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Charles Baudelaire - As Flores do Mal, Notas de estudo de Engenharia Civil

Charles Baudelaire - As Flores do Mal

Tipologia: Notas de estudo

Antes de 2010

Compartilhado em 11/07/2009

fran-b-12
fran-b-12 🇧🇷

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Baixe Charles Baudelaire - As Flores do Mal e outras Notas de estudo em PDF para Engenharia Civil, somente na Docsity! RR ae e Charles Baudelaire Las flores del mal Introducción, traducción en verso y notas de Carlos Pujol As Flores do Mal Charles Baudelaire AO LEITOR A tolice, o pecado, o logro, a mesquinhez Habitam nosso espírito e o corpo viciam, E adoráveis remorsos sempre nos saciam, Como o mendigo exibe a sua sordidez. Fiéis ao pecado, a contrição nos amordaça; Impomos alto preço à infâmia confessada, E alegres retornamos à lodosa estrada, Na ilusão de que o pranto as nódoas nos desfaça. Na almofada do mal é Satã Trimegisto Quem docemente nosso espírito consola, E o metal puro da vontade então se evola Por obra deste sábio que age sem ser visto. É o Diabo que nos move e até nos manuseia! Em tudo o que repugna uma jóia encontramos; Dia após dia, para o Inferno caminhamos, Sem medo algum, dentro da treva que nauseia. Assim como um voraz devasso beija e suga O seio murcho que lhe oferta uma vadia, Furtamos ao acaso uma carícia esguia Para espremê-la qual laranja que se enruga. Espesso, a fervilhar, qual um milhão de helmintos, Em nosso crânio um povo de demônios cresce, E, ao respirarmos, aos pulmões a morte desce, Rio invisível, com lamentos indistintos. Se o veneno, a paixão, o estupro, a punhalada Não bordaram ainda com desenhos finos A trama vã de nossos míseros destinos, É que nossa alma arriscou pouco ou quase nada. Em meio às hienas, às serpentes, aos chacais, Aos símios, escorpiões, abutres e panteras, Aos monstros ululantes e às viscosas feras, No lodaçal de nossos vícios imortais, Um há mais feios, mais iníquo, mais imundo! Sem grandes gestos ou sequer lançar um grito, Da Terra, por prazer, faria um só detrito E num bocejo imenso engoliria o mundo; É o Tédio! - O olhar esquivo à mínima emoção, Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado. Tu conheces, leitor, o monstro delicado - Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão! As asas de gigante impedem-no de andar. ELEVAÇÃO Por sobre os pantanais, os vales orvalhados, As montanhas, os bosques, as nuvens, os mares, Para além do ígneo sol e do éter que há nos ares, Para além dos confins dos tetos estrelados, Flutuas, meu espírito, ágil peregrino, E, como um nadador que nas águas afunda, Sulcas alegremente a imensidão profunda Com um lascivo e fluido gozo masculino. Vai mais, vai mais além do lodo repelente, Vai te purificar onde o ar se faz mais fino, E bebe, qual licor translúcido e divino, O puro fogo que enche o espaço transparente. Depois do tédio e dos desgostos e das penas Que gravam com seu peso a vida dolorosa, Feliz daquele a quem uma asa vigorosa Pode lançar às várzeas claras e serenas; Aquele que, ao pensar, qual pássaro veloz, De manhã rumo aos céus liberto se distende, Que paira sobre a vida e sem esforço entende A linguagem da flor e das coisas sem voz! CORRESPONDÊNCIAS A natureza é um templo onde vivos pilares Deixam filtrar não raro insólitos enredos; O homem o cruza em meio a um bosque de segredos Que ali o espreitam com seus olhos familiares. Como ecos longos que à distância se matizam Numa vertiginosa e lúgubre unidade, Tão vasta quanto a noite e quanto a claridade, Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam. Há aromas frescos como a carne dos infantes, Doces como o oboé, verdes como a campina, E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes, Com a fluidez daquilo que jamais termina, Como o almíscar, o incenso e as resinas do Oriente, Que a glória exaltam dos sentidos e da mente. Amo a recordação daqueles tempos nus Amo a recordação daqueles tempos nus Quando Febo esculpia as estátuas na luz. Ligeiros, Macho e fêmea, fiéis ao som da lira, Ali brincavam sem angústia e sem mentira, E, sob o meigo céu que lhes dourava a espinha, Exibiam a origem de uma nobre linha. Cibele , então fecunda em frutos generosos, Nos filhos seus não via encargos onerosos: Qual loba fértil em anônimas ternuras, Aleitava o universo com as tetas duras. Robusto e esbelto, tinha o homem por sua lei Gabar-se das belezas que o sagravam rei, Sementes puras e ainda virgens de feridas, Cuja macia tez convidava às mordidas! Quando se empenha o Poeta em conceber agora Essas grandezas raras que ardiam outrora, No palco em que a nudez humana luz sem brio Sente ele n'alma um tenebroso calafrio Ante esse horrendo quadro de bestiais ultrajes. Ó quanto monstro a deplorar os próprios trajes! Ó troncos cômicos, figuras de espantalhos! Ó corpos magros, flácidos, inflados, falhos, Que o deus utilitário, frio e sem cansaço, Desde a infância cingiu em suas gases de aço! E vós, mulheres, mais seráficas que os círios, Que a orgia ceva e rói, vós, virgens como lírios, Que herdaram de Eva o vício da perpetuidade E todos os horrores da fecundidade! Possuímos, é verdade, impérios corrompidos, Com velhos povos de esplendores esquecidos: Semblantes roídos pelos cancros da emoção, E por assim dizer belezas de evasão; Tais inventos, porém, das musas mais tardias Jamais impedirão que as gerações doentias Rendam à juventude uma homenagem grave - À juventude, de ar singelo e fronte suave, De olhar translúcido como água de corrente, E que se entorna sobre tudo, negligente, Tal qual o azul do céu, os pássaros e as flores, Seus perfumes, seus cantos, seus doces calores. OS FARÓIS Rubens, rio do olvido, jardim da preguiça, Divã de carne tenra onde amar é proibido, Mas onde a vida flui e eternamente viça, Como o ar no céu e o mar dentro do mar contido; Da Vinci, espelho tão sombrio quão profundo, Onde anjos cândidos, sorrindo com carinho Submersos em mistério, irradiam-se ao fundo Dos gelos e pinhais que lhes selam o ninho; Rembrandt, triste hospital repleto de lamentos, Por um só crucifixo imenso decorado, Onde a oração é um pranto em meio aos excrementos, E por um sol de inverno súbito cruzado; Miguel Ângelo, espaço ambíguo em que vagueiam Cristo e Hércules, e onde se erguem dos ossários Fantasmas colossais que à tíbia luz se arqueiam E cujos dedos hirtos rasgam seus sudários; Impudências de fauno, iras de boxeador, Tu que de graça aureolaste os desgraçados, Coração orgulhoso, homem fraco e sem cor, Puget, imperador soturno dos forçados; Watteau, um carnaval de corações ilustres, Quais borboletas a pulsar por entre os lírios, Cenários leves inflamados pelos lustres Que à insânia incitam este baile de delírios; Goya, lúgubre sonho de obscuras vertigens, De fetos cuja carne cresta os sabás, De velhas ao espelho e seminuas virgens, Que a meia ajustam e seduzem Satanás; Delacroix, lago onde anjos maus banham-se em sangue, Na orla de um bosque cujas cores não se apagam E onde entranhas fanfarras, sob um céu exangue, Como um sopro de Weber entre os ramos vagam; Essas blasfêmias e lamentos indistintos, Esses Te Deum, essas desgraças, esses ais São como um eco a percorrerem mil labirintos, E um ópio sacrossanto aos corações mortais! É um grito expresso por milhões de sentinelas, Uma ordem dada por milhões de porta-vozes; É um farol a clarear milhões de cidadelas, Um caçador a uivar entre animais ferozes! Sem dúvida, Senhor, jamais o homem vos dera Testemunho melhor de sua dignidade Do que esse atroz soluço que erra de era em era E vem morrer aos pés de vossa eternidade! A MUSA DOENTE O que tens essa manhã, ó musa de ar magoado? Teus olhos estão cheios de visões noturnas, E vejo que em teu rosto afloram lado a lado A loucura e a aflição, frias e taciturnas. Teria o duende róseo ou o súcubo esverdeado Te ungido com o medo e o mel de suas urnas? O sonho mau, de um punho déspota e obcecado, Nas águas te afogou de um mítico Minturnas ? Quisera eu que, vertendo o odor da exuberância, O pensamento fosse em ti uma constância E que o sangue cristão te fluísse na cadência Das velhas sílabas de uníssona freqüência, Quando reinavam Febo, o criador das cantigas, E o grande Pã, senhor do campo e das espigas. Esquadrinhando o céu, a vista atormentada Pela sombria dor das quimeras ausentes. O grilo, ao fundo de uma frincha solitária, Vendo-os passar, uma outra vez canta sua ária; Cibele, que os adora, o verde faz crescer, Rebenta as fontes e de flor enche o deserto Ante esses que aí vão, deixando-lhes aberto O império familiar das trevas por nascer. O HOMEM E O MAR Homem liberto, hás de estar sempre aos pés do mar! O mar é teu espelho; a tua alma aprecias No infinito ir e vir de suas ondas frias, E nem teu ser é menos acre ao se abismar. Apraz-te mergulhar bem fundo em tua imagem; Em teus braços a estreitas, e teu coração Às vezes se distrai na própria pulsação Ao rumor dessa queixa indômita e selvagem. Sois todos esses deuses turvos e discretos: Homem, ninguém sondou-te as furnas mais estranhas; Ó mar, ninguém tocou-te as íntimas entranhas, Tão ciumento que sois de vossos bens secretos! E todavia há séculos inumeráveis Combatíeis sem nenhum remorso nem piedade, Tamanho amor guardais à morte e à crueldade, Ó meus irmãos, ó gladiadores implacáveis! DOM JUAN NOS INFERNOS Quando dom Juan desceu ao subterrâneo rio E logo que a Caronte o óbolo pagou, Como Antístenes, um mendigo de olhar frio Com braço vingativo os remos agarrou. Os seios flácidos e as vestes entreabertas, Mulheres se torciam sob um céu nevoento, E, qual rebanho vil de vítimas ofertas, Atrás dele rosnava em atroz lamento. Sganarello a rir a paga reclama, Enquanto, erguendo o dedo, apontava dom Luís A cada morto que nas margens deambulava O filho audaz que lhe ultrajara a fronte gris. Em seu álgido luto, Elvira, casta e esguia, Junto ao pérfido esposo, amante seu de outrora, Parecia exigir-lhe uma última alegria Cujo sabor não recordasse o fel de agora. Ereto na couraça, um homem pétreo e imenso Golpeava a onda noturna e ao leme as mãos prendia; Mas o tranqüilo herói, por sobre a espada penso, Olhava a água passar e em torno nada via. CASTIGO DO ORGULHO Nos esplêndidos tempos em que a Teologia Viçava no apogeu da seiva e da energia, Conta-se que um doutor, dentre os mais eminentes, Após dobrar os corações indiferentes, Os arrojou nas mais escuras profundezas; Após franquear às celestiais e altas grandezas Caminhos dele próprio até desconhecidos, Só pelas almas puras talvez percorridos, Como quem alto foi demais, cheio de pânico, Gritou, possuído então de um orgulho satânico: "Jesus, ó meu Jesus! Te ergui à etérea altura! Mas se, ao contrário, eu te golpeasse na armadura, Tua vergonha igualaria atua glória, E não serias mais que um feto sem história!" Sua razão de pronto a pó se reduziu. A flama deste sol de negro se tingiu; O caos se lhe instalou então na inteligência, Templo antes vivo, pleno de ordem e opulência, Sob cujos tetos tanto fausto resplendia E nele floresceram a noite e a agonia, Qual numa furna cuja boca jaz selada. Desde então semelhante aos animais da estrada, Quando ia ao campo sem saber sequer quem era, Sem distinguir entre o verão e a primavera, Imundo, ocioso e feio