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Clínica e terapêutica da doença de chagas, Notas de estudo de Medicina

Clínica e terapêutica da doença de chagas

Tipologia: Notas de estudo

2016

Compartilhado em 18/07/2016

ramiro-lopes-andrade-2
ramiro-lopes-andrade-2 🇧🇷

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Baixe Clínica e terapêutica da doença de chagas e outras Notas de estudo em PDF para Medicina, somente na Docsity! SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros DIAS, JCP., and COURA, JR., org. Clínica e terapêutica da doença de Chagas: uma abordagem prática para o clínico geral [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1997. 486 p. ISBN 85-85676- 31-0. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. Clínica e terapêutica da doença de chagas: uma abordagem prática para o clínico geral João Carlos Pinto Dias José Rodrigues Coura Orgs. CLÍNICA E TERAPÉUTICA DA DOENÇA DE CHAGAS UMA ABORDAGEM PRÁTICA PARA 'O.CLÍNICO GERAL João Carlos Pinto Dias e-José Rodrigues-Coura (orgs.) o CLÍNICA Ε TERAPÊUTICA DA DOENÇA DE CHAGAS UMA ABORDAGEM PRÁTICA PARA O CLÍNICO GERAL Organizadores: João Carlos Pinto Dias e José Rodrigues Coura Copyright©1997 by João Carlos Pinto Dias e José Rodrigues Coura Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA FIOCRUZ ISBN: 85-85676-31-0 Capa: Marcos Borges Dias (UFMG) Valéria Sá e Mauro Campello (Multimeios/FIOCRUZ) Projeto Gráfico: Carlota Rios Editoração Eletrônica: Carlota Rios Roberto de Carvalho Santos (Ministério da Saúde - FNS) Ronaldo Pereira Reis Revisão: Eliana Granja Supervisão Gráfica: Walter Duarte Catalogação-na-Fonte Centro de Informação Científica e Tecnológica Biblioteca Lincoln de Freitas Filho D 541c Dias, João Carlos Pinto (org.) Clínica e terapêutica da doença de Chagas: uma abordagem prática para o clínico geral / organizado por João Carlos Pinto Dias; José Rodrigues Coura — Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1997. 486p., il., tab., graf., map. 1. Doença de Chagas. I. Coura, José Rodrigues (org.) CDD. - 20. ed. - 616.9363 1997 EDITORA FIOCRUZ Rua Leopoldo Bulhões, 1480 - Térreo - Manguinhos 21041-210 - Rio de Janeiro - RJ Tel.: (021) 590 3789 ramal 2009 Fax: (021) 280 8194 A U T O R E S Ademir Rocha Professor Titular de Patologia, Centro de Ciências Biomédicas, Universidade Federal de Uberlândia. Doutor em Anatomia Patológica pela Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte - MG. Adib Domingos Jatene Professor Titular da Disciplina de Cirurgia Torácica da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP). Alcino Lázaro da Silva Prof. Titular de Cirurgia do Aparelho Digestivo - Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina, UFMG. Alejandro Luquetti Ostermayer Professor Adjunto, Departamento de Parasitologia, Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública e Chefe do Laboratório de Pesquisa da doença de Chagas, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Goiás, Goiânia. Alejandro O. Luquetti Médico Perito Supervisor de Equipe da Gerência Regional I, Serviço de Atividades Previdenciárias de Goiás, Instituto Nacional de Seguro Social e Professor Adjunto, Departamento de Parasitologia, Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública, Universidade Federal de Goiás. Alexandre Gabriel Rassi Hospital São Salvador - Goiânia CGO). Aluízio Prata Professor Titular de Medicina Tropical da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro, Professor Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal dst Bahia e da Universidade de Brasília. Ana Maria de Castro Professora Auxiliar de Ensino, Departamento de Parasitologia, Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública, Universidade Federal de Goiás, Goiânia. Anis Rassi Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás. Anis Rassi Junior Hospital São Salvador - Goiânia (GO). Antônio Luiz Pinho Ribeiro Professor Adjunto, Doutor, Faculdade de Medicina da UFMG. Setor de Eletrocardiografia Dinâmica do Serviço de Cardiopatia e Cirurgia Cardiovascular (SCCCV) do HC-UFMG. Membro do Ambulatório de Referência em Doença de Chagas. Armênio Costa Guimarães Professor Titular de Cardiologia; Curso de Pós- Graduação em Medicina Interna, UFBA. Arnaldo Moreira Silva Professor Adjunto de Patologia, Centro de Ciências Biomédicas, Universidade Federal de Uberlândia. Mestre em Patologia pela Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro, Uberaba - MG. Celmo Celeno Porto Professor Adjunto do Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Goiás, Ex-Médico do Trabalho da Rede Ferroviária Federal. Edgardo R. A. Moretti Professor Adjunto, Serviço de Neonatologia (UNC), Chefe do Laboratório de Imunologia, Serviço Nacional de Chagas, Córdoba. Edison Reis Lopes Professor Titular da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro e Pesquisador 1A do CNPq. Edmundo Chapadeiro Professor Titular da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro e Pesquisador 1A do CNPq. Egler Chiari Departamento de Parasitologia, Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal de Minas Gerais. Eliane Dias Gontijo Professora-Adjunta, Doutora da Faculdade de Medicina da UFMG. Eros Antônio de Almeida Professor-Assistente, Doutor da Faculdade de Ciências Médicas/UNICAMP. Gabriel A. Schmunis Programa de Enfermedades Transmisibles; Oficina Sanitaria Panamericana/Oficina; Regional de la Organización Mundial de la Salud. Hélio Moraes de Souza Coordenador Geral do Hemocentro Regional de Uberaba/Hemominas, Professor Adjunto Chefe da Disciplina de Hematologia e Hemoterapia da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro. J . Romeu Cançado Professor Emérito de Terapêutica Clínica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. João Carlos Pinto Dias Fundação Oswaldo Cruz (Centro de Pesquisas René Rachou, Belo Horizonte/MG), Faculdade de Medicina da UFMG e Fundação Nacional de Saúde/MG. Joffre Marcondes de Rezende Prof. Emérito da Universidade Federal de Goiás. 1 4 . MÉTODOS NÃO-INVASIVOS DE ANÁLISE FUNCIONAL CARDÍACA Manoel Otávio da Costa Rocha, Antônio Luiz Pinho Ribeiro, Rosália Moraes Torres e Vitor Tadeu Vaz Tostes 237 1 5 . TRATAMENTO CIRÚRGICO DA CARDIOPATIA CHAGÁSICA Adib Domingos Jatene, Roberto Costa e Marcelo Biscegli Jatene 255 1 6 . DISFUNÇÃO AUTÔMICA NA CARDIOPATIA CHAGÁSICA CRÔNICA: FATOR IMPORTANTE NA PATOGÊNESE Ε NA HISTÓRIA NATURAL DA MOLÉSTIA Reinaldo B. Bestetti 267 1 7 . AVALIAÇÃO DO RISCO CIRÚRGICO DE PACIENTES PORTADORES DE CARDIOPATIA CHAGÁSICA CRÔNICA EM CIRURGIAS NÃO CARDÍACAS Reinaldo B. Bestetti 281 1 8 . O CARDIOPATA CHAGÁSICO EM SITUAÇÕES ESPECIAIS Wilson de Oliveira Jr. 293 1 9 . TERAPÊUTICA ESPECÍFICA J. Romeu Cançado 323 2 0 . ASPECTOS MÉDICO-TRABALHISTAS DA DOENÇA DE CHAGAS Alejandro O. Luquetti e Celmo Celeno Porto 353 2 1 . DOENÇA DE CHAGAS E IMUNOSSUPRESSÃO Marcelo Simão Ferreira, Sérgio de Andrade Nishioka, Ademir Rocha e Arnaldo Moreira Silva 365 2 2 . DOENÇA DE CHAGAS CONGÊNITA Pedro R. Moya e Edgardo R. A. Moretti 383 2 3 . DOENÇA DE CHAGAS TRANSFUNCIONAL Silvano Wendel 411 2 4 . DOENÇA DE CHAGAS TRANSFUNCIONAL: MEDIDAS DE CONTROLE Hélio Moraes de Souza, Luiz Eduardo Ramirez e José Orlando Bordin 429 2 5 . MODELO DE ATENÇÃO AO CHAGÁSICO NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE Eliane Dias Gontijo, Maria Elena Guariento e Eros Antônio de Almeida . . . . 445 2 6 . CONTROLE DA DOENÇA DE CHAGAS João Carlos Pinto Dias 453 2 7 . SÍNTESE HISTÓRICA E EVOLUÇÃO DOS CONHECIMENTOS SOBRE A DOENÇA DE CHAGAS José Rodrigues Coura . 469 P A L A V R A S I N I C I A I S Ε D E D I C A T Ó R I A E m 1907, Carlos Chagas descobriu o Trypanosoma cruzi e dois anos depois descreveu o primeiro caso humano da doença de Chagas. Em 1911, durante memorável conferência perante as mais altas autoridades do País, Chagas conclamou veementemente toda a sociedade a unir-se com o objetivo de su- perar a terrível enfermidade que acabara de descobrir, dizendo-a um "proble- ma de Estado e da Nacionalidade". Somente nos anos 40, no entanto, mercê do esforço pioneiro de três discípulos de Chagas, tal problema começou a ser reconhecido, iniciando-se de fato o controle da doença no Brasil. Seguiram-se então os programas na Argentina, com Abalos e Soler; na Venezuela, com Gabaldón e Torrealba; no Chile, com Neghme; e no Uruguai, com Talice e Maria Franca. Na década de 70, o Estado de São Paulo consolidou a ofensiva contra o Triatoma infestans, espécie que acabou por ser erradicada; nos anos 80, o Programa Brasileiro foi enfim priorizado e alcançou cobertura definitiva. Hoje não se vêem mais casos novos da doença em quase toda a área endêmica brasileira. O mesmo está ocorrendo em vastas extensões do Cone Sul, cujos governos se uniram em 1990, numa iniciativa inédita e compartida de controle das principais formas de transmissão do Trypanosoma cruzi ao homem. Neste quadro, que também estimula outros países do continente, um horizonte promissor se avizinha quanto à transmissão do parasita às pobres populações a ele expostas. Lugares há em que a dificuldade reside em dar início às atividades. Espécies secundárias, focos peri-domiciliares, vigilância epidemiológica e definitiva melhoria das habitações e da qualidade do sangue transfundido permanecem como a tarefa maior da etapa de consolidação dos programas já instalados. Mas outro desafio - também pressentido por Chagas - se impõe hoje: como minimizar a moléstia naqueles 1 6 ou 18 milhões de indivíduos já infectados? Ao clínico e ao cirurgião estende-se o sonho de Chagas. Muito se avançou, em especial nas três últimas décadas, no manejo clínico do chagásico, mercê de ingentes pesquisas e do melhor conhecimento quanto à fisiopatogenia da enfermidade e da sua história natural. Também se sabe que pelo menos 85% dos infectados permanecem nos estágios crônicos mais benignos ou na forma indeterminada da doença, devendo ser atendidos, pois, na própria rede básica de saúde, poupando-se com isto serviços mais complexos e alcançan¬ do-se índices adequados de cobertura. Daí a imperiosa necessidade de que os clínicos se familiarizem com a doença, em particular no que diz respeito ao seu diagnóstico e tratamento. Atender a esta exigência conformou a tarefa básica deste livro. Nos anos 40, três dos pioneiros de Manguinhos assumiram tais idéias, a partir do próprio Carlos Chagas, ao publicar um primeiro opúsculo sobre a "Clínica e a Terapêutica da Doença de Chagas". Cinquenta anos depois, um grupo de estudiosos entendeu ser hora de retomar essas concepções e divulgá- las de forma simples e acessível a todos os Colegas que militam nas frentes de trabalho ao longo da América Latina. Assim nasceu esta obra - fruto do enor- me respeito para com todos aqueles que se infectaram pelo Trypanosoma cruzi - que é dedicada às memórias de Emmanuel Dias, de Francisco Laranja e de Genard Nóbrega. Rio de Janeiro, setembro de 1996. João Carlos Pinto Dias e José Rodrigues Coura Dentre as vias mais importantes na transmissão do T.cruzi, a transplacentária é a terceira. Entre 1,6% e 8% dos filhos de mães com sorologia positiva nascem infectados na Argentina, Bolívia, Chile e Uruguai (Schmunis, 1994). Na América Latina considera-se que ocorram cerca de 45.000 óbitos anuais atribu- íveis à doença de Chagas (Moncayo, 1993). Dados de áreas limitadas da Argentina indi- cam que a taxa anual de mortalidade por 100.000 habitantes devido a esta causa variou de 2,56% a 3,88% de 1980 a 1986 (Morales et al., 1989). Na Bolívia, por extrapolação dos dados de um inquérito realizado em 1981-1982, estima-se que sete recém-nascidos e seis mulheres grávidas morrem diariamente por doença de Chagas (Bolívia, 1994). Foram atribuídos à esquizotripanose 13.735 falecimentos em 1992 (Bolívia, 1994). No Brasil considerou-se que a enfermidade foi a causa de 8,2% dos 502.400 óbitos ocorridos entre 1977 e 1983 (Silveira, 1986). Na Venezuela, a taxa de mortalidade variou de 0,88 a 1,02 entre 1979-1982 (Aquatella et al., 1992). 