriu os corpos com cimento. Tomou posse do imóvel, onde passou a morar com a companheira. Foi preso duas semanas depois, quando já tinha colocado uma placa de “vende-se” na porta da casa. Aos vizinhos, ele se apresentava como “auxiliar do corretor”. É a certeza da impunidade que produz casos como esse. No sábado, 29 de março de 2008, uma criança de classe média, Isabella Nardoni, menina bonita de cabelos castanhos escuros, olhos expressivos, às vésperas de completar 6 anos de idade, foi espancada, estrangulada e atirada do sexto andar de um prédio de classe média em São Paulo. Foi tal a violência, que o crime provocou uma comoção nacional. Os acusados, Alexandre Nardoni e Ana Carolina Jatobá, pai e madrasta da criança, foram formalmente acusados do assassinato. A cobertura da imprensa conteve tons linchadores. E por pouco não houve um linchamento de verdade. O povo jogara pedras e garrafas contra os acusados, diante das câmeras que mostravam, ao vivo, em redes nacionais, o primeiro depoimento do casal à polícia. Depois, ainda em meio à fúria contra os acusados, o programa Fantástico, da TV Globo, uma das maiores audiências da televisão brasileira, em 20 de abril de 2008, mostrou entrevista exclusiva com os dois acusados do crime. Eles choraram diante das lentes. Obviamente, a entrevista, em troca de audiência, que foi soberba, fazia parte dos interesses da defesa do casal. No dia seguinte à exibição, cartazes colocados pelo povo diante do prédio onde os dois acusados estavam vivendo diziam: “Lágrimas falsas.” O assassinato de Isabella, uma criança que nos mapas. As forças de segurança estaduais montam grandes cercos, incluindo tropas especiais e helicópteros. Em geral, com poucos resultados. Na quarta-feira, 3 de março de 2009, um casal foi atacado no Leblon, zona nobre do Rio, por quatro assaltantes. O advogado Marcelo de Souza Vianna, 43 anos, e a publicitária Paula Guimarães da Silva, 31, chamaram atenção dos bandidos por causa do carro do advogado, um Audi A3, que custa mais de 100 mil reais. Os assaltantes queriam que Marcelo revelasse o seu endereço, mas ele se recusou e foi agredido. Os criminosos, então, resolveram se vingar: levaram o casal até a Avenida Niemeyer, onde há um penhasco de 50 metros de altura separando a pista do mar. Marcelo e Paula foram empurrados lá de cima — mas com sorte caíram na mata e sobreviveram. Os bandidos rodaram com o Audi até bater e danificar o veículo, que foi abandonado. (Em geral, esses assaltantes dirigem muito mal, especialmente carros de câmbio automático.) Voltaram tranquilamente para casa, na favela da Rocinha, que fica nas proximidades. Ao chegar, no entanto, foram cercados pelos traficantes locais, armados de fuzis e pistolas automáticas. Levaram a maior surra. Foram gravemente espancados no meio da rua, na frente dos moradores. Ameaçados de morte, foram obrigados a procurar a polícia e confessar o crime. Esta foi uma demonstração da rápida justiça do crime organizado. Provavelmente, os assaltantes, mesmo que consigam se livrar da Justiça, nunca mais voltarão a morar na Rocinha. Quando o guitarrista Rodrigo Neto, da banda de rock Detonautas, com grande penetração na mocidade pobre do Rio, foi assassinado a tiros numa tentativa de assalto, em 2006, o Comando Vermelho Jovem (CVJ) iniciou uma caçada humana para pegar seus algozes. Quatro rapazes, responsabilizados pelo crime, foram mortos e colocados no porta-malas de um carro roubado. A polícia foi avisada por um telefonema anônimo. Junto aos cadáveres havia um protesto manuscrito, assinado da seguinte maneira: “CV, o lado certo da vida errada.” Mais uma demonstração da justiça pelas próprias mãos, administrada pelo crime organizado. Tais episódios são reveladores da transformação do país num território quase sem lei. Mesmo quando os códigos são aplicados, muita coisa dá errado. Exemplo: todos os anos, a Justiça concede indulto temporário a presos de bom comportamento ou que estejam em regime semiaberto, mas 10% deles não voltam para a cadeia. Até preso órfão recebe permissão de saída no Dia das Mães. Na semana do Natal de 2008, o cirurgião plástico Hosmany Ramos, preso desde 1981 por roubo, tráfico de drogas, homicídio e contrabando, deixou o Centro de Progressão Penitenciária de Valparaíso (517 quilômetros da capital paulista) para passar dez dias com a família e não voltou mais. Hosmany deu entrevista a jornais e emissoras de rádio avisando às autoridades que não voltaria. A um repórter da Folha ele declarou, em janeiro de 2009: — O sistema penitenciário é corrupto e opressor. Agora vou para o exterior. Quando os ratos forem presos ou afastados, serei o primeiro a me apresentar. E ficou por isso mesmo. Hosmany Ramos foi preso pela Interpol na Islândia, no dia 13 de agosto de 2009. Mas a notícia só saiu na imprensa mundial em 7 de dezembro. Ele estava no aeroporto de Keflavik, tentando embarcar para o Canadá usando um passaporte falso, quando foi apanhado pela polícia islandesa. Em entrevista ao canal de televisão Channel 2, daquele país, declarou que a prisão parecia um hotel quatro estrelas: “Em uma cela de prisão do tamanho dessa, haveria 30, 40 presos no Brasil.” E aproveitou para pedir asilo político ao governo da Islândia, alegando torturas e outras violações de direitos humanos no sistema penal brasileiro. Entre janeiro e agosto daquele ano, Hosmany ficou passeando pela Europa. Não se sabe como ele arrumou tanto dinheiro e apoiadores estrangeiros. A corte superior de justiça daquele país recusou o pedido de refúgio político feito por Hosmany, então com 61 anos, e decidiu extraditá-lo. Em 1980, o médico havia sido condenado a 57 anos de prisão por homicídio, sequestro, roubo qualificado e tráfico de drogas. Ainda tem uns 20 