como coisa usada, Fazia riso e a diversão da meninada. A BELEZA Eu sou bela, ó mortais! Como um sonho de pedra, E meu seio, onde todos vêm buscar a dor, É feito para ao poeta inspirar esse amor Mudo e eterno que no ermo da matéria medra. No azul, qual uma esfinge, eu reino indecifrada; Conjugo o alvor do cisne a um coração de neve; Odeio o movimento e a linha que o descreve, E nunca choro nem jamais sorrio a nada. Os poetas, diante de meus gestos de eloqüência, Aos das estátuas mais altivas semelhantes, Terminarão seus dias sob o pó da ciência; Pois que disponho, para tais dóceis amantes, De um puro espelho que idealiza a realidade: O olhar, meu largo olhar de eterna claridade! O IDEAL Jamais serão essas vinhetas decadentes, Belezas pútridas de um século plebeu, Nem borzeguins ou castanholas estridentes, Que irão bastar a um coração igual ao meu. Concedo a Gavarni, o poeta das cloroses, Todo o rebanho das belezas de hospital, Pois nunca vi dentre essas pálidas necroses Uma só flor afim de meu sangüíneo ideal. O que me falta ao coração e o que o redime Sois vós o Lady Macbeth, alma afeita ao crime, Sonho de Ésquilo exposto ao aguilhão dos ventos; Ou tu, Noite por Miguel Ângelo engendrada, Que em paz retorces numa pose inusitada Teus encantos ao gosto dos Titãs sedentos! A GIGANTA No tempo em que, com verme tal que nos espanta, Gerava a Natureza o ser mais fabuloso, Quisera eu ter vivido aos pés de uma giganta, Qual junto a uma rainha um gato voluptuoso. Me agradaria ver-lhe o corpo e a alma em botão E após segui-la em seus insólitos folguedos; Saber se a alguma chama lhe arde ao coração Sob as úmidas névoas de seus olhos quedos; Tatear-lhe as formas como quem percorre espelhos; Ascender à vertente de seus grandes joelhos, E às vezes, no verão, quando tangente ao solo, O sol violento a deixa exausta na campina, Dormir languidamente à sombra de seu colo, Como um burgo tranqüilo ao pé de uma colina. A MÁSCARA A Ernest Cristophe, estatuário Contempla esse perfil de graças florentinas; Na sóbria ondulação do corpo musculoso Excedem Força e Proporção, irmãs divinas. Essa mulher, fração de um ser miraculoso, Divinamente forte, amavelmente pobre, Criada foi para no leito arder em gozo, Saciando os ócios de um pontífice ou de um nobre. - Repara-lhe o sorriso fino e voluptuoso onde a vaidade aflora e em êxtase perdura; Esse lânguido olhar oblíquo e desdenhoso, Esse rosto sutil, na gaze da moldura, E minha alma sutil que sobre as ondas goza Saberá voz achar, ó concha preguiçosa! Infinito balouço do ócio embalsamado! Coma azul, pavilhão de trevas distendidas, Do céu profundo dai-me a esférica amplidão; Na trama espessa dessas mechas retorcidas Embriago-me febril de essências confundidas Talvez de óleo de coco, almíscar e alcatrão. Por muito tempo! Sempre! Em tua crina ondeante Cultivarei a pérola, a safira e o jade, Para que meu desejo em teus ouvidos cante! Pois não és o oásis onde sonho, o odre abundante Onde sedento bebo o vinho da saudade? Eu te amo como se ama a abóbada noturna, Ó taça de tristeza, ó grande taciturna, E mais ainda te adoro quando mais te ausentas E quanto mais pareces, no ermo que ornamentas, Multiplicar irônica as celestes léguas Que me separam das imensidões sem tréguas. Ao assalto me lanço e agito-me na liça, Como um coro de vermes junto a uma carniça, E adoro, ó fera desumana e pertinaz, Até essa algidez que mais bela te faz! Porias o universo inteiro em teu bordel, Mulher impura! O tédio é que te torna cruel. Para teus dentes neste jogo exercitar, A cada dia um coração tens que sangrar. Teus olhos, cuja luz recorda a dos lampejos E dos rútilos teixos que ardem nos festejos, Exibem arrogantes uma vã nobreza, Sem conhecer jamais a lei de sua beleza. Ó monstro cego e surdo, em cruezas fecundo! Salutar instrumento, vampiro do mundo, Como não te envergonhas ou não vês sequer Murchar no espelho teu fascínio de mulher? A grandeza do mal de que crês saber tanto Não te obriga jamais a vacilar de espanto Quando a mãe natureza, em desígnios velados, Recorre a ti, mulher, ó deusa dos pecados - A ti, vil animal - , para um gênio forjar? Ó lodosa grandeza! Ó desonra exemplar! SED NON SATIATA Bizarra divindade, cor da noite escura, Cujo perfume sabe a almíscar e a havana, Obra de algum obi, o Fausto da savana, Feiticeira sombria, criança de hora impura, Prefiro ao ópio, ao vinho, à bêbeda loucura, O elixir dessa boca onde o amor se engalana; Se meus desejos vão a ti em caravana, É do frescor dos olhos teus que ando à procura. Que esses dois olhos negros, poros de tua alma, Ó demônio impiedoso! Às chamas tragam calma; Não sou Estige para lúbrico abraçar-te, Eu não posso, ai de mim, ó Megera sensual, Para dobrar-te a fúria e à parede encostar-te, Qual Prosérpina arder em teu leito infernal. Envolta em ondulante traje nacarado, Até quando caminha dir-se-á que ela dança, Como esses longos répteis que um jogral sagrado Agita em espirais no vértice da lança. Como a tépida areia ou o azul do deserto, Insensíveis os dois à desventura humana, Como a trama das ondas no ermo mar aberto, Ela se move indiferente e soberana. Em seu polido olhar há minerais radiantes. E nessa têmpera insólitas quimeras, Entre anjo indecifrado e esfinge de outras eras, Em que tudo é só luz, metal, ouro e diamantes, Esplende para sempre, em seu frívolo império, A fria majestade da mulher estéril. A SERPENTE QUE DANÇA Em teu corpo, lânguida amante, Me apraz contemplar, Como um tecido vacilante, A pele a faiscar. Em tua fluida cabeleira De ácidos perfumes, Onda olorosa e aventureira De azulados gumes, Como um navio que amanhece Mal desponta o vento, Minha alma em sonho se oferece Rumo ao firmamento. Teus olhos, que jamais traduzem Rancor ou doçura, São jóias frias onde luzem O ouro e a gema impura. Ao ver-te a cadência indolente, Bela de exaustão, Dir-se-á que dança uma serpente No alto de um bastão. Ébria de preguiça infinita, A fronte de infanta Se inclina vagarosa e imita A de uma elefanta. E teu corpo pende e se aguça Como escuna esguia, Que às praias toca e se debruça Sobre a espuma fria. Qual uma inflada vaga oriunda Dos gelos frementes, Quando a água em tua boca inunda A arcada dos dentes, Bebo de um vinho que me infunde Amargura e calma, Um líquido céu que difunde Astros em minha alma! UMA CARNIÇA Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos Numa bela manhã radiante: Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos, Uma carniça repugnante. As pernas para cima, qual mulher lasciva, A transpirara miasmas e humores, Eis que as abria desleixada e repulsiva, O ventre prenhe de livores. Ardia o sol naquela pútrida torpeza, Como a cozê-la em rubra pira E para o cêntuplo volver à Natureza Tudo o que ali ela reunira. E o céu olhava do alto a esplêndida carcaça Como uma flor a se entreabrir. O fedor era tal que sobre a relva escassa Chegaste quase a sucumbir. Zumbiam moscas sobre o ventre e, em alvoroço, Dali saíam negros bandos De larvas, a escorrer como um líquido grosso Por entre esses trapos nefandos. E tudo isso ia e vinha, ao modo de uma vaga, Que esguichava a borbulhar, Como se o corpo, a estremecer de forma vaga, Vivesse a se multiplicar. E esse mundo emitia uma bulha esquisita, Como vento ou água corrente, nessas noites sem fim em que nos foge o sono, Dir-te-á: "De que valeu, cortesã indiscreta, Ao pé dos mortos ignorar o seu lamento?" - E o verme te roerá como um remorso lento. O GATO Vem cá, meu gato, aqui no meu regaço; Guarda essas garras devagar, E nos teus belos olhos de ágata e aço Deixa-me aos poucos mergulhar. Quando meus dedos cobrem de carícias Tua cabeça e dócil torso, E minha mão se embriaga nas delícias De afagar-te o elétrico dorso, Em sonho a vejo. Seu olhar, profundo Como o teu, amável felino, Qual dardo dilacera e fere fundo, E, dos pés a cabeça, um fino Ar sutil, um perfume que envenena Envolve-lhe a carne morena. DUELLUM Dois inimigos se enfrentaram; suas armas O ar tingiram de sangue e de ébrios esplendores. Estes metais em duelo ecoam como alarmas Da juventude exposta a impúberes amores. Foram-se os gládios! Como a nossa juventude, Querida! Mas as unhas e os dentes afiados Logo vingam a espada e a adaga falsa e rude. Ó corações em fúria e pelo amor magoados! Na ravina apinhada de onças e leopardos Rolam os heróis, um a outro abraçado, E sua pele há de fazer florir os cardos. - Pois este abismo é o inferno por tantos povoado! Nele rolemos sem remorso, cruel parceira, A fim de que o ódio nos aqueça a vida inteira! A VARANDA Mãe das recordações, amante das amantes, Tu, todo o meu prazer! Tu, todo o meu dever! Hás de lembrar-te das carícias incessantes, Da doçura do lar à luz do entardecer, Mãe das recordações, amante das amantes! As tardes à lareira, ao calor do carvão, E as tardes na varanda, entre róseos matizes. Quão doce era o seu seio e meigo coração! Dissemo-nos os dois as coisas mais felizes Nas tardes à lareira, ao calor do carvão! Quão soberbo era o sol nas tardes douradas! Que profundo era o espaço e como a alma era langue! Curvado sobre ti, rainha das amadas, Eu julgava aspirar o aroma de teu sangue. Quão soberbo era o sol nessas tardes douradas! A noite se adensava igual a uma clausura, E no escuro os meus olhos viam-te as pupilas; Teu hálito eu sorvia, ó veneno, ó doçura! E dormiam teus pés em minhas mãos tranqüilas. A noite se adensava igual a uma clausura. Sei a arte de evocar as horas mais ditosas, E revivo o passado imerso em teu regaço. Para que procurar belezas voluptuosas Se as encontro em teu corpo e em teu cálido abraço? Sei a arte de evocar as horas mais ditosas. Juras de amor, perfumes, beijos infinitos, De um fundo abismo onde não chegam nossas sondas Voltareis, como o sol retorna aos céus benditos Depois de mergulhar nas mais profundas ondas? - Juras de amor, perfumes, beijos infinitos! O POSSESSO Cobriu-se o sol de negro véu. Como ele, ó Lua De minha vida, veste o luto da agonia; Dorme ou fuma à vontade; sê muda e sombria, E no abismo do Tédio esplêndida flutua; Eu te amo assim! Se agora queres, todavia, Como um astro a emergir da penumbra que o acua, Pavonear-te no palco onde a Loucura atua, Pois bem! Punhal sutil em teu estojo esfria! Acende essa pupila no halo dos clarões! Acende a cupidez no olhar dos grosseirões! Em ti tudo é prazer, morboso ou petulante; Seja o que for, escura noite ou rubra aurora; Uma por uma, as fibras do meu corpo arfante Gritam: Ó Belzebu, meu coração te adora! UM FANTASMA I - AS TREVAS Nos porões de tristeza impenetrável Onde o Destino um dia me esqueceu; Onde jamais um róseo raio ardeu, Só com a noite, hospedeira intratável, Sou qual pintor que um Deus, por diversão, Na treva faz mover os seus pincéis, Ou cozinheiro de apetites cruéis Que assa e devora o próprio coração. Súbito brilha e faz-se ali presente Fantasma esplêndido e de graça extrema Em oriental postura evanescente. Ao atingir a perfeição suprema, Nela percebo a bela visitante: Ei-la! Negra e contudo fulgurante. II - O PERFUME Leitor, tens já por vezes respirado Com embriaguez e lenta gostosura O grão de incenso que enche uma clausura, Ou de um saquinho de almíscar entranhado? Sutil e estranho encanto transfigura Em nosso agora a imagem do passado. Assim o amante sobre