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Guias e Dicas
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Sombras de antepassados esquecidos - Sagan e Druyan, Manuais, Projetos, Pesquisas de Ciências Biologicas

Livro de Carl Sagan.

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2017
Em oferta
30 Pontos
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Oferta por tempo limitado


Compartilhado em 19/04/2017

fabricio-lima-17
fabricio-lima-17 🇧🇷

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Baixe Sombras de antepassados esquecidos - Sagan e Druyan e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Ciências Biologicas, somente na Docsity! CARL SAGAN ANN DRUYAN SOMBRAS DE ANTEPASSADOS PSA nA An NE E RR CIÊNCIA ABERTA TES: Sombras de Antepassados Esquecidos EM BUSCA DO QUE SOMOS CARL SAGAN ANN DRUYAN Shadows of Forgotten Ancestors 1992 Índice Introdução Prólogo: a ficha do órfão 1. Na Terra como no céu 2. Flocos de neve caídos na lareira 3. "Que fazes"? 4. Um evangelho de imundície 5. A vida é apenas uma palavra de três letras 6. Nós e eles 7. Quando o fogo era novidade 8. Sexo e morte 9. Que finas divisórias 10. O penúltimo recurso 11. Domínio e submissão 12. A violação de Cênis 13. O mar da criação 14. Ganguelândia 15. Reflexões mortificantes 16. Vidas dos macacos 17. Advertir o conquistador 18. Arquimedes dos macacos 19. O que é ser-se humano 20. O animal interior.. 21. Sombras de antepassados esquecidos Epílogo Escultura do rio Sepik, planalto central de Papua Nova Guiné sempre coincidiam. Por outro lado, havia a possibilidade de um de nós (ou os dois) ter de abdicar de algumas das suas mais profundas convicções. Contudo, se tivéssemos êxito, ainda que parcialmente, talvez fôssemos capazes de compreender muito mais do que os nacionalismos, a corrida aos armamentos nucleares e a guerra fria. Quando terminamos o livro, já não havia guerra fria, mas, de certa forma, continuamos a viver em insegurança. Perigos novos acercam-se lenta mente da ribalta, enquanto outros, nossos velhos conhecidos, despertam do seu sono temporário. Confrontamo-nos com um recrudescimento terrível da violência étnica, com o reaparecimento dos nacionalismos, com dirigentes ineptos, educação deficiente, famílias desequilibradas, degradação ambiental, extinção de espécies, população em crescimento explosivo, cada vez mais milhões sem nada a perder. A necessidade de entendermos como chegamos a esta situação embaraçosa e como podemos sair dela parece-nos agora mais urgente do que nunca. Este livro refere-se ao passado remoto, aos passos mais importantes na formação das nossas origens. Posteriormente teceremos as linhas aqui traçadas. As nossas pesquisas conduziram-nos aos escritos dos que nos precederam, a eras longínquas e a outros mundos, através de uma grande diversidade de disciplinas. Tentamos não esquecer o aforismo do físico Niels Bohr: "A clareza sobre a vastidão." No entanto, a vastidão requerida pode ser ligeiramente desencorajadora. Os homens ergueram muros muito altos entre os ramos do conhecimento essenciais ao nosso trabalho — as várias ciências, a política, as religiões, a ética. Para vencermos os obstáculos procuramos fendas nos muros, tentamos saltá-los ou cavar e passar por baixo deles. Sentimo-nos na obrigação de pedir desculpa pelas nossas limitações, pelas insuficiências do nosso saber e discernimento, mesmo cientes de que as nossas pesquisas não têm qualquer possibilidade de êxito quando não existem brechas nos muros. E esperamos que aquilo em que fracassamos possa servir de inspiração (ou de provocação) a outros que venham um dia a fazer melhor. O que nos propomos dizer baseia-se nos conhecimentos que adquirimos em muitos domínios da ciência e que o leitor deve desde já ficar a saber serem imperfeitos e limitados. A ciência nunca está concluída, está cada vez mais próxima da compreensão total e rigorosa da Natureza, mas nunca chega a alcançá-la. O fato de tantas descobertas importantes terem sido feitas nos últimos cem anos, até mesmo na última década, mostra-nos que ainda há muito a fazer. No panorama da ciência são constantes os debates, as correções, os aperfeiçoamentos, os retrocessos penosos e as descobertas revolucionárias. Apesar de tudo, aparentemente, sabe-se hoje o suficiente para reconstituir os passos principais do processo evolutivo de que somos o produto final. Na nossa jornada encontramos muitos que, com toda a generosidade, nos encorajaram, nos deram o seu tempo e nos facultaram a sua sabedoria e os seus conhecimentos e muitos outros que, cuidadosa e criticamente, leram o manuscrito total ou parcialmente. Dessa preciosa ajuda resultou a eliminação de muitas deficiências e a correção de erros de detalhe ou interpretação. Agradecemos especialmente a Diane Ackerman; Christopher Chy ba, do Ames Researeh Center, da NASA; Jonathan Cott; James F. Crow, do Departamento de Genética da Universidade do Wisconsin; Richard Dawkins, do Departamento de Zoologia da Universidade de Oxford; Irven de Vore, do Departamento de Antropologia da Universidade de Harvard; Frans B. M. de Waal, do Departamento de Psicologia da Universidade de Emory e do Centro de Pesquisa de Primatas de Yerkes; James M. Dabbs Jr., do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual da Georgia; Stephen Emlen, do Departamento de Neurobiologia e Ciências do Comportamento da Universidade de Cornell; Morris Goodman, do Departamento de Anatomia e biologia Celular da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de Way ne; Stephen Jay Gould, do Museu de Zoologia Comparada da Universidade de Harvard; James L. Gould e Carol Grant Gould, do Departamento de Biologia da Universidade de Princeton; Lester Grinspoon, do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Harvard; Howard E. Gruber, do Departamento de Psicologia do Desenvolvimento da Universidade de Columbia; Jon Lomberg; Nancy Palmer, do Shorenstein Barone Center on the Press and Politics da Kennedy Sehool of Government da Universidade de Harvard; Lynda Obst; William Provine, dos Departamentos de Genética e História da Ciência da Universidade de Cornell; Duane M. Rumbaugh e E. Sue Savage-Rumbaugh, do Centro de Estudos Linguísticos da Universidade Estadual da Georgia; Dorion, Jeremy e Nicholas Sagan; J. William Schopf, do Centro de Estudos da Evolução e da Origem da Vida da Universidade da Califórnia, Los Angeles; Morty Sills; Steven Soter, da Smithsonian Institution; Jeremy Stone, da Federação de Cientistas Americanos; Paul West. Muitos cientistas enviaram-nos amavelmente exemplares das suas obras no prelo. Carl Sagan agradece ainda aos seus primeiros professores de ciência, H. J. Muller, Sewall Wright e Joshua Lederberg. Nenhuma destas pessoas é responsável por quaisquer erros ou imperfeições que tenham subsistido neste livro. Estamos também profundamente gratos àqueles que nos auxiliaram na realização deste trabalho ao longo dos seus sucessivos rascunhos. Pela perfeição na pesquisa bibliográfica, transcrições, registro de documentos e muitas coisas mais, estamos muito especialmente gratos a Karenn Gobrecht, assistente de Ann Druyan, e a Eleanor York, assistente de longa data de Carl Sagan na Universidade de Cornell. Agradecemos também a Nancy Birn Struckman, Dolores Higareda, Michelle Lane, Loren Nooney, Graham Parks, Deborah Pearlstein e John P. Wolff. O excelente sistema da biblioteca da Universidade de Cornell constituiu um recurso decisivo para a redação deste livro, que não poderia ter sido escrito sem a ajuda de Maria Farge, Julia Ford Diamons, Lisbeth Collacchi, Mamie Jones e Leona Cummings. Estamos em dívida com Scott Meredith e Jack Scovil, da agência literária Scott Meredith, pelo encorajamento e pelo apoio ilimitados. Muito nos apraz que este livro se tenha tornado uma realidade sob a ação de Ann Godoff, nossa revisora; também agradecemos a Harry Evans, Joni Evans, Nancy Inglis, Jim Lambert, Carol Schneider e Sam Vaughtan, da Random House. Walter Andersen, diretor da revista Pnrade, possibilitou-nos apresentar as nossas ideias a um público o mais vasto possível. Foi, sem dúvida, um grande prazer trabalhar com ele, bem como com o chefe de redação David Currier. Este livro dirige-se a um grande e variado leque de leitores. Para tornarmos as coisas mais claras para todos realçamos determinadas questões mais do que uma vez ou em diferentes contextos, ainda que nos tenhamos esforçado por referir sempre particularidades e excepções. Por vezes, o pronome nós designa os autores do livro, mas, por norma, refere-se à espécie humana; o contexto dar- lhe-á a acepção correta. Para aqueles que desejem aprofundar algumas questões, inserimos no final do livro uma lista de referências bibliográficas, obras técnicas ou de divulgação, assinaladas no texto com expoentes numéricos. Também no final o leitor poderá encontrar um conjunto de comentários adicionais, notas e esclarecimentos. Embora as duas obras pouco tenham em comum, o título do livro foi-nos sugerido por um filme perturbador de Seguei Parajanov, realizado em 1964. Finalmente, convém referir que o fato de nos termos tornado pais de Alexandra Rachel e Samuel Democritus — adorados homônimos de antepassados inesquecíveis — durante a escrita deste livro contribuiu para que nos sentíssemos especialmente inspirados e desejosos de publicá-lo. CARL SAGAN ANN DRUYAN Janeiro de 1992 ou chamaria a polícia? Nós próprios, autores deste livro, possuímos um conhecimento tão reduzido do historial das nossas famílias que apenas conseguimos recuar claramente até duas gerações, vagamente até três, e quase nada além disso. Nem sequer sabemos os nomes — quanto mais as profissões, os países de origem ou as histórias pessoais — dos nossos trisavós. E cremos que a maioria das pessoas na Terra se encontram igualmente isoladas no tempo. Para quase ninguém existem registros que preservem a memória dos antepassados, nem que seja de há uma ou duas gerações. Uma longa cadeia de seres, humanos e não só, liga cada um de nós aos seus antepassados mais remotos. Apenas os elos mais recentes estão iluminados pela débil luz da memória viva — todos os outros mergulham em diversos graus de escuridão, tanto mais impenetrável quanto mais distantes no tempo. Até as famílias mais afortunadas, que conseguiram manter meticulosos registros, abrangem, quando muito, umas dezenas de gerações passadas. E, no entanto, há 100 000 gerações já os nossos antepassados eram reconhecidamente humanos e as eras geológicas estendem-se para lá deles. Para a maior parte de nós a luz avança com as gerações e à medida que as novas vão nascendo perdemos a informação a respeito das antigas. Somos deserdados do nosso passado, separados das nossas origens, não devido a qualquer amnésia ou lobotomia, mas à brevidade da nossa vida e às imensas e insondáveis perspectivas de tempo que nos separam delas. Nós, humanos, somos como um recém-nascido deixado na soleira da porta sem um bilhete a explicar quem é, donde veio, que carga hereditária de qualidades e defeitos traz consigo ou quem seriam os seus antepassados. Estamos ansiosos por ver a ficha do órfão. Em muitas culturas inventamos repetidamente fantasias animadoras a respeito dos nossos progenitores — quanto nos amaram, como foram heroicos e imponentes. Tal como os órfãos, culpamo-nos por vezes por termos sido abandonados. A culpa deve ter sido nossa. Fomos talvez demasiado pecadores, ou moralmente incorrigíveis. Inseguros, agarramo-nos a estas histórias, impondo as mais duras penas a todo aquele que se atreva a duvidar delas. Sempre é melhor do que nada, melhor do que admitir a ignorância quanto às nossas origens, melhor do que reconhecer que fomos abandonados nus e indefesos, um enjeitado numa soleira de porta. Tal como se diz que um bebé se considera o centro do universo, também nós, em tempos, estávamos seguros não só da nossa posição central, mas também de que o universo fora criado para nós. Este conceito, antigo e confortável, esta visão segura do mundo, tem vindo a ruir ao longo dos últimos cinco séculos. Quanto mais fomos aprendendo sobre a forma como o mundo se formou, menos necessidade sentimos de invocar um deus, ou deuses, o que nos levou a concluir que qualquer intervenção divina teria de ser o mais remota possível no tempo e na causalidade. O preço de crescermos é perdermos o encanto protetor. A adolescência é uma volta na montanha-russa. Quando, em 1859, foi aventado que as nossas próprias origens podiam ser entendidas com base num processo natural não místico — que dispensava a existência de um ou mais deuses —, a nossa dolorosa noção de isolamento tornou-se praticamente completa. Nas palavras do antropólogo Robert Redfield, o universo começou a "perder o seu carácter moral" e tornou-se "indiferente, um sistema desinteressado do homem". Além disso, sem Deus, ou deuses, e sem a ameaça constante da punição divina, não serão os homens como bichos? Dostoievski advertiu para o fato de que aqueles que rejeitam a religião, por muito bem-intencionados que sejam, "acabarão por ensopar a terra em sangue". Outros frisaram que o derramamento de sangue se tem verificado desde a aurora da civilização — e, frequentemente, em nome da religião. A perspectiva desagradável de um universo indiferente — ou, pior, de um universo sem sentido — gerou medo, rejeição, enfado e a noção de que a ciência é um instrumento de alienação. As verdades frias da nossa era científica são, para muitos, hostis. Sentimo-nos sós e desamparados. Ansiamos por um propósito que dê significado à nossa existência. Não queremos que nos digam que o mundo não foi feito para nós. Não nos deixamos impressionar com códigos éticos definidos por mortais: queremos uma mão estendida lá de cima. Estamos relutantes em reconhecer os nossos parentes, que ainda são uns estranhos para nós. Sentimo-nos envergonhados: depois de imaginarmos o nosso antecessor como rei do universo, pedem-nos que aceitemos descendermos do mais baixo que há — barro, lodo e seres insignificantes, tão minúsculos que são invisíveis a olho nu. De que serve darmos atenção ao passado? Por que havemos de incomodar- nos com analogias penosas entre homens e bichos? Por que motivo não nos limitamos, muito simplesmente, a olhar para o futuro? Estas perguntas têm resposta. Se não soubermos do que somos capazes — e não se trata apenas de santos célebres e criminosos de guerra conhecidos —, não saberemos do que teremos de proteger-nos, quais as tendências humanas a encorajar e aquelas contra as quais devemos acautelar-nos. Desse modo, não fazemos a mínima ideia das linhas de ação humana propostas que são realistas nem das que se apresentam como inviáveis e de um sentimentalismo perigoso. A filósofa Mary Midgley escreveu: Saber que tenho, por natureza, mau feitio não me obriga a perdê-lo. Pelo contrário, deve ajudar-me a mantê-lo, obrigando-me a distinguir a minha irritação normal da indignação moral. Por conseguinte, a minha liberdade não parece particularmente ameaçada pelo fato de eu o admitir, nem por qualquer explicação do significado do meu mau feitio por comparação com os animais. O estudo da história da vida, do processo evolutivo e da natureza dos outros seres que conosco habitam o planeta começou a lançar um pouco de luz sobre esses elos remotos da cadeia. Não travamos conhecimento com os nossos antepassados, mas começamos a aperceber-nos da sua presença na escuridão. Aqui e ali identificamos as suas sombras. Em tempos foram tão reais como nós. As nossas naturezas e as deles estão indissoluvelmente ligadas, apesar das eternidades que nos separam. A resposta à pergunta "quem somos?" está nessas sombras. Quando iniciamos a busca das nossas origens, utilizando os métodos e as descobertas da ciência, fizemo-lo quase com uma sensação de temor, com medo do que pudéssemos encontrar. Mas descobrimos, pelo contrário, não só um espaço, mas uma razão para a esperança, como procuramos explicar neste livro. A verdadeira ficha do órfão é extensa. Nós, humanos, já revelamos alguns excertos, por vezes algumas páginas seguidas, mas nada tão elaborado como um capítulo inteiro. Muitas das palavras estão esborratadas. A maioria deve ter-se perdido. Eis, pois, uma versão de algumas das páginas iniciais da ficha do órfão, o bilhete que faltava e que deveria ter vindo a acompanhar o enjeitado na soleira da porta, algo que diz respeito aos nossos primórdios e aos nossos antepassados desconhecidos, fundamentais para o desfecho da nossa história. Tal como muitas histórias de família, esta começa nas trevas — tão antigas e longínquas, em circunstâncias tão inauspiciosas, que ninguém então poderia ter imaginado aonde tudo conduziria. Preparemo-nos para seguirmos o rasto da história da vida e percorrermos o caminho que conduziu até nós — como viemos a ser o que somos. Impõe-se que comecemos pelo princípio. Ou mesmo um pouco antes. Quando as temperaturas e pressões dentro dele se tornam demasiado elevadas, os átomos de hidrogênio — de longe o material mais abundante no