anos para cumprir. Neste livro o leitor vai encontrar muitas histórias como essa, que refletem a dura realidade de um país ferido. E vai entender por que esta ferida se alastra pelo tecido social de maneira aparentemente irreversível. A brutalidade, da qual o medo é aliado, somada à corrupção e ao crime organizado ameaçam levar este paraíso tropical a um choque de grandes proporções. Mas não pretendo ficar numa monótona descrição de casos. Gostaria de analisar os desdobramentos da crise de insegurança que vivemos e as prováveis — ou (cada vez mais) improváveis — soluções. Optei por um método ondulante de redação, indo e vindo no tempo, procurando o nexo histórico das coisas. Correlaciono fatos, situações e interpretações. Cito com grande frequência o cenário internacional, especialmente porque o Brasil tem ocupado papel de destaque no palco das nações. E porque isto é uma via de mão dupla. Muito da porcaria mundial tem endereço em nossas grandes cidades, como o tráfico, o turismo sexual, a lavagem de dinheiro, o contrabando de armas, as drogas sintéticas — estas últimas prometem ser o must da próxima década. Sem falar das conexões com o terrorismo que se estabelecem em nossas fronteiras. Em alguns momentos, dou opiniões próprias. Depois de mais de 25 anos envolvido na questão, me considero uma fonte original de informações e me dou o direito de expor visões particulares do problema, quase pessoais. No entanto, o tempo todo procuro corroborar essas opiniões com documentos, noticiário e publicações. Esta não é uma obra de ficção. Todas as pessoas citadas e todos os acontecimentos descritos são verdadeiros. Fiz questão de detalhar cada fonte de informação, de modo a facilitar a pesquisa a quem quiser aprofundar ainda mais o assunto. Para efeitos de delimitar o campo de pesquisas, numa história que não para, estabeleci, inicialmente, a data de 31 de dezembro de 2008, por razões técnicas. Mas os acontecimentos me obrigaram a ampliar o período para quase todo o ano de 2009. Foi impossível resistir à premência dos fatos. Nesse meio- tempo, ocorreram fatos novos de extrema importância, como a eleição do primeiro negro para a presidência dos Estados Unidos, Barack Hussein Obama, gerador de enormes implicações sobre a economia e a política mundiais, substituindo oito anos de política conservadora na maior potência mundial. Além disso, Israel iniciou uma nova guerra nos territórios palestinos, de uma violência 1 NA MANHÃ DO SÁBADO 17 DE outubro de 2009, o capitão Marcelo Vaz de Souza, 38 anos, acordou bem cedo. Pouco antes do amanhecer já estava de pé. Em seus dez anos de carreira militar, acostumou-se a sair da cama silenciosamente, para não acordar a mulher e filhos. Tomou um copo de suco de laranja, daqueles de supermercado, que sempre mantinha na geladeira do apartamento na zona norte do Rio. Depois esquentou no micro-ondas uma caneca do café que a mulher deixara pronto na noite anterior. Ele ficou aqueles quarenta intermináveis segundos olhando para a caneca que rodava dentro do aparelho iluminado. Passados aqueles malditos segundos, o micro-ondas produziu uma série de tingues-tingues-tingues-tingues eletrônicos e a frase “Bom apetite... Bom apetite...” surgiu no display que fica na frente do aparelho. O equipamento, um dos prodígios da vida doméstica moderna, não custa mais do que uns 200 reais hoje em dia. Mas a pequena geringonça eletrônica, presente em quase todos os lares brasileiros, compôs, naquela manhã de sábado, o réquiem da tripulação do capitão Marcelo Vaz de Souza, piloto de helicóptero da PM, com mais de mil horas de voo e cursos de pouso de emergência. O militar saiu de casa minutos depois. Todas essas pessoas que saem de casa antes do nascer do dia tomam banho de véspera e deixam a roupa pronta. (É uma forma de poupar a família de barulhos extras ao amanhecer.) Usava tênis sem meias, calça jeans e uma camisa bem solta, que ajudava a disfarçar a pistola semiautomática 9mm que portava presa ao cinto, no lado direito do quadril. Treze balas no carregador e uma na agulha, já preparada para disparar. No lado esquerdo da cintura, um carregador extra com mais treze projéteis hollow point, munição de alto impacto. Em serviço, Marcelo estava sempre armado. No porta- malas do carro usado do militar — um homem dedicado ao serviço público e muito mal pago, como quase todos, que não ganharia por mês, com todos os benefícios, mais do que 4 mil reais — estava a farda de combate de Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, suas botas pesadas, colete à prova de balas, traje camuflado em tons de verde e cinza e o macacão de pilotagem. É assim que o comandante Marcelo Vaz é descrito por seus companheiros do Grupamento Aéreo e Marítimo da PM (GAM), grupo de busca e salvamento ao qual estava lotado. Entre a casa dele e o heliporto da polícia, ao lado do Estádio de Remo da Lagoa Rodrigo de Freitas, zona sul da cidade, levou pouco mais de meia hora. Lá iria se encontrar com a tripulação do helicóptero que comandava: o copiloto Marcelo Carvalho Mendes, os cabos Izo Gomes Patrício e Anderson Fernandes dos Santos e os policiais militares Marcos Stadler Macedo e Ediney Canazaro de Oliveira. O aparelho, um modelo Fênix 2 de fabricação nacional [Esquilo, fabricado pela Helibrás], tinha capacidade para até oito pessoas, destinado a manobras rápidas para localização e resgate. Podia voar muito próximo ao solo com grande velocidade. Mas não era um helicóptero de combate, inclusive não possuía blindagem em toda a fuselagem, apenas no fundo. Mas tinha suportes para fuzis automáticos calibre 7.62 em cada lado do aparelho, que, com as portas abertas, ficavam pendurados para fora. O capitão Marcelo Vaz comandava o aparelho prefixo PR-EPM. O