3. A carga da doença de Chagas A carga social produzida pela Tripanossomiase Americana, medida em "anos de vida ajustados em função de incapacidade (AVAD) devido ao óbito, é significativamente maior que aquela produzida pelas outras doenças tropicais prevalentes na região das Américas. Malária, esquistossomose, leishmaniose, hanseníase, filarioses e oncocercose geram, em conjunto, uma carga correspondente a não mais que a quarta parte do que a originada pela doença de Chagas (Figura 2). Da mesma forma, quando se compara a carga da enfermidade medida em milhões de AVADs produzida por distintas doenças transmissíveis, a da doença de Chagas ocupa o quarto lugar, somente sendo inferior às ocasionadas pelas enfermidades respiratórias agudas, as diarréias e a AIDS, e superior à da tuberculose, das helmintíases intestinais e das doenças preveníveis por vacinação (Figura 3) (World Bank, 1993). 4. Custo da doença Embora a informação disponível seja muito pontual, e os dados obtidos nos dife- rentes países dificilmente possam ser comparados, mesmo assim fica evidente o tremen- do custo econômico da doença de Chagas. Como a população que padece da mesma é habitualmente de baixo nível sócio-econômico, a cobertura dos gastos termina sendo, em grande parte, responsabilidade do Estado. Na Argentina, o acompanhamento de 128 pacientes com lesão cardíaca durante 30 meses mostrou que o gasto em atenção médica e fármacos chegou a 350.000 dólares norte-americanos (US$) (Evequoz, 1993). Na Bolívia, os custos de tratamento exclusiva- mente da fase aguda ascenderam de US$ 215.000 a US$ 2.150.000 por ano; os da fase crônica atingiram US$ 21 milhões e os da doença congênita chegaram a US$ 187.000. Os * Para estabelecer os AVAD relativos a cada agravo, estima-se a incidência de casos por idade e sexo e se calcula o número de anos de vida potencial perdidos, multiplicando a duração potencial da doença até a cura no falecimento por um coeficiente de gravidade que meça o grau de incapacidade que causa, em comparação com a perda da vida (World Bank, 1993). dispêndios ocasionados por falecimento foram de US$ 343.000. Estes dados só correspondem aos custos diretos; os indiretos de morbidade ascenderam a US$ 43,8 mi- lhões e os da mortalidade a US$ 57,7 milhões (Bolívia, 1994). Considerou-se, no Brasil, que apenas o custo da implantação de marcapassos e cirurgias por megavísceras teria sido de US$ 250 milhões no ano de 1987, enquanto por absenteísmo laboral somaria US$ 625 milhões. Ainda com relação a este país, ter-se-ia aumento significativo do custo total caso se acrescentasse o estimado para tratamento suportivo dos chagásicos crônicos (US$ 1.000 por cada paciente/ano) e dos gastos por aposentadoria antecipada por invalidez (US$ 400.000 em apenas um Estado). A cardiopatia chagásica ocupa lugar proeminente entre as causas de incapacidade em muitas áreas rurais do Brasil (Dias, 1987; Dias et al., 1985; Schofield Sc Dias, 1991; Zicker & Zicker, 1985). No Chile, a doença de Chagas custa US$ 37 milhões/ano, sem contar os gastos em marcapassos e sua implantação (Apt, 1991). 5. O controle da doença de Chagas Da centena de espécies de triatomíneos potencialmente vetores do T.cruzi, ape- nas uma quantidade limitada possui a capacidade de boa adaptação à vivenda humana, tendo assim estreito contato com pessoas e mamíferos domésticos, os reservatórios co- muns da infecção. Três espécies constituem os vetores mais importantes: o Triatoma infestans, na Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, sul do Peru e Uruguai; o Rodnius prolixus na Colômbia, México, Venezuela e América Central; e o Triatoma dimidiata no Equador, México e América Central. Outras espécies epidemiologicamente menos importantes são o Triatoma sordida, na Argentina, Bolívia, Brasil e Paraguai; o Triatoma brasiliensis, no Brasil; o Triatoma berberi, no México e o Rodnius palescens, no Panamá. O T. infestans diferencia-se das outras espécies por ser estritamente domiciliar na grande maioria da sua área de dispersão (WHO, 1991). As ferramentas para o controle da principal forma de transmissão estão disponíveis desde a década de quarenta, quando se comprovou a efetividade do tratamento da vi- venda rural com inseticida para eliminar o vetor (Dias & Pellegrino, 1948), porém uma solução mais permanente consiste no melhoramento ou substituição da vivenda. Não obstante, apesar do ônus que poderia significar o expurgo de milhares de casas com inseticida, o custo é pequeno se comparado com o que custaria um programa maciço de vivendas. A prática em programas de controle de grande envergadura tem demostrado que o rociado com inseticidas de ação residual, combinado com educação sanitária da população, permite reduzir significativamente os índices de infestação domiciliar. Quan- do se leva a cabo a melhora da vivenda - inclusive através de medidas simples como a mudança do teto e o reboque das paredes - os resultados são ainda melhores. No entan- to, mesmo neste caso, o expurgo deve preceder a modificação da vivenda. Mesmo que estes programas não sejam baratos, seu custo é apenas uma fração dos gastos anuais diretos e indiretos produzidos pela doença. É óbvio que as possibilida- des de sucesso serão maiores nas áreas em que a espécie predominante é estritamente domiciliar, como ocorre nos países onde o vetor principal é o Τ.infestans. Existem várias evidências de que isto é perfeitamente factível. Na Argentina levou-se a cabo uma campanha de rociado de vivendas com inseti- cida que começou em 1961, quando estavam infestadas entre 20 e 60% das vivendas da zona rural endêmica. Sete anos mais tarde não apenas se observou redução substancial dos índices de infestação domiciliar, mas também a prevalência de sorologia positiva para T.cruzi entre os jovens de 18-20 anos incorporados ao serviço militar vinte anos mais tarde (1981): foi 40% menor que a encontrada entre os jovens incorporados ao serviço militar entre 1964-1969 (Segura et al., 1985). Esta redução foi ainda maior em algumas províncias onde a prevalência era elevada. Assim, na província de Salta, a prevalência baixou de 12% em 1985 (jovens nascidos 18-20 anos antes) a 2,23% em 1992 (Segovia & Lopez Diaz, 1993). Em São Paulo, Brasil, depois de quatro anos de rociado (de 1964 a 1968) apenas foi detectada infestação por T.infestans em menos de 0,1% de 900.000 vivendas. Dos 223 municípios infestados entre 1968 el969, somente 25 continuavam infestados em 1976. A prevalência de sorologia positiva em escolares do estado caiu de 0,6% para 0,07%, de 1975 a 1982 (Souza et al., 1984). Na década de 70, dos 711 municípios origi- nalmente com T.infestans no Brasil, somente 186 estavam infestados em 1986, sendo que 538 municípios já estavam em vigilância em 1987 (Dias, 1987). Em Goiás, estado com alta endemicidade da doença, a prevalência de infecção por T.cruzi baixou entre duas e três vezes nos últimos dez anos (Andrade et al., 1992). No Chile, depois de doze anos de aplicação de inseticida na IV Região, o índice de infestação domiciliar diminuiu de 49% a 4% e a prevalência da infecção entre escolares primários baixou de 21,8%, em 1986, para 8,2%, em 1992 (Aguilera et al., 1994). A área endêmica, no Uruguai, era constituída pelos Departamentos de Artigas, Rivera, Tacuarenbo, Salto, Paysandu, Rio Negro, Soriano, Colônia, Durazno & Cerro Largo. O programa de rociado domiciliar e peri-domiciliar já eliminou a infestação nos departa- mentos de Artigas, Paysandu, Colônia, Durazno & Soriano. A taxa de infestação de 3% em 154.377 domicílios antes de 1986, baixou a menos de 0,3%, em 1992. Apenas dois departamentos do país ainda apresentavam taxa de infestação a 1,5% em 1992 (1,9% e 2,3% em Rivera e Tacuarenbo, respectivamente) (Anônimo, 1992; WHO, 1991). Estudos de prevalência na população infantil - menos de 6 anos de idade - demonstram prevalência atual de 0,8% ou menos, sugerindo que a transmissão vetorial está próxima a interrom- per-se no país (WHO, 1994). O custo destas atividades foi de US$ 48,5 milhões na Argentina, de 1991 a 1994; de US$ 35,6 milhões no Brasil, entre 1993 e 1994; de US$ 1,2 milhões no Chile, entre 1991 e 1994; e de US$ 248 mil durante este mesmo período, no Uruguai (OPS, 1994). Caso sejam mantidas as atividades, espera-se que o Uruguai elimine o T.infestans em 1996, o Chile em 1998 e a Argentina e o Brasil entre os anos 2002 e 2006. Inclusive nas áreas onde o vetor não é estritamente domiciliar, também se obteve êxitos. Na Venezuela, o programa de controle combinou atividades de trata- mento das casas (melhoramento ou substituição) com inseticida. Como conseqüência, em 1981 observou-se significativa diminuição da prevalência de infecção por T.cruzi em crianças, em comparação com a detectada durante o período 1959-1969 (PAHO, 1982). Infelizmente, poucos países podem levar a cabo tal inversão, que requer um programa desse tipo. As mudanças demográficas que ocorreram na América Latina nas últimas décadas favorecem a menor transmissão vetorial da Tripanossomiase Americana. Mais de 60% da SEGURA, E.L.; PÉREZ, A.C.; YANOVSKY, J.F., ANDRADE, J. & WYNNE DE MARTINI, G.J., 1985. Decrease in the prevalence of infection by Trypanosoma cruzi (Chagas' disease) in young men of Argentina. PAHO Bulletin, 19: 252-64. SILVEIRA, A.C., 1986. Mortalidade por doença de Chagas no Brasil. 1977/1986. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, 81(Suppl.): 48. SKOLNICK, Α., 1989. Does influx from endemic areas mean more transfusión associated Chagas' disease? Journal of American Medicas Association, 262: 1433. SOUZA, G.A.; WANDERLEY, D.M.V.; BURALLI, G.M. & ANDRADE, J.C.R., 1984. Consolidation of the control of Chagas' disease vectors in the State of São Paulo. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, 79 (Suppl.): 125-131. TDR, 1987. Tropical disease research. A global partnership. Eighth programme report 1987. UNDP/World Bank/WHO Special Programme for Research and Training in Tropical Diseases, Geneva, pp. 89-98. UNITED NATIONS, 1992. World urbanization prospects. 