universo — comprimem-se uns contra os outros e iniciam-se as reações termonucleares. Se isto sucede numa escala suficientemente grande, a estrela acende-se e a escuridão circundante é expulsa. A matéria transforma-se em luz. A nuvem desfeita começa a girar, achata-se sob a forma de um disco e os grumos de matéria agregam-se — sucessivamente do tamanho de partículas de fumo, grãos de areia, rochas, penedos, montanhas e asteroides. O crescimento continua mediante a absorção gravitacional dos detritos pelos objetos maiores. As faixas isentas de poeira constituem as zonas de alimentação dos jovens planetas. Mal a estrela central começa a brilhar, liberta também baforadas de hidrogênio que devolvem partículas ao vazio. Talvez algum outro sistema de mundos, destinado a aparecer milhões e milhões de anos mais tarde nalguma região distante da Via Láctea, confira alguma utilidade a esses blocos de construção rejeitados. Nos discos de gás e poeira que rodeiam muitas estrelas próximas veem-se, digamos, os viveiros nos quais se vão acumulando e fundindo mundos longínquos e exóticos. Por toda a nossa galáxia existem nuvens interestelares imensas, irregulares, encrespadas e escuras como breu, que se desfazem sob a sua própria gravidade e geram estrelas e planetas. Acontece cerca de uma vez por mês. No universo observável — contendo algo como 100 bilhões de galáxias —, talvez se forme uma centena de sistemas solares em cada segundo. Nessa profusão de mundos, muitos serão áridos e desertos. Outros podem ser luxuriantes e férteis, nos quais seres perfeitamente adaptados às diversas circunstâncias ambientais se desenvolvem, atingem a maturidade e tentam reconstituir os seus primórdios. O universo é incalculavelmente pródigo. Agora que a poeira assentou e o disco se adelgaça já é possível descortinar o que se passa lá em baixo. Girando em volta do Sol, vê-se um grande número de asteroides, todos em órbitas levemente diferentes. Pacientemente, continue a observar. Passam-se várias eras. Com tantos corpos a moverem-se assim tão rapidamente, a colisão de mundos é apenas uma questão de tempo. Se observar mais de perto, poderá ver as colisões que ocorrem em quase toda a parte. O sistema solar nasce no meio de uma violência quase inimaginável. Por vezes a colisão é rápida e frontal e de uma explosão devastadora, ainda que silenciosa, nada mais resta do que cacos e fragmentos. Noutras — quando dois asteroides estão em órbitas e velocidades quase idênticas — as colisões são mais como cotoveladas, toques suaves, os corpos ficam unidos, surgindo então um asteroide duplo, maior. Passada uma ou duas eras, apercebe-se de que vários corpos muito maiores estão a desenvolver-se — mundos que, por sorte, escaparam a uma colisão desintegradora nos primeiros e mais vulneráveis tempos da sua existência. Esses corpos — cada um deles instalado na sua própria zona de alimentação — vão avançando por entre os asteroides mais pequenos e devoram-nos. Cresceram de tal maneira que a sua gravidade lhes limou as irregularidades; estes mundos maiores são esferas quase perfeitas. Quando se aproxima de um corpo mais maciço, ainda que não o bastante para com ele colidir, um asteroide dá uma guinada, a sua órbita altera-se. Na nova trajetória pode vir a embater noutro corpo qualquer, talvez até a desfazê-lo em mil pedaços, a sofrer uma morte pelo fogo ao precipitar-se no interior do jovem sol que consome a matéria que o rodeia ou a ser gravitacionalmente ejectado para a gélida escuridão interestelar. Poucos são os que se encontram em órbitas tranquilas, sem serem devorados, pulverizados, fritos ou exilados. Esses continuam a crescer. Acima de uma certa massa, os mundos maiores atraem não só a poeira, mas também grandes fluxos de gás interplanetário. Veja como se desenvolvem; finalmente, cada um está com uma vasta atmosfera de hidrogênio e hélio, a qual envolve um núcleo de rocha e metal. Passam a ser os quatro planetas gigantes: Júpiter, Saturno, Úrano e Neptuno. Verá surgirem então os traços caraterísticos da nuvem envolvente. Colisões de cometas com as luas daqueles planetas cinzelam anéis elegantes, enfeitados, iridescentes e efémeros. Os pedaços de um mundo que explodiu voltam a juntar-se, dando origem a uma nova lua amolgada, esquisita, feita de retalhos. Diante dos seus olhos, um corpo com as dimensões da Terra raspa a superfície de Úrano, fazendo-o tombar para um dos lados, pelo que de imediato cada um deles alinha os respetivos polos com o longínquo Sol. Mais para o interior, onde o disco de gás entretanto se dissipou, alguns desses mundos estão a transformar-se em planetas, como a Terra, uma outra categoria de sobreviventes nesta roleta russa gravitacional de aniquilamento de mundos. A acumulação final dos planetas interiores não leva mais de 100 milhões de anos, mais ou menos o equivalente, comparando a existência do sistema solar com a duração média da vida de um ser humano, aos primeiros nove meses. Sobrevive uma zona em forma de donut (rosca) com milhões de planetoides rochosos, metálicos e orgânicos: a cintura de asteroides. Biliões de pequenos corpos celestes gelados, os cometas, mergulhados na escuridão além do planeta mais distante, descrevem lentamente as suas órbitas à volta do Sol. Estão agora formados os principais astros do sistema solar. A luz do Sol jorra através de um espaço interplanetário transparente e quase isento de poeiras, aquecendo e iluminando os mundos. Estes continuam a correr e a querenar em volta do Sol. Mas observe mais de perto ainda e verá que estão a operar-se outras mudanças. Recorde-se de que nenhum destes mundos tem querer; nenhum pretende estar numa determinada órbita. Aqueles, porém, que se encontram em órbitas circulares, bem-comportadas, tendem a crescer e a prosperar, ao passo que os que estão em órbitas vertiginosas, rebeldes, excêntricas ou imprudentemente inclinadas tendem a ser afastados. Com o passar do tempo, a confusão e o caos do primitivo sistema solar amainam lentamente, dando lugar a um conjunto de trajetórias firmemente mais ordenadas, simples, regularmente espaçadas e, aos nossos olhos, de uma beleza cada vez maior. Certos corpos celestes são selecionados para sobreviverem, outros para serem destruídos ou exilados. Esta seleção de mundos ocorre através da aplicação de algumas leis do movimento e da gravidade extremamente simples. Não obstante a política de boa vizinhança dos mundos bem-comportados, pode ver-se, de vez em quando, um asteroide nitidamente azougado em rota de colisão. Nem mesmo um astro com a órbita circular mais circunspecta tem qualquer garantia de que não será totalmente aniquilado. Para continuar a sobreviver, um mundo como a Terra tem também de continuar a ter sorte. É surpreendente o papel que algo muito parecido com a sorte tem em tudo isto. Não é possível saber de antemão qual o asteroide que será despedaçado ou expulso e qual o que, em segurança, atingirá a maturidade como planeta. Existem tantos objetos num conjunto tão complexo de interações mútuas que é muito difícil dizer — olhando apenas para a configuração inicial, de gás e poeira, ou até mesmo de os planetas se terem mormente formado — qual virá a ser a distribuição final dos mundos. Talvez algum outro observador suficientemente avançado possa descobri-lo e predizer o seu futuro — ou até pô-lo em marcha para que, milhares de milhões de anos mais tarde, através de alguma sequência de processos complexa e sutil, surja, lentamente, um desfecho desejado. Mas isso ainda não é para os seres humanos. Começamos por uma nuvem caótica e irregular de gás e poeira aos tombos e contrações na noite interestelar e acabamos por ficar com um sistema solar elegante e precioso como uma joia, com uma luz brilhante, com os planetas ordenadamente espaçados, tudo certinho como um relógio. Os planetas mantêm-se separados, já o percebemos, pois os que não o fizerem acabam por morrer. É fácil entender o motivo por que alguns dos físicos da Antiguidade que penetraram pela primeira vez na realidade das órbitas coplaneares e sem se interceptarem dos planetas julgaram ver nisso a ação de um criador. Eram incapazes de conceber qualquer outra hipótese alternativa que explicasse uma precisão e um ordenamento tão grandiosos. Mas, à luz dos conhecimentos atuais, não existe aqui qualquer sinal de orientação divina, nada, pelo menos, fora da física e da química. Vemos, pelo contrário, as provas de um tempo de violência implacável e constante no qual foram, de longe, muito mais os mundos destruídos do que os preservados. Atualmente sabemos como é que a delicada precisão que o sistema solar agora exibe foi extraída do desordenamento de uma nuvem interestelar 2 Flocos de neve caídos na lareira Não existe ainda uma pessoa, um único animal, ave, peixe, caranguejo, árvore, rocha, vale, desfiladeiro, prado, floresta. Apenas e só o céu [...]" POPOL VUH The Mayan Book of the Dawn of Life Antes dos tempos áureos e distantes, ó minha adorada, houve o verdadeiro tempo dos primórdios e foi então que o mago mais velho preparou as coisas. Primeiro preparou a Terra; depois preparou o mar; então disse a todos os animais que podiam vir cá para fora brincar. RUDYARD KIPLING O caranguejo que brincava com o mar Se pudéssemos dirigir um carro sempre direto para baixo, dentro de uma ou duas horas estaríamos nas profundezas da camada superior da Terra, muito abaixo dos cumes dos continentes, nós nos aproximaríamos de uma região infernal onde as rochas se transformam num líquido viscoso, móvel e escaldante. E, se pudéssemos dirigir sempre reto para cima, dentro de uma hora estaríamos no espaço interplanetário quase isento de ar. Debaixo de nós — azul branco, indescritivelmente vasto e transbordante de vida — estender-se-ia o belo planeta no qual a nossa espécie e tantas outras se desenvolveram. Habitamos uma zona pouco espessa, de clemência ambiental. Comparada com o tamanho da Terra, é mais fina do que a camada de verniz num grande globo de uma sala de aulas. Mas antigamente, há muito tempo, nem mesmo esta exígua fronteira habitável, entre o inferno e o céu, estava preparada para receber vida. A Terra forma-se na escuridão. Embora o Sol primitivo esteja flamejante, há tanto gás e poeira entre a Terra e o Sol que, de início, não passa a mínima claridade. A Terra está encerrada num casulo negro de detritos interplanetários. Há um ou outro breve clarão, durante o qual se vislumbra um mundo devastado, bexigoso, sem o formato esférico. À medida que acumula cada vez mais matéria, em unidades que vão das poeiras aos asteroides, torna-se mais liso, menos encaroçado. Uma colisão com um asteroide que se desloca a grande velocidade provoca uma exposição estilhaçante e escava uma enorme cratera. A maior parte do projétil desintegra-se em pó e átomo. ocorre um grande número de choques como este. O gelo transforma-se em vapor. O planeta fica envolto numa névoa — que retém o calor dos impactos. A temperatura eleva-se até que a superfície da Terra se liquefaz por completo, um mundo-mar de lava em turbilhão iluminado pelo próprio calor incandescente e coroado por uma asfixiante atmosfera de vapor. São estes os derradeiros estádios da grande unificação. É nesta altura, em que a Terra é jovem, que se dá a catástrofe mais espetacular da história do nosso planeta: uma colisão com um mundo de grandes dimensões. Este não chega a partir a Terra, mas arranca-lhe um bom bocado, que é expelido para o espaço envolvente. O anel de detritos Orbitais resultante irá em breve fechar-se para dar origem à Lua. O dia tem então apenas algumas horas. As marés gravitacionais provocadas pela Lua nos mares e no interior da Terra, e por esta no corpo sólido da Lua, afrouxam gradualmente a rotação da Terra e alongam o dia. Desde o momento da sua formação que a Lua se mantém à deriva, longe da Terra. Ainda hoje paira sobre nós, como que a recordar-nos, sinistramente, que, se o mundo com o qual chocamos fosse muito maior, a Terra ter-se-ia espalhado em pedaços pelo sistema solar interior — um mundo azarado e de vida curta, como tantos outros. Nesse caso, os humanos nunca teriam existido. Seríamos apenas mais uma alínea na extensa lista de possibilidades irrealizadas. Pouco depois de a Terra se ter formado, o seu interior liquefeito começou a fervilhar, circulavam grandes correntes de convecção, era um mundo em lume brando. O metal pesado precipitou-se para o seu centro, formando um núcleo de massa derretida. Movimentos no ferro líquido começaram a gerar um forte campo magnético. Chegou então a altura em que o sistema solar ficou praticamente livre de gases, poeiras e asteroides. Na Terra, a atmosfera densa — que mantivera o calor lá dentro — dissipou-se. Foram, aliás, as próprias colisões que ajudaram a lançar essa atmosfera para o espaço. A convecção ainda trazia o magma até a superfície, mas o calor da rocha derretida podia agora ser irradiado para o espaço. Aos poucos, a superfície da Terra começou a arrefecer. Algumas das rochas solidificaram e formou-se uma crosta fina, frágil de início, que depois se tornou mais espessa e mais dura. Através de falhas e fissuras, o magma, o calor e os gases continuaram a escapar-se do interior. Pontuado por espasmódicas saraivadas de mundos que se despenhavam do céu, o bombardeamento abrandou. Cada um dos fortes embates produzia uma enorme nuvem de poeira. De início, os embates foram tantos que um manto de finas partículas envolveu o planeta, impedindo que a luz solar chegasse à superfície, e, ao anular, consequentemente, o efeito de estufa atmosférica, gelou a Terra. Parece ter havido um período, depois da solidificação do oceano de magma mas antes de terminado forte bombardeamento, em que a Terra, em tempos derretida, se transformou num planeta gelado, combalido. Quem, ao observar esse mundo desolador, poderia dá-lo como apto para a vida? Qual o excêntrico Otimista capaz de prever que um dia ainda nasceriam peônias e águias desse deserto? A atmosfera primitiva havia sido ejectada para o espaço pela implacável chuva de asteroides. Agora, do interior, elevava-se tremulamente uma segunda, que se mantinha. À medida que os impactos foram diminuindo, Os mantos globais de poeira rarefizeram-se. Visto da superfície da Terra, o Sol devia exibir um brilho trêmulo, como num filme antigo. Houve, portanto, um momento em que a luz solar atravessou pela primeira vez o manto de poeira, quando, pela primeira vez, o Sol, a Lua e as estrelas puderam ser vistos e não havia lá ninguém para os ver. Houve um primeiro nascer do Sol e um primeiro cair da noite. Nos períodos ensolarados, a superfície aquecia. O vapor de água libertado arrefecia e condensava-se; formavam-se gotículas de água que, escorrendo, iam encher as terras baixas e as bacias escavadas pelos impactos. os blocos de gelo continuavam a cair do céu, vaporizando-se à chegada. Enxurradas de chuvas extraterrestres ajudaram a formar os mares primitivos. As moléculas orgânicas compõem-se de carbono e outros átomos. Toda a vida na Terra é feita de moléculas orgânicas. É claro que elas, de certa forma, tiveram de ser sintetizadas antes da origem da vida para que esta irrompesse. Tal como a água, as moléculas orgânicas tanto surgiram cá de baixo como lá de cima. A atmosfera primitiva foi energizada pela luz ultravioleta e pelo vento solar, pelos clarões e estampidos de relâmpagos e trovões, por electrões aurorais, pela intensa radioatividade inicial e pelas ondas de choque dos objetos que metralhavam o solo. Quando, em laboratório, tais fontes de energia são inseridas em presumíveis atmosferas da Terra primitiva, formam-se muitos dos blocos de construção da vida com uma facilidade assombrosa. que comiam a matéria orgânica que sujava a paisagem: comer os alimentos parece ser muito menos cansativo do que produzi-los. E esses pequenos seres tiveram, também eles, antepassados... e assim sucessivamente, até remontarmos à mais antiga molécula, ou sistema molecular, capaz de fazer cópias rudimentares de si mesma. Por que se desenvolveram tão cedo as formas coloniais? Talvez tenha sido por causa do ar. O oxigênio, produzido hoje pelas plantas verdes, devia existir em pequenas quantidades antes de a Terra se cobrir de vegetação. Mas o ozônio é produzido pelo oxigênio. Sem oxigênio não há Ozono. Se não há ozônio, a cauterizante radiação ultravioleta do Sol (UV) penetrar até o solo. A intensidade de UV à superfície da Terra nesses primeiros tempos deve ter atingido níveis letais para os seres desprotegidos, como sucede, atualmente, em Marte. Estamos preocupados — e com fortes motivos para isso — com que os clorofluorcarbonetos e outros produtos da nossa civilização industrial venham a reduzir em algumas dezenas a percentagem de ozônio. As consequências biológicas preveem-se terríveis. Quão mais grave isso deve ter sido sem qualquer escudo de ozônio! Num mundo com UV letais a alcançarem a Superfície das águas, a proteção contra os raios Solares pode ter sido a chave para a sobrevivência — como poderá vir a acontecer. os