Baixe FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso aula inaugural no collège de France e outras Notas de aula em PDF para Literatura, somente na Docsity! LEITURAS oo FOLISÓFICAS
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A ordem do discurso
Michel Foucault
. Sete lições sobre o ser
Jacques Maritain
. Aristóteles no século XX
Enrico Berti
. As razões de Aristóteles
Enrico Berti
MICHEL FOUCAULT
A ORDEM DO DISCURSO
ÁULA INAUGURAL NO COLLEGE DE FRANCE,
PRONUNCIADA EM 2 DE DEZEMBRO DE 1970
Tradução:
Laura Fraga de Almeida Sampaio
Edições Loyola
Título original:
Lordve dy discours. Leçon inaugurale au College de France
prononcée le 2 dêcembre 1970
O Francine Fruchaud e Denys Foucault, Paris
Publicado na França por Éditions Gallimard, Paris, 1971
Edição de texto:
Marcos José Marcionilo
Indicação editorial:
Profº Drº Salma Tannus Muchail
Edições Loyola
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ISBN: 85-15-01859-2
5 edição: setembro de 1999
O EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 1996
Go de me insinuar sub-repticia-
mente no discurso que devo pro-
nunciar hoje, e nos que deverei pronunciar
aqui, talvez durante anos. Ao invés de to-
mar a palavra, gostaria de ser envolvido por
ela e levado bem além de todo começo
possível. Gostaria de perceber que no mo-
mento de falar uma voz sem nome me pre-
cedia há muito tempo: bastaria, então, que
eu encadeasse, prosseguisse a frase, me alo-
jasse, sem ser percebido, em seus interstí-
cios, como se ela me houvesse dado um
sinal, mantendo-se, por um instante, sus-
pensa. Não haveria, portanto, começo; e em
Nota do Editor: Por motivo de horário, certas pas-
sagens foram encurtadas e modificadas na leitura. Essas
passagens foram aqui reproduzidas na íntegra.
de se desarma e a política se pacifica, fosse
um dos lugares onde elas exercem, de modo
privilegiado, alguns de seus mais temíveis
poderes. Por mais que o discurso seja apa-
rentemente bem pouca coisa, as interdições
que o atingem revelam logo, rapidamente,
sua ligação com o desejo e com o poder.
Nisto não há nada de espantoso, visto que
o discurso — como a psicanálise nos mos-
trou — não é simplesmente aquilo que
manifesta (ou oculta) o desejo; é, também,
aquilo que é o objeto do desejo; e visto que
— isto a história não cessa de nos ensinar
— o discurso não é simplesmente aquilo
que traduz as lutas ou os sistemas de demi-
nação, mas aquilo por que, pelo que se luta,
o poder do qual nos queremos apoderar.
Existe em nossa sociedade outro prin-
cípio de exclusão: não mais a interdição,
mas uma separação e uma rejeição. Penso
na oposição razão e loucura. Desde a alta
Idade Média, o louco é aquele cujo discurso
não pode circular como o dos outros: pode
ocorrer que sua palavra seja considerada
nula e não seja acolhida, não tendo verdade
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nem importância, não podendo testemunhar
na justiça, não podendo autenticar um ato,
ou um contrato, não podendo nem mesmo,
no sacrifício da missa, permitir a transubs-
tanciação e fazer do pão um corpo; pode
ocorrer também, em contrapartida, que se
lhe atribua, por oposição a todas as outras,
estranhos poderes, o de dizer uma verdade
escondida, o de pronunciar o futuro, o de
enxergar com toda ingenuidade aquilo que
a sabedoria dos outros não pode perceber. É
curioso constatar que durante séculos na
Europa a palavra do louco não era ouvida,
ou então, se era ouvida, era escutada como
uma palavra de verdade. Ou caía no nada
— rejeitada tão logo proferida; ou então nela
se decifrava uma razão ingênua ou astuciosa,
uma razão mais razoável do que a das pes-
soas razoáveis. De qualquer modo, excluída
ou secretamente investida pela razão, no sen-
tido restrito, ela não existia. Fra através de
suas palavras que se reconhecia a loucura do
louco; elas eram o lugar onde se exercia a
separação; mas não eram nunca recolhidas
nem escutadas. Jamais, antes do fim do sécu-
lo XVII, um médico teve a idéia de saber o
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que era dito (como era dito, por que era dito)
nessa palavra que, contudo, fazia a diferença.
Todo este imenso discurso do louco retornava
ao ruído; a palavra só lhe era dada simbolica-
mente, no teatro onde ele se apresentava,
desarmado e reconciliado, visto que represen-
tava aí o papel de verdade mascarada.
Dir-se-á que, hoje, tudo isso acabou ou
está em vias de desaparecer; que a palavra
do louco não está mais do outro lado da
separação; que ela não é mais nula e não-
-aceita; que, ao contrário, ela nos leva à es-
preita; que nós aí buscamos um sentido,
ou o esboço ou as ruínas de uma obra; e
que chegamos a surpreendê-la, essa palavra
do louco, naquilo que nós mesmos articula-
mos, no distúrbio minúsculo por onde aqui-
lo que dizemos nos escapa. Mas tanta aten-
ção não prova que a velha separação não
voga mais; basta pensar em todo o aparato
de saber mediante o qual deciframos essa
palavra; basta pensar em toda a rede de
instituições que permite a alguém — médi-
co, psicanalista — escutar essa palavra e que
permite ao mesmo tempo ao paciente vir
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trazer, ou desesperadamente reter, suas po-
bres palavras; basta pensar em tudo isto para
supor que a separação, longe de estar apa-
gada, se exerce de outro modo, segundo
linhas distintas, por meio de novas institui-
ções e com efeitos que não são de modo
algum os mesmos. E mesmo que o papel do
médico não fosse senão prestar ouvido a
uma palavra enfim livre, é sempre na ma-
nutenção da cesura que a escuta se exerce.