helicóptero, comprado pelo governo do Estado ao preço normal de mercado, em torno de 2,5 milhões de dólares, era relativamente novo e em muito bom estado de conservação. Apesar de ser utilizado em operações armadas contra o tráfico de drogas nas favelas do Rio, o que contraria suas atribuições originais, apenas de resgate, não tinha proteção contra munição de grosso calibre. E nas áreas conflagradas da cidade sobram os grossos calibres. O capitão Marcelo Vaz e seus tripulantes foram enviados a uma missão quase suicida. O tingues-tingues-tingues-tingues do forno de micro-ondas seriam substituídos pelo touf-touf-touf-touf de uma metralhadora antiaérea calibre 50mm, fabricada durante a Segunda Guerra Mundial, aí pelos anos 1940. Uma arma como essa, provavelmente uma Browning M9117 (Colt Industries Co.), desenvolvida pelo engenheiro militar americano John Browning, pesa mais ou menos 14 quilos e tem um metro e dez de comprimento. A munição se desloca pelo ar a 850 metros por segundo (bem mais do que a velocidade do som, o que significa que chega ao alvo antes do barulho do disparo; tem alcance útil e mortal de até 2 quilômetros) e produz um choque que corresponde a 1,5 tonelada sobre 2 centímetros quadrados. Atravessa paredes, destrói veículos, derruba helicópteros e aviões. Em vez de carregador de munição, funciona com uma esteira flexível de balas, podendo disparar entre 400 e 600 tiros por minuto. Foi esse inferno que desabou sobre o helicóptero da PM do Rio às 10 horas da manhã do sábado, 17 de outubro de 2009. Desde o dia 14, portanto quase 68 horas antes da tragédia do PR-EPM, a divisão de inteligência da polícia carioca sabia que iria acontecer uma grande batalha entre as facções do crime organizado do Rio. Objetivo: o Comando Vermelho pretendia atacar os pontos de vendas de drogas do Terceiro Comando (3C) e da ADA (Amigos dos Amigos) no Morro dos Macacos e arredores, entre os bairros da Tijuca, Vila Isabel e Grajaú. A região é conhecida por um respeitável volume de negócios envolvendo cocaína e maconha — e também o crack, destinado à população local de baixa renda, principalmente favelados. A polícia imagina (e apenas imagina) que renderia algo semelhante a 4 milhões de reais por mês, um dos principais celeiros de negociação de drogas para a pequena burguesia carioca, que, em última análise, constitui o cerne do mercado, o principal incentivador indireto do crime organizado na cidade. As forças policiais tinham informações de uma grande mobilização do “exército vermelho”, a tropa de choque do CV. Havia registros de roubos, ou “retomadas”, de inúmeros veículos na área, que serviriam para conduzir o grupo armado do Comando Vermelho para o ataque ao Morro dos Macacos. Eram micro-ônibus, peruas do transporte ilegal de passageiros nas áreas das favelas, carros particulares e várias outras formas de transportes, como motos roubadas. A força atacante, ainda segundo a inteligência da polícia, teria reunido entre 100 e 200 homens armados. Tratava-se, efetivamente, de um dos maiores confrontos e até a árabe Al-Jazira se perguntavam se essa cidade estava em condições de sediar um evento esportivo mundial. Além do mais, o Brasil será a sede da Copa do Mundo de 2014. O governador Sérgio Cabral, o prefeito do Rio, Eduardo Paes, e até o presidente Lula responderam que era “um fato isolado”, que certamente não comprometeria os eventos internacionais. As instituições internacionais responsáveis pelos eventos, como o COI (Comitê Olímpico Internacional) e a Fifa (Federação Internacional de Futebol) secundaram a opinião dos nossos governantes. Todos acreditavam piamente que o Brasil era maior do que os episódios desencadeados pela luta de facções criminosas em busca de hegemonia do tráfico de drogas. Alguns dos figurões do cenário mundial chegaram a lembrar que os ataques do Setembro Negro, feitos por uma facção radical palestina contra a delegação israelense nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972, quando onze atletas foram sequestrados e mortos — não haviam abalado os resultados da competição em escala global. Tudo certo. A batalha do Morro dos Macacos não iria impedir que o Brasil e o Rio de Janeiro fossem os cenários maravilhosos das competições. E todos concordaram com isso. E o assunto foi rapidamente desaparecendo dos noticiários nacionais e internacionais. Uma semana depois, ninguém se lembrava mais do que tinha acontecido. No entanto, no campo de batalha das favelas da zona norte do Rio, inúmeras famílias choravam seus mortos. Além da tripulação do comandante Marcelo Vaz, outros dez brasileiros tinham morrido, só no primeiro dia. Os combates continuaram por duas semanas, resultando em um número ainda não determinado de mortos, talvez vinte, de acordo com o noticiário desencontrado de jornais, rádios e emissoras de televisão. Os feridos, ninguém sabe quantos foram. Dezenas de milhares de crianças ficaram sem aulas nas escolas públicas, fechadas pelo risco de mortes, atestado pelas centenas de balas que atingiram suas paredes. A batalha do Morro dos Macacos é só um episódio na luta constante entre as facções criminosas que disputam o controle do tráfico de drogas no Rio de Janeiro, um processo que se espalha lenta e constantemente por todo o país. Trata-se de um confronto que já assumiu contornos de uma guerra civil. Já matamos mais jovens no Brasil, nos últimos 25 anos, do que em meio século de guerra civil na Colômbia. As facções criminosas, especialmente o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (o PCC paulista), geram exemplos que vão se consolidando em todo o território brasileiro, com articulações internacionais e multinacionais. Já temos o Comando Vermelho Nordeste (CV-Nordeste), que cuida da plantação