micro-organismos estromatólitos recentes segregam uma espécie de goma extracelular que os ajuda a fixarem-se uns aos outros e também a aderirem ao fundo do mar. Deve ter havido uma profundidade ideal, não tão baixa que os UV infiltrados Os fritassem imediatamente nem tão grande que a luz visível fosse demasiado fraca para a fotossíntese. Aí, parcialmente escudados pelas águas do mar, os organismos teriam toda a vantagem em colocarem algum material opaco entre eles e os UV. Suponha que, na reprodução, as células filhas de organismos unicelulares não se separavam para seguirem a sua vida individual, mas, em vez disso, mantinham-se presas umas às Outras, formando — após muitas reproduções — uma massa irregular. As células exteriores sofreriam o impacto dos danos dos raios ultravioletas e as interiores ficariam protegidas. Se as células se espalhassem, todas, numa fina camada à superfície do mar, morreriam todas; se estivessem agrupadas, muitas das células do interior ficavam protegidas daquela radiação mortal. Isto pode ter sido uma poderosa motivação primitiva para uma forma de vida em comunidade. Algumas morreram para que outras pudessem viver*. Não se conhecem fósseis mais antigos, em parte, por haver muito pouco da superfície da Terra que tenha sobrevivido de uma época que remonta a muito mais de 3,6 bilhões de anos. Quase toda a crosta dessa época foi transportada para as profundezas do nosso planeta e destruída. Num magnífico sedimento da Gronelândia, com 3,8 bilhões de anos, existem provas, a partir dos tipos de átomos de carbono presentes, de que a vida já podia estar amplamente espalhada nessa época. Assim sendo, a vida aconteceu entre algo como 3,8 bilhões e, talvez, 4 bilhões de anos atrás. Não pode ter surgido muito antes. De onde — devido ao carácter inóspito da Terra infernal e à necessidade de um período suficiente para que os seres que deram origem aos estromatólitos evoluíssem — a origem da vida deve limitar-se a uma faixa estreita relativamente à vastidão dos tempos geológicos. A vida parece ter surgido muito rapidamente. Por tentativas, sinuosamente, o órfão procura descobrir, nos 100 milhões de anos mais recentes, quando é que a árvore da família ganhou raízes. O "conto" é muito mais difícil que o "quando". Perigos ambientais mortíferos, uma espécie de abraço comum para a proteção recíproca, e as mortes — nenhuma delas desejada ou propositada, é claro — de um vasto número de pequenos seres foram caraterísticas da vida quase desde o princípio. Certos seres salvavam os irmãos; outros devoravam os vizinhos. Quando a vida começou a emergir, a Terra devia ser, cremos, sobretudo um planeta oceânico cuja monotonia era quebrada, aqui e além, pelos rebordos de grandes crateras de impactos. O próprio início dos continentes remonta a 4 bilhões de anos. Sendo feitos de rochas mais leves, tal como agora, elevavam-se das movediças placas continentais. Então, como agora, as placas eram, aparentemente, arrancadas à Terra, transportadas pela sua superfície como que numa enorme correia transportadora, até voltarem a mergulhar no interior semifluido. Entretanto, surgiam novas placas. Grandes quantidades de rocha móvel iam-se deslocando, lentamente, entre a superfície e o fundo. Havia sido criado um enorme motor termodinâmico. Há cerca de 3 bilhões de anos, os continentes começaram a tornar-se maiores. Percorreram metade da Terra transportados pelo mecanismo de placa crustal, abrindo um oceano e fechando outro. ocasionalmente, Os continentes esbarravam uns nos outros em delicados movimentos de câmara lenta, a crusta empenava e enrugava-se, irrompendo cadeias montanhosas. O vapor de água e outros gases eram expelidos sobretudo ao longo das cristas mesoceânicas e dos vulcões nas orlas das placas. Hoje em dia podemos detectar prontamente o crescimento dos continentes, o seu movimento relativo à superfície (por vezes designado por deriva dos continentes) e a subsequente deslocação do fundo do mar para o interior, dum tipo de movimento denominado "tectônico de placas". os continentes tendem a manter-se flutuantes mesmo quando as suas plataformas subjacentes mergulham rumo à destruição. O tempo, contudo, até mesmo aos continentes cobra o seu tributo. Uma parte da velha crosta continental está sempre a ser levada para as profundezas dos continentes verdadeiramente antigos apenas sobreviveram até aos nossos dias alguns fragmentos — na Austrália, Canadá, Gronelândia, Suazilândia e Zimbabué. Os gases que contribuem para o efeito de estufa e as finas partículas estratosféricas, ambos produzidos por vulcões, podem, respetivamente, aquecer ou arrefecer a Terra. A configuração variável dos continentes determina os padrões de precipitação e das monções e a circulação de correntes marítimas de aquecimento ou arrefecimento. quando os continentes estão todos agregados, a diversidade de ambientes marítimos é limitada; quando estão espalhados por todo o globo, há muito mais espécies de ambientes, sobretudo aqueles junto à costa onde parece ter sido feita uma parte surpreendente das inovações biológicas fundamentais. Assim, a história da vida e muitas das etapas que conduziram até nós, humanos, foram regidas por enormes lençóis e colunas de magma circulante — impulsionados pelo calor proveniente quer de mundos que se uniram para formar nosso planeta, quer do afundamento do ferro em fusão ao formar o núcleo da Terra, quer ainda da desintegração de átomos radioativos originados nos estertores da morte de estrelas longínquas. Se estes eventos tivessem sido um pouco diferentes, a quantidade de calor produzida também teria sido diversa, a tectônica de placas trabalharia com outro ritmo ou num modo diferente e, do vasto leque de futuros possíveis, a evolução da vida teria seguido outro rumo. Alguma espécie muito diferente, que não a humana, talvez fosse agora a forma de vida dominante na Terra. Quase nada sabemos acerca da configuração dos continentes ao longo dos primeiros 4 bilhões de anos. Podem ter estado muitas vezes espalhados por cima dos oceanos e reagregados numa única massa. Em, pelo menos, 85% da história da Terra, um mapa do nosso planeta parecer-nos-ia totalmente desconhecido — como se de outro mundo se tratasse. A mais remota reconstituição, bem fundada, que conseguimos fazer data de uma época tão recente como 600 milhões de anos. O hemisfério norte era então quase todo um oceano; no Sul, um único continente maciço juntamente com fragmentos de futuros continentes vagueavam, à deriva, pela face da terra à velocidade de cerca de 2,5 cm por ano — muito mais lenta do que a de um caracol. AS árvores crescem mais rapidamente na vertical do que os continentes se movem na horizontal, mas, dispondo de milhões de anos para o fazerem, isso é mais do que o suficiente para que Os continentes colidam e alterem por completo o que está nos mapas. Durante centenas de milhões de anos, os que são agora os continentes do Sul — Antártica, Austrália, África e América do Sul —, mais a Índia, estavam unidos num único bloco a que os geólogos chamam Gonduana*. O que mais tarde seria a América do Norte, a Europa e a Ásia andava à deriva, vogando em pedaços pelo meio do mar. Finalmente, todos esses detritos continentais mutantes uniram-se num único e maciço supercontinente. ora o pardal, ao entrar por uma porta e sair imediatamente por outra, enquanto está aqui dentro, fica a salvoda intempérie, mas após um curto espaço de bom tempo desaparece imediatamente da vossa vista e volta para o sombrio Inverno donde viera. É, pois, o que esta vida do homem parece por um breve instante, mas do que já se passou, ou está ainda para vir, somos absolutamenteignorantes. THE VENERABLE BEDE Ecclesiastical History 3 "Que fazes"? Porventura perguntará o barro ao oleiro: que fazes? ISAIAS, 45, 9 O mundo e tudo o que nele existe foi feito para nós, tal como nós fomos feitos para Deus. Durante os últimos milhares de anos, sobretudo desde os finais da Idade Média, esta afirmação orgulhosa e autoconfiante foi-se tornando cada vez mais uma crença comum, defendida por imperadores e escravos, papas e priores de paróquia. A Terra era um cenário teatral profusamente decorado, concebido por um encenador engenhoso, ainda que inescrutável, o qual conseguira reunir lá, vindo só ele sabia donde, um variado elenco de tucanos e pálidos insetos, enguias, ratazanas, ulmeiros, iaques, e muitos, muitos mais. Dispô-los todos diante de nós, com os seus trajes de noite de estreia. Eram nossos, para fazermos com eles o que nos apetecesse: arrastar os nossos fardos, puxar os nossos arados, guardar as nossas casas, produzir leite para os nossos filhos, oferecer a sua carne para as nossas mesas, proporcionar úteis ensinamentos sobre as virtudes não só do trabalho árduo, mas também da monarquia hereditária. Por que motivo achou ele que precisávamos de centenas de tipos de carrapatos e baratas diferentes quando um ou dois teriam sido mais do que suficientes, por que razão existem mais espécies de besouros do que de qualquer outro tipo de ser na Terra, ninguém sabia. Não importa; o efeito final da extravagante diversidade da vida apenas poderia ser entendido postulando que um criador, cujos motivos ignoramos completamente, criara o palco, o cenário e os atores secundários para nosso benefício. Durante milhares de anos, praticamente todos, tanto teólogos como cientistas, consideraram-na, emocional e intelectualmente, uma explicação satisfatória. O homem que destruiu este consenso fê-lo com a maior relutância. Não era nenhum ideólogo dado a rebelar-se contra o sistema, nenhum agitador. Não fora um simples acaso, teria, muito provavelmente, passado os seus dias como um simpático pastor da Igreja anglicana nalguma aldeia linda e bucólica do século XIX. Em vez disso, ateou um incêndio tal, que destruiu mais da antiga ordem do que qualquer revolução política violenta já ocorrida. Através do método científico, surpreendentemente poderoso, este cavaleiro, que era conhecido por achar enfadonha uma conversa animada, transformou-se, de certa forma, no revolucionário dos revolucionários. Durante mais de um século, a simples menção do seu nome era o suficiente para inquietar os devotos e despertar os estudiosos da sua constante sonolência. Charles Darwin nasceu em Shrewsbury, na Inglaterra, em 12 de Fevereiro de 1809, sendo o quinto filho de Robert Waring Darwin e Susannah Wedgwood. As famílias Darwin e Wedgwood estavam unidas por uma estreita amizade entre os seus patriarcas, Erasmus Darwin, o célebre escritor, físico e inventor, e Josiah Wedgwood, que superara a pobreza, vindo a fundar a dinastia da porcelana Wedgwood. Estes dois homens partilhavam opiniões radicalmente progressistas ao ponto de apoiarem as colônias rebeldes durante a revolução americana. "Aquele que permite a opressão", escreveu Erasmus, "participa no crime." O clube a que pertenciam chamava-se "Sociedade Lunar" porque se reunia apenas durante a lua cheia, quando o regresso a casa, a altas horas da noite, estava bem iluminado, sendo, por isso, menos perigoso. Entre os seus membros contava-se William Small, que dera aulas de ciências a Thomas Jefferson (no College of William and Mary, na Virgínia, e a quem Jefferson distinguia como tendo "provavelmente traçado os destinos" da sua vida), James Watt, cujas máquinas a vapor deram o poderio ao império britânico, o químico Joseph Priestley, descobridor do oxigênio, e um perito em eletricidade chamado Benjamin Franklin. O poeta Samuel Tay lor Coleridge considerava Erasmus Darwin "o homem com a mente mais original" que já conhecera. Erasmus tornou-se igualmente muito célebre como médico. George III convidou-o para seu médico pessoal. (Erasmus declinou o honroso convite, alegando uma certa relutância em deixar a felicidade do seu lar no campo, mas talvez o paladino dos revolucionários entender a evolução da vida quando a hereditariedade era ainda um mistério quase total, só mesmo um cientista excepcionalmente louco ou excepcionalmente capaz. Josiah Wedgwood e Erasmus Darwin acalentavam há muito a esperança de que um dia os seus filhos formalizassem pelo casamento os laços de afeto que já uniam as duas famílias. Dos dois só Erasmus viveu para assistir a isso. O filho Robert, um médico generoso mas sorumbático,homem alto e gordo, uma figura da pena de Dickens, que tanto confortava como amedrontava os doentes do seu enorme consultório, casou com Susannah Wedgwood. Esta era muito admirada pela sua "natureza doce e compreensiva" e pelo papel ativo que desempenhou nos interesses científicos do marido. Susannah sofreu uma morte agonizante devido a uma doença gastrointestinal, longe da vista mas ao alcance do ouvido do filho de 8 anos, Charles, o qual, ao escrever, já no fim da sua vida, não conseguia lembrar-se de nada acerca da mãe, "exceto do seu leito de morte, do seu roupão de veludo negro e da mesa de trabalho, curiosamente talhada". Nas suas memórias autobiográficas, idealizadas como um presente para os filhos e netos e escritas "como se eu fosse um homem morto a olhar, de um outro mundo, para o desenrolar da minha própria vida", Charles Darwin reconheceu que "de muitas formas fui um menino mau [...] Era muito dado a inventar falsidades propositadas e isso era sempre feito com o intuito de causar agitação." Gabou-se para outro garoto de que "conseguia produzir narcisos e prímulas de várias cores, regando-os com certos líquidos coloridos, o que era, evidentemente, uma terrível mentira". Já nessa tenra idade começava a especular sobre a variabilidade das plantas. A sua dedicação de toda uma vida ao mundo natural estava assim criada. Tornou-se um colecionador apaixonado dos pedacinhos de Natureza que formam os resíduos saibrosos no fundo das algibeiras das crianças em toda a parte. Era particularmente louco por besouros, mas a irmã convenceu-o de que seria imoral tirar a vida a um besouro só para o colecionar. Respeitosamente, limitava-se a recolher apenas os recentemente falecidos. Observava as aves e anotava os seus comentários acerca do comportamento delas. "Na minha simplicidade", escreveu ele mais tarde, "lembro-me de me interrogar por que não se tornava cada cavalheiro um ornitólogo." Aos 9 anos mandaram-no estudar no externato do Dr. Butler. "Nada poderia ter sido pior para o meu desenvolvimento mental", escreveu Darwin mais tarde. Butler afirmava que a escola não era sítio para se encarar o ensino com curiosidade ou excitação. Para isso, Charles recorreu a um exemplar já muito manuseado de Maravilhas do Mundo e a alguns membros da sua família que, pacientemente, lhe respondiam às muitas perguntas. Já velho, recordava ainda o prazer que sentiu quando um tio lhe explicou o funcionamento do barômetro. O irmão mais velho, Erasmus — como o avô —, transformou a arrecadação do jardim num laboratório de química e deixava que Charles o ajudasse nas suas experiências. Isso fez com que Charles ganhasse, na escola, a alcunha de Gás e uma furiosa repreensão pública do Dr. Butler. Charles estava tendo resultados tão fracos na escola que, quando chegou a hora de Erasmus partir para a Universidade de Edimburgo, o pai decidiu mandar o irmão com ele. Os jovens deviam estudar medicina. Aqui, uma vez mais, Charles achou as aulas opressivamente enfadonhas. Não era capaz de dissecar nada e a experiência de assistir a uma operação atamancada numa criança, "muito antes dos abençoados tempos do clorofórmio", iria persegui-lo para o resto da vida. Mas foi em Edimburgo que pela primeira vez encontrou amigos que partilhavam a sua paixão pela ciência. Após duas estadas em Edimburgo, Robert Darwin resignou-se com o fato de Charles não estar talhado para uma carreira médica. Quem sabe se não daria um bom ministro anglicano? Obedientemente, Charles não levantou objecções, mas, mesmo assim, entendeu que devia pôr-se ao corrente dos dogmas da Igreja anglicana antes de aceder a dedicar a sua vida à instilação disso nos outros. "Consequentemente, li com cuidado o que Pearson escreveu sobre o Credo e mais alguns livros sobre teologia; e como na altura não duvidava minimamente da verdade estrita e literal de cada palavra da Bíblia, em breve me convenci de que o nosso Credo deve ser totalmente aceite." Charles passou os três anos seguintes na Universidade de Cambridge, onde conseguiu obter melhores notas. Continuava, porém, a sentir uma insatisfação inquieta com o currículo. Os momentos mais felizes que lá viveu foram os que passou na perseguição dos seus adorados besouros, agora tanto mortos como vivos: Vou dar uma prova do meu empenho: certo dia, ao arrancar a casca de uma velha árvore, vi dois besouros raros e guardei um em cada mão; depois vi um terceiro, de uma nova espécie, que não podia perder, e por isso enfiei na boca o que tinha na mão direita. Azar o meu! Ele expeliu um líquido qualquer, intensamente acre, que me queimou a língua, vendo-me, por isso, obrigado a cuspir o besouro, que fugiu, tal como o terceiro. Foi como caçador de besouros que foi feita a primeira referência do livro