Escuta de um discurso que é investido pelo
desejo, e que se crê — para sua maior
exaltação ou maior angústia -— carregado
de terríveis poderes. Se é necessário o silên-
cio da razão para curar-os monstros, basta
que o silêncio esteja alerta, e eis que a se-
paração permanece.
Talvez seja arriscado considerar a opo-
sição do verdadeiro e do falso como um
terceiro sistema de exclusão, ao lado daque-
les de que ácabo de falar. Como se poderia
razoavelmente comparar a força da verdade
com separações como aquelas, separações que,
de saída, são arbitrárias, ou que, ao menos,
se organizam em torno de contingências his-
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tóricas; que não são apenas modificáveis, mas
estão em perpétuo deslocamento; que são
sustentadas por todo um sistema de institui-
ções que as impõem e reconduzem; enfim,
que não se exercem sem pressão, nem sem ao
menos uma parte de violência.
Certamente, se nos situamos no nível
de uma proposição, no interior de um dis-
curso, a separação entre o verdadeiro e o
falso não é nem arbitrária, nem modificável,
nem institucional, nem violenta. Mas se
nos situamos em outra escala, se levanta-
mos a questão de saber qual foi, qual é
constantemente, através de nossos discur-
sos, essa vontade de verdade que atravessou
tantos séculos de nossa história, ou qual é,
em sua forma muito geral, o tipo de sepa-
ração que rege nossa vontade de saber, en-
tão é talvez algo como um sistema de ex-
clusão (sistema histórico, institucionalmen-
te constrangedor) que vemos desenhar-se.
Separação historicamente constituída,
com certeza. Porque, ainda nos poetas gre-
gos do século VI, o discurso verdadeiro —
no sentido forte e valorizado do termo —,
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o discurso verdadeiro pelo qual se tinha res-
peito e terror, aquele ao qual era preciso
submeter-se, porque ele reinava, era o dis-
curso pronunciado por quem de direito e
conforme o ritual requerido; era o discurso
que pronunciava a justiça e atribuía a cada
qual sua parte: era o discurso que, profeti-
zando o futuro, não somente anunciava o
que ia se passar, mas contribuía para a sua
realização, suscitava a adesão dos homens e
se tramava assim com o destino. Ora, eis
que um século mais tarde, a verdade a mais
elevada já não residia mais no que era o
discurso, ou no que ele fazia, mas residia
no que ele dizia: chegou um dia em que a
verdade se deslocou do ato ritualizado, efi-
caz e justo, de enunciação, para o próprio
enunciado: para seu sentido, sua forma, seu
objeto, sua relação a sua referência. Entre
Hesíodo e Platão uma certa divisão se esta-
beleceu, separando o discurso verdadeiro e
o discurão falso; separação nova visto que,
doravante, o discurso verdadeiro não é mais
o discurso precioso e desejável, visto que
não é mais o discurso ligado ao exercício
do poder. O sofista é enxotado.
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tar necessário. E a razão disso é, talvez, esta:
é que se o discurso verdadeiro não é mais,
com efeito, desde os gregos, aquele que res-
ponde ao desejo ou aquele que exerce o
poder, na vontade de verdade, na vontade
de dizer esse discurso verdadeiro, o que está
em jogo, senão o desejo e o poder? O dis-
curso verdadeiro, que a necessidade de sua
forma liberta do desejo e libera do poder,
não pode reconhecer a vontade de verdade
que o atravessa; e a vontade de verdade,
essa que se impõe a nós há bastante tempo,
é tal que a verdade que ela quer não pode
deixar de mascará-la.
Assim, só aparece aos nossos olhos uma
verdade que seria riqueza, fecundidade, for
ça doce e insidiosamente universal. E igno-
ramos, em contrapartida, a vontade de ver-
dade, como prodigiosa maquinaria destina-
da a excluir todos aqueles que, ponto por
ponto, em nossa história, procuraram con-
tornar essa vontade de verdade e recolocá-
-la em questão contra a verdade, lá justa-
mente onde a verdade assume a tarefa de
justificar a interdição e definir a loucura;
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todos aqueles, de Nietzsche a Artaud e à
Bataille, devem agora nos servir de sinais,
altivos sem dúvida, para o trabalho de todo
dia.
Existem, evidentemente, muitos outros
procedimentos de controle e de delimitação
do discurso. Aqueles de que falei até agora
se exercem de certo modo do exterior; fun-
cionam como sistemas de exclusão; concer-
nem, sem dúvida, à parte do discurso que
põe em jogo o poder e o desejo.
Pode-se, creio eu, isolar outro grupo
de procedimentos. Procedimentos internos,
visto que são os discursos eles mesmos que
exercem seu próprio controle; procedimen-
tos que funcionam, sobretudo, a título de
princípios de classificação, de ordenação, de
distribuição, como se se tratasse, desta vez,
de submeter outra dimensão do discurso: a
do acontecimento e do acaso.
- Em primeiro lugar, o comentário. Su-
” ponho, mas sem ter muita certeza, que não
2!
há sociedade onde não existam narrativas
maiores que se contam, se repetem e se
fazem variar; fórmulas, textos, conjuntos
ritualizados de discursos que se narram,
conforme circunstâncias bem determinadas;
coisas ditas uma vez e que se conservam,
porque nelas se imagina haver algo como
um segredo ou uma riqueza. Em suma,
pode-se supor que há, muito regularmente
nas sociedades, uma espécie de desnivela-
mento entre os discursos: os discursos que
“se dizem” no correr dos dias e das trocas,
e que passam com o ato mesmo que os
pronunciou; e os discursos que estão na
origem de certo número de atos novos de
fala que os retomam, os transformam ou
falam deles, ou seja, os discursos que, inde-
finidamente, para além de sua formulação,
são ditos, permanecem ditos e estão ainda
por dizer. Nós os conhecemos em nosso
sistema de cultura: são os textos religiosos
ou jurídicos, são também esses textos cu-
riosos, quando se considera o seu estatuto,
e que chamamos de “literários”, em certa
medida textos científicos.