1992 revision. New York, pp 79-80. USA, 1992. Statistical abstract of the United States (1992), Washington, p. 42. VALENCIA TELLERIA, Α., 1990. Investigación epidemiológica nacional de la enfermedad de Chagas. La Paz, Bolivia, Ministério de Salud. WHO, 1990. Chagas' disease. Frequency and geographical distribution. Weekly Epidemiological Record, 65: 257-64. WHO, 1991. Control of Chagas' disease. Geneva. WHO Technical Report Series, No. 811. WHO, 1994. Chagas' disease. Elimination of transmission. Weekly Epidemiology Record, 69: 38- 40. WORLD BANK, 1993. The World Bank. World development report 1993. Investing in Health. World development indicators. Washington. Oxford University Press. ZICKER, F. & ZICKER, E.M., 1985. Benefícios previdenciários por incapacidade como indica­ dor de morbidade. Estudo da doença de Chagas em Goiás. Revista Goiana de Medicina, 31: 125-136. Tripanassomiase Americana: seu impacto nas Américas é perspectivas de eliminação . Quadro | Estimativas sobre a população exposta, prevalência, incidência anual e taxa por 100.000 babitantes da infecção chagásica em países latino-americanos em anos recentes. População exposto População infectada estimada estimada , a coral da , q total da | Incidência | Casos por? PAÍS Número" 2a | Números anual 100.000 população: população” | esrimadade | habitantes Argentina 6.900 23 2.333 7.2 - 7.200 Bolívia 2.834 55 1.534 22,2 86.676 22.226 Brasil 41.054 32 5.000" 43 - 4.122 Chile 1.800 15 187 a 1.239] 1,6 a 10.6 - 1.613 a 10.690 Colômbia 3.000) 10 900 33 39.162 3.303 Costa Rica” 1.112 45 130 5,3 4.030 - Equador 3.823 41 30 0,34 7.488 343 El Salvador 21 43 322 6,9 10.048 - Guatemala 4.022 52 730 9,8 30.076 9.827 Honduras 1.824 42 300 7 9.891 7446 México - - - - 142.880) - Nicarágua - - - - 5.016 - Panamá 898 42 220 10,6 7.130 10.643 Paraguai 1.475] 45 397 11,59 14.680 11,591 Peru 6.766 34 643 3,47 24.520 3.479 Uruguai 975 33 37 1,25 - 1.250 Venezuela 11.392 68 1.200 7,42 - 7.421 o seno . Os dados correspondem a 1980-1985 e procedem de PAHO (1990) e TDR (1987), exceto se indicada outra referência; Em milhares; . Foi utilizada a população total do ano do estudo ou a população média durante os anos do mesmo, exceto quando citada outra referência; . Kão se incluem dados de Argentina, Brasil, Chile, Uruguai e Venezuela, já que contam com progra- mas de controle vetorial; . Hayes & Schofield (1990); Segura (1994); . Valencia Telleria (1990); Dias (1987) PAHO (1992). 19 «= GobrialA Sehumis Quadro 2 Sorologia Positiva para doença de Chagas em doadores de sangue País Nº de Amostras Positividade(%) Argentina 498.380 56 Brasil 1.099.601 0,7 Chijer 163.979 1,33 Equador! 44.712 011 E] Salvador 20.438 1,47 Guatemala 34.070 1,4 Hondurast 27.885 1,24 Paraguai 30.252 53 Uruguai 57.205 0.8 Venezuela! 584.795 1,14 Somente incluídos os países com mais de 20.000 provas sorológicas em doadores de sangue por ano. Dados obtidos em OPS (1994), exceto quando se menciona outra referência. As cifras das referências ce d correspondem a 1993. As cifras relativas o Chule são de 1992 e as da Venezuela de 1990-1992. a. Chile (1992). b. OPS (1994-4). c. OPS (1994-B). d. Ache (1993). 2z0 Tripanossomiase Americana: seu impacto nos Américas é perspectivas de eliminação . . . Figura 4 Percentagem da população que vive em ârea urbana nos países latino-americanos Porcentagem COR ELS GUT HON MEX NIC PAN ARG BOL BRA CHI COL ECU PAR URU VEN [E]1950 RE 1960 EE!” 1980 E 1º 23 2 T Y P A N O S O M A C R U Z I : M O R G O L O G I A Ε C I C L O E V O L U T I V O Zigman Brener SUMÁRIO: 1 . Introdução. 2. Morfologia. 3. Variações intraespecíficas. 4. Ciclo evolutivo do T. cruzi no vetor. 5. Ciclo evolutivo do T. cruzi no hospedeiro vertebrado. 6. Interação Τ. cruzi- célula hospedeira. 1 . Introdução O Trypanosoma cruzi é um flagelado da Ordem Kinetoplastida, Família Trypanosomatidae, caracterizado pela existência de um único flagelo e do cinetoplasto, uma organela contendo DNA e localizada na mitocôndria. A identificação do T.cruzi não oferece problema, pelo fato de o seu cinetoplasto ser volumoso, excedendo os limites da membrana parasitária, detalhe morfológico que o diferencia do outro único tripanossomo que infecta o homem em alguns países da América do Sul e Central, o Trypanosoma rangeli. Em seu ciclo, o T.cruzi apresenta três formas evolutivas, as quais são identificadas morfologicamente pela posição do cinetoplasto com relação ao núcleo da célula e à emergência do flagelo. No tripomastigota (estágio infectante do parasito) o cinetoplasto situa-se na parte posterior do flagelado, em posição terminal ou subterminal, e o flagelo emerge da chamada bolsa flagelar, de localização próxima ao cinetoplasto; nos epimastigotas (formas de multiplicação do parasita no vetor ou em cultura) o cinetoplasto e a bolsa flagelar estão em posição anterior ao núcleo; por fim, os amastigotas (estágios evolutivos que se multiplicam dentro das células hospedeiras) são organismos arredondados que apresentam inconspícuos flagelos. 2. Morfologia O T.cruzi possui organelas, que normalmente são encontradas em células eucarióticas, e algumas outras estruturas que lhe são próprias. A mitocôndria é tubular e apresenta as típicas cristas e DNA que são características dessa estrutura. Uma especificidade do T.cruzi é que, ao contrário do que acontece nas células eucarióticas, o DNA não está distribuído ao longo da mitocôndria e se concentra no cinetoplasto (k-DNA). Cerca de 20- 25% do total de DNA da célula mostra-se como rede fibrosa constituída por moléculas organizadas em mini-círculos e maxi-círculos. Embora cerca de 20.000-25.000 mini-círcu¬ los estejam presentes no cinetoplasto, o papel desenvolvido pelo k-DNA não é bem conhecido, ainda que sua presença seja essencial à viabilidade dos estágios evolutivos do T.cruzi. animais mostrou a presença de epimastigotas e tripomastigotas metacíclicos na luz das glândulas anais, à semelhança do que ocorre no tubo digestivo dos vetores de T.cruzi. Como os parasitas estão situados em um sítio no qual se encontra a substância odorífera ejetada pelos gambás em situações de estresse, tem sido sugerida a possibilidade de que esses animais possam ter participado de vários surtos de doença de Chagas aguda, nos quais a infecção por via oral foi implicada. Nesse particular, existem sólidas evidências de que a transmissão tenha acontecido através de alimentos contaminados por dejeções de triatomíneos ou da substância odorífera dos marsupiais. 6. Interação T.cruzi-célula hospedeira Tripomastigotas de T.cruzi são ubiqüitários e invadem inúmeras células in vitro e in vivo. Uma interação peculiar ocorre entre estágios evolutivos do parasita e macrófagos. Epimastigotas fagocitados por macrófagos são destruídos, ao passo que tripomastigotas oriundos do sangue do hospedeiro vertebrado, vetor ou cultura de tecido são interiorizados e cumprem o ciclo evolutivo já descrito. No entanto, quando os macrófagos estão ativados e os tripomastigotas estão opsonizados (ou seja, apresentam anticorpos específicos na membrana) processa-se também a destruição dos parasitas. Isso significa que macrófagos têm dualidade de comportamento, podendo ser, segundo as circunstâncias, células hos- pedeiras na quais o T.cruzi se multiplica, ou células da resposta imune, que controla a proliferação do parasita. Embora no seu conjunto o T.cruzi apresente a possibilidade de ser considerado como um parasita ubiqüitário, algumas cepas mostram preferências ou "tropismos" por diferentes células, como tem sido demonstrado em animais inoculados com diversas ce- pas e examinados na fase aguda da infecção. Estudos experimentais revelaram que algu- mas cepas de T.cruzi parasitam preferencialmente macrófagos do baço e fígado do hospedeiro, ao passo que outras populações "não-macrofagotrópicas" multiplicam-se predominantemente na musculatura lisa e estriada, inclusive do coração. A interiorização dos tripomastigotas de T.cruzi e m macrófagos processa-se por fagocitose mediada por receptores da membrana plasmática da célula hospedeira. A penetração nas demais células também ocorre por um complexo processo de endocitose, que culmina na formação intracelular de um vacúolo fagocitário, no qual está contido o parasita. Curiosamente, mecanismo idêntico de interiorização foi descrito para células musculares cardíacas expostas ao T.cruzi, nas quais esse processo também é acompa- nhado de formação de vacúolos fagocitários, onde estão seqüestrados os parasitas. Expe- rimentos de microscopia eletrônica mostram a existência de fagolisosomas resultantes da fusão do vacúolo fagocitário com lisosomas, inclusive nas células musculares. Os tripomastigotas transformam-se em amastigotas e somente iniciam sua multi- plicação na célula após escaparem do vacúolo fagocitário e passarem ao citosol. Experi- ências in vitro mostram que, duas horas após a infecção, cerca de 70% dos parasitas já romperam a membrana do vacúolo e estão livres no citosol. Uma série de trabalhos extremamente interessantes identificou o mecanismo pelo qual se rompe a membrana do fagolisosoma, liberando os amastigotas e estágios intermediários do T.cruzi. Baseados no fato de que amastigotas secretam in vitro uma hemolisina ativa em pH 5.5 e que o pH dos vacúolos de onde se liberam esses estágios evolutivos do T.cruzi é normalmente abaixo de pH 6.0, os pesquisadores sugeriram que essa substância poderia estar envolvi- da no processo de escape dos parasitas. Experimentos in vitro em cultura de tecido mostraram que a adição de substâncias básicas às células infectadas inibia o escape dos parasitas quando o pH dos fagolisosomas era elevado para 6.2. A proteína citotóxica foi isolada (Tc-TOX) no seu processo de caracterização, verificando-se que sua estrutura apresenta certa homologia com a perforina, substância presente em linfócitos citotóxicos. Na célula hospedeira, a interiorização do T.cruzi não é fenômeno puramente aleatório e depende, pelo menos em parte, do mútuo reconhecimento mediado por receptores e moléculas presentes na membrana. Curiosamente, componentes da mem- brana parasitária podem, ao invés de facilitar a interiorização, inibir a interação com a célula parasitária. Por exemplo, a tripsinização de formas sangüíneas do T.cruzi remo- ve uma glicoproteína de 90 kDa, que resulta de um significativo aumento da infecção por macrófagos, fenômeno característico da presença de um "fator anti-fagocitário" nos tripomastigotas circulantes que permitiria a evasão dos parasitas da resposta imune celular. A presença de receptores para tripomastigotas de T.cruzi em células não- fagocitárias foi detectada quando se demonstrou que anticorpos contra uma glicoproteína de 85 kDa (Tc85) inibia parcialmente a penetração dos parasitas nas células. Outros receptores foram identificados, inclusive fibronectina, uma glicoproteína presente em membranas celulares. Aspecto interessante da biologia celular do T.cruzi é sua capacidade de produzir enzimas que participam do processo de infecção das células. Parcela significativa da população de tripomastigotas sangüíneos, que emerge das células, produz neuroaminidase, enzima que remove ácido das membranas celulares. Os parasitas podem ser classificados, portanto, como Na+ e Na-, de acordo com a presença da neuroaminidase na sua membra- na. Curiosamente, a neuroaminidase aparenta exercer controle negativo em relação à interação dos parasitas com células, já que as formas sangüíneas do T.cruzi Na+ são significativamente menos interiorizadas que as Na-. Dados publicados mostram que o ácido siálico desempenha papel importante na interiorização do T.cruzi em células não fagocitárias. Interessa observar que os tripomastigotas não sintetizam ácido siálico, suge- rindo assim que a sialização dos parasitas depende de fonte exógena. Trabalhos mais recentes demonstraram que, no processo de multiplicação e ruptura da célula hospedei- ra, uma trans-sialidase presente na superfície dos tripomastigotas retira ácido siálico de macromoléculas, oriundas provavelmente da destruição celular, e o transfere para um receptor na membrana do T.cruzi (Ssp-3). Esses dados, sobretudo os relacionados ao papel da neuroaminidase e trans-sialidase, revelam que o ciclo evolutivo do T.cruzi no hospedeiro vertebrado constitui processo complexo de mútuo reconhecimento entre a célula hospedeira e o estágio infectante. Referências Bibliográficas ALVES, M.J.M., ABUIN, G., KUWAJIMA, V.Y. & COLLI, W., 1986. Partial inhibition of trypomastigote entry into cultured mammalian cells by monoclonal antibodies against a surface protein of Trypanosoma cruzi. 