a Charles Darwin. "Não há poeta que se sinta mais encantado ao o seu primeiro poema publicado como eu me senti ao ler, nas ilustrações de Insectos Britânicos, de Stephen, as palavras mágicas capturado por C. Darwin, Esq." Em Cambridge fora persuadido a frequentar uma cadeira de Geologia regida por Adam Sedgwick. Darwin falou ao professor Sedgwick da curiosa mas credível afirmação que lhe fora feita por um trabalhador a respeito de uma "enorme concha desgastada de uma voluta tropical a concha espiralada de um molusco de águas quentes) que havia sido descoberta, incrustada numa velha saibreira de Shrewsbury ". Sedgwick mostrou-se indiferente e desinteressado; devia ter sido atirada para lá por alguém. Darwin recorda-o na sua Autobiografia: Mas, por outro lado [acrescentou Sedgwick], se [a concha estava] realmente incrustada lá, isso seria a maior desgraça para a geologia, pois deitava por terra tudo o que sabíamos acerca dos depósitos superficiais dos condados do Midland. Esses leitos de saibro pertencem, com efeito, ao período glaciário e em anos posteriores encontrei neles conchas árcticas partidas. Mas na altura fiquei totalmente espantado por Sedgwick não se mostrar encantado com algo tão maravilhoso como o fato de uma concha tropical ter sido encontrada quase à superfície no centro da Europa. Nada até então me fizera compreender tão profundamente, conquanto tivesse já lido vários livros científicos, que a ciência consiste em agrupar fatos para que deles possam ser tiradas leis ou conclusões gerais. Nesse tempo o primo de Darwin levou-o a assistir a uma das aulas de botânica do reverendo John Steven Henslow. Foi "uma circunstância que, mais do que qualquer outra, influenciou a minha vida". Homem atraente, 30 e poucos anos, Henslow possuía o dom dos grandes professores a tornar fascinante a sua matéria, de tal forma que os mesmos alunos voltavam, ano após ano, para assistirem a aulas de uma cadeira que já tinham concluído. Para além disso, revelava uma sensibilidade excepcional para com os sentimentos dos alunos. A comissários do almirantado deram autorização a FitzRoy para levar fueguinos para Inglaterra. Embora estivessem vacinados, um deles morreu de varíola. Fuegia Basket, um adolescente a quem chamavam Jemmy Button e um jovem chamado York Minster conseguiram estudar inglês e cristianismo com um ministro anglicano em Wandsworth e ser apresentados por FitzRoy ao rei e à rainha. Era chegada a altura de os fueguinos — cujos verdadeiros nomes ninguém em Inglaterra se dera ao trabalho de saber — regressarem e de o Beagle retomar a sua missão de reconhecimento da América do Sul e "determinar com mais precisão [...] a longitude de um grande número de ilhas oceânicas, assim como dos continentes"". Esta missão foi alargada de modo a incluir "observações de longitude à volta do mundo". Desceria a costa da América do Sul, subiria pela costa ocidental, atravessaria o Pacífico e circum-navegaria o planeta antes de regressar a Inglaterra. Malo Beagle fora de novo posto ao serviço ativo sob o seu comando, o capitão FitzRoy tomara medidas para garantir que esta nova experiência fosse muito diferente da anterior. Em grande parte a expensas suas, mandou reparar o brigue de 27 m de comprimento. Reforçou-lhe o casco,elevou-lhe o convés e engrinaldou-lhe o gurupés e os seus três altos mastros com os mais avançados condutores de para-raios. Tentou aprender tudo o que pudesse acerca do tempo, tornando-se, com isso, um dos fundadores da meteorologia moderna. Em 27 de dezembro de 1831 o Beagle estava, finalmente, pronto para navegar. Na véspera da partida Darwin sofrera um ataque de ansiedade com palpitações cardíacas. Haveria episódios de sintomas semelhantes,perturbações gastrointestinais e profundos acessos de fadiga e depressão ao longo de toda a sua vida. Muito se especulou acerca da causa de tais maleitas. Foram atribuídas a alguma reação psicossomática à perda traumatizante da mãe em tão tenra idade, a ansiedades quanto a reações que a sua obra pudesse provocar em Deus e na opinião pública, a uma tendência inconsciente para o debate de ideias e, estranhamente, dado que os sintomas remontam a muitos anos antes do seu casamento, ao prazer que lhe proporcionava o dom que a adorada esposa tinha para tratar dos doentes. A sequência dos acontecimentos também torna implausível a alegação de que a sua doença ficou a dever-se a um parasita sul-americano apanhado durante a viagem do Beagle. Muito simplesmente, é algo que não se sabe. Os seus sintomas é que fizeram com que este explorador ficasse quase totalmente confinado ao lar durante o último terço da sua vida. A biblioteca pessoal de Darwin durante a viagem incluía dois livros, ambos presentes de despedida. Um era uma tradução inglesa das Viagens de Humboldt, que Henslow lhe oferecera. Antes de sair de Cambridge, Darwin lera a Narrativa Pessoal de Humboldt e a introdução ao estudo da Filosofia Natural, de Hershel, obras que, em conjunto, despertaram nele "uma ânsia fervorosa de contribuir, nem que seja com a mais humildeparticipação, para a nobre estrutura das ciências naturais". O outro presente foi do comandante. Tratava-se do primeiro volume dos Princípios de Geologia, de Charles Lyell, e FitzRoy viria a arrepender-se amargamente da escolha que fizera para presente de partida. As descobertas científicas do século das luzes na Europa tinham colocado inquietantes desafios ao relato bíblico da origem e história da Terra. Havia os que tentavam conciliar os novos dados e as novas concepções com a sua fé. Sustentavam que o dilúvio de Noé era o agente primário responsável pela atual configuração da crusta terrestre. Um dilúvio suficientemente grande podia, na sua opinião, transformar a geologia da Terra em apenas quarenta dias e quarenta noites, de acordo com uma Terra com somente alguns milhares de anos de idade. Com uma pequena virada do leme, e numa leitura liberal do gênesis, julgavam ter logrado resolver o problema. Ly ell praticou advocacia durante o máximo de tempo que pôde aguentar. Quando chegou aos 30 anos, trocou o direito pela geologia, a sua verdadeira paixão. Escreveu os Princípios de Geologia para desenvolver a tese "uniformitarista" de que a Terra foi moldada pelos mesmos processos graduais que se observam atualmente, mas a ocorrerem, não ao longo de algumas semanas ou alguns milhares de anos, mas sim de eras. Houve geólogos famosos que afirmaram que os dilúvios e outras catástrofes talvez explicassem os traços naturais da Terra, mas que para isso não bastava o dilúvio de Noé. Seriam precisos muitos dilúvios, muitas catástrofes. Esses catastrofistas da ciência aceitavam de bom grado as longas escalas de tempo de Lyell, mas, para os literalistas da Bíblia, este vinha colocar uma questão incômoda. Se Lyell tivesse razão, as rochas estavam dizendo que os seis dias da criação bíblica e a idade da Terra, calculada por acumulação dos begats ("procriações") eram de certa forma errados. Foi através desta aparente lacuna no Gênesis que o Beagle rumaria para a história. Contratado sobretudo para companheiro e caixa de ressonância de FitzRoy, Darwin foi obrigado a suportar com serenidade as diatribes politicamente conservadoras, racistas e fundamentalistas do comandante. Durante a maior parte da viagem, os dois homens conseguiram manter tréguas no que se referia às suas diferenças filosóficas e políticas. Apesar de tudo, Darwin não conseguiu deixar passar sem resposta a opinião de FitzRoy numa questão em particular: Na Baía, no Brasil, ele defendeu e elogiou a escravatura, que eu abomino, e contou-me que um dia visitara um grande proprietário de escravos, o qual mandara chamar muitos destes para lhes perguntar se desejavam ser livres, ao que todos responderam que não. Foi aí que eu lhe perguntei, talvez com um sorriso irônico, se ele achara que as respostas dos escravos na presença do seu amo valiam de alguma coisa. Isso enfureceu-o de tal maneira que declarou que, já que eu duvidava da sua palavra, não podíamos continuar a viver juntos. Darwin ficou plenamente convencido de que ia ser expulso do navio, mas, quando os oficiais artilheiros souberam da discussão, começaram a disputar entre si o privilégio de partilharem os seus aposentos com ele. FitzRoy acalmou-se e chegou mesmo a pedir desculpa a Darwin, anulando a expulsão. É possível que as teorias evolucionistas de Darwin tenham surgido, em parte, graças à irritação que sentia face ao convencionalismo inflexível de FitzRoy e à necessidade que o jovem teve de reprimir, durante cinco anos, as refutações que cresciam dentro de si. Talvez fosse o legado do avô que possibilitava a Darwin detectar as incoerências e injustiças que outros membros da sua classe social não queriam ver. Logo no princípio do seu livro The Voyage of the Beagle fala-nos de um local não muito distante do Rio de Janeiro: Este local é famoso por ter sido durante muito tempo o refúgio de alguns escravos fugitivos, os quais, ao cultivarem um pedaço de terra junto ao cume, lograram criar uma forma de subsistência. Acabaram por ser descobertos e, tendo sido enviado um grupo de soldados, foram todos capturados, com exceção de uma mulher idosa, que, antes que a levassem de novo para a escravatura, se desfez em pedaços, atirando-se do alto do monte. Numa matrona romana ter-se-ia chamado a isso nobre amor à liberdade, mas numa pobre negra é apenas uma teimosia selvagem. Darwin fora atraído à América do Sul pela perspectiva de descobrir novas aves e novos besouros, mas não pôde deixar de reparar na carnificina que os Europeus lá infligiam. A arrogância colonial, a instituição da escravatura, a destruição de inúmeras espécies para enriquecimento e distração dos invasores, as primeiras devastações da floresta tropical — em suma, muitos dos crimes e disparates que nos atormentam atualmente — preocuparam Darwin numa época em que a Europa estava convencida de que o colonialismo trazia verdadeiros benefícios aos povos não civilizados, que as florestas eram inesgotáveis e que incômodas acerca da criação começavam vir à superfície e Darwin achou que devia expor a sua própria teoria da forma mais irrefutável. Alargou um curto ensaio iniciado dois anos a uma obra em “On the Variation of Organic Beings under Domestication and in the Natural State” e “On the Evidence Favourable and Opposed to the View That Species Are Naturally Formed Races Descended from Common Stock". Não estava, todavia, preparado para a publicar. Escreveu uma carta a Emma pedindo-lhe que a mesma fosse considerada um codicilo ao seu testamento. Caso ele morresse, pedia-lhe:Destina 400 libras à sua publicação e depois, se o desejares [...] procura divulgá-la. É meu desejo que o esboço seja entregue a uma pessoa conhecedora e que a referida quantia possa incentivá-la a empenhar-se no aperfeiçoamento e divulgação do mesmo. Sentia que estava prestes a fazer uma descoberta importante, mas temia — talvez principalmente por causa dos frequentes achaques que tinha — não viver o bastante para completar a sua obra. No que, superficialmente, parece um passo imediato, logo insólito, colocou então de lado os seus estudos evolucionistas e durante os oito anos que se seguiram dedicou a sua vida quase exclusivamente aos cirrípedes. Um grande amigo seu, o botânico Joseph Hooker, comentaria mais tarde com o filho de Darwin, Francis: "O seu pai ficou obcecado com os cirrípedes desde que passou pelo Chile2o!" Foi esse estudo minucioso que, de fato, lhe trouxe o mérito como naturalista. Outro amigo íntimo, o anatomista e brilhante polemista Thomas Henry Huxley, afirmou que Darwin "nunca fez uma coisa tão acertada [...] Como todos nós, não teve qualquer treino específico em ciências biológicas e sempre me impressionou, como um exemplo notável da sua análise científica, a necessidade que sentiu de se entregar a um treino desses e a coragem de não ter negligenciado o esforço para o obter [...] Foi um trabalho de autodisciplina crítica cujo efeito se refletiu em tudo o que posteriormente escreveu e que o poupou a inúmeros erros de pormenor." Darwin não fora o único cientista a ficar surpreendido com os Vestiges de Chambers. Alfred Russel Wallace, um topógrafo que se tornara naturalista, também não se impressionou com os argumentos de Chambers, mas ficou interessado na ideia de existir um processo conhecido em curso na evolução da vida. Em 1847 viajou até a Amazônia em busca de uma base fatual para esta tese. Um incêndio no navio em que regressava à Inglaterra consumiu todos os seus espécimes. Wallace não desarmou e partiu para a Península Malaia para recolher uma nova coleção. No número de Setembro de 1855 da Annals and Magazine of Natural History surgiu o seu artigo: "On the law which has regulated the introduction of new species". Nessa altura já Darwin andava às voltas com esses problemas havia duas décadas. Agora era totalmente possível que a prioridade que afirmava ter na solução do maior mistério da vida lhe fosse retirada. Se a ciência fosse um ramo que conferisse santidade, a conduta de Darwin e Wallace face um ao outro os teria canonizado a ambos. Darwin escreveu uma carta de calorosas felicitações a Wallace na qual fazia menção ao longo período em que se debruçara sobre o mesmo problema. Os seus amigos Huxley e Hooker incitaram-no a que não protelasse mais e escrevesse o artigo que faria da evolução um dado adquirido. Ele acedeu e estava quase a concluí-lo em 1858, enquanto Wallace, agora na Indonésia e com malária, dava voltas e mais voltas à cabeça debatendo-se com a questão "por que razão uns morrem e outros vivem?. Emergindo do seu estupor, compreendeu o que era a seleção natural. Escreveu "On the tendencies of varieties to depart indefinitely from the original ty pe" e enviou-o prontamente a Darwin, pedindo- lhe que julgasse por si mesmo o que devia ser feito com aquilo. Darwin ficou angustiado ao ver como a obra de Wallace se aproximava tanto dos seus escritos de 1839 a 1842. Em 1844 compilara-os num ensaio, mas nunca o publicara. Darwin recorreu aos amigos para que o orientassem na forma de lidar eticamente com aquele dilema. Hooker e Lyell arranjaram uma solução acertada: apresentar o artigo de Wallace e uma versão do ensaio não publicado de Darwin, de 1844, na reunião seguinte da Sociedade Lineana e publicá-los juntos na Proceedings dessa mesma Sociedade. A partir de então, Wallace referia-se sempre à evolução como sendo a teoria de Darwin e este atribuía sempre a Wallace os créditos da sua descoberta independente. Darwin dedicou- se então à tarefa de escrever o livro que tanto burburinho iria causar. Em 24 de Novembro de 1859 foi publicada A Origem das Espécies. A 1ª edição, de 1.250 exemplares, esgotou-se imediatamente nas livrarias. Darwin tivera o cuidado de fazer apenas uma referência aos seres humanos em todo o livro. "Far-se-á luz sobre a origem do homem e da sua história." Algo mais que viesse da sua pena a respeito de tão delicado assunto teria de esperar mais vinte anos pela publicação de The Descent of Man. A sua contenção não enganou ninguém. Perante o formidável arsenal de provas nele contidas, não podia haver qualquer conciliação entre A Origem e uma interpretação literal do Gênesis. 