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É certo que esse deslocamento não é
estável, nem constante, nem absoluto. Não
há, de um lado, a categoria dada uma vez
por todas, dos discursos fundamentais ou
criadores; e, de outro, a massa daqueles que
repetem, glosam e comentam. Muitos tex-
tos maiores se confundem e desaparecem,
e, por vezes, comentários vêm tomar o pri-
meiro lugar. Mas embora seus pontos de
aplicação possam mudar, a função perma-
nece; e o princípio de um deslocamento
encontra-se sem cessar reposto em jogo. O
desaparecimento radical desse desnivelamen-
to não pode nunca ser senão um jogo, uto-
pia ou angústia. Jogo, à moda de Borges, de
um comentário que não será outra coisa
senão a reaparição, palavra por palavra (mas
desta vez solene e esperada), daquilo que
ele comenta; jogo, ainda, de uma críticá que
falaria até o infinito de uma obra que não
existe. Sonho lírico de um discurso que
renasce em cada um de seus pontos, abso-
lutamente novo e inocente, e que reaparece
sem cessar, em todo frescor, a partir das
coisas, dos sentimentos ou dos pensamen-
tos. Angústia daquele doente de Janet para
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quem o menor enunciado era como “pala-
vra de Evangelho”, encerrando inesgotáveis
tesouros de sentido e merecendo ser indefi-
nidamente relançado, recomeçado, comen-
tado. “Quando eu penso, dizia ele logo que
lia ou escutava, quando penso nesta frase
que vai partir para a eternidade e que eu
talvez ainda não tenha compreendido ple-
namente.”
Mas quem não vê que se trata aí, cada
vez, de anular um dos termos da relação, e
não de suprimir a relação ela mesma? Rela-
ção que não cessa de se modificar através
do tempo; relação que toma em uma. época
dada formas múltiplas e divergentes, a
exegese jurídica é muito diferente (e isto hã
bastante tempo) do comentário religioso;
uma mesma e única obra literária pode dar
lugar, simultaneamente, a tipos de discurso
bem distintos: a Odisséia como texto pri-
meiro é repetida, na mesma época, na tra-
dução de Bérard, em infindáveis explicações
de texto, no Ulysses de Joyce.
Por ora, gostaria de me limitar a indi-
car que, no que se chama globalmente um
comentário, o desnível entre texto primeiro
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e texto segundo desempenha dois papéis que
são solidários. Por um lado permite cons-
truir (e indefinidamente) novos discursos:
o fato de o texto primeiro pairar acima, sua
permanência, seu estatuto de discurso sem-
pre reatualizável, o sentido múltiplo ou
oculto de que passa por ser detentor, a
Teticência e a riqueza essenciais que lhe
atribuímos, tudo isso funda uma possibili-
dade aberta de falar. Mas, por outro lado, o
comentário não tem outro papel, sejam quais
forem as técnicas empregadas, senão o de
dizer enfim o que estava articulado silencio-
samente no texto primeiro. Deve, conforme
um paradoxo que ele desloca sempre, mas
ao qual não escapa nunca, dizer pela pri-
meira vez aquilo que, entretanto, já havia
sido dito e repetir incansavelmente aquilo
que, no entanto, não havia jamais sido dito.
A repetição indefinida dos comentários é
trabalhada do interior pelo sonho de uma
repetição disfarçada: em seu horizonte não
há talvez nada além daquilo que já havia
em seu ponto de partida, a simples recita-
ção. O comentário conjura o acaso do discur-
so fazendo-lhe sua parte: permite-lhe dizer
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cípio este também relativo e móvel. Princí-
pio que permite construir, mas conforme
um jogo restrito.
A organização das disciplinas se opõe
tanto ao princípio do comentário como ao
do autor. Ao do autor, visto que uma disci-
plina se define por um domínio de objetos,
um conjunto de métodos, um corpus de
proposições consideradas verdadeiras, um
jogo de regras e de definições, de técnicas e
de instrumentos: tudo isto constitui uma
espécie de sistema anônimo à disposição de
quem quer ou pode servir-se dele, sem que
seu sentido ou sua validade estejam ligados
a quem sucedeu ser seu inventor. Mas o
princípio da disciplina se opõe também ao
do comentário: em uma disciplina, diferente-
mente do comentário, o que é suposto no
ponto de partida, não é um sentido que pre-
cisa ser redescoberto, nem uma identidade que
deve ser repetida; é aquilo que é requerido
para a construção de novos enunciados. Para
que haja disciplina é preciso, pois, que haja
possibilidade de formular, e de formular in-
definidamente, proposições novas.
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Mas há mais; e há mais, sem dúvida,
para que haja menos: uma disciplina não é
a soma de tudo o que pode ser dito de
verdadeiro sobre alguma coisa; não é nem
mesmo o conjunto de tudo o que pode ser
aceito, a propósito de um mesmo dado, em
virtude de um princípio de coerência ou de
sistematicidade. A medicina não é consti-
tuída de tudo o que se pode dizer de verda-
deiro sobre a doença; a botânica não pode
ser definida pela soma de todas as verdades
que concernem às plantas. Há, para isso,
duas razões: primeiro, a botânica ou a me-
dicina, como qualquer outra disciplina, são
feitas tanto de erros como de verdades, er-
Tos que não são resíduos ou corpos estra-
nhos, mas que têm funções positivas, uma
eficácia histórica, um papel muitas vezes
indissociável daquele das verdades. Mas,
além disso, para que uma proposição per-
tença à botânica ou à patologia, é preciso
que ela responda a condições, em um sen-
tido mais estritas e mais complexas, do que
a pura e simples verdade; em todo caso, a
a
condições diferentes. Ela precisa dirigir-se a
um plano de objetos determinado: a partir
do fim do século XVII, por exemplo, para
que uma proposição fosse “botânica” era
preciso que ela dissesse respeito à estrutura
visível da planta, ao sistema de suas seme-
lhanças próximas ou longínquas ou à mecã-
nica de seus fluidos (e essa proposição não
podia mais conservar, como ainda era o caso
no século XVI, seus valores simbólicos, ou
o conjunto das virtudes ou propriedades que
lhe eram atribuídas na antigúidade). Mas,
sem pertencer a uma disciplina, uma pro-
posição deve utilizar instrumentos concei-
tuais. ou técnicas de um tipo bem definido;
a partir do século XIX, uma proposição não
era mais médica, ela caía “fora da medici-
na” e adquiria valor de fantasma individual
ou de crendice popular se pusesse em jogo
noções a uma só vez metafóricas, qualitati-
vas e substanciais (como as de engasgo, de
líquidos esquentados ou de sólidos resseca-
dos); ela podia e devia recorrer, em contra-
partida, a noções tão igualmente metafóri-
cas, mas construídas sobre outro modelo,
funcional e fisiológico (era a irritação, a
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inflamação ou a degenerescência dos teci-
dos). Há mais ainda: para pertencer a uma
disciplina uma proposição deve poder ins-
crever-se em certo horizonte teórico: basta
lembrar que a busca da língua primitiva,
tema perfeitamente aceito até o século XVIH,
era, na segunda metade do século XIX, su-
ficiente para precipitar qualquer discurso,
não digo no erro, mas na quimera e na
divagação, na pura e simples monstruosida-
de linguística.