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Introdução O ciclo primitivo do Trypanosoma (Schizotrypanum) cruzi (T.cruzi) é de natureza eminentemente enzoótica, circulando este protozoário entre vetores e reservatórios silvestres ao longo da maior parte do continente americano, prova- velmente há milhares de anos (Dias, 1989; Forattini, 1980). Os ecótopos primitivos do T.cruzi são os mais diversos, encontrados nos desertos norte-americanos, nos altiplanos andinos, nas florestas amazônica e atlântica e no complexo caatinga/ cerrado/pampa úmido. Este contexto é ainda presente em quase toda a América, albergando-se o parasito em mamíferos silvestres de pequeno e médio porte e em insetos vetores (Hemiptera, Reduviidae), num aparente estado de equilíbrio. A doença de Chagas humana (DCH) constitui situação bem mais recente, em que uma série de fatores bio-ecológicos e político-sociais aproximam populações humanas do ciclo enzoótico, resultando grandes áreas de dispersão da endemia chagásica (Dias, 1992). Hoje estima-se que entre 16 e 18 milhões de pessoas estejam infectadas pelo T.cruzi em dezoito países latino-americanos, com cerca de 90 milhões ainda expostas ao risco de infecção (WHO, 1991). Tudo indica que a DCH é relativamente antiga e focal em algumas populações nativas da América, tendo se expandido na era pós-colombiana com as enormes mudan- ças demográficas e ecológicas produzidas pelas conquistas hispânicas e portuguesas. Em especial, entre os séculos XVIII e XLX ocorreram importantes deslocamentos populacionais e câmbios ecológicos em vastas áreas latino-americanas, propiciando contatos entre ho- mens, vetores, agentes e reservatórios, dinâmica esta que resultou em doenças como a tripanossomiase, a malária, leishmanioses, várias viroses etc. No contexto básico, a DCH é uma antropozoonose que depende de uma série de elementos bio-ecológicos (ligados principalmente aos vetores, ao agente e aos reservató- rios) e de um conjunto, não menos importante, de fatores sócio-econômicos e culturais (Dias, 1992). Dentre estes últimos, destacam-se, em especial, as relações de classe e trabalho, de um lado, e o tipo de vivenda e a maneira de o homem morar, de outro. Em seus níveis de expressão epidemiológica, a DCH tem como centro o homem infectado, fato que apresenta inter-relação imediata com vetores, reservatórios, transfusões de san- gue e morbi-mortalidade. Fatores e conseqüências mediatas são exemplificados por vi¬ venda, produtividade, migrações, sistema de saúde e ações antrópicas sobre o meio, tais como: desmatamentos, urbanizações, agro-cultivos, morbi-mortalidade, perda de produti- vidade etc. Um nível mais contextual açambarcaria os grandes determinantes ecológicos, ações políticas, relações internacionais e de produção etc., como esquematizado na Figu- ra 1 (Dias, 1993). Em princípio, a DCH é basicamente uma endemia rural, de populações pobres e de pouca cultura, cujos indivíduos vivem em casebres de má qualidade, onde se domiciliam com relativa facilidade algumas das espécies do inseto vetor (Martins, 1968). Sua maior dispersão e incidência parece ter ocorrido na primeira metade do atual sécu- lo, para isto concorrendo de modo essencial a transmissão vetorial. A partir dos anos 40, mercê de mudanças nos sistemas de produção, nota-se uma progressiva urbanização da endemia, fruto das crescentes migrações das populações rurais para as cidades e também do aumento do número de casos produzidos pela via transfusional, inclusive para países não-endêmicos (Coura, 1962; Dias, 1992; WHO, 1991). Como exemplo, admite-se hoje que dentre os cerca de 5 milhões de infectados existentes no Brasil, pelo menos 60% estejam vivendo no espaço urbano, proporção que pode ser similar na Argentina, no Uruguai e na Venezuela. Tal fato resulta em acréscimo na demanda de atenção médica nos centros mais desenvolvidos e acarreta, por sua vez, maior interesse do clínico e do cirurgião pela doença. Neste contexto, o custo médico e social da DCH é muito alto, como assinala o Dr. Schmunis no prólogo deste livro. Por exemplo, é possível estimar que essa enfermi- dade cause a perda de cerca de 750 mil anos de vida anuais nos sete países americanos do Cone Sul, correspondendo a US$ 1,208 milhões/ano. De maneira similar, o absenteísmo mínimo estimado de 75.000 trabalhadores/ano apenas no Brasil, poderia representar prejuízo de mais de US$ 5,625,000/ano (Dias, 1992). No entanto, o mais insólito deste tipo de dados é que os mesmos praticamente não aparecem ou não impactam os centros de decisão, face a mesma marginalidade (ou exclusão) que carac- teriza as populações chagásicas no continente (Dias, 1993). Por outro lado, em ambien- tes primitivamente preservados, como a Amazônia, novas áreas endêmicas de DCH tendem a ocorrer na América Latina (Coura, 1990 e 1996; Forattini, 1980). Como panorama atual pode-se dizer que a DCH se encontra em diferentes estágios de progressão, segundo o país ou região. Em países como Argentina, Brasil, Uruguai e Venezuela há forte tendência à queda da incidência, fruto de programas de controle (fundamentalmente sobre o vetor) e também de esvaziamento populacional e/ou melhoria de condições de vida de populações rurais. Em outros países, como Bolívia, Paraguai e parte do Peru, existe grande prevalência e incidência da endemia pela ausência de ações de controle (que agora, ao que tudo indica, estão começan- do). Na Colômbia, Equador, América Central e México não há programas de controle e os índices de prevalência são relativamente altos em algumas regiões, mas ainda falta a realização de estudos acerca do peso médico social da endemia (Dias, 1993, WHO, 1991). Quanto ao plano clínico-epidemiológico, os padrões de morbidade também apre- sentam diferenças regionais interessantes e de importância prática. Verifica-se, por exem- plo, que as formas digestivas são raras ao norte do equador, e que a cardiopatia chagásica é mais evidente e severa em áreas do Brasil Central, em comparação com alguns seto- res do Rio Grande do Sul ou da América Central (Borges Pereira & Coura, 1993; Dias, 1993; Prata, 1975). Num esboço amplo da epidemiologia da doença de Chagas, os ciclos silvestre e doméstico do parasito relacionam-se e se integram de modo dinâmico e complexo. As principais formas de transmissão do T.cruzi no ciclo enzoótico são a vetorial e a oral, esta última envolvendo a ingestão de vetores e animais infectados por mamíferos sus- cetíveis. Na DCH, o homem é o principal reservatório, sendo a forma de transmissão vetorial a mais destacada, seguindo-se a transfusional, com alguma importância para a congênita. A evolução da infecção é em geral muito benigna no ciclo silvestre, ao contrário da DCH, em que a morbi-mortalidade merece ênfase e se apresenta com conotações regionais. A Figura 2 esquematiza os dois principais ciclos do T.cruzi, com suas formas mais usuais de transmissão. = + João Carlos Pinto Dias a Josá Rodrigues Coura 6. Incidência (casos novos) 7. Prevalência 8. Morbidade 9. Mortalidade 10. Intervenção e aspectos Institucionais Pesquisar casos agudos, em especial entre indivíduos com febres prolongadas de origem rural ou com trans- fusão recente. Observar positividade sorológica em crianças de baixa idade (inquéritos soro-epidemiológicos). Praticar e esti- mular a notificação compulsória de casos de DCH agu- da. Cotejar os índices de prevalência em diferentes épocas, por estratos etários homogêneos. Procurar os dados do inquérito nacional de 1979-83FNS) e de SP (SUCEN). Estimular inquéritos por amostragem entre escolares, doadores de sangue e população geral do município, utilizando gota de sangue capilar, colhida em papel de filtro, para sorologia em laboratórios ofici- ais (no Brasil, consultar a FNS e as Secretarias de Saú- de). Estimar a ocorrência de cardiopatias, especialmente en- tre jovens: Verificar a frequência de arritmias e bloque- ios de ramo direito na população jovem, assim como de insuficiência cardíaca congestiva e de marcapasso artifi- cial. Levantar a existência e a frequência de manifesta- ções esofagianas e de cólon (disfagia, obstipação, cirur- gias de “megas"). Analisar as taxas e causas de aposen- tadorias em diferentes grupos etários. Indagar dos pro- fissionais da Saúde seu conhecimento acerca da DCH e sobre essa ocorrência na região. Verificar a ocorrência de morte súbita e por insuficiên- cia cardíaca entre pessoas jovens. Analisar prontuários hospitalares e certidões de óbito em séries históricas. Per- guntar diretamente à população a respeito dos antece- dentes familiares e o panorama regional da montalida- de. Há razões, conhecimento, interesse e envolvimento Jo- cal ou regional para ações específicas contra a DCH? Por parte de quem? Como e desde quando? As ações são integradas? Há participação da sociedade? Como? Fun- ciona um Conselho Municipal de Saúde? Está ele aberto ou envolvido com o problema? Que Instituições fede- rais ou estaduais estão envolvidas? Existem órgãos ou políticas locais/regionais para habitação popular? Como 38 Os tópicos acima, se investigados, proporcionarão uma razoável visão da ocorrên- cia e do impacto médico-social na área em apreço. Maiores riscos de transmissão e índices mais elevados de morbi-mortalidade constituirão indicadores de ações profiláticas e de atenção médica específicas, como detalhado em outras seções deste livro. A seguir, serão abordados os principais elementos epidemiológicos acima referidos, como forma de aprofundamento e de referência. 