4 Um evangelho de imundície Detesto todos os sistemas que depreciam a natureza humana. Se é uma ilusão existir algo na construção do homem que seja venerável e digno, deixem-me viver e morrer nessa ilusão, ao invés de me abrirem os olhos para que veja a minha espécie sob uma luz humilhante e repulsiva. Qualquer homem de bem sente crescer a sua indignação contra aqueles que desacreditam os seus parentes ou o seu pai; por que ela não há de crescer contra os que desacreditam o seu semelhante? THOMAS REID (carta de 1775) Quando vejo todos os seres, não como criações especiais, mas como descendentes diretos de outros seres que viveram muito antes de a primeira camada do sistema [geológico] Câmbrico se ter depositado, parece-me que ficam enobrecidos. CHARLES DARWIN, a Origem das Espécies, capítulo XV "A humanidade conduziu uma experiência de proporções gigantescas", escreveu Charles Darwin em A Origem das Espécies. Ficou impressionado com o êxito da "maridagem", como é coloquialmente designada, ao gerar novas variedades de animais e plantas úteis ao homem. A Natureza fornece as variedades e nós selecionamos quem deverá reproduzir-se, quais as caraterísticas que preferimos transmitir a gerações futuras. Ao transferirem o pólen de flor para flor com uma escova de pelo de camelo, ou levando o garanhão à égua, os homens encarregam-se de determinar quem deve acasalar com quem. Cereais indigestos, cavalos débeis, perus esqueléticos, carneiros com lã encaroçada e vacas relutantes em dar leite são dados como inaptos para a reprodução. Geração após geração, através de uma seleção cumulativa, os homens deixam a marca dos seus interesses na efetuado pela seleção natural do que pelo dono da plantação de algodão, o qual, através da seleção, aumenta e apura a qualidade da penugem contida nas cápsulas dos seus algodoeiros [...] Não há razão para que os princípios tão eficientemente adotados na domesticação não tenham sido aplicados na Natureza. Na sobrevivência de indivíduos e raças favorecidos ao longo da sempre repetitiva luta pela vida observamos uma forma de seleção poderosa e sempre atuante. A luta pela vida decorre, inevitavelmente, da elevada razão geométrica de aumento que é comum a todos os seres orgânicos. Esta elevada taxa de aumento é demonstrada pelo cálculo — pelo rápido aumento de muitos animais e plantas ao longo de uma série de estações caraterísticas e quando instalados em novos países. Nascem mais indivíduos do que os que têm hipótese de sobreviver. Um grão de poeira na balança pode decidir quais os que devem viver e os que deverão morrer — qual a variedade ou espécie que aumentará em número, qual a que diminuirá ou a que, por fim, se extinguirá. A mais pequena vantagem num dado indivíduo, qualquer que seja a idade ou a estação do ano, sobre os que com ele estão a competir, ou de certa forma uma melhor adaptação às condições físicas que o rodeiam, irá, a longo prazo, fazer pender o prato da balança"." No seu artigo publicado na Procea lings da Sociedade Lineana, Darwin pede- nos para imaginarmos um ser que pudesse continuar a selecionar-se, com inabalável atenção e ao longo de "milhões de gerações", em busca de uma única caraterística desejada. A seleção natural sugere — muito embora ainda que não literalmente — a existência de um tal ser. "Temos um tempo quase ilimitado para a evolução.", escreveu ele. Prosseguindo, Darwin apresentou a tese de que, ao longo de tão vastos períodos de tempo, uma seleção natural contínua pode gerar num organismo uma tal divergência da sua origem parental que venha a constituir uma nova espécie. As girafas desenvolvem longos pescoços porque aquelas cujos pescoços são — por alguma variação genética espontânea — um pouco mais compridos são capazes de mordiscar a folhagem mais alta, fortalecer-se quando outras ficam mal alimentadas e deixar mais descendentes do que as suas companheiras de pescoço mais curto. Imaginou uma imensa árvore genealógica, símbolo das diversas formas de vida, a crescer lentamente, a criar ramos, e, por anastomose, juntou-lhe organismos que evoluíam para criar todas as "delicadas adaptações" do mundo natural. Há decerto "grandeza" pensava ele, no fato de, "a partir de um começo tão simples, terem evoluído e ainda continuarem a evoluir numerosas formas, qual delas a mais bela, a mais maravilhosa". "A analogia levar-me-ia a avançar um passo, nomeadamente para a crença de que todos os animais e plantas descendem de um mesmo protótipo. Mas a analogia pode ser um guia enganoso. Contudo, todas as coisas vivas têm muito em comum na sua composição química, estrutura celular, leis de crescimento e sujeição a influências perniciosas [...) Quanto ao princípio de uma seleção natural com divergência de caracteres, não parece incredível que tanto animais como plantas possam ter-se desenvolvido a partir de uma forma tão inferior; e, se admitirmos isto, devemos admitir igualmente que todos os seres orgânicos que sempre viveram nesta Terra possam descender de uma única forma primordial." E como surgiu essa forma primordial? Em 1871 Darwin imaginou fantasiosamente numa carta que escreveu ao seu amigo Joseph Hooker: "Mas se (e, oh!, que grande se!) pudéssemos conceber a ideia de que num charcozinho tépido, com todas as espécies de sais de amônia e fosfóricos, luz, calor, eletricidade, etc., lá metidos, se formava um composto proteico pronto a passar por alterações ainda mais complexas Se uma coisa dessas fosse possível, por que motivo não acontece hoje em dia? Darwin anteviu de imediato uma razão para isso. "Na atualidade, uma matéria dessas seria imediatamente devorada ou absorvida, o que não seria o caso antes de se terem formado as criaturas vivas." Para além disso, sabemos agora que a ausência da molécula de oxigênio na atmosfera da Terra primitiva tornou então muito mais provável a formação e sobrevivência de moléculas orgânicas. (E caíram do céu muitíssimo mais moléculas orgânicas do que acontece atualmente no nosso arrumadinho sistema solar.) O charcozinho tépido — ou algo do gênero —, provam-no as experiências laboratoriais, poderia ter produzido rapidamente os aminoácidos. Estes, quando recebem um pouco de energia, reúnem-se prontamente para fazerem algo como "um composto proteico". Em experiências idênticas produzem-se os ácidos nucleicos simples. A suposição de Darwin, tanto quanto se sabe, está hoje plenamente comprovada. Os blocos de construção da vida abundavam na Terra primordial, embora não possamos ainda afirmar que entendemos completa mente a origem da vida. Mas nós, seres humanos, e só a partir de Darwin, começamos apenas a analisar a questão. A publicação de A Origem das Espécies provocou, como seria de esperar, uma reação acalorada, tanto a favor como contra, incluindo uma reunião tempestuosa na Associação Britânica para o Avanço da Ciência dias após o seu lançamento. Talvez possamos analisar melhor o debate alargado se formos buscar as empoeiradas publicações literárias da época. Essas revistas, geralmente de publicação mensal, cobriam o mais amplo leque de tópicos — ficção e não ficção, prosa e poesia, política, filosofia, religião e ciência. Recensões com vinte páginas não eram de todo invulgares. Quase todos os artigos vinham sem o nome do seu autor, embora muitos deles fossem escritos por figuras de proa nas respetivas áreas. Publicações desse gênero, em língua inglesa, parecem rarear hoje em dia, embora o Literary Supplemem do Times londrino e a New York Review of Books sejam, talvez, os que mais se aproximam. A Westminster Review de Janeiro de 1860 admitia que o livro de Darwin podia ser de uma importância histórica: Se o princípio da modificação pela seleção natural for reconhecido à escala que Mr. Darwin pretende [...] abrir-se-á um campo de pesquisa grandioso e quase inexplorado [...) As nossas classificações tornar-se-ão, tanto quanto possível, genealogias e dar-nos-ão verdadeiramente aquilo a que podemos chamar o processo da criação. A Edinburgh Review de Abril de 1860 (numa crítica não assinada pelo anatomista Richard Owen) adotou uma posição menos generosa: As considerações envolvidas na tentativa de revelar a origem do verme não se adequam aos requisitos necessários à solução do problema, mais nobre, da origem do homem [...] Para aquele que de fato possa considerar -se desprovido de alma e igual ao verme que sucumbe, qualquer especulação que aponte com a mínima exequibilidade para uma noção inteligível da forma de se descender de uma espécie inferior organizada talvez seja suficiente e não terá, de futuro, de se preocupar com a sua relação com um criador [...] Mr. Darwin serve-nos [...] vagens intelectuais [...] apoiando-se na firme crença que tem nas qualidades nutritivas das mesmas. O crítico elogia cientistas "que pouco importunam o mundo intelectual com as suas convicções, mas enriquecem-no grandemente com provas" e distingue-os Darwin é a de que o "homem" poderá ser apenas "um macaco aperfeiçoado". Deste ponto Wilberforce não estava muito longe da razão pois aproxima-se do que Darwin pensava.) A seleção natural poder aplicar -se aos seres humanos é algo considerado "absolutamente incompatível" com "a palavra de Deus". Além disso, "a supremacia própria do homem sobre a Terra, a capacidade humana para o discurso articulado, o dom humano da razão, o livre arbítrio e a responsabilidade do homem, a sua queda e redenção, a encarnação do Filho Eterno, são, igualmente, todos fatos absolutamente inconciliáveis com a noção aviltante da origem bestial daquele que foi criado à imagem de Deus e redimido pelo Filho Eterno". O conceito de evolução tende "inevitavelmente a banir do espírito muitas das qualidades caraterísticas do Todo-Poderoso". As percepções de Darwin são equiparadas à "delirante inspiração daquele que inalou gás mefítico". As suas ideias são comparadas pelo bispo Wilberforce às de "um filósofo muito mais ilustre", o professor Owen, que cita, um pouco tangencialmente, nos seus conselhos aos adolescentes: Oh! Vós que o possuis em todo o dócil vigor de saudável juventude, pensai bem naquilo por que Ele passou para vos conservar. Não desperdiceis as vossas energias; não as disperseis por preguiça; não as estragueis com prazeres! O supremo trabalho da criação foi executado para que possuísseis um corpo — o único erecto — de todos os corpos animais o mais livre para quê? Para servir a alma [...] Não o corrompais&". A North British Review de Maio de 1860, não menos hostil, começa assim a sua crítica: "Se a notoriedade for alguma prova de autoria bem sucedida, Mr. Darwin já teve a sua recompensa." Darwin é comparado a escritores que "parecem estar sempre desconfiados de conceitos naturais que tendam, ainda que remotamente, a dispô-los, ou aos seus leitores, em relação direta com um deus pessoal". Tal como sucedeu em muitas das críticas negativas, esta admite a reputação de Darwin enquanto naturalista talentoso e elogia a clareza da sua escrita. É, no entanto, um "charlatão" e acusado de "descrença no criador governante". "A aparente profundidade" do livro "é apenas escuridão". E acusado de erguer um trono "algures, acima do Olimpo, no qual está sentada a deusa da devoção do escritor". Esta deusa é a seleção natural. "O risco de idolatria deu lugar a uma prática mais elevada [...] A obra de Mr. Darwin", conclui a Nort British Review, "está em direto antagonismo com todas as descobertas de uma teologia natural formada por um empenho legítimo no estudo das obras de Deus e é de uma violência manifesta contra tudo o que o próprio criador nos disse nas Sagradas Escrituras". Considera-se que a publicação de A Origem das Espécies foi um "erro". "O seu autor teria feito um favor à ciência, e à sua própria fama, se, estando decidido a escrevê-la, a tivesse guardado no meio dos seus papéis, assinalada como "Uma contribuição para a especulação científica, em 1720" — sendo essa a estimativa do crítico de quão retrógrado e ultrapassado era o argumento de Darwin". O processo da seleção natural, ao extrair a ordem do caos como que por magia, era contraintuitivo e perturbador para muitos e Darwin foi repetidamente acusado de algo que não se afastava muito da idolatria. Respondeu à acusação com estas palavras: Tem sido afirmado que falo da seleção natural como se fosse uma força ativa ou divindade; mas quem se opõe a um escritor que fala da atração da gravidade como reguladora dos movimentos dos planetas? Toda à gente sabe o que se quer dizer e o que se subentende por meio de tais expressões metafóricas, que são quase necessárias por uma questão de brevidade, pelo que, uma vez mais, é difícil evitar personificar o termo Natureza; mas por Natureza entendo apenas o conjunto da ação e resultado de muitas leis naturais, e por leis a sequência de acontecimentos tal como são avaliados por nós. Com um pouco de familiaridade, tais objecções superficiais serão esquecidas [...) Tal como o homem pode produzir, e certamente já produziu, ótimos resultados através da sua forma de seleção metódica e inconsciente, o que não poderá efetuar a seleção natural? O homem só consegue atuar sobre qualidades caraterísticas externas e visíveis: a Natureza, se me é permitido personificar a preservação natural ou sobrevivência dos mais aptos, não se preocupa absolutamente nada com as aparências, a não ser que sejam de utilidade para qualquer ser. Ela pode atuar em qualquer órgão interno, em qualquer grau de diferença de constituição, no mecanismo global da vida. O homem seleciona apenas para seu próprio bem; a Natureza apenas para o do ser a que está a dedicar-se [...] Poderá dizer-se, metaforicamente, que a seleção natural está a escrutinar, dia a dia e hora a hora, por todo o mundo, as mais leves variações, rejeitando os que são maus, preservando e multiplicando todos os que são bons, a trabalhar silenciosa e insensivelmente [...] Nada vemos dessas pequenas mudanças em curso até a mão do tempo ter assinalado o passar das eras, mas nessa altura a nossa visão das eras geológicas remotas é tão imperfeita que apenas vemos que as formas de vida são agora diferentes do que eram dantes. Darwin foi criticado por alguns por ser teleologista — por acreditar que a Natureza atuava com algum objetivo a longo prazo — e, inversamente, por outros por imaginar uma Natureza na qual a variação ao acaso, sem finalidade, era a essência ("a lei da barafunda" como lhe chamou, desinteressadamente, o astrônomo John Herschel). As pessoas tinham realmente dificuldade em entender o conceito de seleção natural. Tudo foi questionado em Darwin, os seus motivos, a sinceridade, a honestidade e a competência. Muitos dos que o criticavam não entendiam o seu argumento ou a força crescente dos dados que invocava para o apoiar. Muitos — incluindo alguns dos mais eminentes cientistas da época, entre os quais, lamentavelmente, se contava Adam Sedgwick, seu antigo professor de geologia — rejeitavam a tese de Darwin, não porque as provas se lhe opusessem, mas sim pelo fim a que ela levaria: aparentemente, a um mundo no qual os seres humanos eram aviltados, negada a existência da alma, Deus e a moralidade escarnecidos e sublimados os macacos, os vermes e a lama primitiva, "um sistema desinteressado do homem". Thomas Carly le chamou-lhe "um evangelho de imundície". Nenhum desses juízos morais e teológicos é irrefutável, foi o que Darwin, Huxley e outros se esforçaram por demonstrar: em astronomia já não pensamos que cada planeta é empurrado por um anjo à volta do Sol, pois para isso bastam a lei da gravitação de Newton, do inverso do quadrado da distância, e as suas leis do movimento. Ninguém, contudo, considera isso uma prova da não existência de Deus e o próprio Newton — tirando uma reserva íntima quando à noção da Trindade — identificava-se com o cristianismo convencional da época. Somos livres de postular, se o desejarmos, que Deus é o responsável pelas leis da Natureza e que a vontade divina se realiza através de causas secundárias. Em biologia tais causas teriam de incluir as mutações e a seleção natural. (Só que para muitas pessoas seria pouco gratificante adorarem a lei da gravidade.) À medida que a polêmica se arrastava, por alguns anos, a seleção natural começava também a parecer menos estranha e menos assustadora. Um número cada vez maior de cientistas foi se rendendo, vultos literários e até membros do clero. Mas não todos, frise-se. Em Junho de 1871, a London Quarterly Review — que onze anos antes publicara a anônima diatribe do bispo Wilberfoce — mantinha-se irredutível, não entendendo em absoluto a explicação de Darwin. Por que a seleção natural favoreceria unicamente a preservação de variedades úteis? Uma ação dessas não pode ser atribuída a uma força cega; só pode pertencer à mente." Rejeitadas não são apenas a evolução e a seleção natural, mas igualmente a recém-descoberta lei de conservação da energia, uma das bases da física moderna. Algumas das subjacentes razões emotivas para a rejeição da seleção natural falciformes. Ao microscópio, certos glóbulos vermelhos parecem mesmo pequenas foices ou croissants. Mas numa pessoa com células falciformes esses glóbulos vermelhos diferentes estão rodeados por filamentos microscópicos pontiagudos que atuam, segundo se crê, um pouco como os picos de um porco- espinho. Os parasitas ficam empalados ou sofrem outras lesões e os glóbulos vermelhos — protegidos das viscosas proteínas dos parasitas — são em seguida levados para sofrerem os "tratos de polé" do baço. Eliminados os parasitas, muitos glóbulos voltam da experiência ao seu estado normal sem quaisquer "mazelas"". Quando, porém, os genes na origem desta caraterística são herdados de ambos os pais, o resultado é muitas vezes uma anemia grave, obstrução dos pequenos vasos sanguíneos e outras enfermidades. O balanço final, pensar-se-á naturalmente, é que mais vale haver uma parte da população gravemente anêmica do que a sua maioria morrer de malária. No século XVI" traficantes de escravos, idos da Holanda, chegaram à Costa do Ouro, na África ocidental (o atual Gana). Compraram, ou capturaram, um grande número de escravos e transportaram-nos para duas colônias holandesas — Curaçau, nas Caraíbas, e Suriname, na América do Sul. Como não havia malária em Curaçau, a caraterística das células falciformes provocava anemia, mas não compensava, com qualquer vantagem, os escravos que para lá haviam sido levados. Já no Suriname a malária era endêmica e as células falciformes foram, muitas vezes, a diferença entra a vida e a morte. Se, atualmente, passados três séculos, examinarmos os descendentes desses escravos, verificaremos que os que vivem em Curaçau poucos vestígios revelam dessa caraterística, ao passo que no Suriname ela ainda prevalece. Em Curaçau a caraterística das células falciformes foi "selecionada contra"; no Suriname, tal como na África