o corpo amado À flor mais rara colhe o que perdura. Da cabeleira espessa como crina, Turíbulo de alcova, ébria almofada, Vinha uma essência rútila e indomada, E das vestes, veludo ou musselina, Que sua tenra idade penetrava, Um perfume de pêlos evolava. III - A MOLDURA Como à tela se ajusta uma moldura - Não importa do artista a sutileza - , Isolando-o da imensa natureza, Um não-sei-quê de mágica textura, Assim jóias, metais e douradura Ajustavam-se à sua irreal beleza; Nada ofuscava-lhe a integral clareza, E tudo lhe era como cercadura. Dir-se-ia muita vez que ela supunha Tudo existir para adorá-la e expunha Sua nudez com gozo e encantamento Às carícias do linho e do cetim, E, suave ou brusca, a cada movimento Mostrava a graça ingênua do sagüim. IV - O RETRATO A Doença e a Morte tornam cinza todo Aquele fogo que por nós ardeu. Dos olhos a me olhar daquele modo, Salvando-me do risco ou de qualquer agravo, Rumo à Beleza eles me guiam sempre altivo; Meus servos são e deles sou também escravo; Todo meu ser se roja ante este archote vivo. Olhos graciosos, cintilais da luz que emana Dos círios místicos a arder no dia a pino; O sol não lhes extingue a misteriosa chama; Eles louvam a Morte, e vós entoais um Hino; Ides a celebrar de minha alma o arrebol, Astros cuja luz nunca há de apagar o sol! REVERSIBILIDADE Ó Anjo de alegria, já viste a desgraça, Os soluços, o tédio, o remorso, as vergonhas, E o difuso terror dessas noites medonhas Que o peito oprimem como um papel que se amassa? Ó Anjo de alegria, já viste a desgraça? Ó Anjo de bondade, já viste o rancor, As mãos em gesto aflito e as lágrimas de fel, Quando brande a Vingança o seu apelo cruel E de nossas virtudes torna-se senhor? Ó Anjo da bondade, já viste o rancor? Ó Anjo de saúde, já viste os Delírios, Que, ao longo das paredes do asilo alvadio, Como exilados vão em passo tardio, Movendo os lábios e buscando a luz dos círios? Ó Anjo de saúde, já viste os Delírios? Ó Anjo de beleza, as rugas já não viste, Não viste o medo da velhice e este suplício De ler esfíngico pavor do sacrifício No olhar que outrora no saciou a gula triste? Ó Anjo da beleza, as rugas já não viste? Ó Anjo de ventura e júbilo e clarões, Davi da morte se teria levantado Sob os eflúvios de teu corpo enfeitiçado; Mas a ti só imploro as tuas orações, Ó Anjo de ventura e júbilo e clarões! CONFISSÃO Uma vez, uma só, graciosa e doce amante, Teu suave braço sobre o meu Pousou (no fundo em trevas de minha alma, o instante Que então vivemos não morreu); Era bem tarde; qual efígie luminosa, A lua cheia se exibia, Enquanto a noite, como um rio, majestosa, Sobre Paris em calma fluía. E junto às casas, por debaixo dos portais, Gatos furtivos se moviam, O ouvido alerta, ou, como sombras fraternais, A passo lento nos seguiam. Súbito, em meio àquela intimidade franca Nascida a luz ainda escassa, De ti, rico instrumento ao qual nunca se arranca Senão a mais vibrante graça, De ti, alegre e clara como uma fanfarra Imersa na manhã radiante, Uma nota queixosa, uma nota bizarra No ar oscilou toda hesitante Qual menino franzino e macilento e imundo, A quem os pais, por pejo ou medo, Longo tempo escondessem aos olhos do mundo, Como se esconde um vil segredo. Anjo infeliz, ela trauteava a nota aguda "Aqui na Terra é tudo engano, E mesmo que a si próprio alguém sempre se iluda, Revela-se o egoísmo humano; Ser bela é ofício cujo preço se conhece, É o espetáculo banal Da bailarina louca e fria que fenece Com um sorriso maquinal; Semear nos corações é sucumbir ao pranto; Finda-se o amor, vem a saudade, Até que o Esquecimento os arremesse a um canto E os lance enfim à Eternidade!" Muita vez evoquei esta lua encantada, Este silêncio noite afora, E esta medonha confidência sussurrada Ao coração que a escuta agora. A AURORA ESPIRITUAL Entre os devassos, quando a branca e rubra aurora Faz mútua sociedade com o Ideal roedor, Por obra e graça de um mistério vingador Na entorpecida besta fera um anjo aflora. Dos céus espirituais o azul inacessível, Para o homem que padece e sonha em paroxismo, Se entreabre e se aprofunda em fascinante abismo. Assim, graciosa Deusa, lúcida e sensível, Sobre os despojos fumegantes das orgias Tua imagem mais clara, mais rósea, mais cheia, Ante meus olhos pasmos sem cessar volteia. O sol crestou nos castiçais as chamas frias; Assim, triunfante, o teu fantasma se parece, Alma radiosa, ao sol que eterno resplandece! HARMONIA DA TARDE Chegado é o tempo em que, vibrando o caule virgem, Cada flor se evapora igual a um incensório; Sons e perfumes pulsam no ar quase incorpóreo; Melancólica valsa e lânguida vertigem! Cada flor se evapora igual a um incensório; Fremem violinos como fibras que se afligem; Melancólica valsa lânguida vertigem! É triste e belo o céu como um grande oratório. Freme violinos como fibras que se afligem, Almas ternas que odeiam o nada vasto e inglório! É triste e belo o céu como um grande oratório; O sol se afoga em ondas que de sangue o tingem. Almas ternas que odeiam o nada vasto e inglório Recolhem do passado as ilusões que o fingem! O sol se afoga em ondas que de sangue o tingem... Fulge a tua lembrança em mim qual ostensório! O FRASCO Perfumes há que os poros da meteria filtram E no cristal dir-se-ia até que eles se infiltram. Ao abrirmos um cofre que nos vem do Oriente Cujo ferrolho range e emperra asperamente, Ou numa casa algum poeirento e negro armário, Onde o acre odor dos tempos dorme solitário, Talvez se encontre um frasco a recordar o outrora, Do qual uma alma palpitante se evapora. Pensamentos dormiam, ninfas moribundas, A fremir com doçura em meio às trevas fundas, E as asas distendiam para alçar-se, estriadas De azul e rosa, ou de ouro arcaico laminadas. Eis as lembranças inebriantes que se afligem No ar convulso; fecham-se os olhos; a Vertigem Subjuga a lama vencida e empurra com a mão A um vórtice que exala a humana podridão; Abate-a às bordas de um abismo milenário, Onde, qual Lázaro rasgando seu sudário, Se move ao despertar o defunto espectral De um velho amor malsão, gracioso e sepulcral. Assim, quando de tudo eu me tornar ausente, Ao canto de um sinistro armário indiferente, Quando esquecido eu for, qual frasco desolado, Caduco, imundo, abjeto, poeirento, rachado, Eu te quero contar, lânguida feiticeira, Tudo o que te orna e te faz bela por inteira! Quero pintar tua beleza, Na qual a infância se conjuga à madureza. Quando vais, sacudindo no ar a saia larga, És como a bela nau que rumo às ondas larga, Cheio de véus soltos ao vento, Seguindo um ritmo doce e preguiçoso e lento. Sobre a robusta espádua e o pescoço roliço, Tua cabeça se ergue envolta em graça e viço; A um tempo só triunfante e mansa, Prossegues teu caminho, majestosa criança. Eu te quero contar, lânguida feiticeira, Tudo o que te orna e te faz bela por inteira! Quero pintar tua beleza, Na qual a infância se conjuga à madureza. Teu colo que arfa sob o traje fluido e vário, Teu colo vitorioso é como um belo armário, Cujos claros gomos convexos Como os broqueis capturam rútilos reflexos; Provocantes broqueis de agudas pontas rosas! Armários cheios de iguarias tão preciosas: Vinhos, perfumes e licores Que o coração e a mente inundam de torpores! Quando vais, sacudindo no ar a saia larga, És como a bela nau que rumo às ondas larga, Cheia de véus soltos ao vento, Seguindo um ritmo doce e preguiçoso e lento. As nobres pernas, sob os folhos que se amassam, Os maus desejos atormentam e espicaçam, Quais duas bruxas que, ao acaso, Um negro filtro vão mexendo em fundo vaso. Teus barcos, que aos titãs enfrentam nas porfias, São sólidos rivais das víboras sombrias, Feitos para o fatal abraço E para o amante eternizar em teu regaço. Sobre a robusta espádua e o pescoço roliço, Tua cabeça se ergue envolta em graça e viço; A um tempo só triunfante e mansa, Prossegues teu caminho, majestosa criança. O CONVITE À VIAGEM Minha doce irmã, Pensa na manhã Em que iremos, numa viagem, Amar a valer, Amar e morrer No país que é a tua imagem! Os sóis orvalhados Desses céus nublados Para mim guardam o encanto Misterioso e cruel Desse olhar infiel Brilhando através do pranto. Lá, tudo é paz e rigor, Luxo, beleza e langor. Os móveis polidos, Pelos tempos idos, Decorariam o ambiente; As mais raras flores Misturando odores A um âmbar fluido e envolvente, Tetos inauditos, Cristais infinitos, Toda uma pompa oriental, Tudo aí à alma Falaria em calma Seu doce idioma natal. Lá, tudo é paz e rigor, Luxo, beleza e langor. Vê sobre os canais Dormir junto aos cais Barcos de humor vagabundo; É para atender Teu menor prazer Que eles vêm do fim do mundo. - Os sangüíneos poentes Banham as vertentes, Os canis, toda a cidade, E em seu ouro os tece; O mundo adormece Na tépida luz que o invade. Lá, tudo é paz e rigor, Luxo, beleza e langor. O IRREPARÁVEL I Como abafar este Remorso interminável, Que vive, se enrosca e se agita, E se nutre de nós como um verme insaciável, Qual do carvalho o parasita? Como abafar este Remorso inexorável? Em que filtro, em que vinho, em que amarga tisana Afogar tal praga inimiga, Gulosa e predatória como uma mundana, Paciente como uma formiga? Em que filtro? - em que vinho? - em que amarga tisana? Ah, dize, ó feiticeira! Dize, se és capaz, A esta alma que o tormento assola, Como a de quem, em meio aos que agonizam, jaz E o casco do cavalo esfola, Ó bela feiticeira! Ah, dize, se és capaz, Ao moribundo a quem o lobo já fareja E a gula do corvo amortalha, A este soldado que, batido, ainda peleja Por uma tumba e uma medalha; O moribundo a quem o lobo já fareja! Como clarear um céu ao sol indiferente, Rasga-lhe as trevas em cortejo, Mais densas do que o breu, sem aurora e sem poente, Sem astro ou fúnebre lampejo? Como clarear um céu ao sol indiferente? A esperança que luz nos vidros da Estalagem Desfez-se em meio ao torvelinho! Sem raios nem luar, onde achar-se hospedagem Aos mártires de um mau caminho? Satã tudo extinguiu nos vidros da estalagem! Amável feiticeira, adoras os danados? Conhece o que nunca é salvo? Conheces do Remorso os dardos aguçados? Que o coração nos fazem de alvo? Amável feiticeira, adora os danados? O Irreparável rói com a presa maldita Nossa lama, indigno monumento, E muita vez ataca, assim côo a térmita, O prédio por seu fundamento. O irreparável rói com a presa maldita; II - Por vezes vi, ao fundo de um teatro banal Que inflamava a orquestra sonora, Uma fada acender no horizonte infernal Uma miraculosa aurora; Por vezes vi, ao fundo de um teatro banal, Um Ser feito somente de ouro, gaze e luz Que o enorme Satã vencera; Porém meu coração, que êxtase algum seduz, É como um teatro onde se espera, Em vão e para sempre, o Ser de asas de luz! CONVERSA És como um céu de outono, róseo e luminoso! Mas a tristeza em mim é qual o mar que avança E deixa, ao refluir, sobre meu lábio umbroso O amargo travo de uma cáustica lembrança. - Sobre meu peito corre inútil a tua mão; O que ela toca, amiga, é um sítio devastado Pelas garras e os dentes das mulheres. Não Qual turíbulo envolvente, Teu corpo esparge perfumes; Da noite o encanto resumes, Ninfa tenebrosa e ardente. Não há poção mais bendita Do que teu ócio, ó delícia, E conheces a carícia Que os defuntos ressuscita! Por teu dorso e por teus