de maconha nos estados nordestinos. Já temos o PCC-Interior, mais conhecido como a Conexão Caipira, que trata do tráfico de drogas no interior de São Paulo e Mato Grosso. Já temos o CRBC, o Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade, que domina vários presídios e ações no exterior das cadeias. Inclusive, na Bahia, existe a OPA, a Organização Plataforma Armada, que controla o tráfico em Salvador e periferia. Existe o Terceiro Comando da Capital (o 3CC), dissidência do PCC. Há uma nova organização no presídio de Guarulhos, arredores da capital paulista, chamada S.A. (Sociedade Anônima), que reúne presos independentes das demais organizações. Falta mais o quê? Antes da “batalha do Morro dos Macacos”, quando o Comando Vermelho se lançou numa conquista de novos territórios do controle do tráfico de drogas, o governo do Rio de Janeiro já havia decretado um estado de guerra contra o crime organizado. Foi durante um episódio em que um menino de pouca idade, vítima inocente do clima de violência na cidade do Rio, se tornou um símbolo nacional da reação contra a escalada de criminalidade que assolava o país. O nome desse garoto é João Hélio. Morreu aos seis anos de idade. 2 ÀS NOVE HORAS DA noite de 7 de fevereiro de 2007, uma quarta-feira escaldante no verão carioca, a comerciante Rosa Cristina Fernandes Vieites voltava para casa com seus dois filhos, depois de ter participado de um culto religioso. Dirigia um carro popular, dos mais baratos. Ao lado dela, no banco do carona, estava Aline, de 13 anos. No banco de trás, João Hélio, de 6. Ao parar num sinal de trânsito na Rua João Vicente, em Oswaldo Cruz, zona norte carioca, foi atacada por dois assaltantes, um deles menor de idade, ambos empunhando armas de brinquedo. Além desses assaltantes, outros três davam cobertura em um táxi, que seguia atrás. Rosa e Aline foram arrancadas de dentro do carro. Não tiveram tempo de tirar o menino João Hélio, uma criança que exigia cuidados especiais, tinha dificuldades para falar e problemas motores. Rosa ainda abriu a porta de trás do Corsa, numa tentativa desesperada de puxar o garoto. Foi quando os bandidos arrancaram. Preso pelo cinto de segurança, João ficou pendurado, com metade do corpo fora do carro. Arrastado por quase cinco quilômetros, com o carro em disparada, João teve uma morte horrível. Pedaços do corpo, inclusive a cabeça e os dedos, ficaram espalhados pelo asfalto, ao longo da fuga. Nas ruas, as pessoas gritavam, os motoristas buzinavam freneticamente. Um rapaz numa motocicleta chegou a se aproximar dos assaltantes. E foi espantado por uma das pistolas de brinquedo. Os criminosos só pararam quando o carro bateu. (Eles foram presos no dia seguinte; o menor, denunciado pelo próprio pai.) A polícia recolheu o que sobrou de João Hélio relevadas. O jovem governador optou pelo confronto aberto desde o início de seu mandato. Talvez não tenha se dado conta da radicalidade de sua escolha. O Brasil teve duas políticas de segurança bem definidas: a do período getulista (1930 a 1945), especialmente no Estado Novo, e a Lei de Segurança Nacional dos governos militares (1964 a 1985). Ambas, contudo, estavam voltadas para a proteção do Estado e do Capital, pouco interessadas no brasileiro comum. Apoiadas na violência policial-militar, na tortura e no assassinato dos opositores, as políticas de segurança dos períodos ditatoriais terminaram, por tabela, inibindo o crime. Hoje, quando se trata de proteger o cidadão, não há projetos claros. Com certeza nossos governantes e legisladores pouco compreendem do fenômeno do crime organizado moderno. Continuam construindo presídios, sem reformar as leis, ainda acreditando na repressão pura e simples. Na visão deles, “é só um caso de polícia mais eficiente”. Claro que não é! Desde a Guerra do Paraguai, há um século e meio, e da declaração de hostilidades de Getúlio Vargas contra a Alemanha nazista (1943), as palavras do governador Sérgio Cabral foram as primeiras de um mandatário brasileiro a admitir a conflagração instalada em nossa sociedade. “Estamos em guerra.” E não parece apenas uma figura de linguagem. O governador não disse como iria “ganhar a guerra”. Mas deixou bem claro: o conflito entre bandos armados e a autoridade pública, com a “população civil” no meio, ultrapassara os limites do aceitável. A manifestação do político aconteceu mais ou menos 12 horas depois que os traficantes destruíram a viatura da Polícia Militar que guardava o pequeno altar de João Hélio. O motivo do segundo crime, além de desafiar o governo, pode ter sido a arma de guerra que os policiais tinham no carro. O FAL é valioso no mundo do crime, onde chega a ser negociado por 2.500 dólares a unidade. Capturá-lo é um orgulho para os bandidos. Uma “retomada”, como se diz entre as organizações criminosas. Não é para menos. Conhecido como “fuzil automático ligeiro”, de origem belga, fabricado pela Imbel (Indústria de Material Bélico) na cidade de Itajubá, entre Minas Gerais e Rio de Janeiro, está na lista das melhores armas de infantaria do mundo (já foi considerada a melhor) e é temido pelo estrago que causa ao atingir o alvo. Hoje em dia, os ferimentos provocados pelo FAL, segundo os controversos códigos internacionais que regem os conflitos, são tidos como exagerados. Um tiro em uma perna ou um braço, frequentemente, resulta em amputação. Tomado da PM durante os combates nas favelas, ou roubado dos quartéis, o FAL é figurinha carimbada no submundo. A bala revestida de aço (full metal jacket, no jargão militar) viaja a quase 400 metros por segundo e produz um impacto correspondente a 600 quilos contra um centímetro quadrado. É devastador. Provavelmente, Marco Antônio e Marcos André morreram por ele. Os “soldados do