3. Vetores e reservatórios do Trypanosoma cruzi 3 .1 . Vetores São conhecidas mais de 120 espécies de insetos vetores da Tripanossomiase ame- ricana, todas elas da Classe Hemíptera, Família Reduviidae e Sub-família Triatominae. São insetos de considerável tamanho (adultos variando de 0,5 a 4 cm de comprimento), estritamente hematófagos, de hábitos em geral noturnos e com metamorfose parcial (cinco estádios evolutivos, adquirindo asas apenas no último - adulto). Vivem, em média, entre 1 e 2 anos, com a evolução de ovo a adulto tardando de 3 a 8 meses. Insetos lentos, pouco agressivos e de vôo difícil, encontram seus principais fatores de sucesso nos hábi- tos noturnos (escapando, assim, à maioria das aves), na grande capacidade reprodutora, na vida relativamente longa e na enorme capacidade de resistência ao jejum (Dias, 1994; Schofield, 1994). Os inimigos naturais dos "barbeiros" são as aves em geral, as formigas, outros hemípteros predadores, as aranhas, certos nematódeos e as abelhas, alguns fungos entomófogos e certos mamíferos comedores de insetos, como macacos e gambás. Em sua imensa maioria, os triatomíneos são encontrados em ecótopos silvestres americanos, do paralelo 4IN (Estados Unidos) até o paralelo 46S (Patagônia). Entretanto, poucas espécies são detectadas no Caribe, na África, na Europa, na Austrália e na Ásia, geralmen- te se dispersando nas regiões tropicais e neo-tropicais. Para a DCH importa basicamente aquelas espécies que se relacionam com o ser humano, o que ocorre quase que apenas no ambiente intra-domiciliar. Assim, serão im- portantes os triatomíneos com capacidade de invadirem e procriarem dentro das casas, fenômeno que é conhecido como domiciliação. No Brasil, os triatomíneos são designa- dos pela população como barbeiros, chupões, fincões, chupanças, bicudos, e procotós, entre outros nomes populares. Nos países hispânicos, por vinchucas, chinches, chipos, chirimachas, chinches picudas etc; nos Estados Unidos, por kissing-bugs (Barretto, 1979; Dias, 1990; Forattini, 1980). Todos os triatomíneos são suscetíveis à infecção pelo T.cruzi, em qualquer de seus estádios evolutivos, a partir da sucção de sangue do mamífero infectado. Não obstante, na natureza, a grande maioria dos insetos não se apresenta positiva para o T.cruzi, em face das pequenas possibilidades de sugar sangue que contenha o parasito. Na verdade, a maioria das espécies conhecidas de triatomíneos se relaciona com aves, animais refratários ao T.cruzi, tal como os anfíbios e répteis, também fonte alimentar de alguns triatomíneos. Uma vez adquirida, a infecção é em geral permanente no inse- to e não lhe traz dano aparente. O parasito se instala e evolui no tubo digestivo e no sistema urinário (tubos de Malpighi) do vetor, sendo suas formas infectantes encontra- das nas dejeções1. São estas as principais responsáveis pela transmissão do T.cruzi ao homem e outros mamíferos, comumente eliminadas durante ou pouco após o repasto sangüíneo do inseto. Não obstante, recorde-se que é comum alguns mamíferos silves- tres, como marsupiais e macacos, ingerirem triatomíneos, com isto se infectando por via oral. De maneira genérica, a distribuição dos triatomíneos domiciliados se superpõe à da DCH no Continente Americano. A Figura 3 representa a dispersão das principais espécies domiciliadas na América, verificando-se que, no Brasil, se encontra o maior número de espécies importantes, mostrando-se alguns destes triatomíneos e o ciclo evolutivo de T.infestans nas Figuras 4 e 5, respectivamente. Há consenso de que as mais importantes espécies transmissoras da DCH e cau- sadoras de dano social são o Triatoma infestans, ao sul da linha equatorial, e Rhodnius prolixus e Triatoma dimidiata, ao norte da mesma. Triatoma sordida, Panstrongylus megistus, Rhodnius pictipes, Rhodnius nasutus, Triatoma maculata, Triatoma pseudomaculata, Triatoma barberi, Triatoma longipenis e algumas outras poucas es- pécies completam a lista das que são capazes de colonizar o habitat humano e produzir a DCH. No âmbito da epidemiologia, a colonização é termo-chave, pois a grande maioria dos triatomíneos vive distante do homem e não lhe causa nenhum mal. Os triatomíneos são insetos muito antigos e com relativamente pouca plasticidade genética e comportamental, à diferença dos mosquitos em geral, como anofelinos e culicíneos. Por isto, os "barbeiros" apresentam dificuldade em fazer rápidas e profundas adaptações ao ambiente e a desenvolver pronta resistência aos inseticidas (Schofield, 1994). A colonização pressupõe elementos intrínsecos, tais como espécie e ecletismo (ou valência) alimentar, e outros, extrínsecos, como clima, altitude, tipo de casa, carga vetorial da casa etc. (Forattini, 1980; Schofield, 1984). Os triatomíneos nativos de uma região comumente invadem as casas e peri- domicílios vindo direta e ativamente dos ecótopos silvestres próximos, caso de T.sordida, P.megistus e T.brasiliensis, no Brasil, de R.prolixus na Venezuela e de T.dimidiata (Colômbia e na América Central). Colônias muito grandes podem ultrapassar a capaci- dade de carga vetorial de uma casa, disto advindo a invasão ativa de casas vizinhas, como se verifica, por exemplo, com P.megistus na Bahia, ou com o R.prolixus (na Venezuela). Triatomíneos não-nativos (em particular, o T.infestans na maior parte do Cone Sul) podem ser passivamente transportados pelo homem em migrações, às vezes bas- tante longas. A partir de uma colônia inicial em um casario ou localidade, rápida e ativamente a espécie se dispersa pelas casas vizinhas, formando em cada habitação uma colônia tão grande quanto suportam os abrigos existentes e a comida disponível (Barretto, 1979; Martins; 1968; Schofield, 1994). Triatomíneos também se dispersam passivamente através de ovos ou larvas aderidos em plumas de diversos pássaros, sejam estes silvestres (Micteria sp, um ciconídeo latino-americano, levando R.prolixus) ou domésticos (pombas levando T.sordida), ou também por meio de pêlos de animais. Neste último caso, importância maior é conferida àqueles sinantrópicos, como os gambás, que, vivendo em nichos silvestres, invadem com freqüência a vivenda humana e po- dem "contaminá-la" não apenas com o tripanossomo, mas também com o vetor (Barretto, 1979; Forattini, 1980). Do ponto de vista das atividades humanas (ação antrópica), estas sem dúvida estão altamente implicadas na produção e na dispersão da DCH através da rota vetorial, ora mediante ações intempestivas sobre o meio (desmatamentos, queimadas, uso indiscriminado e abusivo de pesticidas agrícolas, reflorestamentos extensivos, depreda- ção fauno-florística etc.), ora pela construção de casas rurais de péssima qualidade (ca- pazes de abrigar triatomíneos), ora pelos processos de manutenção e perpetuação da pobreza, da ignorância e da falta de higiene entre populações rurais (Dias, 1993; Forattini, 1980; Martins, 1968). Importa salientar que o ambiente urbano não é muito favorável à formação de colônias de triatomíneos, em particular no Brasil. Ainda que com a constante dispersão passiva dos barbeiros (através de seres humanos e seus pertences) em direção às cida- des, ou mesmo nestas, a partir de focos silvestres próximos às casas, a urbanização dos triatomíneos é difícil e pouco detectada, inclusive em áreas metropolitanas periféricas e em favelas. Há relatos de P.megistus e m Brasília, Belo Horizonte, Salvador, Porto Ale- gre, Florianópolis, São Paulo e Rio de Janeiro, assim como de T.sordida e m Ribeirão Preto, Santa Cruz (Bolívia), mas sempre em focos pequenos e esparsos. Fazem exce- ção focos importantes de T.infestans em cidades bolivianas como Sucre e Cochabamba, e de T.dimidiata em Guayaquil (Equador) e Tegucigalpa (Dias, 1993). Frente à DCH, as espécies de triatomíneos são classificadas de forma sucinta quanto ao maior ou menor grau de acercamento do homem. Assim, uma série enorme de espécies restritas ao ambiente silvestre engloba insetos como os dos gêneros Cavernicola - associados a morcegos - e Psammolestes - ligados aos pássaros funarídeos - , que na prática não estão envolvidos na DCH. No extremo oposto encontram-se espécies altamente domiciliadas, como e principalmente T.infestans, e situações es- peciais de R.prolixus ou mesmo de P.megistus, dotadas de elevado poder de transmis- são da DCH. Em níveis intermédios encontram-se espécies preferentemente coloniza¬ doras do peri-domicílio (T.sordida, T.pseudomaculata) e aquelas silvestres que even- tualmente se aproximam das casas, podendo mesmo nestas instalar pequenas colônias (T.vitticeps, P.geniculatus, R.neglectus etc.) (Forattini, 1980; Dias, 1987; Silveira & Rezende, 1994). De modo geral, quanto mais domiciliada é uma espécie, tanto mais efetivo é o seu controle através de inseticidas, melhoria habitacional e medidas básicas de higiene. Ao contrário, espécies peri-domiciliares são de controle bastante mais complexo, em particular aquelas ubiqüitárias, que se encontram largamente dispersas no meio silves- tre adjacente às casas (Barretto, 1979; Dias, 1960; Rocha e Silva, 1879). Sumariamente, a distribuição e as características básicas das principais espécies de triatomíneos que interessam à DCH é a seguinte: a) Triatoma infestans: Inseto negro, com manchas amareladas no conexivo, vive em ambientes escuros e secos, com baixo teor de salinidade. Dispersou-se a partir do Vale de Cochabamba, na Bolívia (onde ainda é encontrado em pequenos focos silvestres) para tornar-se espécie praticamente restrita ao domicílio. Apresenta ele- vado grau de antropofilia e distribui-se em todo o Sul da América Meridional, desde o sul do Nordeste do Brasil e o sul do Peru até a parte norte da Patagônia, incluindo, no Brasil, os estados de Pernambuco, Bahia, Sergipe, Goiás, Tocantins, Minas Ge- rais, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Paraná e Rio Grande do Sul. Espécie pratica- mente restrita ao intra-domicílio e a poucos focos peri-domiciliares, não foi detecta- da em ambiente silvestre, em nosso país. Encontra-se erradicada em São Paulo e em 86% dos municípios brasileiros onde houve sua dispersão durante os anos 70, mercê de contínua profilaxia (Dias, 1987; Wanderley, 1994). Hoje tem seus princi- pais resíduos na zona noroeste do Rio Grande do Sul e na margem esquerda do rio São Francisco, na Bahia. Seus índices de infecção natural por T.cruzi ultrapassam os 40% em focos na Bolívia, conformando presentemente cerca de 2% na média bra- sileira. Este triatomíneo prefere viver em locais escuros do intra-domicílio, especial- mente em frestas de paredes e sob as camas, sempre optando por cômodos da casa habitados por pessoas ou animais domésticos; b) Panstrongylus megistus: Espécie maior que o T.infestans, com manchas verme- lhas no tórax e conexivo. Aparece ao longo da Mata Atlântica brasileira e em áreas restritas do Uruguai, Argentina e Paraguai, sempre preferindo ambientes úmidos e quentes. No Brasil apresenta comportamento singular; encontra-se livremente domiciliado na Bahia e em outras áreas acima do paralelo 20, sendo francamente silvestre em Santa Catarina, com comportamento ubiqüitário entre estas duas regi- ões (sul de Minas Gerais e norte de São Paulo, no vale do Rio Grande). Hoje, a espécie se acha muito restrita a focos peri-domiciliares e a invasões eventuais de casas, em áreas de vigilância, onde se aloja em montes de tijolos, paredes esburacadas e galinheiros; c) Triatoma brasiliensis: espécie típica das áreas secas do Nordeste Brasileiro. É um triatomíneo extremamente ágil e agressivo que vive originariamente em pedre¬ gais, circulando entre roedores, mas que invade e coloniza bem os domicílios e anexos feitos de pedra e barro. Negro, com raias amareladas nas asas e abdômen, é inseto de difícil controle, sendo encontrado em paredes, cercas e camas; d) Triatoma sordida: é hoje o triatomíneo mais capturado no Brasil, especialmente em regiões secas e cerrados dos Estados da Bahia, Goiás, Tocantins, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, São Paulo e Paraná. Pequeno, conexivo com manchas amare- ladas e pretas, estas em forma de notas musicais. É um "barbeiro" predominante- mente peri-domiciliar, que apresenta acentuada predileção por aves (ornitofilia), sendo encontradiço em galinheiros e pombais. No mato, vive em ninhos e em ocos de árvores mortas de regiões muito secas e quentes. Seus índices de infecção natural pelo T.cruzi são bastante baixos (geralmente abaixo de 1%) em virtude de preferências alimentares. Pode entrar e constituir pequenas colônias nas vivendas humanas, mas sempre dá primazia ao peri-domicílio, sendo por isto pouco relacio- nado com a transmissão da DCH; e) Triatoma pseudomaculata: triatomíneo também nordestino, com área de disper- são semelhante ao T. brasiliensis. É encontrado no peri-domicílio, em galinheiros, cercas e montes de tijolos, telhas ou madeira. Capaz de invadir e colonizar o intra- domicílio, onde apresenta alguma antropofilia; f) Outros triatomíneos de relativa importância no Brasil: do gênero Rhodnius, temos no Sudeste e Centro Oeste o R.neglectus, que procede de palmeiras (macaubeiras, babaçus) e pode fazer pequenas colônias, principalmente peri-domiciliares. No Nordeste e na Amazônia encontram-se R. pictipes e R. nasutus, também proce- dentes de palmeiras e invasores eventuais de vivendas humanas. R. brethesi é uma espécie curiosa que vive em piaçabais do Alto Rio Negro, Amazonas, onde há a possibilidade de transmitir a DCH a pessoas que colhem estas fibras (Coura, 1996). Panstrongylus geniculatus é associado contumaz de locas de tatu, às vezes inva- dindo casas, em especial na Amazônia. No Rio Grande do Sul, focos peri-domicilia¬ ção e parasitemia pelo T.cruzi. Também se contaminam por via oral, ao comerem triatomíneos e pequenos mamíferos infectados. Fato de grande interesse e even- tual importância, recentemente descoberto por Maria Deane, é um ciclo espe- cífico do parasito nas glândulas anais dos gambás brasileiros, que poderia re- sultar em novo mecanismo de transmissão do T.cruzi, na medida que o gambá eventualmente expele estas secreções contaminadas sobre alguns de seus agressores (Dias, 1990). Em geral, não ocorre transmissão congênita do T.cruzi entre estes animais, assim como também não se tem detectado ação patogênica do parasito sobre os mesmos; a) Desdentados: entre nós são principalmente os tatus, em especial naquelas regi- ões onde se dispersa um triatomíneo que sói albergar-se em suas tocas, o Panstrongylus geniculatus. Ali podem encontrar-se tatus com até 50% de infecção natural, aparentemente sem que esta os moleste. Alguns tamanduás também apre- sentam relativa importância, mas são menos parasitados que os tatus; b) Roedores: uma enorme série de ratos e cobaios silvestres tem sido detectada com a infecção natural pelo T.cruzi, com índices que variam de 3 a 30%. É bom lembrar que estes servem freqüentemente de fonte direta de transmissão para mamíferos maiores, pelos quais são devorados. No litoral do Nordeste do Brasil, ratos semi- domésticos têm sido encontrados parasitados por outro tripanossomo, o T.conorrhini, não patogênico para o homem; c) Quirópteros: várias espécies de morcegos têm sido encontradas naturalmente infectadas pelo T.cruzi e por outros tripanossomatídeos a este muito semelhantes (grupos vespertilionis e marinkelli), não patogênicos para o ser humano. Os mor- cegos se infectam no convívio com alguns triatomíneos silvestres, em cavernas (Cavernicola pillosa) e no interior de árvores ocas, aí convivendo com T.sordida, com P.geniculatus e com outras espécies; d) Outras ordens: vários carnívoros (gatos e cachorro do mato, irara, furão, pequenas raposas etc.) apresentam infecção natural de menor importância; também os primatas (diversos tipos de macacos) e os lagomorfos (coelhos e lebres) encon- tram-se eventualmente infectados pelo T.cruzi. A interação entre o Trypanosoma cruzi, os vetores e os reservatórios pode teoricamente influir no curso da endemia humana. É possível especular a respeito de ser a passagem do parasito por tão diferentes hospedeiros fator importante na sele- ção, ampliação e adaptação de cepas com maior ou menor impacto na infecção hu- mana. Destarte, a ação do homem, modificando de forma violenta o meio ambiente, pode acabar interferindo na distribuição dos vetores e, em conseqüência, na cepa do parasito. Por outro lado, a alta complexidade dos ecótipos silvestres torna pratica- mente impossível pensar-se na erradicação definitiva da tripanossomiase america- na, sendo mais plausível a virtual eliminação da doença de Chagas humana (Dias, 1992; Schofield, 1994). Importância das aves e de outros vertebrados não portadores do T.cruzi. Como se sabe, outros animais participam da ecologia da tripanossomiase americana, ainda que o parasito não tenha competência para infectá-los; porém, as aves principal- mente exercem esse papel, pelo fato básico de constituírem a fonte alimentar funda- mental da maioria dos triatomíneos. É o caso, por exemplo, de grandes colônias de T.sordida e de P.megistus, que preferem viver em pombais e galinheiros rústicos de grandes áreas do sudeste e do centro-oeste do Brasil, de onde podem invadir e instalar- se em casas próximas. Por outro lado, enorme variedade de aves silvestres alberga triatomíneos em seus ninhos, podendo mesmo servir de meio de dispersão destes insetos ao portá-los diretamente ou a seus ovos em sua plumagem (Barretto, 1979; Dias, 1990; Schofield, 1994). Refira-se ainda que uma quantidade considerável de animais pecilotérmicos (es- sencialmente lagartos e alguns sapos e rãs) podem exercer a função de fonte alimentar aos triatomíneos, mesmo sendo refratários ao T.cruzi. Bastante típica é a associação do Triatoma rubrovaria com uma série de lagartos e lagartixas em cercas e pedregais do Uruguai e do Rio Grande do Sul (Schofield, 1994). 4. Mecanismos de Transmissão da DCH Pragmaticamente, à DCH interessam as vias: vetorial (80 a 90% da transmissão), transfusional (8 a 18%) e congênita (0,5 a 2%). As demais vias são realmente excepci- onais e não têm significativa importância em Saúde Pública, sendo aqui mencionadas como elementos a serem pensados em casos muito particulares. Na prática, sob uma perspectiva de intervenção e controle, a ação efetiva contra os triatomíneos domiciliados já é suficiente para virtualmente interromper a curto/médio prazo a transmissão da DCH em área endêmica, principalmente se acompanhada de bom controle das transfu- sões de sangue (Dias, 1987; Souza et al, 1984). De fato, contidos os "barbeiros", as novas gerações humanas da área ficam quase isentas de transmissão e matematicamen- te haverá redução progressiva de doadores e gestantes infectados, assim decrescendo cada vez mais as chances de novos casos (Dias, 1993; Wanderley, 1994). A transmissão vetorial acontece pelo contato do homem suscetível com as excretas contaminadas do inseto vetor. Pode-se afirmar que é evento de difícil ocorrên- cia, o que explica que existam percentuais ainda significativos (20, 30%) de indivíduos soro-negativos que viveram toda sua vida em áreas rurais extremamente infestadas. Por outro lado, quando é baixa a densidade vetorial de uma vivenda ou casario, a ocorrência de transmissão é notavelmente baixa, como demonstram os inquéritos soro- epidemiológicos realizados em áreas sob vigilância epidemiológica, ou seja, áreas em que as taxas de infestação domiciliar estão abaixo de 5% (Dias, 1992; Souza et al, 1984; Silveira & Rezende, 1994). Os "barbeiros" nascem livres do parasito e podem infectar-se, em qualquer está- dio evolutivo, ao sugarem um reservatório infectado. As possibilidades desta infecção irão depender de fatores diversos, como: o nível de parasitemia do reservatório, a quantidade de sangue ingerida, a cepa do parasito, a espécie do vetor etc. Nas áreas endêmicas de DCH, as taxas de infecção natural de triatomíneos domiciliados variam em geral entre 1 e 40%, sendo mais elevadas nos insetos mais velhos e naquelas áreas onde a densidade do vetor é mais alta e está ocorrendo transmissão ativa, principalmente quando casos agudos estão sendo detectados. No Brasil atual, as medianas de taxas de infecção de triatomíneos domiciliados têm oscilado entre 1 e 3%, isto indicando chances cada vez menores de transmissão vetorial, mormente quando as densidades domiciliares desses insetos estão sendo redu- zidas com os programas profiláticos (Dias, 1993). Os triatomíneos podem adquirir o T.cruzi também a partir de outros triatomíneos infectados, através de mecanismos de exceção como o canibal ismo e a coprofagia, que têm a possibilidade de ocorrer em situações extremas de fome do inseto. No triatomíneo, o parasito se depara com um meio de cultura ideal, reproduzindo-se intensamente já nos primeiros dias de infecção, a partir dos segmen- tos iniciais do tubo digestivo do inseto. É uma reprodução assexuada, realizada mediante grandes massas nucleadas que se formam na porção estomacal, ou de divisões binárias de formas arredondadas ("esferomastigotas") e longilíneas ("epimastigotas"). O parasito se encontra ao longo do tubo digestivo dos "barbeiros", permanecendo em sua luz e freqüentemente aderido às células epiteliais, numa relação ainda em estudo. Ocupa também o sistema excretor através dos tubos de Malpighi. Na ampola retal, o parasito diferencia-se, assumindo a forma "tripomastigota" como forma infectante para os reservatórios mamíferos, com o cinetoplasto classica¬ mente deslocado para a porção posterior do corpo celular. Em geral, o parasito instalado permanece no interior do triatomíneo por toda a vida deste, mas há situ- ações, ainda não bem definidas, em que aparentemente a infecção do inseto desa- parece espontaneamente. Vários experimentos demonstram ainda que diferentes espécies de triatomíneos apresentam diversa capacidade de infecção com distintas cepas de T.cruzi, o que pode significar importantes variações na dinâmica de transmissão do parasito. Ao emitir as suas dejeções, comumente os triatomíneos infectados lançam formas do parasito no meio externo, a maioria delas infectantes, mas também um número significativo de epimastigotas. No meio externo, estas formas manter-se-ão vivas e viáveis por algum tempo (minutos), na dependência do teor de umidade (morrem ao ressecamento), da temperatura (morrem a mais de 40§C) e do ambiente físico-químico (morrem em pH ácido ou alcalino, em meio hiper-osmótico, em meio alcoólico etc.) Considerando as informações acima, nota-se que a transmissão vetorial da DCH faz-se de maneira complexa e é de ocorrência relativamente difícil, dependendo de fatores e circunstâncias diversas. Entre estas, acrescente-se ainda a capacidade intrínse- ca de que o parasito se diferencie no interior do vetor, a freqüência e o número de dejeções do inseto, o tempo decorrido entre o repasto sangüíneo e a dejeção, o local de depósito desta etc. (Dias, 1979; Zeledón, 1976). A transmissão transfusional, objeto de capítulo especial neste livro, respon- de pela maior quantidade de casos de transmissão da DCH depois da via vetorial, tendo aumentado a partir dos anos 40 em toda a área endêmica, mercê principalmente do crescente número de transfusões de sangue (no Brasil chegam hoje a cerca de 5 mi- lhões/ano) e da migração rural urbana, que faz ampliar o risco de chagásicos como doadores de sangue. Neste sentido, lembre-se ainda que os mecanismos e estratégias de controle da doença de Chagas transfusional somente passaram a ser implementados a partir dos anos 60 e, mais intensamente, a partir do momento em que as autoridades DCH. Trata-se da cada vez maior concentração de pessoas infectadas nas áreas urba- nas de todo o continente, mercê da migração rural/urbana continuada, em especial nesta segunda metade do século XX. Pode-se afirmar, por exemplo, que pelo menos 60% dos portadores de DCH já se encontram nas cidades brasileiras, estimando-se que 300 mil deles vivam na Grande São Paulo e 100.000 na Grande Belo Horizonte (Dias, 1990). Esta urbanização pressupõe maior risco de