seios Teus quadris morrem de amores E aos coxins causas rubores Com teus lânguidos meneios. Se urge às vezes ser domada Tua raiva misteriosa, Tu me cravas, respeitosa, Além do beijo, a dentada. Morena, tu me aniquilas Com teu riso de acre efeito, E depois banhas-me o peito No luar de tuas pupilas. A teus pés de talhe fino, Pés graciosos de cetim, Ponho tudo o que há em mim, O meu gênio e o meu destino. Por ti minha alma se cura, Só por ti, que és luz e cor! Fulguração de calor Em minha Sibéria escura! SISINA Imaginai Diana em galante roupagem, Percorrendo florestas e sarçais rasteiros, Cabelo e colo ao vento, em júbilo selvagem, Soberba, a desafiar os hábeis cavaleiros! Já nÃo viste Théroigne, amante da carnagem, Insuflando ao ataque um bando de arruaceiros, A face e o olhar febril, conforme a personagem, Galgando, sabre em punho, o trono dos herdeiros? Tal é a Sisina! Mas a doce combatente Revela uma alma tão feroz quanto indulgente; Seu destemor, vizinho à pólvora e aos tambores, Sabe poupar a vida a quem de pé implora, E sempre o coração, pulsando entre fulgores, Ante quem o merece eis que se mostra e chora. LOUVORES À MINHA FRANCISCA Versos compostos para uma modista erudita e devota Em novas cordas te canto, Ó corça de álacre encanto Que se diverte em meu pranto. Envolve o corpo de flores, Ó mulher que aos pecadores Perdoa as culpas e as dores! Como a um Lestes benfazejo, À boca te sorvo um beijo, Pois que és imã do desejo. Quando da tormenta da orgia Meus caminhos confundia, Eis que vieste, Deusa, um dia, Bendita estrela dos mares, Nos naufrágios, nos pesares... A alma elevo a teus altares! Límpida e fresca nascente, Fluxo de eterno presente, Restituiu-me a voz ausente! O que era impuro queimaste; O que era áspero alisaste; O que era frágil firmaste. Na minha fome, taverna, Na minha noite, lanterna, Sempre reta me governa. À força mais força soma, Doce banho cujo aroma Suavíssimo vem à tona! Cinge-me toda a cintura, Casta insígnia que fulgura Em seráfica tintura; Taça que em gemas faísca, Salso pão, dádiva prisca, Divino vinho, Francisca! A UMA DAMA CRIOULA " No país perfumado, a um sol de fogo e pena, Conheci sob dossel de árvores purpurado, E de palmas de onde o ócio ao nosso olhar acena, Uma dama crioula e de encanto ignorado. De tez pálida e quente, a mágica morena Tem no seu colo um ar, sempre o mais requintado; Vai como a caçadora e é imponente e serena, Seu sorriso é tranqüilo e seu olhar confiado." MOESTA ET ERRABUNDA Dize, Ágata, tua alma às vezes não se evola, Fugindo ao negro oceano da inunda cidade, Em busca de outro oceano que jamais se estiola, Profundo, claro, azul, tal como a virgindade? Dize, Ágata, tua alma às vezes não se evola? O mar, o vasto mar, nos purga os sofrimentos! Carrega-me vagão! Batel, leva-me embora! Bem longe! Aqui do nosso pranto faz-se o lodo! - Será que de Ágata a alma às vezes não importa: Para além do remorso, do crime, do engodo, Carrega-me, vagão, batel, leva-me embora? Como estás longe, paraíso perfumado, Onde à tristeza e ao ódio o espírito se nega, Onde tudo o que se ama faz por ser amado, Onde à pura volúpia o coração se entrega! Como estás longe, paraíso perfumado! E o verde paraíso das frágeis meninas, As fugas as canções, os beijos que roubamos, Os violinos vibrando por trás das colinas, Com cântaros de vinho, à tarde, sob os ramos - E o verde paraíso das frágeis meninas, O inocente jardim dos prazeres furtivos, Já estará mais distante do que a Índia e a China? Evocá-lo se pode em gritos pungitivos, Ou talvez animá-lo com voz argentina, O inocente jardim dos prazeres furtivos? A ALMA DO OUTRO MUNDO Como os anjos de ruivo olhar, À tua alcova hei de voltar E junto a ti, silente vulto, Deslizarei na sombra oculto; Dar-te-ei na pele escura e nua Beijos mais frios do que a lua E qual serpente em náusea fossa Te afagarei o quanto possa. Ao despontar o dia incerto, O meu lugar verás deserto, E em tudo o frio há de se pôr. Como os demais pela virtude, Em tua vida e juventude Quero reinar pelo pavor. Escalo o dorso aos vagalhões entrelaçados Que a noite me vela; Sinto que em mim ecoam todas as paixões De um navio aflito; O vento, a tempestade e suas convulsões No abismo infinito Me embalam. Ou então, mar calmo, espelho austero De meu desespero! SEPULTURA Se em lúgubre noite de assombro Um bom cristão, por caridade, Sepulta ao pé de um velho escombro Teu corpo inflado de vaidade, À hora em que as estrelas graves Fecham seus olhos sonolentos, A aranha urdirá suas caves, Como a serpente seus rebentos; Ouvirás cada ano que passa Ecoar no teu crânio em desgraça O uivo dos lobos carniceiros E das ferozes bruxas hiantes, A esbórnia das velhas bacantes E o vil complô dos trapaceiros. UMA GRAVURA FANTÁSTICA Este espectro invulgar tem apenas por traje, A ornar-lhe a fronte nua qual grotesco ultraje, Um medonho diadema herdado ao carnaval. Sem espora ou chicote, ele instiga o animal, Como ele a um tempo apocalíptico e esquelético, A espumar pelas ventas como um epiléptico. Cavalgam ambos rumo às cúpulas do espaço, Calcando o azul do céu com temerário passo. O cavaleiro brande um sabre que resplende Sobre as turbas sem nome que o corcel ofende, E a sós percorre, como um rei que o lar visite, O imenso e frio cemitério sem limite, Onde repousa, à luz de um sol pálido e terno, Quanto povo existiu, desde o antigo ao moderno. O MORTO ALEGRE Na planície em que o lento caracol vagueia, Quero eu mesmo cavar um buraco bem fundo, Onde possam meus ossos repousar na areia, Como a esqualo a dormir no pélago profundo. Odeio o testamento e a tumba me nauseia; Ao invés de implorar uma lágrima ao mundo, Prefiro em vida dar aos corvos como ceia Os trapos que me pendem do esqueleto imundo. Ó vermes! Vós a que não chegam luz ou ruído, Eis que vos toca um morto alegre e destemido; Filhos da podridão, demiurgos do artifício, Vinde pois sem remorso ungir-me os membros tortos, E dizei-me depois se resta algum suplício A este corpo sem alma e morto dentre os mortos! TONEL DO ÓDIO O Ódio é o tonel das pálidas Denaides frias; Por mais que da Vingança o braço rubro e forte Derrame-lhe às entranhas ermas e sombrias Baldes cheios de sangue e lágrimas da morte, O Diabo lhe abre furos nunca imaginados, Que verteriam séculos de esforço e suor, Mesmo que à vida ela trouxesse os condenados Para o corpo infligir-lhes castigo maior. O Ódio é um ébrio perdido ao fundo da taverna, Que sente sua sede emergir do licor E ali multiplicar-se qual hidra de Lerna. - Mas quem bebe feliz verá seu vencedor, E ao Ódio resta apenas a amarga certeza De saber que jamais dormirá sob a mesa. O SINO RACHADO É doce e amargo, quando a neve cai lá fora, Ouvir, ao pé do fogo que crepita e esfuma, Aflorar lentamente as lembranças de outrora Ao som dos carrilhões que ressoam na bruma. Bendito o sino de garganta vigorosa Que, apesar da velhice, alerta e bem disposto, Fielmente emite sua nota religiosa, Como um velho soldado atento no seu posto. Minha alma está rachada, e quando, em agonia, Quer povoar de canções o azul da noite fria, Ocorre muita vez que a voz se lhe enfraquece Como o espesso estertor de um corpo que se esquece, Junto a um lago de sangue e de humanos destroços, E que sucumbe, inerte, entre imensos esforços. SPLEEN Pluviôse, contra toda a cidade irritado, De sua urna verte um frio tenebroso Sobre os que moram sós no cemitério ao lado, E entorna a morte no subúrbio nebuloso. Meu gato em busca de onde estar aconchegado Agita inquieto o corpo flácido e asqueroso; A alma de um velho poeta erra pelo telhado, Com a lúgubre voz de um fantasma brumoso. O bordão se lamenta, e a tíbia acha de lenha Acompanha em falsete a pêndula roufenha, Enquanto num baralho, entre ácidos odores, Herança de uma velha hidrópica e entrevada, Um valete e uma dama, em sinistra jogada, Vão lembrando entre si sues defuntos amores. SPLEEN Eu tenho mais recordações do que há em mil anos. Uma cômoda imensa atulhada de planos, Versos, cartas de amor, romances escrituras, Com grossos cachos de cabelo entre as faturas, Guarda menos segredos que o meu coração. É uma pirâmide, um fantástico porão, E jazigo não há que mais mortos possua. - Eu sou um cemitério odiado pela lua, Onde, como remorsos, vermes atrevidos Andam sempre a irritar meus mortos mais queridos. Sou como um camarim onde há rosas fanadas, Em meio a um turbilhão de modas já passadas, Onde os tristes pastéis de um Boucher desbotado Ainda aspiram o odor de um frasco destampado. Nada iguala o arrastar-se dos trôpegos dias, Quando, sob o rigor das brancas invernias, O tédio, taciturno exílio da vontade, Assume as proporções da própria eternidade. - Doravante hás de ser, ó pobre e humano escombro! Um granito açoitado por ondas de assombro, A dormir nos confins de um Saara brumoso; Uma esfinge que o mundo ignora, descuidoso, Esquecida no mapa, e cujo áspero humor Canta apenas os raios do sol a se pôr. SPLEEN Sou como um rei sombrio de um país chuvoso, Rico, mas incapaz, moço e no entanto idoso, Que, desprezando do vassalo a cortesia, Entre seus cães e outros bichos se entedia. Nada o pode alegrar, nem caça, nem falcão, Desce? Responde, libertino. - Insaciavelmente sedento Do que não vejo e não defino, Reprovo a Ovídio o seu lamento Quando se foi do Éden latino. Céus destroçados e tristonhos, De vós o meu orgulho é fruto; Vossas grossas nuvens de luto São os esquifes de meus sonhos, E vosso espectro a imagem traz Do Inferno que à minha alma praz. O HEAUTONTIMOROUMENOS A J.G.F. Sem cólera te espancarei, Como o açougueiro abate a rês, Como Moisés à rocha fez! De tuas pálpebras farei, Para o meu Saara inundar, Correr as águas do tormento. O meu desejo ébrio de alento Sobre o teu pranto irá flutuar Como um navio no mar alto, E em meu saciado coração Os teus soluços ressoarão Como um tambor que toca o assalto! Não sou acaso um falso acorde Nessa divina sinfonia, Graças à voraz Ironia Que me sacode e que me morde? Em minha voz ela é quem grita! E anda em meu sangue envenenado! Eu sou o espelho amaldiçoado Onde a megera se olha aflita. Eu sou a faca e o talho atroz! Eu sou o rosto e a bofetada! Eu sou a roda e a mão crispada, Eu sou a vítima e o algoz! Sou um vampiro a me esvair - Um desses tais abandonados Ao risco eterno condenados, E que não podem mais sorrir! O IRREMEDIÁVEL I Uma Idéia, uma Forma, um Ser Vindo do azul arremessado No Estige plúmbeo e enlodaçado Que o olho do Céu não pode ver; Um Anjo, viajante imprudente Que ousou amar o que é disforme Dentro de um pesadelo enorme A debater-se na corrente E a lutar, angústias sombrias! Contra o refluxo mais feroz, Que como um louco ruge a sós E faz na treva acrobacias; Um prisioneiro do bruxedo Em suas frívolas manobras Para evitar répteis e cobras, Tateando a lâmpada e o segredo; Um réu a descer sem lanterna, Rente a um abismo cujo odor Trai a fundura e o frio horror De uma oscilante escada eterna, Onde velam monstros horríveis Cujos fosfóreos olhos fazem Mais escura a noite em que jazem E onde eles só ardem visíveis; Um barco no pólo insulado, Como num laço de cristal, Buscando por que onda fatal Foi neste cárcere atirado; - Claros emblemas, traços reais De uma fortuna atroz e vã, Como a dizer-nos que Satã Faz sempre bem tudo o que faz! II Conversa a dois, clara e sombria, Espelho que a alma em si procura! Fonte do Ser, límpida e impura, Onde pulsa uma estrela fria, Farol irônico, infernal, Archote aceso a Satanás, Consolo e glórias sem iguais - A consciência dentro do Mal! O RELÓGIO Relógio! Deus sinistro, hediondo, indiferente, Que nos aponta o dedo em riste e diz: “Recorda! A Dor vibrante que a lama em pânico te acorda Como num alvo há de encravar-se brevemente; Vaporoso, o Prazer fugirá no horizonte Como uma sílfide por trás dos bastidores; Cada instante devora os melhores sabores Que todo homem degusta antes que a morte o afronte. Três mil seiscentas vezes por hora, o Segundo Te murmura: Recorda! - E logo, sem demora, Com voz de inseto, a Agora diz: Eu sou o Outrora, E te suguei a vida com meu bulbo imundo! Remenber! Souviens-toi! Esto memor!