ocidental, foi "selecionada a favor". Vemos a seleção natural a processar-se em escalas de tempo muito reduzidas mesmo para seres que se reproduzem tão lentamente como são os humanos. Como sempre, existe um leque de predisposições hereditárias numa dada população; o meio ambiente faz emergir algumas, mas outras não. A evolução é o resultado de uma estreita ação recíproca entre a hereditariedade e o meio ambiente. No fim da sua vida, Darwin considerava-se um teísta, crente num criador. Tinha, porém, algumas dúvidas: Poder-se-á confiar na mente do homem, a qual, como acredito plenamente, se desenvolveu de uma mente tão insignificante como a que possuía o mais insignificante dos animais, quando ela tira tão grandiosas conclusões ? A evolução não subentende, de forma alguma, o ateísmo, conquanto seja compatível com ele. A evolução é, no entanto, nitidamente incompatível com a verdade literal de certos livros venerados. Se acreditamos que a Bíblia foi escrita por pessoas e não ditada palavra a palavra a um estenógrafo exímio pelo criador do universo, ou se acreditamos que Deus possa ter de vez em quando recorrido à metáfora por uma questão de clareza, então a evolução não deve colocar qualquer problema teológico. Mas, quer coloque, quer não, um problema, as provas da evolução — que aconteceu, à parte a discussão sobre o fato de a seleção natural uniformitarista explicar totalmente como aconteceu — são esmagadoras. A perspectiva darwiniana está no centro de toda a biologia moderna, desde as investigações da estrutura molecular aos estudos do comportamento de símios e homens. Liga-nos aos nossos antepassados há muito esquecidos e ao nosso enxame de parentes, os milhões de outras espécies com as quais partilhamos a Terra. Mas o preço cobrado foi alto e ainda há — principalmente nos Estados Unidos — quem se recuse a pagá-lo por razões muito humanas e compreensíveis. A evolução lembra que, se Deus existe, gosta de causas secundárias e de processos individualistas: pôr o universo a funcionar, criar as leis da Natureza e depois sair de cena. Parece não haver um executivo a trabalhar a sério; o poder foi delegado. A evolução sugere que Deus não intervirá, quer lhe imploremos, quer não, que nos salve de nós próprios. A evolução revela que estamos entregues a nós mesmos — que, se existe, Deus deve estar muito longe. Isto é o suficiente para explicar uma grande parte da angústia e perturbação emocionais que a evolução accionou. Ansiamos por acreditar que existe alguém ao leme. A perspectiva transcendentalmente democrática de Darwin, segundo a qual todos os seres humanos descendem dos mesmos antepassados não humanos, somos todos membros da mesma família, é inevitavelmente distorcida quando analisada pela visão deturpada de uma civilização impregnada de racismo. Os defensores da supremacia branca defendiam a noção de que as pessoas com um alto teor de melanina na pele deviam estar mais próximas dos nossos parentes primatas do que as descoradas. Adversários do fanatismo, talvez receando que pudesse haver um grão de verdade nesse disparate, limitavam-se a não aprofundar a questão do nosso parentesco com os símios. Ambos os pontos de vista se localizam, porém, no mesmo continuum: a aplicação seletiva da ligação dos primatas à savana e ao gueto, mas nunca, jamais, nem pensar nisso, à sala do conselho ou à academia militar, ou Deus nos livre, à câmara do senado, à Câmara dos Lordes, ao Palácio de Buckingham ou à Casa Branca. É aqui que o racismo entra, não no inevitável reconhecimento de que, para o que der e vier, nós, seres humanos, somos apenas um pequeno galho da imensa e muito ramificada árvore da vida. A seleção natural tem sido mal utilizada por capitalistas e comunistas, brancos e pretos, nazis e muitos outros para afiar este ou aquele m achado ideológico mais conveniente a cada caso. Não admira que as feministas temessem que a perspectiva darwiniana fornecesse aos cientistas masculinos ainda mais uma arma para com ela subestimarem as mulheres — quanto a alegadas inferioridades na matemática ou na política. Mas, que saibamos, essa perspectiva pode revelar que os violentos desequilíbrios hormonais que impelem os homens para a violência faz deles indivíduos muito menos aptos à liderança de uma nação moderna. Se considerarmos o sexismo um erro prejudicial, esse fato emergirá da análise científica e devíamos promover o seu rigoroso escrutínio através dos métodos da ciência. Grande parte da recente controvérsia acerca da aplicação das ideias darwinianas ao comportamento humano tem sido motivada pelo receio dessa tal má interpretação feita por racistas, sexistas e outros fanáticos como, aliás, sucedeu, com brutais e trágicas consequências, na Segunda Guerra Mundial. A solução para o mau uso da ciência não está, no entanto, numa atitude de censura, mas sim numa explicação mais clara, num debate mais vigoroso e em tornar a ciência acessível a toda a gente. Se algumas das nossas tendências são inatas, como certamente será o caso, não é difícil concluir que possamos aprender a modificar, atenuar, realçar ou reorientar o comportamento resultante. a vida de Darwin: Um pequeno pormenor da primeira página do Daily Oxonian: "Realiza-se amanhã o encontro anual da Associação Britânica para o Avanço da Ciência." A data é 29 de junho de 1860. A primeira página começa a rodopiar como uma roleta. Esbatimento para mostrar que vamos seguir o altamente imaginativo, embora um pouco sorumbático, Robert Chambers (interpretado por Joseph Cotten) enquanto ele desce pela Oxford St. É abordado por outro indivíduo e, quando faz menção de se virar para trás, aborrecido, descobre que é nada mais nada menos do que o pugnaz Thomas Henry Huxley (Spencer Tracy), cuja convicção no tocante à verdade da controvertida teoria do seu amigo Darwin é tão feroz que lhe granjeará um dia a alcunha de Buldogue de Darwin. Espertalhão como é, Chambers não resiste a perguntar a Huxley se vai assistir à palestra de Draper na reunião da Associação Britânica, cujo título será "O desenvolvimento intelectual da Europa com referência aos pontos de vista de Mr. Darwin". Huxley alega estar muito ocupado para ir. Astuciosamente, Chambers diz que "o melífluo Sam Wilberforce vai estar lá com certeza". Huxley, cada vez mais na defensiva, insiste em que seria uma perda de tempo. Chambers comenta, maliciosamente: "Abandonando a causa, Huxley?" Ofendido, Huxley despede-se e afasta-se. Dia seguinte. As portas do grande salão estão abertas de par em par. O local está à cunha, mas ouve-se apenas uma voz. De uma panorâmica passamos a um grande plano do bispo de Oxford, Samuel Wilberforce (George Arliss). De dedos enfiados nas lapelas, volta-se ostensivamente para Huxley (que está lá, claro, apesar do alegado conflito de horários) e, com maliciosa cortesia, insiste em saber "se é por parte do avô ou da avó que afirma descender de um macaco?" Ao detectar a entoação bajuladora dada à palavra avó, a assistência solta alguns "oohhs" em voz baixa e concentra a atenção em Huxley. Ainda sentado, Huxley vira-se para o indivíduo que está ao lado dele e, quase sonolentamente, murmura: "O Senhor entregou-o nas minhas mãos." Pondo-se de pé e fitando Wilberforce nos olhos, responde: "Prefiro ser descendente de dois símios a ser um homem que tem medo de enfrentar a verdade." A assistência nunca vira, até então, um bispo ser insultado diretamente. Reação de pasmo geral. Senhoras a desmaiar. Homens a agitar os punhos. Chambers, no meio da multidão, positivamente deliciado. Mas esperem. Há uma outra pessoa que está a levantar-se. Esta agora! É o vice-almirante Robert FitzRoy (Ronald Reagan) de regresso à Inglaterra após concluir o seu mandato como governador da Nova Zelândia. "Eu já há trinta anos, no Beagle, discutia com Charles Darwin por causa das suas ideias malucas." E depois, brandindo a sua bíblia: "Isto e apenas isto a fonte de toda a verdade." Mais burburinho. Agora é a vez de Hooker (Henry Fonda). Num tom sincero: "Conheci esta teoria há quinze anos. Na altura opus-me completamente a ela, refutei-a vezes sem conta, mas desde então dediquei-me incansavelmente à história natural e, na sua investigação, viajei pelo mundo. Fatos nesta ciência que antes eram inexplicáveis para mim foram, um a um, explicados por esta teoria e a crença foi-se, portanto, aos poucos, impondo a um convertido relutante." A câmara afasta-se do salão. Passagem para um grande plano de um tentilhão empoleirado no ramo de uma árvore. Um homem de barba (Ronald Colman), de aspecto afável, envergando o chapéu e a capa típicos de um cavalheiro rural, mas com um cachecol, apesar de se estar em junho, olha fixa e carinhosamente para a ave lá do alto. Não parece ouvir a voz da mulher (BiIIie Burke), estridente, afetuosa, que o chama da grande casa em voz off — "Charles... Charles... Trevor veio trazer notícias daquela reunião em Oxford." Ele lança novo olhar apreciativo ao tentilhão antes de, finalmente, se encaminhar para casa [...]. 5 A vida é apenas uma palavra de três letras Quem dá o primeiro impulso à vida para que comece a sua jornada? O KENU UPUNIRUDE (8 a 7 séculos a. C., Índia) Quem está ciente da mutabilidade? Nem mesmo os budas. DAITETSU (1333-1408, Japão) Num feixe de luz do Sol, até mesmo quando o ar está parado, podemos ver, por vezes, uma tribo de ciscos de poeira a dançar. Movem-se em linhas ziguezagueantes, como que estimulados, motivados, impelidos, por algum propósito ínfimo mas firme. Alguns dos seguidores de Pitágoras, o antigo filósofo grego, acreditavam que cada cisco tinha a sua própria alma imaterial que lhe dizia o que fazer, tal como acreditavam que todo o ser humano possui uma alma que o orienta e lhe diz o que deve fazer. Com efeito, o termo latino para alma é anima — e é algo semelhante em muitas línguas modernas —, do qual derivam as palavras portuguesas animar e animal. Na realidade, esses ciscos de poeira não tomam decisões, não têm vontade própria. São, pelo contrário, agentes passivos de forças invisíveis. Por serem tão minúsculos, são postos a rodopiar pelo movimento ao acaso de moléculas de ar, as quais têm uma leve tendência para colidirem primeiro com um dos lados e depois com o outro, impulsionando-os naquilo que nos parece um misto de intenção e indecisão através do ar. Objectos mais pesados — linhas, ou penas, por exemplo — já não são assim tão afetados por colisões moleculares; se não forem levados por uma corrente de ar, caem muito simplesmente. ordem pela qual as palavras estão juntas for crucial para o significado da mensagem, poder-se-á dizer muita coisa apenas com algumas dezenas de palavras diferentes. Com mensagens da extensão de bilhões de palavras cuidadosamente escolhidas, o que não seria possível? Mas temos de ter cuidado ao lê-la. Sem espaços entre as palavras, se começarmos a ler no sítio errado, o significado alterar-se-á certamente e uma mensagem clara pode ser reduzida a uma série de disparates. Esse é um dos motivos por que a molécula gigante possui palavras de código especiais que querem dizer "COMECE A LER AQUI" e "PARE DE LER AQUI". Se observarmos a molécula com atenção, veremos que, de vez em quando, os dois filamentos se desenrolam e desentrelaçam. Cada um copia o outro, utilizando as matérias-primas, A, C, G e T, de que dispõe — como os tipos metálicos guardados nas caixas de uma velha tipografia. Agora, em vez de um, existem dois pares de mensagens idênticas. Portanto, além de usar uma linguagem e dar corpo a um texto complicado e redundantemente codificado, esta molécula é uma prensa tipográfica. Mas qual será a utilidade de uma mensagem se ninguém a ler? Ao copiarem ligações e relés, as sequências AA, CC, GG e TT revelam-se como sendo as ordens de serviço e os planos para a construção de certas ferramentas mecânicas moleculares. Algumas sequências são, só por si, ordens — encarregando-se do necessário para que a molécula gigante se entrelace e enrosque para que então possa fornecer um dado conjunto de instruções. Outras sequências certificar-se- ão de que as instruções são seguidas rigorosamente. Muitas palavras de três letras especificam um determinado aminoácido (ou um sinal de pontuação, como o que significa "COMECE") lá fora, na célula circundante, e a sequência de palavras codificadas determina a sequência de aminoácidos que irão constituir as proteínas — ferramentas mecânicas que controlam a vida da célula. Uma vez reproduzida, uma dessas proteínas toma normalmente a forma de espiral e dobra-se, adquirindo a forma tridimensional de uma mola contraída e pronta a saltar. Por vezes é outra proteína que a molda, dobrando-a. Estas ferramentas, num ritmo determinado tanto pela longa molécula de dois filamentos como pelo mundo exterior, avançam então por conta própria para irem separar outras moléculas, construir outras novas, ajudar a transmitir mensagens moleculares ou eléctricas a outras células. Isto é uma descrição de parte da rotina, da atividade quotidiana dentro de cada uma das células, num número de 10 biliões, ou coisa assim, do nosso corpo e do de quase todas as plantas e animais à face da Terra. As minúsculas ferramentas executam assombrosas proezas de transformação molecular. São submicroscópicas e feitas de moléculas orgânicas e não macroscópicas e feitas de silicatos ou aço, mas, no nível molecular, a vida foi, desde o início, utilizadora e fabricante de ferramentas. A longa e autorreplicadora molécula de dois filamentos, com uma mensagem complexa, é uma sequência de genes, um pouco como contas de um colar. Quimicamente, trata-se de um ácido nucleico (neste caso, abreviadamente, DNA, que significa ácido desoxirribonucleico). Os dois filamentos, enrolados um à volta do outro, contêm a famosa dupla hélice do DNA. As bases nucleótidas do DNA chamam-se adenina, citosina, guanina e timina, nomes portanto de que vêm as iniciais A, C, G e T. Os nomes remontam a muito antes de o seu papel na hereditariedade ter sido descoberto. A guanina, por exemplo, foi buscar, despretensiosamente, o nome do guano, excrementos de aves, dos quais foi inicialmente isolada. É uma molécula de anel duplo feita de cinco átomos de carbono, cinco de hidrogênio, cinco de azoto e um de oxigênio. Há algo como mil milhões de guaninas (e mais ou menos o mesmo número de AA, CC e TT) nos genes de qualquer uma das nossas células. À parte alguns seres excêntricos, a informação genética de todos os organismos da Terra está contida no DNA — um engenheiro molecular de talentos extraordinários, assombrosos até. Uma sequência (muito extensa) de AA, CC, GG e TT contém toda a informação para se fazer uma pessoa; outra, quase idêntica, para um chimpanzé; outras, não muito diferentes, para um lobo ou um rato. Em contrapartida, as sequências para rouxinóis, certas espécies de cascavéis, sapos, carpas, vieiras, forsítias, opódios, algas e bactérias são ainda mais diferentes — embora também elas tenham em comum entre todos muitas sequências de AA, CC, GG:TT. Um gene típico, que controla ou contribui para um traço hereditário específico, pode ter alguns milhares de nucleótidos de extensão. Certos genes podem conter mais de um milhão de AA, CC, GG e TT. As suas sequências especificam as instruções químicas para, digamos, a porção de pigmentos orgânicos que tornam os olhos castanhos ou verdes, ou para extrair energia dos alimentos, ou para procurar o sexo oposto. Questionar como esta informação complexa entrou nas nossas células ou se organizou com vista à sua replicação exata e obediente implementação das suas instruções equivale a perguntar como a vida evoluiu. Os ácidos nucleicos eram desconhecidos quando A Origem das Espécies foi publicada pela primeira vez e as mensagens neles contidas só seriam conhecidas um século depois. Constituem a demonstração e o registro definitivo da evolução que Darwin procurava. Espalhada nas sequências das várias formas de vida do nosso planeta, encontra-se uma área incompleta da evolução da vida — não o sangue, os ossos e os outros produtos finais das fábricas genéticas, mas os ver s registros de produção, as próprias instruções-chave, variando em diferentes graus em seres e épocas diferentes, que a evolução é conservadora e se mostra relutante em alterar coisas que dão bons resultados, o código DNA inclui documentos de serviço e plantas heliográficas — que remontam a uma anti biologicamente longínqua. Muitas passagens estão sumidas. Em R1 certos sítios há palimpsestos, onde podem ser vistos, espreitando para debaixo das mais recentes, vestígios de antigas mensagens. Aqui e ali encontra-se uma sequência que é transposta de um outro sector da mensagem e que passa a ter um significado um pouco diferente na sua nova localização: palavras, parágrafos, páginas, livros inteiros, que foram mudados de sítio e recombinados. Os contextos mudaram. As sequências comuns foram herdadas de tempos remotos. Quanto mais distintas forem as sequências correspondentes em dois organismos diferentes, mais remotamente ligados eles estarão. Estes não são apenas