tráfico”, especialmente os mais jovens e afoitos, costumam subir na hierarquia do bando quando “retomam” uma arma como essa. Ganham respeito e — às vezes — o privilégio de portá-las. Outras armas envolvidas na “guerra civil” brasileira (o AR-15 americano, o AK-47 de origem russa, o HK-G3 alemão, o Rugger, também alemão, o Galil-7.62 israelense, as metralhadoras Uzi) são contrabandeadas para dentro do país, geralmente pelos exportadores de drogas. Mas possuir um FAL é uma questão de status. Quase uma questão de honra. O fuzil só pode ser obtido por meio de uma ação direta contra o inimigo. Vale qualquer esforço. Capturar um ou mais dos fuzis FAL é motivo de festa entre os bandos armados. Uma informação para se pensar: hoje as organizações criminosas já possuem oficinas de fabricação de réplicas dos fuzis e metralhadoras, copiadas a partir dos originais estrangeiros — e também fabricam granadas e munição. Os traficantes pagam às crianças das áreas conflagradas para recolher as centenas de cápsulas de balas que ficam espalhadas pelo chão após os confrontos, que serão limpas e recarregadas pelos criminosos. O trabalho é realizado por técnicos armeiros que, por várias razões, deixaram as polícias militares e as Forças Armadas, principalmente em busca de melhores benefícios. 3 NA SEXTA-FEIRA 3 DE março de 2006, sete homens usando uniformes camuflados e toucas ninjas atacaram o Estabelecimento Central do Exército, em São Cristovão, zona norte do Rio. Roubaram dez fuzis FAL e uma pistola. Renderam os sentinelas do quartel e fugiram sem disparar um único tiro. Com os brios feridos, o Comando Militar do Leste reagiu dois dias depois. Centenas de soldados e oficiais deixaram a tranquilidade da caserna e ocuparam várias favelas nas áreas próximas ao local do assalto. Até blindados e helicópteros foram empregados para recuperar as armas, que haviam sido levadas por traficantes do Comando Vermelho (CV). A operação militar, que durou 11 dias, causou grandes prejuízos ao comércio de drogas, na medida em que a presença das tropas inibiu a ida dos compradores às favelas. Em ocasiões como essa, o preço da droga sobe, o consumo se retrai. A coisa toda acabou, segundo a imprensa, num acordo em que os bandidos se comprometiam a devolver os fuzis. A pressão para resolver o problema com o Exército teria partido de líderes do Comando Vermelho que estavam encarcerados, gente que mantém controle sobre a organização criminosa mesmo atrás das grades, usando telefones celulares clandestinos de dentro das celas. Os três principais dirigentes da organização são: Isaías do Borel (Isaías Costa Rodrigues), traficante, condenado a dezenas de anos de prisão, um dos maiores atacadistas de drogas do Rio, descrito pela polícia como “negociador” do tráfico, ou seja, responsável pelos critérios de distribuição de drogas entre os grupos aliados; armamento para o Comando Vermelho, a preços em torno de 7 mil dólares a unidade, alimentando a violência entre o Poder Público e os bandos armados. Por ocasião dessa apreensão, a polícia informava que havia ocorrido uma supervalorização no preço do armamento militar no submundo. Fuzis automáticos modernos e metralhadoras calibre 30 milímetros, fabricadas durante a Segunda Guerra, teriam alcançado preços entre US$ 15 mil e US$ 20 mil. O único paralelo histórico de um roubo de armas militares de tais proporções, no Brasil, ocorreu quarenta anos antes, em 1969. Foi quando o capitão Carlos Lamarca desertou do 4º Regimento de Infantaria do Exército, em Quitaúna, Osasco, para ingressar na luta armada contra o regime militar. Lamarca, com ajuda de outros militares, entre eles o sargento Darcy Rodrigues, o cabo Mariani e o soldado Roberto Zanirato, deixou o quartel a bordo de uma Kombi carregada com setenta fuzis FAL, pistolas e dezenas de milhares de cartuchos calibre 7.62. Sobre o capitão e seus companheiros desabou a fúria da ditadura. Lamarca foi o único brasileiro, na história da República, a ser declarado oficialmente “traidor da pátria”. Antes dele, só José Joaquim da Silva Xavier, o Tiradentes, durante a Inconfidência Mineira (1789). Lamarca entrou para a organização clandestina de esquerda Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Mandou a mulher, Maria Pavan, e os dois filhos para Cuba, antes de montar um centro de treinamento de guerrilhas na região do Vale do Ribeira, a área mais pobre do interior de São Paulo, com amplas áreas florestais e rios. Foi cercado por 1.500 homens das Forças Armadas e da polícia militar estadual, em abril de 1970. Tanques, aviões e helicópteros foram empregados contra o grupo, que não teria mais de vinte ou trinta integrantes. Mas “o capitão da guerrilha” rompeu o cerco militar em 10 de maio do mesmo ano e desapareceu. Envolveu-se em assaltos a banco em São Paulo e no Rio e comandou o sequestro do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher, que seria trocado por presos políticos. O governo militar considerava a captura de Carlos Lamarca uma questão de honra. Ele terminou sendo localizado em Brotas de Macaúbas, no sertão baiano, onde existe hoje o município de Ipupiara. Foi fuzilado pelos militares em 17 de setembro de 1971, junto com o “companheiro Zequinha” (o metalúrgico José Campos Barreto), também integrante da VPR. No local onde o militar tombou foi inaugurada, em 2007, a praça Capitão Carlos Lamarca. Uma estátua, um anfiteatro e uma fonte luminosa, em pleno sertão, marcam o lugar. O dia 17 de setembro foi declarado feriado municipal. (Para maiores detalhes, ver O capitão da guerrilha, de Emiliano José e Oldack Miranda, Global, 1986; Comando Vermelho — A história secreta do crime organizado, de Carlos Amorim, Record, 1994; A ditadura escancarada, de Elio Gaspari, Companhia