(Eu falo Qualquer idioma em minha goela de metal.) Cada minuto é como uma ganga, ó mortal, E há que extrair todo o ouro até purificá-lo! Recorda: O Tempo é sempre um jogador atento Que ganha, sem furtar, cada jogada! Ë a lei. O dia vai, a noite vem; recordar-te-ei! Esgota-se a clepsidra; o abismo está sedento. Virá a hora em que o Acaso, onde quer que te aguarde, Em que a augusta Virtude, esposa ainda intocada, E até mesmo o Remorso(oh, a última pousada!) Te dirão: Vais morrer, velho medroso! É tarde!” Quadros Parisienses PAISAGEM Quero, para compor os meus castos monólogos, Deitar-me junto ao céu, à moda dos astrólogos, E, vizinho do sino, escutar cismarento, Os seus hinos marciais, levados pelo vento. As mãos postas no queixo, eu do alto da mansarda, Hei de ver a oficina a cantar na hora parda; Torres e chaminés, os mastros da cidade, Grandes céus a fazer sonhar a eternidade. É sempre doce ver que à tarde a bruma vela A estrela pelo azul e a lâmpada à janela, Os rios de carvão irem ao firmamento, Como a Lua, verter seu frouxo encantamento. Eu hei de ver a primavera, o outono e o estio; E quando o inverno vier, monótono em seu frio, Por tudo fecharei cortinas e portões Para construir na noite as feéricas mansões. Sonharei com o poente azul e com seus astros, Jóias que valem bem pouco Que eu nem posso, ó Deus clemente, Dar de presente. Nada te orna neste instante, Perfume, rubim, diamante, Só tua nua magreza! Minha beleza! O CISNE A Vitor Hugo I Andrômaca, só penso em ti! O curso de água, Espelho pobre e triste onde já resplendeu, De teu rosto de viúva a majestosa mágoa, O Simoente falaz que ao teu pranto cresceu, Agora fecundou minha fértil saudade, Como eu atravessasse o novo Carrossel. Morto é o velho Paris (a forma da cidade Muda bem mais que o coração de uma infiel); Só em pensamento vejo os campos de barracas, Os fustes aos montões, as cornijas rachadas, Os muros de um verniz verde, as ervas opacas, O vago ferro-velho a brilhar nas calçadas. No outro tempo existiu neste ponto um aviário; Lá vi uma manhã, quando sob a amplidão Clara, o trabalho acorda e o lixo funerário Manda ao ar silencioso obscuro furacão, Um cisne que, ao deixar sua gaiola, as palmas Dos seus pés atritando o pavimento iníquo, Arrastava no chão as grandes plumas claras. Junto a um riacho sem água, a ave abrindo o seu bico, Suas asas banhou na poeira, num desmaio, E dizia a sonhar com seu lago natal: “Água, não choverás?” Não trovejarás, raio?” Eu vejo este infeliz, mito estranho e fatal, Às vezes para o céu, como um homem ovidiano, Para o céu de um azul cruel e tão irônico, Contorcendo o seu colo, o mais convulso e insano, Enquanto envia a Deus o seu riso sardônico! II Paris mudou! Porem minha melancolia É sempre igual: torreões, andaimarias, blocos, Arrabaldes, em tudo eu vejo alegoria, Minhas lembranças são mais pesadas que socos. Também diante do Louvre uma imagem me oprime: Penso em meu grande cisne, o do gesto feroz, Exilado que ele é, ridículo e sublime, Roído de um desejo infindo! Como em vós Andrômaca, a tombar dos braços de um esposo, Gado vil, para as mãos de Pirro tão sereno, Junto a tumba vazia, em langor doloroso Viúva de Heitor além de ser mulher de Heleno! Vou pensando na negra a fanar cor de terra: Busca de pés na lama e de olhar tão bravio Ausentes coqueirais que sua África encerra Atrás do muro imenso, o da bruma e do frio; Em quantos a Fortuna, e para sempre, rouba Seu bem melhor! Nos que se alimentam de dor, Onde soem mamar, como de boa loba, Nos órfãos a mirrar mais secos de que a flor! E na floresta, que meu pobre corpo trilha, Soa como buzina uma velha lembrança. Penso no marinheiro esquecido numa ilha... Nos vencidos de sempre e nos sem esperança! OS SETE VELHOS A Vitor Hugo Cidade formigante, e que ao sonho se aviva, Em que o fantasma ao sol nos agarra o pescoço! O mistério por tudo é seiva que deriva Nos estreitos canais do poente colosso. No entanto, uma manhã em que na rua feia As casa, a que a névoa emprestava brancor, Simulavam dois cais de um rio em plena cheia, E em que, decoração como a da alma do ator, Suja e amarela bruma enchia todo o espaço, Eu ia, os nervos meus com heróicas tensões, E discutindo com meu espírito lasso, Pela viela a vibrar dos graves carroções. De repente um ancião cujas pobres sacolas Imitavam a cor de um céu a tempestear, A cujo aspecto só choveriam esmolas, Se não fosse o rancor que ardia em seu olhar, Surgiu tendo no fel suas pupilas molhadas; Enquanto aguça a neve, a das noites mais rudas, A sua barba imensa, esquia como espadas, Projetava-se assim como a barba de Judas. Não era curvo mas alquebrado, a sua espinha Dava com sua perna exato ângulo reto, Tanto que seu bastão, que o seu cariz sublinha, Ia-lhe dando o ar, como o passo incorreto, De um mórbido muar, de um judeu de três patas. Metias os membros seus na nevada e no lodo, Como quem está a pisar mortos com as sapatas, Lançando ao universo o arreganho do apôdo. Vinha outro: barba, olhar, costas, bastão, molambos, Eram em tudo iguais, do mesmo inferno oriundos, Centenários os dois, visões barrocas ambos, Iam com passo igual a misteriosos mundos. Tinha eu diante do olhar um enredo poluto, Ou era a humilhação de um acaso perverso? Sete vezes contei, de minuto em minuto, A multiplicação e velho tão diverso. Aquele que se ri dessa minha inquietude, Que não se vê prender de um frêmito fraterno, Pense bem que, apesar desta decrepitude, Estes monstros fatais tinham um ar eterno! Teria posto o olhar num oitavo avantesma, Sem morrer, a este sósia, irônico e fatal, Fênix tremenda, mãe e filha de si mesma? - Mas as costas voltei ao cortejo infernal. Bêbado que vê dois, assim exasperado, Voltei, fechei a porta e de susto transido, Frio e enfermo, febril o espírito turbado, Pelo mistério e pelo absurdo malferido! Minha razão embalde ansiou suster-se à barra; A borrasca anulou meu empeno ao jogar, E minha alma dançava assim como gabarra Sem mastros, por monstruoso e por infindo mar. Meu olhar que, de longe, a acompanhar-vos vai, Inquieto e fixo em vossos passos tão mofinos, Tal qual se - maravilha! - eu fosse o vosso pai, Prova, embora o ignoreis, prazeres clandestinos: Vejo-vos a paixão, logo no seu início; Vosso passado eu vivo, ou idílico ou rude; Múltiplo o coração, frui todo o vosso vício, Tendo na alma a fulgir toda a vossa virtude! Ruínas! Minha família! Ó velhas solitárias! Eu vos dou cada tarde o mais solene adeus! Onde amanhã sereis, Evas octogenárias, Sobre quem pesa a garra espantosa de Deus? OS CEGOS Contemplai-os minha alma; eis que são pavorosos! São como manequins, vagamente risíveis; E sonâmbulos são, singulares, terríveis; E quem sabe aonde vão seus globos tenebrosos? Seus olhos, donde a chama eterna é partida, Como se olhassem longe estão no firmamento; E não se vê jamais, por sobre o pavimento, Inclinar vagamente a fronte sucumbida. Atravessam assim a infinda escuridade, Esta irmã do silencio imutável, cidade! Enquanto em torno a nós é um lamento o teu canto Que é tão atroz que chega a perder-se no orgasmo, Vê que eu erro também e mais do que eles pasmo, Digo: "O que pelos céus eles procuram tanto?" A UMA PASSANTE A rua em derredor era um ruído incomum. Longa, magra, de luto e na dor majestosa, Uma mulher passou e com a mão faustosa Erguendo, balançando o festão e o debrum; Nobre e ágil, tendo a perna assim de estátua exata. Eu bebia perdido em minha crispação No seu olhar, céu que germina o furacão, A doçura que embala e o frenesi que mata. Um relâmpago e após a noite! - Aérea beldade, E cujo olhar me fez renascer de repente, Só te verei um dia e já na eternidade? Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente! Não sabes meu destino, eu não sei aonde vais, Tu que eu teria amado - e o sabias demais! O ESQUELETO LAVRADOR I E nas pranchas de anatomia Que estão na poeira destes cais Em que muitos livros ferais Dormem feito múmia sombria, Ilustrações a que a firmeza, Como o saber de um velho artista, Para um assunto que contrista, Comunicaram a Beleza, Vê-se, o que torna mais completos Estes misteriosos horrores, Cavando como lavradores A multidão dos esqueletos. II Dessas terras por vós cavadas, Calmos e fúnebres aldeões, Do esforço de vossos pulmões, De vossas carnes escorchadas, Dizei-me, que messe fatal, Forçados soltos do carneiro, Vós tirais, e de que granjeiro Deveis ir enchendo o casal? Quereis (de um destino bem duro Espantoso e lúcido emblema!) Mostrar que nem na tumba extrema O sono pode ser seguro; Que o Nada nos será traição; Que tudo, até a Morte, nos mente. Tanto que sempre eternamente, Teremos a condenação De, por uma ignorada angra, Esfolar uma terra irada Enquanto se impele uma enxada Sob nosso pé nu e que sangra? O CREPÚSCULO DA TARDE É doce o anoitecer, que é amigo do réu; Como um cúmplice vem, tão veludoso; o céu Fecha-se lentamente - ele é uma alcova enorme E muda o homem inquieto em fera que não dorme. Desejam-te por certo, ó suave anoitecer, Estes que sem mentir hão de poder dizer: Nós trabalhamos hoje! É a tarde que alivia As almas que devora uma atroz agonia, O sábio mais tenaz, pesada a fronte em chama, O cansado artesão que volta à sua cama. E demônios malsãos, nestes pardos instantes, Acordam gravemente , como os negociantes, E movem ao voar o postigo ou a porta. Através dos clarões que a ventania entorta, O deboche na rua acende lume infame, E como um formigueiro encontra o seu forame. Vai forçando por tudo uma escondida estrada, Tal como um inimigo a tentar a emboscada; Move-se pelo bairro, o que o lodo consome, E como um verme rouba ao homem o que come. Ouve-se em cada canto a cozinha assobiar, O teatro estremecer, a orquestra ressonar; Nas mesas dos cafés, sonoras de remoques, Vão conversando as cortesãs com os escroques, Os ladrões que mercê nem trégua alguma têm Vão logo principiar seu trabalho também, Docemente forças caixas fortes de bancos, Para vestir a amante e dormir pelos bancos. Fecha-te, coração, neste grave momento. E os meus ouvidos cerra a este horrível lamento Que vem dos hospitais quando as dores culminam! Os enfermos a noite estrangula; terminam O seu destino e vão para o abismo comum; Vão enchendo o hospital de suspiros. Mais de um Não virá mais buscar a sopa perfumada, Junto ao fogão, à tarde, ao pé de uma alma amada. Cheirais a Morte, ó Esqueletos perfumados! Mirrados Antinoés, dândis de face glabra, Defuntos de verniz, D. Joãos