transmissão transfusional e crescente demanda de serviços médico-assistenciais e previdenciários para os chagásicos, nas cidades. Não significa, em princípio, maior risco de transmissão vetorial, desde que, em geral, os triatomíneos têm certa dificuldade de formar colônias mais extensas nos espaços urbanos. Não obstante, dados recentes mostram urbanização significativa de triatomíneos em bairros periféricos de cidades bolivianas como Cochabamba e Sucre (Dias, 1993). No Brasil, vetores às vezes são encontrados em certos bairros de Brasília, Porto Alegre, Salvador, São Paulo, Manaus, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, comumente em habitações muito próximas a ecótipos silvestres (bosques), de onde triatomíneos adul- tos podem voar em circunstâncias esporádicas e eventuais. Este fato não significa necessariamente maior problema de saúde pública e nem deve alarmar médicos e técnicos quando de sua ocorrência, pois o risco de transmissão da DCH é muito pequeno, assim como a possibilidade de que dessas invasões resultem grandes colô- nias de triatomíneos. No entanto, é importante que um sistema local de vigilância epidemiológica seja capaz de entrar em ação quando dessas ocorrências para avalia- ção e eventual intervenção. De acordo com Schmunis (1994), pelo panorama epidemiológico podem distin- guir-se 4 tipos de países endêmicos, a saber: => Grupo I: Países onde tem sido detectada com freqüência a infecção natural do homem, com certas áreas de alta prevalência e graus variáveis de infestação domiciliar: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Equador, Honduras, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela. As formas clínicas da DCH encontram-se aí presentes, em particular a cardiopatia crônica, sendo que as formas digestivas estão ausentes, ou são raramente de- tectadas nos países ao norte da linha equatorial (Dias, 1993). É notória a redução da endemicidade naqueles países e/ou regiões onde os pro- gramas de controle vetorial foram instalados e bem conduzidos, em especial na Argentina, no Brasil, no Uruguai e na Venezuela. O contro- le dos bancos de sangue está muito avançado em alguns dos países, com coberturas acima de 70% na Argentina, Brasil e Venezuela, e qua- se 100% no Uruguai, com graus intermédios no Chile e pouquíssima cobertura nos demais; => Grupo II: Os países deste grupo são Colômbia, Costa Rica e México, todos apre- sentando evidências de transmissão intra-domiciliar e presença de graus variáveis de cardiopatia crônica entre os indivíduos infectados. Não há programa organizado de controle vetorial ou transfusional. Na Costa Rica, mudanças sociais e econômicas, como melhoria de habitação e diminui- ção significativa de fogões a lenha (o triatomíneo local é veiculado pela lenha), resultaram em substancial decréscimo nos índices de prevalência e de infestação domiciliar; => Grupo ΠI: São países com evidência de transmissão vetorial intra-domiciliar e prevalência significativa de doadores de sangue infectados, mas sem mai- ores informações epidemiológicas, especialmente ao nível clínico: El Sal- vador, Guatemala, Nicarágua e Panamá; => Grupo IV: são países onde basicamente os registros dão conta de triatomíneos e alguns reservatórios silvestres infectados pelo T.cruzi, ou seja, presença esparsa da enzootia silvestre. Compreendem Antígua, Aruba, Bahamas, Belize, Cuba, Curaçao, Estados Unidos, Granada, Guadalupe, Guianas, Haiti, Ilhas Virgens, Jamaica, Martinica, São Vicente, Suriname e Trinidad- Tobago. Em alguns deles (Belize, EUA, Guiana e Trinidad-Tobago) foram reportados casos isolados de infecção humana autóctone, sendo que nos EUA existe grande contingente de chagásicos imigrados de zonas endêmicas. No Brasil, a distribuição da DCH abrange uma área de 3 milhões de quilômetros quadrados, desde o Maranhão até o Rio Grande do Sul, uma espécie de corredor que diz respeito basicamente à Floresta Amazônica e a Mata Atlântica, e o Estado de Santa Catarina. No entanto, a enzootia silvestre está presente em praticamente todo o territó- rio nacional, encontrando-se reservatórios e vetores infectados nos mais diferentes ecótipos naturais, como florestas, cerrado, cavernas etc. São mais de 2.450 municípios, envolvendo uma população de mais de 20 milhões de pessoas expostas ao risco de contaminação. As áreas de maior concentração da DCH são aquelas onde se instalou o Triatoma infestans, principalmente no século passado e primeira metade do atual, mercê de mo- vimentos sociais (migrações) e de uma situação político-social que disseminou vivendas rurais de extrema precariedade, altamente favoráveis à domiciliação do triatomíneo. Como se sabe, esta espécie não é originária do Brasil e aqui se dispersa fundamentalmente atra- vés de migrações humanas, num primeiro estágio, e, a seguir, ativamente de casa-a-casa. Assim, os Estados mais afetados foram até agora o Rio Grande do Sul, Minas Gerais, São Paulo, norte do Paraná, Goiás e Bahia, regiões em que o T.infestans se instalou de for- ma mais intensa e onde tem sido combatido de forma prioritária (da mesma forma, este triatomíneo produziu e tem produzido grande volume de DCH nos outros países onde ocorre, merecendo recentemente prioridade de controle por parte dos países do Cone Sul). Em outras regiões da área endêmica brasileira, os vetores são outros, geralmente espécies nativas e ubiqüitárias, com menor densidade intra-domiciliar (portanto produ- zindo menos infecção humana), mas apresentando maior dificuldade em seu controle. A dispersão e o destino da DCH têm obedecido a fatores bio-ecológicos presen- tes no Continente e, sobretudo, a fatores político-sociais e à ação antrópica. De um lado, áreas de colonização recente mediante abertura de fronteiras agro-pastoris têm sido alvo de expansão da DCH, seja através da migração de chagásicos oriundos de zonas endêmicas, seja por desequilíbrio ecológico do meio natural, proporcionando a invasão e eventual domiciliação de vetores nativos nas vivendas recém construídas. Desde anos recentes estão sendo detectados focos de transmissão natural da DCH na região amazônica (particularmente no Pará, no Amapá e no Alto Rio Negro) em circuns- tâncias epidemiológicas especiais como aquelas ligadas ao desmatamento, à introdução de eletricidade, à exploração de culturas nativas como a piaçaba (onde se criam algu- mas espécies do gênero Rhodnius ) etc. (Barretto, 1979; Coura, 1990; Dias, 1990). Paradoxalmente, de outro lado nota-se a redução da DCH em áreas de coloniza- ção mais antiga e de "modernização", onde a intensa ação antrópica resulta no verda- deiro esgotamento da fauna triatomínica natural de extensas regiões do continente, em especial através de amplo desmatamento e na extensiva exploração do solo. No dizer de ecólogos como Aragão, o destino da DCH em vastas regiões do Brasil é simples- mente sua extinção a longo prazo, desafortunadamente à custa de mecanismos políti¬ co-ecológicos aleatórios como o desmatamento, a urbanização desenfreada e a falência de uma política de meio ambiente (Dias, 1990). 6. Incidência e Prevalência Em termos gerais, ambos os indicadores são de alto valor no estudo da DCH, sendo muito mais fácil a medida da prevalência. A incidência - número de casos novos da infecção num determinado período (comumente de 1 ano) - é índice de difícil obtenção na doença de Chagas, desde que a detecção de casos agudos é pouco repetida nas áreas endêmicas, a maioria dos casos passando desapercebidos ou sendo assintomáticos (Dias, 1990). Outro problema é a falta de notificação de casos agudos da esquizotripanose, que no Brasil é compulsória. Ao contrário, o instrumental de determinação da prevalência - número ou estoque de casos em uma região ou popu- lação - está hoje largamente disponível, notadamente através de inquéritos sorológicos. Metodologicamente é possível determinar-se a incidência pela observação direta de uma população em dado período, detectando os casos agudos pela clínica ou avaliando periodicamente a soro-conversão dos indivíduos negativos. Também se pode estimar a incidência através dos estudos de prevalência acoplados com as taxas de crescimento vegetativo da região (Schofield, 1994; Schmunis, 1994). O que se verifica é que, sob forte pressão de transmissão vetorial, a incidência pode ser muito alta, maior que 10% ao ano, de tal forma que crianças de 5 anos de idade em certas regiões já apresentam prevalência superior a 40%. Desta forma, a incidência no Brasil, nos meados dos anos 70, era estimada em cerca de 100 mil casos novos/ano, em grande maioria devido à transmissão vetorial, enquanto hoje, na Bolívia, estima-se mais de 85 mil casos novos/ano (Dias, 1993; Schofield, 1994). Outras estimativas atuais de incidência anual admitem 39 mil casos para a Colômbia, 30 mil para a Guatemala, 9,8 mil para Honduras, mais de 140 mil para o México, 15 mil para o Paraguai e 24 mil para o Peru (Schmunis, 1994; Schofield, 1994). Nas áreas rurais endêmicas, a freqüência de casos agudos é maior sempre nas épocas de mais intensa atividade biológica dos triatomíneos (meses mais quentes do ano), e também entre os indivíduos de mais baixa idade, especialmente entre os menores de 5 anos (Dias, 1979). No entanto, quando são instalados programas efica- zes de controle, a incidência reduz-se rapidamente, como observado em várias regi¬ Com relação às populações expostas, a prevalência da DCH é, em geral, a mesma para os dois sexos. Em grupos etários muito elevados, costuma ser mais alta a prevalência entre as mulheres, pois a letalidade da doença de Chagas é maior no sexo masculino. Também a prevalência é semelhante nos diferentes grupos raciais expostos à infecção. Por outro lado, indubitavelmente a prevalência é sempre mais alta entre as populações mais pobres, de origem rural, com índices elevados de anal- fabetismo, que tenham vivido em casebres de taipa ou adobe, e que conheçam ou tenham visto o triatomíneo em suas casas (Andrade e cols, 1994, Coura, 1966, Dias, 1990, Martins, 1968). 