No interior de seus limites, cada disci-
plina reconhece proposições verdadeiras e
falsas; mas ela repele, para fora de suas
margens, toda uma teratologia do saber. O
exterior de uma ciência é mais e menos
povoado do que se cré: certamente, há a
experiência imediata, os temas imaginários
que carregam e reconduzem sem cessar cren-
ças sem memória; mas, talvez, não haja erros
em sentido estrito, porque o erro só pode
surgir e ser decidido no interior de uma
prática definida; em contrapartida, rondam
monstros cuja forma muda com a história
do saber. Em resumo, uma proposição deve
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preencher exigências complexas e pesadas
para poder pertencer ao conjunto de uma
disciplina; antes de poder ser declarada
verdadeira ou falsa, deve encontrar-se, como
diria M. Canguilhem, “no verdadeiro”.
Muitas vezes se perguntou como os
botânicos ou os biólogos do século XIX
puderam não ver que o que Mendel dizia
era verdade. Acontece que Mendel falava de
objetos, empregava métodos, situava-se num
horizonte teórico estranhos à biologia de
sua época. Sem dúvida Naudin, antes dele,
sustentara a tese de que os traços hereditá-
rios eram descontínuos, entretanto, embora
esse princípio fosse novo ou estranho, po-
dia fazer parte — ao menos a título de
enigma — do discurso biológico. Mendel,
entretanto, constitui o traço hereditário
como objeto biológico absolutamente novo,
graças a uma filtragem que jamais havia sido
utilizada até então: ele o destaca da espécie
e também do sexo que o transmite, e o
domínio onde o observa é a série indefini-
damente aberta das gerações na qual.o tra-
ço hereditário aparece segundo regularida-
34
des estatísticas. Novo objeto que pede no-
vos instrumentos conceituais e novos fun-
damentos teóricos. Mendel dizia a verdade,
mas não estava “no verdadeiro” do discurso
biológico de sua época: não era segundo tais
regras que se constitutam objetos e conceitos
biológicos; foi preciso toda uma mudança de
escala, o desdobramento de todo um novo
plano de objetos na biologia para que Mendel
entrasse “no verdadeiro” e suas proposições
aparecessem, então, (em boa parte) exatas.
Mendel era um monstro verdadeiro, o que
fazia com que a ciência não pudesse falar
nele; enquanto Schleiden, por exemplo, uns
trinta anos antes, negando, em pleno século
XIX, a sexualidade vegetal, mas conforme
as regras do discurso biológico, não formu-
lava senão um erro disciplinado.
É sempre possível dizer o verdadeiro
no espaço de uma exterioridade selvagem;
mas não nos encontramos no verdadeiro
senão obedecendo às regras de uma “polí-
cia” discursiva que devemos reativar em cada
um de nossos discursos.
35
grupos de rapsodos que possuíam o conhe-
cimento dos poemas a recitar ou, eventual-
mente, a fazer variar e a transformar, mas
esse conhecimento, embora tivesse por fi-
nalidade uma recitação de caráter ritual, era
protegido, defendido e conservado em um
grupo determinado, pelos exercícios de
memória, muitas vezes bem complexos, que
implicava; sua aprendizagem fazia estar ao
mesmo tempo em um grupo e em um se-
gredo que a recitação manifestava, mas não
divulgava; entre a palavra e a escuta os
papéis não podiam ser trocados.
É certo que não mais existem tais “so-
ciedades de discurso”, com esse jogo ambí-
guo de segredo e de divulgação. Mas que
ninguém se deixe enganar; mesmo na or-
dem do discurso verdadeiro, mesmo na or-
dem do discurso publicado e livre de qual-
quer ritual, se exercem ainda formas de
apropriação de segredo e de não-permuta-
bilidade. É bem possível que o ato de escre-
ver tal como está hoje institucionalizado no
livro, no sistema de edição e no persona-
gem do escritor, tenha lugar em uma “so-
40
ciedade de discurso” difusa, talvez, mas
certamente coercitiva. A diferença do escri-
tor, sem cessar oposta por ele mesmo à ati-
vidade de qualquer outro sujeito que fala
ou escreve, o caráter intransitivo que em-
presta a seu discurso, a singularidade fun-
damental que atribui há muito tempo à
“escritura”, a dissimetria afirmada entre a
“criação” e qualquer outra prática do siste-
ma lingúístico, tudo isto manifesta na for-
mulação (e tende, aliás, a reconduzir no jogo
das práticas) a existência de certa “socieda-
de do discurso”. Mas existem ainda muitas
outras que funcionam de outra maneira,
conforme outro regime de exclusividade e
de divulgação: lembremos o segredo técnico
ou científico, as formas de difusão e de circu-
lação do discurso médico, os que se apro-
priam do discurso econômico ou político.