encanecidos, O abalo universal desta dança macabra Vos atrai a outros sóis sempre desconhecidos! Do cais frio do Sena ao do Ganges inquieto, Salta e desmaia agora o rebanho mortal Ignorando a trombeta do anjo que, do teto, Soa, sinistra e aberta, um trabuco fatal. E sob todos os céus sempre a Morte te admira Em tuas contorções, atroz humanidade, E às vezes como tu, perfumada de mirra, Sua ironia junta à tua insanidade”. O AMOR DA MENTIRA Se te vejo passar, minha cara indolente, Ao canto de instrumentos, partido no teto, Como donaire a fulgir, lenta e harmoniosamente, O tédio a navegar no teu olhar inquieto; E se eu contemplo, à luz do gás e que a colora, Pálida fronte a arder de mórbido aparato, Em que as tochas da tarde acendem uma aurora, E estes olhos que atraem, como os de algum retrato, Eu me digo: Que beleza! E que fresco vestido! A saudade maciça - um halo de esplendor - Coroa-a; e o coração, um pêssego ferido, E o corpo amadurecem para o sábio amor. És o fruto outonal de sabor soberano? És o lacrimatório à espera de algum pranto, Perfume de sonhar num oásis arcano, Ramalhete de flor ou caricioso manto? E de olhares eu sei de tristezas iníquas, Que nada deixam ver por detrás de seus véus; Escrínios a mofar, medalhões sem relíquias, Mais ocos, a afundar muito mais do que os céus! Mas não te basta ser só ilusão imensa Para num falso coração ter tua presa? Que importa o que há em ti, de tola indiferença? A máscara que importa? Amo a tua beleza! Sempre hei de recordar, da cidade vizinha, Pequena mas tranqüila, a nossa lava casinha; A Pomona de gesso e a tão antiga Vênus Escondendo num bosque os seus membros pequenos; E o sol da tarde, pleno de soberba fria, Que, atrás do vidro em que seu feixe se partia, Parecia, olho aberto para um céu curioso, Contemplar-nos a ceia, longo e silencioso, Abrindo longamente as sua luz que traja Nossa toalha frugal e as cortinas de sarja. À moça de servir de que tinhas ciúme E que dorme seu sono em campa sem perfume, Deveremos levar-lhe algum buquê de flores . Todo morto é infeliz, estremece de dores, E quando outubro sopra, a podar velhas árvores, Seu vento de tristeza em torno de seus mármores, Devem certo julgar os vivos tão perversos Por dormirem assim, sob lençóis imersos, Enquanto, a ruminar devaneio fatal, Sem amena palestra e sem formar casal, Roídos pelo verme, esqueletos glaciais, Sentem que vão morrer as neves hibernais E os séculos sem que amigos ou parentes, Troquem os farrapões pelas grades pendentes. Quando a lenha assobia e canta, se, ao luar, Imota em seu divã, punha-se a repousar, E se, por noite azul e fria de dezembro, Via-a a um canto do quarto (agora eu bem me lembro!) Grave e vinda do fundo de seu leito eterno Ninar a quem cresceu com seu olhar materno, Que iria responder a esta alma assim tão pia, Toda pranto a rolar da pálpebra vazia? BRUMAS E CHUVAS Ó inverno, ó fim de outono, ó primavera em lama, Dormidas estações! A minha alma vos ama Por cobrirdes-me assim cérebro e coração De sudário brumal, de tumba e de ilusão. Nesta grande planura em que o Astro se derrama, Noite em que o cata-vento é uma voz rouca r brama, A minha alma, melhor que na morna estação, Suas asas de corvo abrirá na amplidão. Por certo ao coração, todo coisas esquálidas, Sobre quem desce há muito o frio das nevadas, Rainhas da atmosfera, ó estações descoradas, Nada é mais doce que as vossas trevas tão pálidas, Se a dois e dois por noite, após um triste ocaso, Dormimos nossa dor por um leito de acaso. SONHO PARISIENSE A Constantin Guy E desta terrível paisagem, E que jamais mortal olhou, Esta manhã ainda a imagem Vaga e longe, me arrebatou. O sono é de milagres pleno! Por um capricho singular, Tinha eu banido do terreno O vegetal irregular, Pintor de genial fantasia, Sentia em meu quarto sem preço A embriagante monotonia Da água, do metal e do gesso. Babel que é toda colunatas, Era um palácio indefinido, De piscinas e de cascatas Sobre o ouro fosco e o ouro brunido; Depois as cataratas densas, Como cortinas de cristal, Eram fascinações suspensas Pelas muralhas de metal. Havia mais: colunas frescas Que os tanques quietos circundavam; Alvas náiades gigantescas Como mulheres, se miravam. Ia a água em azuis borbotões Entre verdes e róseos cais, E por léguas que eram milhões Para os confins do nunca mais; Apóia as mãos à mesa, as mangas arregaça, Glorifica-me após e serás mais contente. Acenderei o olhar de tua bem-querida; Ao teu filho darei os músculos e as cores, Serei para este fraco atleta desta vida Óleo a robustecer bíceps de lutadores. Eu tombarei em ti, vegetal ambrósia, Precioso grão que atira o eterno Semeador, Para que nosso amor desemprenhe a Poesia, Brotando para Deus como uma rara flor!" O VINHO DOS TRAPEIROS Muita vez ao rubor de um revérbero e a um vento, Que à chama sempre é um golpe e o cristal um tormento, Bem num velho arrabalde, amargo labirinto De humanidade a arder em fermentos de instinto, Há o trapeiro que vem movendo a fronte inquieta, Nos muros a apoiar-se e como faz um poeta, E sem se incomodar com os guardas descuidosos, Abre o seu coração em projetos gloriosos. Ei-lo posto a jurar, ditando lei sublime, Exaltando a virtude, abominado o crime, E sob o firmamento - um pálio de esplendor - Embriagar-se à luz de seu próprio valor. Estes, que a vida em casa enche de desenganos, Roídos pelo trabalho e as tormentas dos anos, Derreados sob montões de detritos hostis, Confuso material que vomita Paria, Voltam, cheios de odor de pipas e barrancos, E seguem-nos os que a vida tornou tão brancos, Bigodes a tombar como velhos pendões; Os arcos triunfais, as flores, os clarões Se erguem diante do olhar, ó solene magia! E na ensurdecedora e luminosa orgia Do clarim e do sol, do grito e do tambor, Eles trazem a glória ao povo ébrio de amor! E assim é que através desse terrestre solo, O vinho é ouro a rolar, fascinante Pactolo; Pela garganta humana ele canta os seus feitos E reina por seus dons como os reis mais perfeitos. E para o ódio afogar e embalar o ócio imenso Desta velhice atroz que assim morre em silêncio , Gerou o sono, Deus, de remorso tocado; O homem o vinho criou, filho do sol sagrado O VINHO DO ASSASSINO Livre! Minha mulher é morta! Bebo o que o cálice contém. Quando eu voltava sem vintém, Gritava só der ver-me à porta. Tenho de um rei todo o esplendor; O ar é puro, o céu admirável... Tínhamos verão tão amável Quando eu caí morto de amor! A sede atroz que me faz louco Quem a pudera amortecer? Só o vinho que pode caber Na sua tumba e não é pouco; E joguei-a de um poço ao fundo, Joguei mesmo em seguida a corda Como os calhaus de sua borda. - Há de esquecer-se dela o mundo! Por nossas juras de alegria, (E não juramos nunca em vão!) Para nossa conciliação Como aos tempos de nossa orgia, Implorei dela uma entrevista À tarde numa estrada escura, E veio a aluada criatura! (Todo o mundo é louco ou artista). Ainda ela era a mais garrida, Embora bem fatigada! E Eu ainda a amava; eis por que Lhe disse: parte desta vida! Quem me compreenderá? Um somente, Do mundo da embriagues, mesquinho, Pensará, nas noites de doente, Fazer um sudário do vinho? Este crápula tão traiçoeiro Mas do que as máquinas do inferno, Jamais, em verão ou inverno, Conheceu o amor verdadeiro, Com os seus negros alvoroços, Seu cortejo infernal de espantos, Seus frascos de veneno e os prantos De seus ruídos de cadeia e de ossos! Eis-me liberto e satisfeito! Irei beber muito esta tarde; Depois, sem medo e sem alrde, Farei deste solo o meu leito, E dormirei bem como um cão! Um carros de rodas pesadas Cheio de pedras das calçadas Um enraivecido vagão, Partir-me-ão a fronte que odeia - Um prêmio dos delitos meu - Mas zombo de tudo, de Deus, De Satanás, da Santa Ceia! O VINHO DO SOLITÁRIO O olhar tão singular de um mulher galante Que para nós desliza à feição de alvo raio Que a Lua ondeando envia ao lago num desmaio, Quando ela vem banhar a beleza hesitante; A última ficha às mãos do último jogador, Um beijo libertino da magra Adelina, Os sons de uma canção enervante de fina, Como o grito a morrer de desumana dor, Isto não valerá, ó garrafa profunda, Os bálsamos de amor que na pança fecunda Guardas ao coração dos pobre poetas teus! Tu lhe dás esperança e vida e mocidade; - E o orgulho, este tesouro da mendicidade, Que nos torna triunfais, semelhantes a Deus! O VINHO DOS AMANTES Seus sentidos doentes de tédio, Tinham-se acaso aberto à matilha alterada Dos desejos, o cru assédio? Este amante traidor que não pudeste viva Com tanto amor satisfazer, Verteu em tua carne inerte e compassiva A imensidão do seu prazer? Responde, morta! Por teu rígido cabelo, Erguendo-te com braço extremo, Dize, cabeça hedionda, em teus dentes de gelo Ele colou o adeus supremo? - Longe do mundo atroz, longe da turba impura, E do magistrado curioso, Dorme em paz, dorme em paz, estranha criatura, Em teu sepulcro misterioso; Teu esposo anda longe, e tua forma cruel Junto a ele é a vigília mais forte; E como tu por certo ele te será fiel, Como constante até a morte. AS RÉPROBAS(OU MULHERES MALDITAS) Como um gato pensante e na areia deitadas, Voltam os olhos seus ao mais longe do mar, E seus próximos pés e suas mãos coladas Têm langor de sorrir e tremor de chorar. Umas, o coração cheio de confidência, Num bosque em que a cantar os ribeiros se movem, Vão soletrando o Amor da ingênua adolescência, O ramo a descascar de algum arbusto jovem; Outras, são como irmãs, andam lentas e flavas Das rochas através, plenas de aparições, Onde viu Santo Antônio arderem como lavas Os rubros seios nus de suas tentações; Outras há, que ao fulgor da líquida resina, No silêncio abissal de velho antro pagão, Chamam para aliviar a febre que alucina Baco, o deus que adormece o remorso e a ilusão! E outras, cuja garganta ama os escapulários, Sabem em sua roupa um chicote esconder, E misturam na noite, em bosques solitários, As lágrimas da dor e a espuma do prazer. Ó monstros do martírio, ó sombras virginais! Almas a desprezar a pobre realidade, Com sexo e devoção, o infinito buscais, Estrangulada a voz de lamento e saudade, Que na cripta infernal tanto buscou minha alma, Pobres irmãs a um tempo eu vos amo e respeito Por vossa sede em vão e por vossa dor calma, E estas urnas de amor que vos enchem o peito. AS DUAS BOAS IRMÃS Morte e devassidão são a dupla fatal, Amorosas e sãs, juntas são pelo fado, Cujo flanco andrajoso e sempre virginal Ninguém soube que um dia houvessem procriado. Ao poeta mais sinistro, ao amigo do mal, Favorito do inferno e cortesão rafado, Túmulo e lupanar apontam do frontal Um leito que jamais de remorso é habitado. E a sepultura e a alcova - a blasfêmia fecunda - Alternam-se a ofertar - duas boas irmãs - Os terríveis prazeres e as doçuras vãs. Devassidão, não queres enterrar-me, inunda? Morte, quando virás, rua rival ao encanto, Enxertar em seu mirto o cipreste do pranto? A FONTE DE SANGUE Tenho a impressão de que meu sangue em onda escorre, Rítmico soluçar de nascente que morre. Ouço-o bem a escorrer num murmúrio de vaga, Mas eu tateio em vão à procura da chaga. Através da cidade, e pelas estacadas, Faz as ilhas nascer por todas as calçadas, Desalterando a sede a cada criatura O seu fluxo que sempre o universo