os anais da história da vida, são também os manuais dos mecanismos da mudança evolucionista. O campo da evolução molecular — apenas com algumas décadas ainda — permite-nos descodificar o registro cardíaco da vida na Terra. Nessas sequências estão escritas as linhagens que nos levam não apenas a algumas gerações atrás, mas nos conduzem através de uma grande parte do regresso à origem da vida. Os biólogos moleculares aprenderam a lê-las e a calibrar o recôndito parentesco de toda a vida na Terra. Os recessos dos ácidos nucleicos estão toldados por sombras ancestrais. Agora quase podemos seguir o itinerário do naturalista Loren Eiseley : Desçam a negra escadaria por onde subiu a raça. Irão dar, por fim, aos degraus mais inferiores do tempo, escorregando, derrapando e nadando com escamas e barbatanas até lá abaixo, até o esterco e lodo donde vieram. Passem por rosnidos e sussurros mudos debaixo dos três últimos fetos. Sem olhos e sem ouvidos, flutuem nas águas primeiras, sintam a luz solar que não conseguem ver e estendam tentáculos absorventes em direção a vagos sabores que flutuam na água. Uma determinada sequência de AA, CC, GG e TT tem como função produzir fibrinogênio, crucial para a coagulação do sangue humano. As lampreias têm certas parecenças com as enguias (embora sejam uns parentes nossos muito mais afastados do que as enguias); o sangue também circula nas veias delas; os seus genes contêm igualmente instruções para a produção do fibrinogênio importantes, ou até mesmo cruciais para a sobrevivência, mas que nos nossos dias são obsoletos e inúteis. Por serem inúteis, estas sequências evoluem rapidamente: nelas, as mutações não prejudicam nada nem constituem um ponto a desfavor. Talvez algumas ainda sejam úteis, mas trazidas à tona apenas em circunstâncias extraordinárias. Nos seres humanos algo como 97% da sequência ACGT não serve, pelos vistos, para nada. São os restantes 3% que, no que diz respeito à genética, fazem de nós aquilo que somos. Por todo o mundo biológico podemos ver espantosas semelhanças entre as sequências funcionais de AA, CC, GG e TT, semelhanças que não poderiam ter surgido se não houvesse — sob a aparente diversidade de vida na Terra — uma unidade subjacente e fundamental. Essa unidade existe, parece óbvio, porque todas as coisas vivas na Terra descendem do mesmo antepassado, há 4 bilhões de anos, porque somos todos parentes. Mas como é que máquinas de uma tal elegância, sutileza e complexidade vieram a aparecer? A chave para a resposta consiste em que estas moléculas são capazes de evoluir. Quando um filamento está a fazer uma cópia do outro, por vezes ocorre um erro e o nucleótido errado — por exemplo, um A, em vez de um G — é inserido na sequência que acabou de ser formada. Alguns são mesmo erros típicos de replicação — por muito boas que sejam, as máquinas não são perfeitas. Alguns erros são provocados por um raio cósmico, ou outro tipo de radiação, ou por produtos químicos existentes no meio ambiente. Uma subida de temperatura pode aumentar ligeiramente o grau em que as moléculas se desfazem e, assim, originar erros. Até pode acontecer que o ácido nucleico produza uma substância que o altere a si mesmo — talvez a milhares ou milhões de nucleótidos de distância. Os erros não corrigidos na mensagem são passados a gerações futuras. produzem-se "como bons". Estas alterações na sequência de AA, CC, e TT, incluindo as de um único nucleótido, chamam-se mutações, as quais conferem um carácter aleatório, elementar e irredutível à história à natureza da vida. Certas mutações poderão até nem ajudar nem prejudicar, ocorrendo, por exemplo, em longas sequências repetitivas que contêm informações redundantes —, ou naquilo a que chamamos pegas das ferramentas moleculares, ou ainda em sequências não transcritas que permaneceram entre o "PARE" e o "COMECE". Há muitas outras que são noviças. Se estivermos a fabricar estupendas máquinas e, enquanto olhamos para o lado, alguém introduzir algumas alterações ao acaso nas instruções de fabrico que estão no computador, não haverá grande hipótese de que as máquinas fabricadas, segundo as novas instruções gralhadas, venham a funcionar melhor do que as do modelo anterior. Mudanças aleatórias numa lista complexa de instruções, quando em quantidade suficiente, causarão sérios danos. No entanto, algumas dessas mudanças aleatórias revelam-se, por sorte, vantajosas. Por exemplo, a caraterística das células falciformes que mencionamos no capítulo anterior é causada pela mutação de um único nucleótido no DNA, provocando uma diferença de um único aminoácido nas moléculas de hemoglobina que o nucleótido ajuda a codificar; isto, por sua vez, altera o formato do glóbulo vermelho e interfere com a sua capacidade de transportar o oxigênio, mas, ao mesmo tempo, acabará por matar os parasitas plasmódios que esses glóbulos contêm. Uma única mutação, um dado T que se transforma em A, é o bastante. E, como é evidente, não é apenas a hemoglobina nos glóbulos vermelhos, mas todas as partes do corpo, todos os aspectos da vida, que recebem instruções de uma determinada sequência do DNA. Qualquer sequência é vulnerável à mutação. Algumas dessas mutações causam mudanças mais abrangentes do que a caraterística das células falciformes, outras menos. São, na maioria, prejudiciais, algumas são úteis, mas até as úteis podem — como a mutação das células falciformes — representar uma troca, uma concessão mútua. Este é, principalmente, um dos meios pelo qual a vida evolui explorando as imperfeições nas cópias, não obstante o custo. Não seria assim que nós o faríamos. Não parece ser o que faria uma atividade apostada numa criação especial. As mutações não têm qualquer plano, qualquer orientação por detrás delas; o seu aspecto aleatório parece arrepiante; o progresso, se o há, é agonizantemente lento. O processo sacrifica todos os seres que agora estão menos aptos a executar as suas tarefas vitais por causa das novas mutações — grilos que já não saltam, aves com deformações nas asas, golfinhos de respiração ofegante, olmos enormes a sucumbirem ao míldio. Por que não haver mutações mais eficientes, mais piedosas? Por que tem a resistência à malária de trazer a penalização da anemia? A nossa vontade é pedir à evolução que chegue onde quer chegar e acabe com as intermináveis crueldades. Mas a vida sabe onde quer chegar. Não tem nenhum plano a longo prazo. Não tem nenhum fim em vista. Não tem mente para manter um objetivo em mente. O processo é o oposto da teleologia. A vida é esbanjadora, cega e alheia, a este nível, a quaisquer noções de justiça. Pode dar-se ao luxo de desperdiçar à grande. O processo evolutivo não teria, porém, ido muito longe se a taxa de mutações tivesse sido demasiado elevada. Em qualquer dado meio ambiente deve haver um delicado equilíbrio — evitando, simultaneamente, taxas de mutação tão elevadas que as instruções para os mecanismos moleculares sejam rapidamente gralhadas e taxas de mutações tão baixas que o organismo seja incapaz de se reajustar quando mudanças no meio ambiente externo lhe exijam que se adapte para sobreviver. Existe uma imensa indústria molecular que repara ou substitui o DNA lesionado ou alterado. Numa molécula de DNA típica em cada segundo são examinadas centenas de nucleótidos e corrigidas muitas substituições de nucleótidos e erros. As correções são depois, elas próprias, revistas, pelo que se verifica apenas cerca de um erro em bilhões de nucleótidos copiados. Trata-se de um padrão de controle de qualidade e garantia do produto raramente alcançado, por exemplo, nas indústrias livreira e automobilística ou na microelectrônica. (Seria inédito que um livro deste tamanho, com cerca de um milhão de letras, não tivesse nenhum erro tipográfico; uma taxa de 1% de erro é comum nas transmissões de automóveis fabricados nos Estados Unidos; avançados sistemas de armamento militar passam, tipicamente, 10% do tempo nas oficinas de reparação.) O mecanismo de revisão e correção dedica-se aos segmentos do DNA que estão ativamente envolvidos no controle da química da célula e ignora sobretudo as sequências desativadas, em grande parte não transcritas ou "disparatadas". As mutações não reparadas que se vão acumulando firmemente nessas regiões, por norma silenciosas, do DNA podem dar origem (entre outras causas) ao cancro e a outras doenças se o sinal de "PARE" for ignorado, a sequência ligada e as instruções cumpridas. Os organismos como os seres humanos dedicam um esforço considerável à reparação das regiões silenciosas; os de vida curta, como o rato, não o fazem e morrem, muitas vezes, cheios de tumores. A longevidade e a reparação do ADn estão intimamente associadas. Imaginemos um organismo unicelular primitivo a flutuar junto à superfície do mar primitivo — e, consequentemente, banhado na radiação ultravioleta do Sol. Um pequeno segmento da sua sequência nucleótida apresentar-se-á, digamos, assim:... TACTTCAGCTAG... Quando os raios ultravioletas atingem o DNA, muitas vezes ligam dois nucleótidos T contíguos por meio de uma segunda via, evitando que o DNA exerça a sua função codificadora e interferindo na sua capacidade de se autorreproduzir... que os mamíferos haviam suplantado dinossauros apenas há 3 milhões de anos, em vez de 65 milhões. Com base nestes equívocos, os críticos de Darwin argumentavam ù corretamente — que, mesmo que a evolução se processasse, em princípio, não devia ter havido tempo suficiente para que ela pusesse a sua ação em prática. Numa Terra criada há menos de 10000 anos seria absurdo imaginar que as espécies se tivessem transformado em outras, que a lenta acumulação de mutações pudesse explicar as diversas formas de vida na Terra. Fazia sentido, não meramente como uma demonstração de fé, mas também como ciência legítima, concluir que cada espécie devia ter sido criada separadamente pelo mesmo criador que, apenas um momento antes, criara o universo. A fratura das rochas pelas ondas, a deslocação da poeira rochosa pelo vento, a lava a deslizar pelas encostas de um vulcão — se a Terra tivesse só uns milhares de anos, tais processos não poderiam ter contribuído em muito para o reordenamento da superfície do nosso planeta. Contudo, um simples olhar para as formas naturais da Terra mostra que houve um profundo reordenamento. Por isso, se imaginássemos, a partir da cronologia bíblica, que o mundo foi criado por volta do ano 4000 a. C., fazia sentido que fôssemos catastrofistas — e acreditássemos que tremendos cataclismos, desconhecidos no nosso tempo, teriam ocorrido na história mais remota. O dilúvio de Noé, que já mencionamos , era um exemplo conhecido. Se, no entanto, a Terra tem 4,5 bilhões de anos, o impacto cumulativo de pequenas mudanças, quase imperceptíveis, ao longo do decurso das eras pode ter alterado por completo a superfície do nosso planeta. Uma vez que a escala de tempo para a evolução terrestre fora alargada a milhares de milhões de anos, muito do que outrora parecia impossível podia agora ser prontamente explicado como resultante da concatenação de acontecimentos aparentemente inconsequentes — as pegadas de ácaros, o assentar da poeira, o salpicar das gotas de chuva. Se num ano o vento e a água desgastam, pelo atrito, uma décima de milímetro no topo ; de uma montanha, então a montanha mais alta da Terra pode ficar, achatada em 10 milhões de anos. O catastrofismo deu lugar ao uniformitarismo, defendido por Lyell em geologia e por Darwin em biologia. A acumulação de uma imensidade de mutações ao acaso era agora inelutável, inevitável. Os grandes cataclismos caíram em descrédito e a criação separada tornou-se, tanto em geologia como em biologia, uma hipótese redundante e desnecessária. Muitos defensores do uniformismo negavam que alguma vez tivesse existido uma mudança biológica rápida e violenta. T. H. Huxley, por exemplo, escreveu: "Não houve nenhuma grande catástrofe — nenhum destruidor aniquilou as formas de vida de um dado período, substituindo-as por uma criação totalmente nova: uma espécie é que desapareceu e veio outra ocupar o seu lugar; criaturas com um certo tipo de estrutura diminuíram e as de outro tipo aumentaram à medida que o tempo foi passando"." À luz das provas modernas, ele tinha razão, em termos gerais, quanto à maior parte da história da Terra. Mas foi longe demais; é claramente possível admitir a importância de uma mudança de fundo lenta e cumulativa sem negar a possibilidade de um ou outro cataclismo global. Nos anos mais recentes tem-se tornado cada vez mais evidente que houve catástrofes que varreram a face da Terra, provocando numerosas alterações tanto nas formações terrestres como na vida. Tais catástrofes explicam facilmente as grandes lacunas, a nível mundial, existentes no registro rochoso, assim como as súbitas transições nas formas de vida na Terra, ocorridas na mesma época, são naturalmente consideradas extinções em massa, tempos de grande mortandade. (Destes, o final do Pérmico é o exemplo mais extremo e o final do Cretácico — quando os dinossauros foram todos aniquilados — o mais conhecido.) As anteriores ecologias são, pois, suplantadas, em massa, por novas associações de organismos. O registro fóssil mostra que longos períodos de mudança evolucionista muito lenta são por vezes interrompidos por intervalos mais raros, episódicos, de rápida mudança, o "equilíbrio pontuado" de Niles Eldredge e Stephen Jay Gould. Vivemos num planeta em que tanto as catástrofes como a mudança uniforme desempenharam o seu papel. Na distinção que se pretende fazer entre imediatamente e lenta e firmemente, como em muitas coisas mais, a verdade engloba extremos aparentemente antitéticos. A defesa da criação separada não saíra fortalecida por este novo equilíbrio. O catastrofismo é uma questão incômoda para os literalistas bíblicos: aponta imperfeições tanto no desenho como na execução do projeto divino. As extinções em massa permitem aos sobreviventes evoluir rapidamente, ocupando nichos ecológicos que dantes lhes estavam vedados pelos adversários. A diligente seleção de mutações prossegue, com ou sem catástrofes. Mas a destruição total de espécies, gêneros, famílias e ordens de vida, o carácter aleatório das mutações, as avarias do mecanismo molecular da vida e o lento e errático processo evolucionista exibido no registro fóssil — de trilobites, por exemplo, ou odilos —, tudo isso revela uma insegurança, uma hesitação, uma decisão, que dificilmente se enquadram no modus operandi de um criador omnipotente, omnisciente e "executivo". Por que são cegos, ou quase, tantos peixes de grutas, toupeiras e outros animais que vivem em permanente escuridão? De início, a pergunta parece estar mal colocada, visto que na escuridão a evolução dos olhos não traria qualquer vantagem para efeitos de adaptação. Só que alguns desses animais têm olhos, embora estejam sob a pele e inativos. Outros não têm sequer olhos, embora, anatomicamente, se perceba que os seus antepassados os tiveram. A resposta, segundo parece, é a de que todos eles evoluíram de seres dotados de visão que entraram num novo e promissor habitat — uma caverna, por exemplo, onde não havia rivais nem predadores, onde, ao longo de muitas gerações, a perda da visão não traz quaisquer desvantagens. Qual o problema de ser cego quando se vive na escuridão total? As mutações para a cegueira, que devem estar sempre a ocorrer (havendo muitas disfunções possíveis nas instruções genéticas referentes à visão — no olho, retina, nervo óptico e cérebro), não são tidas como desfavoráveis. Um homem só com um olho não tem nenhuma vantagem no reino das trevas. Da mesma forma, as baleias têm ossos pélvicos e da perna, pequenos, internos e totalmente inúteis, e as cobras vestígios de quatro pés internos. (Nas mambas da África meridional vê-se, a olho nu, irrompendo pela pele escamosa, uma única garra de cada um dos membros rudimentares.) Se nadarmos ou rastejarmos e nunca mais voltarmos a andar, as mutações para o atrofiamento dos pés não nos prejudicam em nada. Não são seleções desvantajosas. Podem até ser favoráveis (os pés só atrapalham quando nos enfiamos por um buraco a baixo). O mesmo pode dizer-se de uma ave que foi parar a uma ilha livre de predadores, para a qual a constante atrofia das asas, geração após geração, não representa qualquer desvantagem (até chegarem os navegadores europeus e as matarem todas à paulada). As mutações estão a ocorrer permanentemente para a perda de toda a espécie de funções. Se não houver quaisquer desvantagens associadas a essas mutações, elas podem instalar-se na população. Algumas até serão úteis — o despojamento de maquinaria que já teve utilidade, por exemplo, e que já não vale o esforço de manutenção. Deve haver também um grande número de mutações para a insuficiência bioquímica e outras graves disfunções que resultam em seres que jamais sobrevivem aos seus estádios embrionários. Morrem antes de nascerem. São rejeitados pela seleção natural antes de os biólogos poderem examiná-los. A nossa volta vai-se