das Letras, 2002.) Prender ou matar os fora da lei não basta. Mesmo depois de todo o esforço para deter e julgar os criminosos, a atividade deles continua eficiente por trás das grades. Negociar diretamente com os criminosos é uma prática usual dos governos e das polícias. Durante o chamado “levante do PCC”, quando a organização atacou prédios públicos e matou agentes da lei, como veremos mais adiante, o governo de São Paulo disponibilizou um helicóptero para que uma “comissão de negociação” fosse aos presídios do interior do estado se encontrar com líderes do PCC, a fim de cessar a onda de violência iniciada em maio de 2006. Dentro das cadeias brasileiras há alguns itens que os presos organizados não abrem mão e que lhes permitem continuar em contato com o mundo exterior, comandando seus negócios e até negociando com as autoridades públicas. A comunicação por telefones celulares é o item principal. Pode-se pagar até 5 mil reais por aparelho, que chega às celas por intermédio dos funcionários dos presídios e de advogados e parentes. Nas cadeias onde há bloqueadores de celulares, os detentos usam de um expediente simples para burlar os sistemas eletrônicos de interferência nas chamadas: provocam um pequeno curto-circuito numa tomada, por exemplo, ou numa lâmpada, gerando queda da energia. O conserto demora uns 15 minutos, talvez meia hora, tempo que dedicam a transmitir suas mensagens. Utilizam celulares pré-pagos, pouco controlados pelas operadoras. Ou aparelhos clonados de cidadãos comuns. Um dos sequestradores do empresário Abílio Diniz, dono do grupo Pão de Açúcar, ocorrido em 11 de dezembro de 1989, foi o canadense David Spencer, ex- militante de esquerda ligado ao MIR (o Movimento de Esquerda Revolucionária do Chile) e à FMLN (Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional), de El Salvador. Spencer esteve encarcerado no presídio do Carandiru, em São Paulo, depois de uma condenação a 28 anos de prisão por causa do sequestro. Aos 26 anos de idade, era estudante universitário no Canadá e um especialista em comunicações. Na cadeia, ensinou aos bandidos do PCC como construir centrais telefônicas que não seriam detectadas pelas autoridades. Por meio das “centrais telefônicas do PCC”, os criminosos organizados estabeleceram uma extensa rede de comunicações entre as quadrilhas. Organizaram rebeliões e praticaram inúmeras extorsões e falsos sequestros via celulares. Segundo a polícia paulista, chegaram a ocorrer cem casos por dia. A maioria das ligações vinha de presídios cariocas, de galerias controladas pelo Comando Vermelho. Eu mesmo recebi uma dessas ligações. Uma garota, aos prantos, se passava por uma das minhas filhas: — Papai — gritava a jovem ao telefone —, fui assaltada. Eles me colocaram no porta-malas do carro... Agora você tem que vir me soltar... Como as minhas filhas não moravam mais em São Paulo, comecei a rir. E a ligação foi interrompida repentinamente. No identificador de chamadas do meu aparelho aparecia: “número desconhecido”. Esta — segundo a polícia paulista — foi uma contribuição de David Spencer à bandidagem. Spencer e a mulher dele, a estudante Christine Lamont, chegaram ao Brasil em julho de 1989, cinco meses antes do sequestro de Abílio Diniz. Usando passaportes falsos e cartas de recomendação de universidades canadenses, também fajutas, alugaram duas casas em São Paulo. Uma delas, no bairro do Jabaquara, zona sul da capital, foi o último cativeiro do empresário, localizado pela polícia poucos dias após o sequestro. Spencer e Christine ficaram presos até 1996. Um movimento internacional de solidariedade sensibilizou vários políticos, intelectuais e jornalistas brasileiros, entre eles o senador Eduardo Suplicy (PT-SP) e autoridades governamentais. Mas as opiniões estavam divididas. O governo canadense exerceu forte pressão sobre os ex- presidentes Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, para que Spencer e Christine fossem mandados de volta. Itamar Franco chegou a comentar com os repórteres: “Será que esses canadenses”, referindo-se ao primeiro-ministro Jean Cherétien, que o encontrou na Cúpula das Américas, em Miami, “não têm nada mais para fazer?” Itamar ficou irritado porque o premiê canadense usou o liderança do crime organizado. Há quem comente que Cacciola melhorou muito a vida de seus companheiros de prisão, encomendando comida de ótimos restaurantes, garantindo-lhes bom tratamento atrás das grades. O último advogado conhecido do ex-banqueiro, Carlos Ely Eluf, negou veementemente a acusação de que seu cliente encomendava lagosta para suas refeições na cadeia. Chegou a dizer que Cacciola “é alérgico a frutos do mar”. O sistema penal prometeu “uma investigação rigorosa” da denúncia. Até encerrar este livro, não li uma única linha sobre resultados da investigação rigorosa. Outro ponto importante para as organizações criminosas dentro dos presídios é o fornecimento regular de remédios. Há uma quantidade enorme de presos doentes, alguns crônicos. E o sistema penal só oferece atendimento ambulatorial de emergência. Quando o caso é grave, a única alternativa é transferir o detento para hospitais públicos, mas isto requer escolta policial e sempre há a possibilidade de um resgate por parte dos cúmplices ainda soltos. Manter uma “farmácia paralela” na cadeia sempre foi um modo de obter apoio e respeito da massa carcerária. Existem muitos internos que são pacientes de doenças incuráveis, como Aids, diabetes, problemas renais e cardíacos. A higiene precária provoca infecções de pele, no couro cabeludo e outros males. Desde os tempos da primeira organização do Comando Vermelho, no Instituto Penal Cândido Mendes, Ilha Grande, início dos anos 1980, a liderança dos presos já sabia que