púrpura. Muitas vezes pedi a vinhos de prazer Adormecerem só um dia o horror que mina; O vinho aguça o olhar e torna a audição fina! Eu procurei no amor um sono de esquecer; E é-me somente o amor um colchão de punhais Em que eu dou de beber às amadas fatais! ALEGORIA É uma bela mulher e que opulenta deixa Arrastar em seu vinho a fluídica madeixa. Nela, garras de amor, venenos de espelunca, À sua pele enfim tudo morre ou se trunca. Ela zomba da morte e despreza o deboche, Monstros de foice à mão são-lhe sempre um fantoche, Na sua destruição sempre guardam respeito Ao rude esplendor de seu rígido peito. Possui andar de deusa e sono de sultana; Ela tem no prazer a crença maometana, E com braços que são aos seios larga taça, Com seu olhar convoca inteira a humana raça. É que esta virgem sabe: o seu ventre é infecundo, No entanto necessário à marcha deste mundo, E que a sua beleza é sempre um dom sublime E que extrai o perdão de todo infame crime. Ah, que ela ignora o Inferno e olvida o Purgatório, E quando vier - Ó Noite - o seu fim ilusório, Há de encarar a Morte e sem nenhum gemido Sem ódio e sem rancor - como um recém-nascido. BEATRIZ Em terrenos de cinza e cal e sem beleza, Como eu chorasse um dia à triste natureza, E tivesse a cabeça a errar de incerto mal, Lentamente aguçava em meu peito um punhal. Ao meio-dia eu vi tombar-me na cabeça Nuvem de tempestade a mais funérea e espessa, Que trazia um tropel de demônios viciosos Recordando os anões irados e curiosos. Puseram-se depois frios a me fitar Pedestres que se põem algum louco a admirar. Via-os murmurar e rir cada vez mais Os olhos a piscar e trocando sinais: - "Olhemos devagar esta criatura O amor sobre o crânio assentado Desta humanidade, E sobre o trono o descarado, A rir de maldade, Bolhas redondas vai jocundo Soprando pelo ar, Como se ao mais longínquo mundo Quisessem chegar. O globo lúcido se espalma E vertigem grande, Rompe e escarra a sua fina alma, Sonho áureo se expande. A cada bolha o crânio é voz Gemente a rezar: - "Esta brincadeira feroz Quando irá acabar?" "Pois o que o teu lábio ferino Joga pelo ar langue Meu cérebro é, monstro assassino, Meu peito e meu sangue!" Revolta A NEGAÇÃO DE SÃO PEDRO O que há de fazer Deus do fluxo de heresias Que sempre vai subindo às suas mansões brandas? Tirano a se saciar de vinhos e viandas, Dorme ao doce rumor das blasfêmias mais frias. Os soluços dos que foram martirizados São uma sinfonia embriagadora e augusta, Pois, apesar do sangue que a volúpia custa, Jamais deles os céus se sentiram saciados! - Recorda-te, Jesus,da cena do horto, quando Imploravam a orar os teus joelhos escravos Ao que no céu se ria do rumor dos cravos Que em tua carne punha algum algoz infando; Quando viste escarrar na tua divindade A crápula, a ulular, da guarda e do bordel, E sentiste o amargor do vinagre e do fel Na boca em que vivia a imensa humanidade; E quando a lentidão de teu corpo partido Teus braços alongava e teu suor e teu sangue Eram destilação de tua fronte langue, E quando foste a cada um em alvo erigido, Estavas a pensar no dia de recamos Em que vieste a cumprir a promessa eternal, E pisavas, montando o mais meigo animal, Caminhos que eram luar de flores e de ramos, Em que, o teu coração imenso de esperança, Para expulsar os vendilhões foste violento E no teu templo enfim? Ah, o arrependimento Teu flanco não entrou mais fundo do que a lança? - Por certo eu sairei, quanto a mim satisfeito Deste mundo em que ao sonho a ação não é associada: Possa eu usar da espada e morrer pela espada! – Pedro negou Jesus... e foi muito bem feito! ABEL E CAIM I Raça de Abel, só bebe e come, Deus te sorri tão complacente. Raça de Caim, sempre some No lodo miseravelmente. Raça de Abel, teu sacrifício Doce é ao nariz do Serafim! Raça de Caim, teu suplício Será que jamais terá fim? Raça de Abel, tuas sementes E teu gado produzirão; Raça de Caim, sempre sentes Uivar-te a fome como um cão. Raça de Abel, não tremas nunca À lareira patriarcal; Raça de Caim, na espelunca, Treme de frio, atroz chacal! Raça de Abel, pulula! Ama! Teu oiro é sempre gerador. Raça de Caim, alma em flama, Cuidado com o teu amor. Raça de Abel multiplicada Como a legião dos percevejos! Raça de Caim, pela estrada Arrasta a família aos arquejos. II Raça de Abel apodrecida Há de adubar o solo ardente! Raça de Caim, tua lida Nunca te será suficiente; Raça de Abel, eis teu labéu: Do ferro o chuço é vencedor! Raça de Caim, sobe ao céu E arremessa à terra o Senhor! AS LITANIAS DE SATÃ Ó tu, o Anjo mais belo e o mais sábio Senhor, Deus que a sorte traiu e privou do louvor, Tem piedade, Satã, desta longa miséria! Tu, que és o condenado, ó Príncipe do Exílio, E que, vencido, sempre emerges com mais brilho, Tem piedade, Satã, desta longa miséria! Tu, sábio e grande rei do abismo mais profundo, Médico familiar dos males deste mundo, Tem piedade, Satã, desta longa miséria! Tu, cujas graças ao leproso e ao paria cedem Com a lição do amor o próprio gosto do Éden, Que como um elixir nos transporta e embriaga, E nos faz caminhar até o anoitecer. E através da tormenta, e da neve e da vaga, É o vibrante clarão de nosso obscuro ser, Albergue inscrito em Livro e que nunca se apaga, Feito para jantar e para adormecer. É um anjo que segura em seus dedos magnéticos O sono e mais o dom dos êxtases mais poéticos, Que sempre o leito arruma aos pobres, como aos rotos; Ela é a glória de Deus e a bolsa do mendigo, É o místico celeiro e mais o lar antigo, Pórtico que se abriu para os céus mais ignotos. A MORTE DOS ARTISTAS Quantas vezes irei sacudir os meus guisos, Tua fronte beijar, morna Criatura? E para o alvo alcançar, de tão mística altura, Quantos dardos da aljava hão de me ser precisos? Em conjuras sutis usaremos os juízos, Para após demolir muita grave armadura, Antes de contemplar a grande Criatura De desejo infernal que paralisa os risos! Há estes que o Ídolo seu não fitaram jamais, Há o maldito escultor que, marcado de ofensa, Só vive a martelar o peito e a fronte imensa. Só esperam - Capitólio, e de sombras fatais! - Venha a Morte e planando à feição de um sol novo, Em seu cérebro arder como um floral renovo. O FIM DA JORNADA Debaixo de uma luz tão baça, Vai, corre e dança sem razão, A vida, gritante e devassa. Porém, logo que, na amplidão, A noite voluptuosa sonha Tudo abrandando, mesmo a fome, Tudo apagando, até a vergonha, O poeta em lassidão sem nome Diz: - “Os meus ossos e a minha alma Invocam ardentes a calma; E, de coração tumular, Agora vou dormir de lado, Rolar em vosso cortinado, Ó trevas de refrigerar!” O SONHO DE UM CURIOSO A F.N. Ah, sabes como eu sei, a dor tão saborosa, E que te faz dizer “Oh! O homem singular!” - Ia morrer. Havia em minha alma amorosa, Sonho misto de horror, um mal particular; Angústia e espera viva e jamais sediciosa. Mais a ampulheta eu via fatal se esgotar, Mais sentia a tortura áspera e deliciosa; Fugia o coração ao mundo familiar. Eu era como a criança ávida do espetáculo. E a ela o pano de boca era um odiento obstáculo... Enfim se revelou a verdade tão fria: Sem surpresa morri, e a aurora negra e infinda Estava em torno. Oh, Deus era só isto o que eu via? Tinha-se erguido o pano e eu esperava ainda. A VIAGEM A Máxime du camp I A quanta criança os mapas e as figuras ama, O mundo é igual ao seu apetite profundo. Deus meu, que é grande o mundo à vela em áurea chama! Aos olhos da saudade, ah que é pequeno o mundo! Partimos de manhã, fronte que o sonho alaga, Ávido o coração de desejos e mágoas, Íamos a seguir, pelo ritmo da vaga, Ninar nosso infinito ao finito das águas: Uns, beatos de fugir de uma pátria qualquer; Outros, do horror de seus berços de azedume, E astrólogos a arder no olhar de uma mulher De tirânica Circe, e de amargo perfume. Por não mudar em feras, trazem a alma cheia De espaço e de esplendor e de céu com lampejos; Esta neve que os morde, este sol que os cobreia Apagam lentamente as impressões dos beijos. Mas por certo só são na verdade viajantes Os que só partem por partir como um balão, Ligeiros corações na Fortuna confiantes, E sem saber por que, dizem vamos e vão! Os seus desejos são como nuvens informes, E sonham como sonha o canhão o conscrito Ignotas lassidões e volúpias enormes, Cujos nomes jamais ao mundo há de ser dito. II Somos valsa de pião, somos salto de bola; Ao homem em vigília ou quando o sono nasce Sempre a curiosidade arrasta e desconsola, Como um anjo cruel que as estrelas lanhasse. Fortuna singular de fim sempre em mudança, E estando sempre ausente, está em todo lugar! Em que o homem que jamais nela perde a esperança Só vive a perseguir e quase a delirar. A nossa lama é trirreme a procurar Içaria; Sobre a ponte uma voz percute: “abre o olho!” E, da gávea, outras voz grita, ardorosa e vária: “Amor!, Glória! Ventura!” Inferno! Era um escolho! Cada ilhota que vê o homem pela vigia É Eldorado a surgir feito promessa vã! Mas a imaginação que se perde na orgia Só descobre um recife ao nascer da manhã. Ó pobre sonhador de religiões tão quiméricas! É preciso prender ou deixar solto ao largo, O marinheiro ebriado, inventor das Américas, Cuja miragem torna o pego mais amargo? Os pés postos na lama, o velho vagabundo, Sonha, o nariz ao ar, paraíso fagueiro; Para fugir do gladiador tão ultrajante. Há os que o matam enfim sem sair do lugar. E após o ponta-pé que o Tempo nos destina "Avante!" poderemos gritar um momento, Da maneira que outrora íamos para a China, Olhos fixos ao largo e cabelos ao vento, Iremos embarcar sobre os mares sombrios Tal jovem passageiro e cheio de prazer. Não ouvis esta voz, de funéreo amavio, Que canta: "Por aqui! Vós que quereis comer "Ó Lótus perfumado. É só aqui que se apanha O fruto de ilusão que vos enche de fome; Viestes vos embriagar desta doçura estranha Que há neste entardecer que o Tempo não consome?" A essa voz familiar revela-se a visão; Os Pílades além mostram braços vermelhos. "Para Electra navega o pobre coração!" Disse aquela a que já beijamos os joelhos. VIII Ó Morte, ó capitão! Deixemos este cais! Este país é o tédio! Ah, soltemos a vela! Se o firmamento e o mar são negrumes fatais O nosso coração, se clarões se constela! Verte-nos teu veneno, ele é que nos conforta! Tanto o cérebro nosso é de fogo incendido, No abismo mergulhar, Inferno ou Céu, que importa? Para o novo encontrar no mais desconhecido! Novas Flores do Mal EPÍGRAFE PARA UM LIVRO CONDENADO Leitor pacífico e bucólico, Homem de bem, austero e lhano, Joga fora este saturniano Livro, orgíaco e melancólico. Se não herdaste o dom hipnótico De Satã, o astuto decano, Irias ler-me por engano, Ou me terias por neurótico. Mas se, sem teus olhos piscar, Do abismo os horrores conheces, Lê-me afinal que me hás de amar; Alma curiosa que padeces E buscas no éden teu abrigo, Tem dó de mim... Ou te maldigo! O EXAME DA MEIA-NOITE Meia-noite. O relógio soa E nos induz, em tom mordaz, A recordar que uso fugaz Fizemos do dia que escoa: - Hoje, treze, data fatal, Sexta-feira, nos comportamos, Malgrado tudo o que exaltamos, Como discípulos do mal; Contra Jesus, o mais glorioso Dentre os deuses, temos pecado! Como um parasita sentado À mesa de um Creso monstruoso, Cada um de nós, gratos à Besta, Do Demônio a súdita eleita, Insulta aquilo