processando um joeirar inexorável, draconiano. A seleção é uma escola de normas rígidas. A evolução é apenas tentativa e erro — mas em que os êxitos são estimulados e multiplicados e os fracassos são implacavelmente exterminados, com fabulosas perspectivas de tempo disponível para que o processo se efetue. Se nos reproduzimos, modificamos e reproduzimos as nossas mutações — devemos suas companheiras. Foram acrescentadas outras moléculas para o ajudarem, incluindo blocos de construção de nucleótidos para fazerem mais RNA. O RNA é afagado, mimado, manuseado com toda a delicadeza. É extremamente frágil e a sua magia só se processará em condições muito específicas. Mas a magia acontece. No tubo de ensaio não só faz cópias iguais de si mesmo, como também faz um biscate, como casamenteiro, para as outras moléculas. Na realidade, executa tarefas mais íntimas, fornecendo uma espécie de plataforma, ou leito matrimonial, para que as moléculas de formatos estranhos se unam, encaixem uma na outra. É uma j iga para a engenharia molecular. Ao processo chama-se catálise. Esta molécula de RNA é um catalisador autorreplicador. Para controlar a química da célula, o DNA tem de supervisionar a construção de "paus para toda a obra" — uma outra variedade de moléculas, as proteínas, que são as ferramentas catalisadoras que acabamos de mencionar. O DNA faz proteínas porque, só por si, não consegue catalisar. Há, porém, certos tipos de RNA que funcionam, eles próprios, como ferramentas catalisadoras". Fazer um catalisador, ou sê-lo, dá o maior lucro ao mais pequeno investimento, pois os catalisadores podem controlar a produção de milhões de outras moléculas. Quando se faz um catalisador, ou quando se é catalisador — o tipo de catalisador —, tem-se uma influência enorme no próprio destino. Ora, nestas experiências laboratoriais que estão a ser levadas a cabo nos nossos dias, imagine muitas gerações de moléculas de RNA, mais ou menos iguais, a replicarem-se no tubo de ensaio. Ocorrem, inevitavelmente, mutações e com muito mais frequência do que no DNA. A maioria das sequências de RNA que sofreram mutações poucas ou nenhumas cópias deixarão, uma vez mais porque as mudanças aleatórias nas instruções raramente têm utilidade. Mas, de vez em quando, passa a existir uma molécula que contribui para a sua própria replicação. Esse RNA tão bem modificado talvez se replique mais depressa ou com uma maior facilidade do que os seus companheiros. Se não nos preocupássemos com :o destino das moléculas de RNA individuais — e dado que, ainda que despertem admiração, raramente granjeiam simpatia — e desejássemos apenas a proliferação do clã RNA, seria justamente esta a experiência que faríamos. Muitas linhagens pereceriam. Algumas ficariam mais bem adaptadas e deixariam mais cópias. Estas moléculas evoluiriam lentamente. Uma molécula de RNA, autorreplicadora e catalisadora, pode ter sido a primeira coisa viva nos antigos mares, há cerca de 4 bilhões de anos, sendo o seu parente próximo, o DNA, um posterior apuramento evolucionista. Numa experiência com moléculas orgânicas sintéticas que não são ácidos nucleicos descobriu-se que duas espécies de moléculas intimamente associadas faziam cópias de si mesmas a partir de blocos de construção moleculares fornecidos pelo autor da experiência. Estes dois tipos de moléculas cooperavam e competiam simultaneamente: podem ajudar a outra a replicar-se, mas lutam também pela mesma reserva limitada e comum de blocos de construção. Quando se faz incidir um foco normal de luz neste drama submicroscópico, observa-se que uma das moléculas está a sofrer uma mutação: transforma-se numa molécula um nadinha diferente que se reproduz como tal — faz cópias iguais de si mesma e não da sua antecessora pré-mutação. Esta nova variedade, descobre-se então, é muito mais competente na autorreplicação do que as outras duas linhas hereditárias. A linhagem mutante ultrapassa rapidamente as outras, cujo número decai precipitadamente. Temos aqui, no tubo de ensaio, replicação, mutação, replicação de mutações, adaptação e não cremos que seja demais afirmá-lo — evolução. Estas não são as moléculas que nos fazem a nós. Não serão, provavelmente, as moléculas envolvidas na gênese da vida. É capaz de haver muito mais moléculas que se reproduzem e modificam melhor. Mas o que nos impede de classificarmos como vivo este sistema molecular? Há 4 bilhões de anos que a Natureza vem a realizar experiências idênticas e a basear-se nos seus êxitos. Logo que uma replicação, ainda que rudimentar, se tornou possível, foi deixado à solta no mundo um motor de enorme potência. Por exemplo, consideremos esse mar primitivo da Terra, organicamente rico. Suponhamos que deitávamos lá para dentro um simples organismo (ou uma simples molécula autorreplicadora) consideravelmente mais pequeno do que uma bactéria dos nossos dias. Este pequenino ser divide-se em dois e o mesmo farão os seus descendentes. Na ausência de quaisquer predadores e com inesgotáveis recursos alimentares, o seu número aumentaria exponencialmente. O ser e os seus descendentes precisariam apenas de cerca de uma centena de gerações para consumirem todas as moléculas orgânicas da Terra. Uma bactéria atual, em condições ideais, pode reproduzir-se de quinze em quinze minutos. Suponhamos que na Terra primitiva o primeiro organismo podia reproduzir-se apenas uma vez por ano. Assim sendo, no espaço de um século, aproximadamente, esgotar-se-ia toda a matéria orgânica disponível em todo o oceano. É claro que muito antes disso já a seleção natural teria sido posta em ação. O tipo de seleção seria a luta com outros da sua espécie — por substâncias alimentares, por exemplo, num mar com decrescentes reservas de blocos de construção moleculares pré-formados. Ou podia ser a predação — se não tiveres cuidado, um outro ser qualquer deita-te a mão, derruba-te, desfaz-te e usa as tuas partes moleculares para seu próprio e chocante proveito. O principal avanço evolucionista deve ter levado um tempo consideravelmente mais longo do que uma centena de gerações. O poder devastador de uma replicação exponencial torna-se, no entanto, muito claro: quando existem em pequeno número, os organismos só raramente entram em competição, mas, após uma replicação exponencial, geram-se populações enormes, ocorre uma competição renhida e entra em cena uma seleção implacável. Uma elevada densidade populacional provoca situações e desencadeia reações diferentes dos estilos de vida mais amistosos e joviais que são típicos quando o mundo é escassamente O meio ambiente externo está a mudar constantemente — em parte devido ao enorme crescimento da população quando as condições são favoráveis, em parte devido à evolução de outros organismos, em parte também devido ao tiquetaque do mecanismo de relógio geológico e astronômico, pelo que a adaptação permanente, final ou ótima, de uma forma de vida ao ambiente é coisa que nunca existirá. Excepto nos meios mais protegidos e estáticos, deve haver uma cadeia interminável de adaptações. Conquanto isso se sinta no interior, pode ser muito bem descrito a partir do exterior como sendo uma luta pela vida e uma competição entre adultos para garantir o êxito das suas proles. Percebe-se que o processo tende a ser adventício, oportunista — não premeditado e sem qualquer objetivo futuro em mente. As moléculas evolutivas não fazem planos para o futuro. Produzem, muito simplesmente, uma permanente sucessão de variedades e, por vezes, uma dessas variedades vem a revelar-se, afinal, um modelo ligeiramente aperfeiçoado. Nenhum deles — nem o organismo, nem o meio ambiente, o planeta ou a &&Natureza,& — anda a matutar no assunto. Esta falta de visão evolucionista pode causar dificuldades. Pode, por exemplo, rejeitar uma adaptação que se enquadraria perfeitamente na próxima crise ambiental dali a um milhar de anos (da qual, é evidente, ninguém faz a mínima ideia). Mas devagar se vai ao longe. Uma crise de cada vez é o lema da vida. SOBRE A TEMPORANEIDADE Se vivêssemos eternamente, se os orvalhos de Adashino nunca se dissipassem, se o fumo crematório sobre o Toribey ama nunca se dissipasse, os homens mal se aperceberiam da bondade das coisas. A beleza da vida está na sua temporaneidade. O homem é, de todas as coisas vivas, a que vive mais tempo a reprodução ocorresse com a máxima fidelidade, eram necessárias outras moléculas — para desentupirem os blocos de construção inundados pelas águas adjacentes e assentá-los segundo a sua vontade, ou para serem, como a DNA polimerase, parteiras no processo de replicação, ou ainda para reverem um recém-criado conjunto de instruções genéticas. Mas de nada lhes valiam essas moléculas assistentes se teimassem em fugir para o mar. O que era preciso era uma espécie de armadilha que mantivesse presas as moléculas úteis. Se, pelo menos, pudessem ser envolvidas numa membrana que, como uma válvula de um só sentido, deixasse entrar as moléculas de que precisavam e não as deixasse sair... Há moléculas que fazem isso — que, por exemplo, são atraídas para a água de um dos lados, mas repelidas, absolutamente renegadas, pela água do outro. São vulgares na Natureza. Tendem a formar pequenas esferas. E são, atualmente, a base das membranas celulares. As células primitivas, ainda que simultaneamente aptas a multiplicar-se e a dividir-se, não poderiam de forma alguma estar conscientes do que quer que fosse no sentido em que os seres humanos o estão. Ainda assim, tinham alguns repertórios comportamentais. Sabiam como fazer cópias de si mesmas, é claro, como converter moléculas do exterior, diferentes delas, em moléculas no interior, que eram elas. Preocupavam-se em aperfeiçoar a precisão da replicação e a eficiência do metabolismo. Algumas até conseguiam distinguir a luz solar da escuridão. Decompor moléculas trazidas do exterior, ou seja, digerir alimentos, só pode ser feito com segurança através de um processo passo a passo, sendo cada um destes controlado por uma dada enzima controlada pela sua própria sequência ACGT, ou gene. Os genes devem então trabalhar juntos em delicada harmonia, pois, caso contrário, nenhum deles se propagará ao futuro. Ao digerir uma molécula de açúcar, por exemplo, exige-se a ação meticulosamente coreografada de dezenas de enzimas, cada uma delas a pegar no trabalho no ponto donde a última saiu, cada enzima fabricada por um determinado gene. A deserção de um único gene da missão comum pode ser fatal para todos eles. Uma cadeia de enzimas tem apenas a força do seu elo mais fraco. A este nível, os genes dedicam-se obstinadamente ao bem-estar geral de toda a tribo. As enzimas primitivas tinham de ser seletivas, de ter o cuidado de não decomporem as moléculas muito similares que constituíam a forma de vida da qual faziam parte. Se se digerirem a si mesmas — os açúcares que fazem parte do seu DNA, por exemplo—, não deixarão muitos descendentes. Se não digerissem outras — os convenientes repositórios de matérias-primas orgânicas e produtos finais moleculares—, poderão também não deixar muitos descendentes. As células de há 3,5 bilhões de anos deviam ter uma certa noção da diferença entre "mim" e "tu". E os "tus" eram mais consumíveis do que os "mins". Um mundo de cem cães a um osso ou, no mínimo, cem organismos a uma molécula. Mas espere... Chegou uma ocasião — talvez há uns 2 mil ou 3 bilhões de anos — em que um ser conseguia incorporar um outro inteiro. Um encostava-se ao outro, as paredes da célula, ou membranas, formavam uma prega e o indivíduo mais pequeno ia dar consigo dentro do maior. O resultado era, sem dúvida, uma tentativa de digestão com êxitos variáveis. Suponha o leitor que é um organismo unicelular de tamanho razoável nos mares primitivos e que desta forma engole sofregamente algumas bactérias fotossintéticas, pequeninas especialistas que sabem utilizar a luz solar, o dióxido de carbono e a água para fabricar açúcares e outros hidratos de carbono. Deixará mais descendentes se for melhor do que os seus adversários na obtenção de açúcar (uma componente-chave necessária para replicar as suas instruções genéticas e potencializar tudo o que faz). Suponha, porém, que estas bactérias ingeridas -os modelos mais recentes, vigorosos e inoxidáveis -não sucumbem às suas enzimas digestivas. Pela parte que lhes toca, elas descobriram o caminho para um jardim do paraíso molecular. O leitor protege-as de muitos dos inimigos delas; dado que é transparente, a luz solar incide nelas através de si e há em toda a volta uma grande quantidade de água e dióxido de carbono. Por isso, dentro de si, as bactérias continuam a operar a sua magia fotossintética. Alguns açúcares gotejam delas, pelo que se lhes mostra grato. Algumas morrem e as suas moléculas interiores são expelidas, ficando ao seu dispor. Outras desabrocham e multiplicam-se. Quando chega a altura de o leitor se reproduzir, algumas delas aninham-se dentro dos seus descendentes. Não ainda de jure (dado que nada deste acordo está já codificado nos ácidos nucleicos), mas certamente de fato foi alcançada uma conciliação entre os seus descendentes e os É um bom negócio para ambas as partes. Elas abrem um pequeno quiosque de pronto-a-comer dentro do seu corpo e isso quase sem custos para si. Proporciona-lhes um meio ambiente estável e protegido (desde que tenha o cuidado de não digerir os seus hóspedes). Passadas muitas gerações, evoluiu para um gênero de ser bastante diferente, com umas plantinhas verdes de poderes fotossintéticos dentro de si, a reproduzirem-se quando o leitor se reproduz, e que são nitidamente uma parte de si mesmo, mas também nitidamente diferentes. Tornaram-se uma sociedade. Isto parece ter acontecido uma meia dúzia de vezes, ou mais, na história da vida, levando cada exemplo a um importante grupo de plantas diferentes. Hoje em dia todas as plantas verdes contêm tais inclusões, os cloroplastos. Ainda são muito parecidos com os seus antepassados bacterianos unicelulares e desregrados. Quase todos os bocadinhos de verde no mundo natural se devem aos cloroplastos. São os motores fotossintéticos da vida. Nós, seres humanos, orgulhamo-nos de sermos a forma de vida dominante neste planeta, mas esses pequeninos seres — discretos, os hóspedes perfeitos — é que estão, de certa forma, ao comando. Sem eles quase toda a vida na Terra morreria. Eles fizeram muitas concessões aos seus anfitriões. Conseguiram implantar um pato duradouro de assistência mútua no trabalho a que se chama simbiose. Cada parceiro confia no outro. Mesmo assim, os cloroplastos são, reconhecidamente, um elemento retardatário da célula. O sinal mais nítido da sua origem isolada é a diferença entre os seus ácidos nucleicos e os da própria planta, não obstante terem tido, há muito tempo, um antepassado comum. A marca da sua evolução isolada e remota, antes da junção de forças, é nítida. Tudo indica que o cloroplasto originário provém de uma bactéria fotossintética muito parecida com as que, atualmente, vivem nas comunidades de estromatólitos. Olhamos para estes pequenos seres unicelulares ao microscópio e ficamos espantados com a sua aparente autoconfiança. Parecem saber com tanta certeza o que estão a fazer! Nadam em direção à luz, atacam as presas ou lutam para escaparem aos predadores. Como são transparentes, conseguimos ver as suas partes internas, o afinado mecanismo protoplásmico orientado pelo DNA que os faz andar. A sua capacidade para transmutarem os alimentos que encontram nas moléculas de que precisam — para energia, para componentes, para reprodução — é de pura alquimia. As plantas, entre elas, convertem o ar, a água e a luz solar dentro de si mesmas, não ao acaso, mas segundo receitas específicas, cuja simples transcrição encheria muitos livros sobre química orgânica e biologia molecular. Cada um deles é apenas uma célula; não têm órgãos, cérebros, conversas animadas, poesia, valores espirituais mais elevados — e, no entanto, conseguem fazer, sem qualquer consciência ou percepção aparente, muito mais por meio dessas normas químicas do que a nossa alardeada tecnologia. E há mais uma coisa que eles conseguem fazer e nós não: viver eternamente. Ou quase. Estes organismos unicelulares assexuados reproduzem-se por cissiparidade. Aparece um pequeno sulco, um recorte dentado, que desce a meio do organismo. As partes internas são divididas mais ou menos imparcialmente e, de súbito, temos diante de nós, não um organismo, mas dois. Dividiu-se ao meio. Vemos agora dois seres mais pequenos, cada um deles quase idêntico ao seu único progenitor e geneticamente o mesmo, gémeos idênticos. Rapidamente, cada um deles atinge o tamanho adulto. Mais tarde, o processo continua. Exceptuando as mutações bizarras, os descendentes são fac-símiles perfeitos dos seus antepassados. No verdadeiro sentido, os antepassados nunca morreram. Não há, em nenhuma altura do percurso, cadáveres de pais envelhecidos. Se não houver acidentes, nenhuma gota de veneno libertado por outros
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