À primeira vista, as “doutrinas” (reli-
giosas, políticas, filosóficas) constituem o
inverso de uma “sociedade de discurso”:
nesta, o número dos indivíduos que fala-
vam, mesmo se não fosse fixado, tendia a
ser limitado; e só entre eles o discurso po-
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dia circular e ser transmitido. A doutrina,
ao contrário, tende a difundir-se; e é pela
partilha de um .só e mesmo conjunto de
discursos que indivíduos, tão numerosos
quanto se queira imaginar, definem sua
pertença recíproca. Aparentemente, a única
condição requerida é o reconhecimento das
- mesmas verdades e a aceitação de certa re-
gra — mais ou menos flexível — de confor-
midade com os discursos validados; se fos-
sem apenás isto, as doutrinas não seriam
tão diferentes das disciplinas científicas, e o
controle discursivo trataria somente da for-
ma ou do conteúdo do enunciado, não do
sujeito que fala. Ora, a pertença doutrinária
questiona ao mesmo tempo o enunciado e
o sujeito que fala, e um através do outro.
Questiona o sujeito que fala através e a partir
do enunciado, como provam os procedimen-
tos de exclusão e os mecanismos de rejei-
ção que entram em jogo quando um sujeito
que fala formula um ou vários enunciados
inassimiláveis; a heresia e a ortodoxia não
derivam de um exagero fanático dos meca-
nismos doutrinários, elas lhes pertencem
fundamentalmente. Mas, inversamente, a
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doutrina questiona os enunciados a partir
dos sujeitos que falam, na medida em que
a doutrina vale sempre como o sinal, 4
manifestação e o instrumento de uma per-
tença prévia — pertença de classe, de status
social ou de raça, de nacionalidade ou de
interesse, de luta, de revolta, de resistência
ou de aceitação. À doutrina liga os indiví-
duos a certos tipos de enunciação e lhes
proíbe, consequentemente, todos os outros;
mas ela se serve, em contrapartida, de cer-
tos tipos de enunciação para ligar indiví-
duos entre si e diferenciá-los, por isso mes-
mo, de todos os outros. À doutrina realiza
uma dupla sujeição: dos sujeitos que falam
aos discursos e dos discursos ao grupo, ao
menos virtual, dos indivíduos quie falam.
Enfim, em escala muito mais ampla, é
preciso reconhecer grandes planos no que-
poderíamos denominar a apropriação social
dos discursos. Sabe-se que a educação, em-
bora seja, de direito, o instrumento graças
ao qual todo indivíduo, em uma sociedade
como a nossa, pode ter acesso a qualquer
tipo de discurso, segue, em sua distribui-
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ção, no que permite e no que impede, as
linhas que estão marcadas pela distância,
pelas oposições e lutas sociais. Todo siste-
ma de educação é uma maneira política de
manter ou de modificar a apropriação dos
discursos, com os saberes e os poderes que
eles trazem consigo.
Bem sei que é muito abstrato separar,
como acabo de fazer, os rituais da palavra,
as sociedades do discurso, os grupos dou-
trinários e as apropriações sociais. À maior
parte do tempo, eles se ligam uns aos ou-
tros e constituem espécies de grandes edifí-
cios que garantem a distribuição dos sujei-
tos que falam nos diferentes tipos de dis-
curso e a apropriação dos discursos por
certas categorias de sujeitos. Digamos, em
uma palavra, que são esses os grandes pro-
cedimentos de sujeição do discurso. O que
é afinal um sistema de ensino senão uma
ritualização da palavra; senão uma qualifi-
cação e uma fixação dos papéis para os
sujeitos que falam, senão a constituição de
um grupo doutrinário ao menos difuso;
senão uma distribuição e uma apropriação
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do discurso com seus poderes e seus sabe-
res? Que é uma “escritura” (a dos “escrito-
res”) senão um sistema semelhante de su-
jeição, que toma formas um pouco diferen-
tes, mas cujos grandes planos são análogos?
Não constituiriam o sistema judiciário, o
sistema institucional da medicina, eles tam-
bém, sob certos aspectos, ao menos, tais
sistemas de sujeição do discurso?
Eu me pergunto se certo número de
temas da filosofia não vieram responder a
esses jogos de limitações e de exclusões e,
talvez também, reforçá-los.
Responder-lhes, em primeiro lugar, pro-
pondo uma verdade ideal como lei do dis-
curso e uma racionalidade imanente como
princípio de seu desenvolvimento, recondu-
zindo também uma ética do conhecimento
que só promete a verdade ao próprio desejo
da verdade e somente ao poder de pensá-la:
”
45
honrado? Onde, aparentemente, teria sido
mais radicalmente libertado de suas coer-
ções e universalizado? Ora, parece-me que
sob esta aparente veneração do discurso, sob
essa aparente logofilia, esconde-se uma es-
pécie de temor. Tudo se passa como se in-
terdições, supressões, fronteiras é limites
tivessem sido dispostos de modo a domi-
nar, ao menos em parte, a grande prolifera-
ção do discurso. De modo a que sua rique-
za fosse aliviada de sua parte mais perigosa
e que sua desordem fosse organizada segun-
do figuras que esquivassem o mais incon-
trolável; tudo se passa como se tivessem
querido apagar até as marcas de sua irrupção
nos jogos do pensamento e da língua. Há,
sem dúvida, em nossa sociedade e, imagi-
no, em todas as outras mas segundo um
perfil e facetas diferentes, uma profunda
logofobia, uma espécie de temor surdo des-
ses acontecimentos, dessa massa de coisas
ditas, do surgir de todos esses enunciados,
de tudo o que possa haver aí de violento, de
descontínuo, de combativo, de desordem,
também, e de perigoso, desse grande zum-
bido incessante e desordenado do discurso.
50
«
E se quisermos, não digo apagar esse
temor, mas analisá-lo em suas condições,
seu jogo e seus efeitos, é preciso, creio, optar
por três decisões às quais nosso pensamen-
to resiste um pouco, hoje em dia, e que
correspondem aos três grupos de funções
que acabo de evocar: questionar nossa von-
tade de verdade; restituir ao discurso seu
caráter de acontecimento; suspender, enfim,
a soberania do significante.