um bom estoque de remédios ajudava a recrutar novos membros para a organização. O CV, principalmente, “adotava” os presos mais antigos, abandonados pelas famílias. Estes se tornavam “robôs”, aqueles que assumem os crimes cometidos por outros dentro do sistema penal, porque já não têm mais nada a perder. Remédios, drogas, armas e cigarros são importantes moedas de troca no sistema. Por esses produtos essenciais, incluindo cobertores, escovas, pasta de dentes e papel higiênico, muita gente mata e morre atrás das grades. Aliás, o surgimento das facções criminosas acabou com a maioria dos crimes avulsos nas cadeias. A cobrança de “pedágio” entre as galerias, o ataque sexual, o roubo de utensílios pessoais passaram a ser punidos com a morte. “O inimigo está fora das celas, aqui somos todos irmãos e companheiros”, diziam os primeiros documentos do Comando Vermelho. O PCC também adotou esse critério, aumentando seu respeito junto à massa carcerária. O mercado negro das armas no sistema penal é ainda mais complicado. Os presos costumam arrancar pedaços de ferro das grades e do revestimento das paredes para fabricar os estoques, facas improvisadas. Colheres raspadas no chão de cimento também viram pontiagudos instrumentos de ataque e defesa. Alguns, habilidosos, transformam barras de sabão em simulacros de revólveres e pistolas, que depois são pintados de preto, para ameaçar desafetos e guardas. Mas há também o contrabando de armas de verdade, introduzidas na cadeia peça por peça. Podem chegar ao condenado dentro de pães e bolos, na boca ou na vagina das companheiras, durante as visitas. Peça por peça, num processo de contrabando que pode durar meses para montar uma mesma arma. Ou então pagam aos funcionários da cadeia uma boa grana para receber de uma só vez uma arma inteira. Isto, no entanto, é só para os chefões. Na única rebelião ocorrida no presídio de segurança Bangu 1, no Rio, em 11 de setembro de 2002, quando o Comando Vermelho acertou contas com os inimigos, havia várias armas dentro das celas. Diz a lenda que um fuzil automático americano AR-15 foi usado na batalha em que foi morto o principal inimigo do Comando Vermelho, o traficante Uê (Ernaldo Pinto de Medeiros), comandante do Terceiro Comando. O AR-15 é uma arma poderosa, de uso militar, fabricada pela Armalite, divisão da Colt Industries, responsável pelo arsenal de infantaria do Exército dos Estados Unidos. Mede quase 1 metro de comprimento e pesa cerca de 5,5 quilos. Usa munição calibre 7.62 padrão Otan ou 223 Remington, esta última de alta velocidade e impacto. Estaria mesmo dentro de Bangu 1? O fuzil M-16 (AR- 15-A1) se divide em 16 partes. A maior delas, o cano, tem 60 centímetros de comprimento. Estaria mesmo lá? E a munição, full metal jacket: como entrou na cadeia? Além de todos esses detalhes, a rebelião de Bangu 1 ficou famosa por ter ocorrido na data de um ano dos atentados da al-Qaeda contra as Torres Gêmeas, em Nova York, e porque uma ligação telefônica de Fernandinho Beira-Mar para seus cúmplices fora da cadeia, gravada pela polícia, informava: — Tá tudo dominado. As duas torres caíram. As “duas torres” eram Uê, assassinado, e Celsinho da Vila Vintém (Celso Luís Rodrigues), que se rendeu ao CV. Treze dias após a rebelião, a polícia prendeu o agente penitenciário Marcus Vinícius Tavares Gavião, o Playboy, acusado de ter vendido, por 200 mil reais, três pistolas automáticas para os homens do Comando Vermelho. A negociação teria sido feita por Marcelo PQD, o ex- paraquedista do Exército Marcelo Medeiros (um dos auxiliares de Fernandinho Beira-Mar, segundo o delegado Ricardo Hallak, da Divisão de Repressão ao Crime Organizado — a Draco). Dos 25 agentes penitenciários de Bangu 1, 21 deles acusaram Playboy de receber dinheiro do CV para entregar as pistolas. Chegaram a dizer que o negócio valeu 400 mil reais para o agente, incluindo as armas e cópias das chaves de todas as galerias. No dia da rebelião, Playboy faltou ao trabalho. (Para mais detalhes sobre o caso, leia a boa reportagem de Vera Araújo, repórter de O Globo, publicada na Época Online de 24 de setembro de 2002.) Já sobre o tal AR-15, parece que é lenda mesmo. Só que os presos organizados, além de comida e acertos de contas, também têm outras preocupações. Têm o problema da diversão, que ninguém é de ferro. Contratação de mulheres para entreter os presos, torneios de futebol com prêmios e churrascos. Tudo, é claro, com dinheiro dos encarcerados. E com o beneplácito dos carcereiros. Um guarda de cadeia, incluindo benefícios, ganha pouco mais de 2 mil reais por mês. Um traficante ganha centenas de milhares — e até milhões. (O movimento de drogas controlado por Uê era estimado pela Polícia Federal em 10 milhões de dólares ao ano. Com outros negócios e aplicações, mais de 1 milhão de dólares por mês.) Essa relação entre o bandido rico e o funcionário pobre do sistema penal está na base dos escândalos de corrupção e de violência interna nos presídios. Certa vez, quando eu escrevia o primeiro livro desta trilogia, Comando Vermelho — A história secreta do crime organizado, entrevistei um sargento da Polícia Militar do Rio de Janeiro, cujo nome não posso declinar, um dos responsáveis pela Ocupados informa que 467 crianças e adolescentes foram mortos por armas de fogo em Israel e na Palestina entre dezembro de 1987 e novembro de 2001. Aquela é uma região do mundo assolada por guerras alternadas desde 1948. No mesmo período pesquisado pelos israelenses, só no Rio de Janeiro, 3.937 jovens perderam a vida em confrontos armados. A matança carioca, em igual espaço de tempo, foi oito vezes maior. É preciso notar ainda que estes números se referem a um momento em que a violência no Brasil não tinha alcançado os picos de