que respeita E adula aquilo que detesta; Ao humilde o nosso desdouro Mostramos com dura arrogância; Saudamos a enorme Ignorância, Com sua cabeça de touro; Beijamos a torpe Matéria Com toda a nossa devoção, E abençoamos da podridão A bruxuleante luz funérea. Enfim, para afogar de vez A vertigem no que delira, Nós, os sacerdotes da Lira, Cuja glória é louvar a ebriez Do que a morte acaso dissolva, Sem apetite algum comemos... - Depressa, a lâmpada apaguemos Para que a treva nos envolva! MADRIGAL TRISTE I Que me importa que saibas tanto? Sê bela e taciturna! As dores À face emprestam certo encanto, Como à campina o rio em pranto; A tempestade apraz às flores. Eu te amo mais quando a alegria Te foge ao rosto acabrunhado; Quando a alma tens em agonia, Quando o presente em ti desfia A hedionda nuvem do passado. Eu te amo quando em teu olhar O pranto escorre como sangue; Ou quando, a mão a te embalar, A tua angústia ouço aflorar Como um espasmo quase exangue. Aspiro, volúpia divina, Hino profundo e delicioso! A dor que o teu seio lancina E que, quando o olhar te ilumina, Teu coração enche de gozo! II Sei que o peito, que palpita À sombra de amores passados, Qual uma forja ainda crepita, E que a garganta enfim te habita Algo do orgulho dos danados; Mas enquanto, amor, no que sonhas Do inferno a imagem não for dada E dessas visões tão medonhas, Em meio a gládios e peçonhas, De pólvora e ferro animada. Sempre de todos te escondendo, Denunciando em tudo a desgraça E à hora fatal estremecendo, Não houveres sentido o horrendo Aperto do asco que te abraça, Não poderás, rainha e escrava, Palavra! E sobre mim, num calafrio, eu penso Sentir do Medo o vento às vezes se estendendo. Em volta, no alto, embaixo, a profundeza, o denso Silêncio, a tumba, o espaço cativante e horrendo... Em minhas noites, Deus, o sábio dedo erguendo, Desenha um pesadelo multiforme e imenso. Tenho medo do sono, o túnel que me esconde, Cheio de vago horror, levando não sei aonde; Do infinito, à janela, eu gozo os cruéis prazeres, E meu espírito, ébrio afeito ao desvario, Ao nada inveja a insensibilidade e o frio. – Ah, não sair jamais dos Números e Seres! AS QUEIXAS DE UM ÍCARO Os rufiões das rameiras são Ágeis, felizes e devassos; Quanto Amim, fraturei os braços Por ter-me alçado além do chão. É graças aos mais raros astros, Que o céu envolvem num lampejo, Que, agora cego, já não vejo Dos sóis senão os turvos rastros. Eu quis do espaço em toda parte Achar em vão o fim e o meio; Não sei sob que olho de ígneo veio Minha alma eu sinto que se parte; E porque o belo ardeu comigo, Perdi a glória e o benefício De dar meu nome ao precipício Que há de servir-me de jazigo. A TAMPA Seja aonde for que vá em torno desta esfera, Sob um clima de fogo ou sob um sol distante, Servidor de Jesus, cortesão de Citera, Mendigo tenebroso ou Creso rutilante, Paria, campônio, citadino e às vezes fera, Seja-lhe o cérebro moroso ou esfuziante, O homem sucumbe ante ao mistério que o exaspera, E não eleva o olhar senão por breve instante. No alto, o Céu! Paredão que o abafa como estufa, Cenário ébrio de luz para uma ópera bufa De cujo palco ensangüentado o histrião se serve; Terror do libertino, anseio do eremita: O Céu! Tampa sóbria da imensa marmita Onde indivisa a vasta Humanidade ferve. Poemas Acrescentados em 1868 O CACHIMBO DA PAZ, IMITANDO LONGFELLOW I E Gitchi Manitou, o Grão-Mestre da Vida, O Poderoso, veio à planície florida, Ao prado imenso rente ao cerro montanhoso, E ali, sobre as escarpas da Rubra Pedreira, O espaço dominado e ardendo à luz primeira, Eis que se ergueu, onipotente e vigoroso. E convocou então os povos incontáveis, Mais do que as ervas e as areias infindáveis. Com sua mão tremenda uma laca arrancou À rocha, e fez com ela um cachimbo disforme; Depois, junto ao regato, num bambual enorme, Para servir de tubo, um caniço apanhou. Para enchê-lo tomou um bálsamo oloroso; E, criador da Energia, o Todo-Poderoso, De pé. Eis que acendeu, qual divino fanal, O Cachimbo da Paz. De pé sobre a Pedreira, Fumou, soberbo e ereto, ardendo à luz primeira. E para as tribos esse era o grande sinal. E em círculos subia a fumaça sagrada No ar doce da manhã, sensual e perfumada. E agora o que se via era um sombrio véu; Logo o vapor se fez mais azulado e intenso, Depois branqueou, sempre engrossando no ar suspenso, Para extinguir-se aos pés da abóbada do céu. Dos distantes confins das montanhas Rochosas, Desde os lagos do Norte às ondas impetuosas, De Tawasentha, a várzea amena e sem igual, A Tuscaloosa, erma floresta trescalante, Avisou-se o sinal e a fumaça ondulante Lentamente a subir no incêndio matinal. Os Profetas diziam: "Vedes essa estria De vapores, que, igual ao braço que chefia, Oscila e se recorta em negro no ar vermelho? É Gitchi Manitou, o Grão-Mestre da Vida, Que proclama por toda a planície florida: Guerreiros meus, eu vos convoco ao real conselho!" Pelas sendas do rio ou pelo ermo poeirento, Pelas quatro vertentes de onde sopra o vento, Vós, fiéis guerreiros, vós das tribos em porfia, Entendendo o sinal da nuvem caminheira, Viestes dóceis até junto à Rubra Pedreira Onde sempre Gitchi Manitou vos ouvia. Os guerreiros de pé se erguiam na paisagem, Armas na mão, a face impávida e selvagem, Matizados tal como uma folha outonal; O ódio que à luta impele a todos os mortais, O ódio que ardia nos olhares ancestrais No olhar lhes acendia uma lama fatal. Em seus olhos brilhava a maldição da guerra. E Gitchi Manitou, o Grão-Mestre da Terra, Tinha por eles uma infinda compaixão, Como um pai extremoso, indisposto às disputas, Que vê seus filhos a morder-se em árduas lutas. Tal Gitchi Manitou por toda uma nação. E ergueu sobre eles sua forte mão direita Para dobrar-lhes a alma e a natureza estreita, Para esfriar-lhe a febre à sombra dessa mão; Depois lhes disse, a voz solene e majestosa, Comparável à voz de uma água tormentosa, Que tomba e ecoa mais hedionda que um trovão: II "Minha posteridade, odiosa mais querida! Ó filhos meus, ouvi a divina razão! É Gitchi Manitou, o Grão-Mestre da Vida, Quem vos fala! O que em vossa planície florida Pôs a rena, o castor, a raposa e o bisão. Eu vos tornei a caça e a pesca generosas; Por que se fez então o caçador tão vil? Três vezes se tingiu nas salivas viscosas Dessas serpentes vingativas e monstruosas Que Hércules ao nascer no berço estrangulava? Marginália O CREPÚSCULO ROMÂNTICO Quão belo é o sol quando no céu se ergue risonho, E qual uma explosão nos lança o seu bom-dia! - Feliz quem pode com amor e ébria alegria Saudar-lhe o ocaso mais glorioso do que um sonho! Recordo-me! Eu vi tudo, a flor, o sulco, a fonte, Murchar sob o esplendor dessa pupila que arde... - Corramos todos sem demora ao poente, é tarde, Para abraçar um raio oblíquo no horizonte! Mas eu persigo em vão o Deus que ora se ausenta; A irresistível Noite o seu império assenta, Úmida, negra, erma de estrelas ou faróis; Um odor de sepulcro em meio às trevas vaga, E junto aos pantanais meu pé medroso esmaga Inesperadas rãs e frios caracóis. LESBOS Mãe dos jogos do Lácio e das gregas orgias, Lesbos, ilha onde os beijos, meigos e ditosos, Ardentes como os sóis, frescos quais melancias, Emolduram as noites e os dias gloriosos; Mãe dos jogos do Lácio e das gregas orgias; Lesbos, ilha onde os beijos são como as cascatas, Que desabam sem medo em pélagos profundos, E correm, soluçando, em maio às colunatas, Secretos e febris, copiosos e infecundos, Lesbos, ilha onde os beijos são como as cascatas! Lesbos, onde as Frinéias uma à outra esperam, Onde jamais ficou sem eco um só queixume, Tal como Pafos as estrelas te veneram, E Safo a Vênus , com razão, inspira ciúme! Lesbos, onde as Frinéias uma à outra esperam, Lesbos, terra das quentes noites voluptuosas, Onde, diante do espelho, ó volúpia maldita! Donzelas de ermo olhar, dos corpos amorosas, Roçam de leve o tenro pomo que as excita; Lesbos, terra das quentes noites voluptuosas, Deixa o velho Platão franzir seu olho sério; Consegues teu perdão dos beijos incontáveis, Soberana sensual de um doce e nobre império, Cujos requintes serão sempre inesgotáveis. Deixa o velho Platão franzir seu olho sério. Arrancas teu perdão ao martírio infinito, Imposto sem descanso aos corações sedentos, Que atrai, longe de nós, o sorriso bendito Vagamente entrevisto em outros firmamentos! Arrancas teu perdão ao martírio infinito! Que Deus, ó Lesbos, teu juiz ousara ser? Ou condenar-te a fronte exausta de extravios, Se nenhum deles o dilúvio pôde ver Das lágrimas que ao mar lançaram os teus rios? Que Deus, ó Lesbos, teu juiz ousara ser? De que valem as leis do que é justo ou injusto? Virgens de alma sutil, do Egeu orgulho eterno, O vosso credo, assim como os demais, é augusto, E o amor rirá tanto do Céu quanto do Inferno! De que valem as leis do que é justo ou injusto? Pois Lesbos me escolheu entre todos no mundo Para cantar de tais donzelas os encantos, E cedo eu me iniciei no mistério profundo Dos risos dissolutos e dos turvos prantos; Pois Lesbos me escolheu entre todos no mundo. E desde então do alto da Lêucade eu vigio, Qual sentinela de olho atento e indagador, Que espreita sem cessar barco, escuna ou navio, Cujas formas ao longe o azul faz supor; E desde então do alto da Lêucade eu vigio Para saber se a onda do mar é meiga e boa, E entre os soluços, retinindo no rochedo, Enfim trará de volta a Lesbos, que perdoa, O cadáver de Safo, a que partiu tão cedo, Para sabe se a onda do mar é meiga e boa! Desta Safo viril, que foi amante e poeta, Mais bela do que Vênus pelas tristes cores! - O olho do azul sucumbe ao olho que marcheta O círculo de treva estriado pelas dores Desta Safo viril, que foi amante e poeta! - Mais bela do que Vênus sobre o mundo erguida, A derramar os dons da paz de que partilha E a flama de uma idade em áurea luz tecida No velho Oceano pasmo aos pés de sua filha; Mais bela do que Vênus sobre o mundo erguida! - De Safo que morreu ao blasfemar um dia, Quando, trocando o rito e o culto por luxúria, Seu belo corpo ofereceu como iguaria A um bruto cujo orgulho atormentou a injúria Daquela que morreu ao blasfemar um dia. E desde então Lesbos em pranto lamenta, E, embora o mundo lhe consagre honras e ofertas, Se embriaga toda noite aos uivos da tormenta Que lançam para os céus suas praias desertas! E desde então Lesbos em pranto lamenta! MULHERES MALDITAS - Delfina e Hipólita À tíbia das lamparinas voluptuosas, Sobre sensuais coxins impregnados de essência, Sonhava Hipólita as carícias poderosas Que lhe erguiam o véu da púbere inocência. Ela buscava, o olhar na tempestade posto, De sua ingenuidade o céu distante agora, Como um viajante para trás volve o seu rosto Em busca da manhã que já se foi embora. Os olhos já sem viço, o preguiçoso pranto, O ar exausto, o estupor, lúbrica moleza. Os barcos sem ação, como armas vãs a um canto, Tudo afinal lhe ungia a tímida beleza. Posta a seus pés, serena e cheia de alegria, Delfina lhe lançava à carne olhos ardentes, Como o animal feroz que a vítima vigia, Após havê-la antes marcado com seus dentes. Bela e viril de joelhos ante a frágil bela, Soberba, ela sorvia com volúpia intensa O vinho da vitória e, acercando-se dela,
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