Tais são as tarefas ou, antes, alguns dos
temas que regem o trabalho que gostaria de
realizar aqui nos próximos anos. Podem-se
perceber, de imediato, certas exigências de
método que implicam.
Primeiramente, um princípio de inver-
são: lá onde, segundo a tradição, cremos
reconhecer a fonte dos discursos, o princí-
pio de sua expansão e de sua continuidade,
nessas figuras que parecem desempenhar um
5
papel positivo como a do autor, da discipli-
na, da vontade de verdade, é preciso reco-
nhecer, ao contrário, o jogo negativo de um
recorte e de uma rarefação do discurso.
Mas, uma vez descobertos esses princí-
pios de rarefação, uma vez que se deixe de
considerá-los como instância fundamental
e criadora, o que se descobre por baixo
deles? Dever-se-ia admitir a plenitude vir-
tual de um mundo de discursos ininter-
ruptos? É aqui que se faz necessário fazer
intervir outros princípios de método.
Um princípio de descontinuidade: o fato
de haver sistemas de rarefação não quer dizer
que por baixo deles e para além deles reine
um grande discurso ilimitado, contínuo e
silencioso que fosse por eles reprimido e
recalcado e que nós tivéssemos por missão
descobrir restituindo-lhe, enfim, a palavra.
Não se deve imaginar, percorrendo o mun-
do e entrelaçando-se em todas as suas for-
mas e acontecimentos, um não-dito ou um
impensado que se deveria, enfim, articular
ou pensar. Os discursos devem ser tratados
como práticas descontínuas, que se cruzam
52
por vezes, mas também se ignoram ou se
excluem.
Um princípio de especificidade: não
transformar o discurso em um jogo de sig-
nificações prévias; não imaginar que o
mundo nos apresenta uma face legível que
teríamos de decifrar apenas; ele não é cúm-
plice de nosso conhecimento; não há provi-
dência pré-discursiva que o disponha a
nosso favor. Deve-se conceber o discurso
como uma violência que fazemos às coisas,
como uma prática que lhes impomos em
todo o caso; e é nesta prática que os acon-
tecimentos do discurso encontram o princi-
pio de sua regularidade.
Quarta regra, a da exterioridade: não
passar do discurso para o seu núcleo inte-
rior e escondido, para o âmago de um pen-
samento ou de uma significação que se
manifestariam nele; mas, a partir do pró-
prio discurso, de sua aparição e de sua re-
gularidade, passar às suas condições exter- -
nas de possibilidade, aquilo que dá lugar à
série aleatória desses acontecimentos e fixa
suas fronteiras.
53
Quatro noções devem servir, portanto,
de princípio regulador para a análise: a
noção de acontecimento, a de série, a de
regularidade, a de condição de possibilida-
de. Vemos que se opõem termo a termo: o
acontecimento à criação, a série à unidade,
a regularidade à originalidade e a condição
de possibilidade à significação. Estas quatro
últimas noções (significação, originalidade,
unidade, criação) de modo geral domina-
ram a história tradicional das idéias onde,
de comum acordo, se procurava o ponto da
criação, a unidade de uma obra, de uma
época ou de um tema, a marca da origina-
lidade individual e o tesouro indefinido das
significações ocultas.
Acrescentarei apenas duas observações.
Uma concemne à história. Atribui-se muitas
vezes à história contemporânea ter suspen-
dido os privilégios concedidos outrora ao
acontecimento singular e ter feito aparecer
as estruturas de longa duração. É verdade.
Não estou certo, contudo, de que o traba-
lho dos historiadores tenha sido realizado
precisamente nessa direção. Ou melhor, não
54
penso que haja como que uma razão inver-
sa entre a contextualização do acontecimen-
to e a análise da longa duração. Parece, ao
contrário, que foi por estreitar ao extremo o
acontecimento, por levar o poder de resolu-
ção da análise histórica até as mercuriais, às
atas notariais, aos registros paroquiais, aos
arquivos portuários seguidos ano a ano,
semana a semana, que se viu desenhar para
além das batalhas, dos decretos, das dinas-
tias ou das assembléias, fenômenos maciços
de alcance secular ou plurissecular. A histó-
ria, como praticada hoje, não se desvia dos
acontecimentos; ao contrário, alarga sem
cessar o campo dos mesmos; neles desco-
bre, sem cessar, novas camadas, mais super-
ficiais ou mais profundas; isola sempre no-
vos conjuntos onde eles são, às vezes, nu-
merosos, densos e intercambiáveis, às ve-
zes, raros e decisivos: das variações cotidia-
nas de preço chega-se às inflações secula-
res. Mas o importante é que a história não
considera um elemento sem definir a série
da qual ele faz parte, sem especificar o modo
de análise da qual esta depende, sem procu-
55
ideal. Três noções que deveriam permitir
ligar à prática dos historiadores a história
dos sistemas de pensamento. Três direções
que o trabalho de elaboração teórica deverá
seguir.
Seguindo esses princípios e referindo-
-me a esse horizonte, as análises que me
proponho fazer se dispõem segundo dois
conjuntos. De uma parte, o conjunto “críti-
co”, que põe em prática o princípio da in-
versão: procurar cercar as formas da exclu-
são, da limitação, da apropriação de que
falava há pouco; mostrar como se forma-
ram, para responder a que necessidades,
como se modificaram e se deslocaram, que
força exerceram efetivamente, em que me-
dida foram contornadas. De outra parte, o
conjunto “genealógico” que põe em prática
os três outros princípios: como se forma-
ram, através, apesar, ou com o apoio desses
sistemas de coerção, séries de discursos; qual
foi a norma específica de cada uma e quais
60
foram suas condições de aparição, de cres-
cimento, de variação.