agressividade que marcam o período 2001-2008. (A íntegra desses documentos, mais as estatísticas do Children in Organized Armed Violence — COAV —, podem ser encontradas no site do projeto Viva Rio.) A cada ano, cerca de 150 mil brasileiros morrem de causas não naturais. São acidentes de trânsito, incêndios, desabamentos, enchentes, suicídios, obras públicas que caem sobre as pessoas (como no caso do metrô estação Pinheiros, São Paulo, em 2007), ou acidentes aéreos (casos como os da Gol e da TAM, em um espaço de dez meses, entre 2006 e 2007, fizeram mais de trezentas vítimas). Mas o que salta aos olhos são os 56 mil homicídios por ano (quase 40% das mortes violentas), concentrados entre os 12 e os 29 anos de idade. Um verdadeiro holocausto da nossa juventude. Metade dessas mortes a bala são consideradas execuções sumárias, em consequência de disputas no tráfico de drogas e acertos de conta entre gangues. Há, também, muitos casos de fuzilamentos sumários praticados pelas polícias. Na edição de 25 de fevereiro de 2009, a revista Veja (edição online) publicou matéria informando que o Departamento de Estado norte-americano havia divulgado um relatório denunciando “mortes ilegais no Brasil”. Segue um trecho da reportagem: Segundo o relatório, as mortes ilegais provocadas por policiais “foram generalizadas no país”. Só no Rio de Janeiro, de janeiro a setembro de 2008, 911 pessoas foram mortas. Embora o número seja 12% inferior ao registrado no mesmo período de 2007, ele ainda preocupa, de acordo com o documento. (...) O Departamento de Estado explica que, “em muitos casos”, os policiais empregaram “força letal de forma indiscriminada durante apreensões e mataram civis, apesar da ausência de risco para eles”. Além disso, o relatório aponta que as mortes de civis foram precedidas de “grave perseguição ou tortura por parte dos agentes”. Como o Brasil não investiga assassinatos de gente pobre, aqueles que não saem nos jornais e na televisão, não há como garantir a exata veracidade de tais estatísticas. Os números podem ser ainda mais escabrosos, até porque muitos crimes de morte são maquiados nas informações oficiais. Aparecem como “de causa desconhecida”. No entanto — e nisso as estatísticas oficiais são taxativas —, sabemos: só 1% dos crimes cometidos no território nacional resultam em condenações judiciais. É um desempenho que nos coloca sob críticas do mundo inteiro. Matamos impunemente. A possibilidade de um homicida conhecer as grades brasileiras é quase nula. Matematicamente, improvável. Isso nos conduz — ou nos reduz — ao porão da civilização. A pesquisadora Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, do Rio, ex-diretora do Departamento do Sistema Penitenciário (Desipe) do Estado, declarou à rádio CBN que “só 4% dos crimes de homicídio no Rio são esclarecidos”, numa demonstração de “quase total impotência da polícia”. Na Folha de 21 de janeiro de 2009, o secretário-geral do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Álvaro Ciarlini, desabafava: a situação da Justiça no país “é alarmante”. Segundo ele — e esta não é uma pessoa qualquer —, “60% das ações que chegam ao Judiciário ficam paradas”. (Na minha opinião, a Folha se transformou no jornal com a melhor pauta do país, justamente porque coloca o dedo nessas feridas.) Acompanhe um trecho da reportagem de Felipe Seligman, da sucursal do jornal em Brasília: Dados inéditos sobre o Judiciário brasileiro revelam que tramitavam 68,2 milhões de processos em 2007, ou uma ação para cada três brasileiros. A grande quantidade, aliada à falta de planejamento, resulta no seguinte: 60% das causas não são analisadas no ano em que são protocoladas. Acredite. Quase 70 milhões de processos se arrastando pelos corredores da Justiça. Um exemplo dramático: dos parentes das 55 vítimas fatais do naufrágio do Bateau Mouche, ocorrido na praia de Copacabana na noite de Ano-Novo de 1988, 21 anos atrás, muitos deles continuam sem indenização até hoje. E mais: no caso do desabamento do edifício Palace 2, na Barra da Tijuca, em 22 de fevereiro de 1998 (um sábado de Carnaval), oito pessoas morreram e cem famílias perderam tudo o que tinham; mas até agora, 11 anos depois, metade dos prejudicados não teve suas reivindicações atendidas. O empresário Sérgio Naya, dono da construtora responsável, já morreu, vítima de enfarte, e o caso continua arrastando suas correntes pelos porões do Judiciário. A partir desses exemplos, que envolvem pessoas com alguma posse, podemos imaginar o que acontece com os pobres, que sempre dizem confiar na Justiça. Aliás, só os pobres dizem isso. Os ricos acreditam mesmo é no dinheiro e no poder de seus engravatados advogados. O estado de “guerra civil não declarada” no Brasil é amplamente reconhecido por pesquisadores de todo o mundo. Entre nós, jornalistas, historiadores e sociólogos, já estamos todos convencidos de que não há outra forma de classificar o que está acontecendo nas grandes cidades do país. Recentemente, uma nova publicação trouxe mais argumentos para o entendimento do tema. Um militar de carreira do Exército brasileiro, Alessandro Visacro, estudioso de “terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da História”, ofereceu aos leitores um livro de 380 páginas (Guerra irregular, Contexto, 2009) recheadas de informações fundamentais. No capítulo “Brasil: a guerra oculta”, o comandante da 3ª Companhia das Forças Especiais, subordinada ao Comando Militar da Amazônia, escreveu: O poder público não dispõe de políticas e recursos orçamentários que lhe permitam combater efetivamente a violência em sua origem. As corporações policiais não acompanham a evolução organizacional e tecnológica do tráfico
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