O conjunto crítico, primeiro. Um primei-
ro grupo de análises poderia versar sobre o
que designei como funções de exclusão. Acon-
teceu-me outrora estudar uma e por um pe-
ríodo determinado: tratava-se da separação
entre loucura e razão na época clássica. Mais
tarde, poderíamos procurar analisar um siste-
ma de interdição de linguagem: o que con-
cerne à sexualidade desde o século XVI até
o século XIX; tratar-se-ia de ver não, sem
dúvida, como ele progressivamente e feliz-
mente se apagou; mas como se deslocou e
se rearticulou a partir de uma prática da
confissão em que as condutas proibidas eram
nomeadas, classificadas, hierarquizadas, e da
maneira a mais explícita, até a aparição ini-
cialmente bem tímida, bem retardada, da
temática sexual na medicina e na psiquiatria
do século XIX; não são estes senão marcos
um pouco simbólicos, ainda, mas se pode
desde já apostar que as escansões não são
aquelas que se crê, e que as interdições não
ocuparam sempre o lugar que se imagina.
61
De imediato, é ao terceiro sistema de
exclusão que gostaria de me ater. Vou
encará-lo de duas maneiras. Por um lado,
gostaria de tentar perceber como se reali-
zou, mas também como se repetiu, se
reconduziu, se deslocou essa escolha da
verdade no interior da qual nos encontra-
mos, mas que renovamos continuamente.
Situar-me-ei, primeiro, na época da sofistica
e de seu início com Sócrates ou ao menos
com a filosofia platônica, para ver como o
discurso eficaz, o discurso ritual, carregado
de poderes e de perigos, ordenou-se aos
poucos em uma separação entre discurso
verdadeiro e discurso falso. Em seguida, vou
situar-me na passagem do século XVI para
o XVII, na época em que apareceu, princi-
palmente na Inglaterra, uma ciência do
olhar, da observação, da verificação, uma
certa filosofia natural inseparável, sem dú-
vida, do surgimento de novas estruturas po-
líticas, inseparável também da ideologia re-
ligiosa: nova forma, por certo, da vontade
de saber. Enfim, o terceiro ponto de refe-
rência será o início do século XIX, com os
62
grandes atos fundadores da ciência moder-
na, a formação de uma sociedade industrial
e a ideologia positivista que a acompanha.
Três cortes na morfologia de nossa vontade
de saber; três etapas de nosso filisteismo.
Gostaria também de retomar a mesma
questão, mas sob um ângulo bem diferente:
medir o efeito de um discurso com preten-
são científica — discurso médico, psiquiá-
trico, discurso sociológico também — so-
bre o conjunto de práticas e de discursos
prescritivos que o sistema penal constitui.
É o estudo das perícias psiquiátricas e de
seu papel na penalidade que servirá de pon-
to de partida e de material básico para esta
análise.
É ainda nesta perspectiva crítica, mas
em outro nível, que se deveria fazer a aná-
lise dos procedimentos de limitação dos
discursos, dentre os quais designei há pou-
co o princípio do autor, o do comentário e
o da disciplina. Nesta perspectiva, se pode
conceber um certo número de estudos. Pen-
so, por exemplo, em uma análise que ver-
sasse sobre a história da medicina do século
63
XVI ao século XIX. Não se trataria de assi-
nalar as descobertas feitas ou os conceitos
elaborados, mas de detectar, na construção
do discurso médico — mas também em toda
a instituição que o sustenta, transmite e
teforça — como funcionaram os princípios
do autor, do comentário e da disciplina;
procurar saber como vigorou o princípio do
grande autor: Hipócrates, Galeno, é certo,
mas também Paracelso, Sydenham ou
Boerhaave; como se exerceu, em pleno sé-
culo XIX, a prática do aforismo e do co-
mentário, como aos poucos foi substituída
pela prática do caso, da coleta de casos, da
aprendizagem clínica a partir de um caso
concreto; conforme que modelo, afinal, a
medicina procurou constituir-se como dis-
ciplina, apoiando-se primeiramente na his-
tória natural, em seguida na anatomia e na
biologia.
Poderíamos também considerar a ma-
neira pela qual a crítica e a história literá-
rias nos séculos XVIII e XIX constituíram o
personagem do autor e a figura da obra,
64
utilizando, modificando e deslocando os
procedimentos da exegese religiosa, da crí-
tica bíblica, da hagiografia, das “vidas” his-
tóricas ou lendárias, da autobiografia e das
memórias. Será preciso também, um dia,
estudar o papel que Freud desempenha no
saber psicanalítico, muito diferente, sem
dúvida, do papel de Newton na física (e de
todos os fundadores de disciplina), muito
diferente também do que pode desempenhar
um autor no campo do discurso filosófico
(mesmo que estivesse, como Kant, na ori-
gem de outra maneira de filosofar).
Eis, portanto, alguns projetos para o
aspecto crítico da tarefa, para a análise das
instâncias de controle discursivo. Quanto
ao aspecto genealógico, este conceme à for-
mação efetiva dos discursos, quer no inte-
rior dos limites do controle, quer no exte-
rior, quer, a maior parte das vezes, de um
lado e de outro da delimitação. A crítica
analisa os processos de rarefação, mas tam-
bém de reagrupamento e de unificação dos
N discursos; a genealogia estuda sua formação
ao mesmo tempo dispersa, descontínua e
65
domínios de objetos, a propósito dos quais
se poderia afirmar ou negar proposições
verdadeiras ou falsas. Chamemos de positi-
vidades esses domínios de objetos; e, diga-
mos, para jogar uma segunda vez com as
palavras, que se o estilo crítico é o da de-
senvoltura estudiosa, o humor genealógico
será o de um positivismo feliz.
Em todo caso, uma coisa ao menos deve
ser sublinhada: a análise do discurso, assim
entendida, não desvenda a universalidade
de um sentido: ela mostra à luz do dia o
jogo da rarefação imposta, com um poder
fundamental de afirmação. Rarefação e afir-
mação, rarefação, enfim, da afirmação e não
generosidade contínua do sentido, e não mo-
narquia do significante.
E agora, os que têm lacunas de voca-
bulário que digam — se isso lhes soar
melhor — que isto é estruturalismo.
Sei bem que não poderia empreender
estas pesquisas, cujo esboço tentei apresen-
7
tar-lhes, se não tivesse, para deles me valer,
modelos e apoios. Creio que devo muito a
M. Dumézil, pois foi ele que me incentivou
ao trabalho em uma idade em que eu ainda
acreditava que escrever é um prazer. Mas
devo muito, também, a sua obra; que me
perdoe se afastei de seu sentido ou desviei
de seu rigor esses textos que são seus e que
nos dominam hoje; foi ele que me ensinou
a analisar a economia interna de um discur-
so de modo totalmente diferente dos méto-
dos de exegese tradicional ou do formalis-
mo lingúístico; foi ele que me ensinou a
detectar, de um discurso ao outro, pelo jogo
das comparações, o sistema das correlações
funcionais; foi ele que me ensinou como
descrever as transformações de um discurso
e as relações com a instituição. Se eu quis
aplicar tal método a discursos totalmente
diferentes das narrativas lendárias ou míti-
cas, esta idéia me ocorreu, sem dúvida, pelo
fato de eu ter diante dos olhos os trabalhos
dos historiadores das ciências e, sobretudo,
de M. Canguilhem; é a ele que devo o fato
de ter compreendido que a história da ciên-
a
cia não se acha presa necessariamente à
alternativa: crônica das descobertas ou des-
crições das idéias e opiniões que cercam a
ciência do lado de sua gênese indecisa ou
do lado de suas origens exteriores; mas que
se podia, se devia fazer a história da ciência
como de um conjunto ao mesmo tempo
coerente e transformável de modelos teóri-
cos e de instrumentos conceituais.
Penso, no entanto, que minha dívida,
em grande parte, é para com Jean Hyppolite.
Bem sei que sua obra se coloca, aos olhos
de muitos, sob o reinado de Hegel e que
toda a nossa época, seja pela lógica ou pela
epistemologia, seja por Marx ou por Nietzs-
che, procura escapar de Hegel: e o que pro-
curei dizer há pouco a propósito do discur-
so é bem infiel ao logos hegeliano.
Mas escapar realmente de Hegel supõe
apreciar exatamente o quanto custa separar-
-se dele; supõe saber até onde Hegel, insidio-
samente, talvez, aproximou-se de nós; supõe
saber, naquilo que nos permite pensar contra
Hegel, o que ainda é hegeliano; e medir em
que nosso recurso contra ele é ainda, talvez,
72
um ardil que ele nos opõe, ao termo do
qual nos espera, imóvel e em outro lugar.
Ora, se somos muitos os devedores de
Jean Hyppolite, é porque, infatigavelmente,
ele percorreu para nós e antes de nós esse
caminho através do qual nos afastamos de
Hegel, tomamos distância, e através do qual
nos encontramos de volta a ele mas de outra
maneira, logo em seguida obrigados a deixá-
“lo novamente.
Em primeiro lugar, Jean Hyppolite teve
o cuidado de tornar presente essa grande
sombra, um pouco fantasmagórica, de Hegel
que rondava desde o século XIX e com a
qual nos batiamos obscuramente. Foi por
meio de uma tradução, da Fenomenologia
do Espírito, que ele deu a Hegel essa presen-
ça; e a prova de que Hegel, ele próprio, está
bem presente nesse texto francês, é que
aconteceu aos alemães consultarem-no para
compreender melhor aquilo que, por um ins-
tante ao menos, se tornava a versão alemã.
Ora, Jéan Hyppolite procurou e percor-
reu todas as saídas desse texto como se sua
73
inquietação fosse: pode-se ainda filosofar, lá
onde Hegel não é mais possível? Pode ain-
da existir uma filosofia que não seja hege-
liana? O que é não-hegeliano em nosso
pensamento é necessariamente não-filosófi-
co? E o que é antifilosófico é, forçosamen-
te, não-hegeliano? Ainda que não procuras-
se fazer apenas a descrição histórica e
meticulosa dessa presença de Hegel que
nos havia dado: queria fazer dela um esque-
ma de experiência da modernidade (é pos-
sível pensar à maneira hegeliana as ciên-
cias, a história, a política e o sofrimento de
cada dia?), e queria, inversamente, fazer de
nossa modernidade o teste do hegelianismo
e, assim, da filosofia. Para ele, a referência
a Hegel era o lugar de uma experiência, de
um enfrentamento em que não tinha nunca
a certeza de que a filosofia sairia vitoriosa.
Não se servia do sistema hegeliano como de
um universo tranquilizador, via, ali, o risco
extremo assumido pela filosofia.
Daí, creio eu, os deslocamentos que ele
operou, não digo no interior da filosofia
hegeliana, mas sobre ela e sobre a filosofia
74
tal como Hegel a concebia; daí também toda
uma inversão de temas. Em vez de conce-
ber a filosofia como a totalidade enfim ca-
paz de se pensar e de se apreender no
movimento do conceito, Jean Hyppolite fa-
zia dela o fundo de um horizonte infinito,
uma tarefa sem término: sempre a postos,
sua filosofia nunca estava prestes a acabar-
-se. Tarefa sem fim, tarefa sempre recome-
cada, portanto, condenada à forma e ao pa-
radoxo da repetição: a filosofia como pen-
samento inacessível da totalidade era para
Jean Hyppolite aquilo que poderia haver de
repetível na extrema irregularidade da ex-
periência; aquilo que se dá e se esconde
como questão sem cessar retomada na vida,
na morte, na memória: assim, o tema
hegeliano da perfeição na consciência de si,
ele o transformava em um tema da interro-
gação repetitiva. Mas, visto que ela era re-
petição, a filosofia não era ulterior ao con-
ceito; ela não precisava dar continuidade ao
edifício da abstração, devia sempre manter-
se retirada, romper com suas generalidades
adquiridas e recolocar-se em contato com a
75