7 . História Natural, Morbidade e Mortalidade da DCH A interação parasito-hospedeiro é bastante dinâmica na DCH, resultado de múl- tiplos fatores ligados ao T.cruzi (cepa, virulência, tamanho do inóculo), ao homem (idade, sexo, intercorrências, provavelmente raça) e ao ambiente. Genericamente, dis¬ tinguem-se as doenças aguda - inicial, rápida, com elevada parasitemia - e a crônica — tardia, de lenta evolução e com baixa parasitemia. Neste capítulo, serão mencionados de forma sucinta os principais eventos da história natural da doença humana, como elemento de compreensão da sua evolução e prognóstico. O aprofundamento destas informações deve ser buscado nos capítulos referentes à Clínica e à Patologia. Na Figura 7 esboça-se a história natural da DCH, com as principais possibilidades evolutivas encontradas em nosso meio. A contaminação pelo parasito irá depender de vários e diferentes fatores epidemiológicos já mencionados. O período de incubação é de 8 a 10 dias na transmis- são vetorial, havendo a possibilidade de ser muito maior (até 100 dias) na transmissão transfusional (Dias, 1979). A doença de Chagas aguda pode ser aparente (casos clássicos, principalmente detectados entre crianças de baixa idade) ou inaparente (estes ocorrem em todas as idades, sendo em geral pauci-sintomáticos, freqüentemente apresentando somente um quadro febril passageiro e inespecífico). Os casos "aparentes" de transmissão vetorial são encontrados em crianças, sem distinção quanto ao sexo, e com maior morbi-morta¬ lidade entre as crianças menores de 2 anos, em especial da raça negra (Dias, 1990). No que diz respeito aos casos de transmissão transfusional, a maioria tem sido detectada entre indivíduos do sexo masculino, em idades entre 20 e 40 anos. A cura espontânea da infecção aguda pode ser observada no modelo experimental, particular- mente entre grandes mamíferos como bovinos e eqüinos, não podendo ser excluída em seres humanos (apesar de nunca ter sido reportada). O tratamento específico com Nifurtimox ou Benznidazol consegue curar a DCH aguda entre 30 e 80% dos casos relatados, incluindo aqui os congênitos. É portanto indicado em todos os casos agudos e congênitos, sendo tanto mais efetivo quanto mais precocemente for instalado (Dias, 1990; WHO, 1991). A morbidade da doença aguda é sempre maior em crianças de baixa idade, com sinais e sintomas de cardiopatia aguda, meningo-encefalite, hépato-esplenomegalia etc. Também a mortalidade é maior nestas baixas idades, variando entre os distintos relatos e circunstâncias entre 1,3 e 45%. Na experiência do Centro Emmanuel Dias, da FIOCRUZ, em Bambuí, MG, a taxa de letalidade entre 313 casos agudos não tratados alcançou 19,8% no grupo etário 0-2 anos, 6,7% no grupo 3-5 anos, 3,5% entre 6 e 10 anos, e 0,0% acima de 11 anos, numa média geral de 8,3%. Neste estudo, a letalidade foi significativamente mais elevada na raça negra fren- te a indivíduos mulatos e maior destes frente aos de raça branca (Dias, 1992). A duração da fase aguda varia entre 4 e 12 semanas, ao fim das quais o quadro febril e a parasitemia (detectada por métodos diretos) tendem a desaparecer. Em paralelo, decrescem tam- bém os níveis de imunoglobulinas da classe Μ e sobem os níveis de IgG. Estes elemen- tos definem praticamente a transição para a doença de Chagas crônica. A maioria dos casos agudos não tratados evolui para a chamada forma crônica indeterminada, designação que remonta ao próprio Dr. Carlos Chagas. Consiste na presença da infecção (revelada por sorologia e/ou métodos parasitológicos indiretos), associada à ausência de sintomatologia e aos exames clínico, eletrocardiográfico e radi¬ ológicos (área cardíaca, esôfago e cólon) normais. Trata-se de uma definição operacional e muito prática, homologada por vários comitês de especialistas (WHO, 1991). A forma indeterminada é a mais freqüente forma clínica da DCH detectada em populações das áreas endêmicas e entre doadores de sangue infectados, possuindo excelente prognóstico a médio/longo prazo, podendo persistir por toda a vida em 40 ou 50% dos casos, de modo permanente (Dias, 1990; Laranja e cols., 1956). A cura espontânea de indivíduos na forma indeterminada foi relatada recentemente na Costa Rica, mas deve ser considerada extremamente excepcional; a cura definitiva após tra- tamento específico (com negativação permanente das provas sorológicas e parasitológicas) tem sido obtida em percentual bastante reduzido de pacientes adultos, havendo maiores esperanças quando este tratamento é realizado em jovens de baixa idade, em particular abaixo dos 15 anos (Dias, 1992). Por outro lado, a morte devida à DCH na forma crônica indeterminada não deve ocorrer, exatamente por falta do míni- mo substrato clínico e anátomo-patológico, especialmente na esfera cárdio-circulatória (Dias, 1990; Laranja e cols., 1956). A evolução da forma crônica indeterminada para as chamadas formas crônicas "determinadas" é uma possibilidade que ocorre em geral de maneira insidiosa nas áreas endêmicas, numa proporção por volta dos 2 a 3% dos casos ao ano, em especial entre 10 e 20 anos após a fase aguda (Dias, 1992; Macedo; 1980; Milei & Storino, 1994). Em certas circunstâncias, notadamente quando o quadro cardíaco é muito inten- so na fase aguda, ocorre evolução direta desta fase para uma forma crônica determina- da. Em tal evolução pode surgir um quadro raro chamado forma sub-aguda em que, em adultos jovens, emerge inesperadamente uma gravíssima cardiopatia, com ICC re¬ fratária, sobrevindo a morte na maioria dos pacientes. O quadro anátomo-patológico é o de miocardite intensa e extensa, com muitos parasitos. Nestes casos indica-se o trata- mento específico, acoplado a medidas suportivas quanto à ICC e, como medida herói- ca, corticoesteroidoterapia (Dias, 1990). Formas crônicas determinadas da DCH. Do ponto de vista epidemiológico, são aquelas que causam os maiores impactos médico-sociais da esquizotripanose, particularmente a cardiopatia crônica, ceifadora de vidas e responsável por grandes problemas individuais e sociais, como perda de produtividade, absenteísmo, impe- dimento ao trabalho, custos médico-previdenciários elevados etc. (Laranja e cols., 1956; Schmunis, 1994). Em seguida vêm as formas digestivas, destacadamente a esofagopatia e a colopatia, também causadoras de desconforto e mesmo morte (principalmente a colopatia), além de exigirem comumente cirurgias complicadas, caras e penosas. Muitos outros órgãos e sistemas podem ser comprometidos em menor intensidade na DCH crônica, sendo descritas a gastropatia, a duodenopatia, uretero e vésico patias, encefalopatias, parotidopatias, disperistalsis da vesícula e de canais biliares etc. Uma série de transtornos do sistema nervoso autônomo é descrita comumente com um desbalanceamento vago-simpático em que predomi- na este último, conferindo ao chagásico crônico um estado quase permanente de "stress" (Dias, 1990). Em geral, não há resposta das formas crônicas determinadas ao tratamento espe- cífico, seja em termos de cura, seja em termos de regressão ou impedimento de evolu- ção a curto/médio prazo. Muitos dos casos de formas crônicas determinadas, talvez a maioria, apresentam evolução benigna e bastante lenta, compatível com muitos anos de vida. No entanto, um percentual significativo, fundamentalmente de cardiopatas, evolui mal, sobrevindo a morte por insuficiência cardíaca, por arritmias severas e tam- bém por trombo-embolismos. Das formas digestivas, a pior evolução é para os graus mais severos do megacólon, onde a formação de vôlvulos da sigmóide sói conduzir ao óbito se não houver pronta intervenção. específicos anti endotélio vascular ou interstício não eram marcadores de prognóstico. Fatores de evolução inerentes ao parasito e ao hospedeiro já foram mencionados, de¬ vendo-se recordar que a gravidade da DCH aguda depende muito da densidade vetorial e da pressão de transmissão, causando quadros severos ao nível de crianças de baixa idade. Outro fato de natureza similar considera o possível papel desempenhado pelas reinfecções sobre indivíduos chagásicos, com possível acentuação do quadro patogênico a partir da entrada de novos parasitos e estímulos antigênicos no primoinfectado. Estas idéias devem reforçar a prioridade do controle triatomínico, com vistas à diminuição da morbi-mortalidade (Dias, 1958; Dias, 1992). Já ao nível do paciente, os fatores de pior prognóstico envolvem o sexo masculino, a raça negra, as idades acima de 30 anos e a presença de CCC, especialmente com ICC (bem avaliada no ecocardiograma por fra- ções de ejeção inferiores a 40%), cardiomegalia, tromboembolismos e algumas altera- ções eletrocardiográficas como extrassistolia multifocal e freqüente, bloqueios trifasciculares, áreas inativas extensas, bloqueios AV de II e III graus, doença do nó sinusal e fibrilação atrial (Dias, 1990; Laranja e cols, 1956). Deve-se ainda assinalar que as formas crônicas digestivas podem complicar-se, como o megaesôfago com pneumonia aspirativa, desnutrição, esofagite de refluxo, ruptura do órgão e superposição de CA. Já o megacólon, além do supra mencionado vôlvulo, leva a graus importantes de compressão abdominal (com fecalomas enormes) e pode acentuar o quadro de ICC, quando presente. Sob outra perspectiva, porém, o controle das duas mais importantes formas de transmissão, principalmente a vetorial, está resultando num decréscimo visível não apenas da incidência, mas aparentemente também da morbi-mortalidade da DCH. Por seu turno, a atenção médica e previdenciária adequada é fator inconteste de prolongamen- to da vida do chagásico. Ambos esses fatos devem servir para que as autoridades sani- tárias, com vistas à DCH, não apenas mantenham a prioridade conferida aos programas de controle, como também aumentem os graus de cobertura e qualidade na atenção aos indivíduos já infectados, hoje 5 milhões em nosso país e cerca de 18 milhões na América Latina. 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Ciba Foundation Symposium, 20: 51-77. como: constituição genética, o sexo, resistência natural etc. Vê-se portanto que, a exem- plo do que sucede nas doenças infecciosas em geral, múltiplos e em grande parte desco- nhecidos são os fatores envolvidos na tripanossomiase. O T.cruzi induz três processos patológicos fundamentais no tecido dos vertebra- dos: a resposta inflamatória, as lesões celulares e a fibrose. Estes processos, que são seqüenciais e, o que é mais habitual, simultâneos e inter-relacionados, podem locali- zar-se em qualquer tecido ou órgão. Entretanto, o coração, o tubo digestivo e o siste- ma nervoso constituem suas sedes mais freqüentes e importantes. 2. Ciclo Evolutivo do T.cruzi e Processos Patológicos Fundamentais Após sua inoculação no organismo humano pela pele, mucosas ou outras vias, a forma infectante do T.cruzi penetra no interior de células (especialmente macrófa- gos e fibroblastos), onde logo se transforma em formas amastigotas e se reproduz. Forma-se assim o foco primário da infecção. Ao final de 3 a 5 dias instalados nos ninhos, os amastigotas transformam-se em tripomastigotas, passando por um estádio intermediário de epimastigota. Ainda neste foco primário pode ocorrer: 1) a degeneração da célula hospedeira e/ou do parasita antes de se completar o ciclo replicativo ou 2) haver a complemen¬ tação do ciclo parasitário, com a ruptura da célula e liberação no interstício do T.cruzi (nas formas tripo, epi e amastigota) e de componentes celulares (mitocondrios, restos de miofibrilas etc.), os quais podem constituir-se em imunogenos e/ou mediadores químicos, desencadeando no foco primário da infecção uma inflamação aguda focal. Alguns dos parasitas liberados sob forma tripo e epimastigota escapam dos mecanismos de defesa do organismo, invadem linfa e sangue periférico (formas circu- lantes) e vão alcançar e parasitar células de outros órgãos (Figura 1). Após sua pene- tração nestas células, os parasitas reproduzem-se e constituem os ninhos secundários de formas amastigotas que originam epi e tripomastigotas, as quais passam à circula- ção sistêmica, fechando-se o ciclo que irá se repetir inúmeras vezes. Embora qualquer célula possa ser parasitada, o T.cruzi mais freqüentemente parasita macrófagos profis- sionais, células acessórias dos órgãos linfóides e fibroblastos, microglia, células de Schwann e células musculares estriadas e lisas; parasitismo neuronal parece raro. Como no foco primário da infecção, os ninhos de amastigotas formados em decorrência da disseminação do T.cruzi podem romper-se, liberando parasitas mortos ou degenerados e componentes celulares que desencadeiam no local uma resposta inflamatória. Vê-se, portanto, que, na DC, inicialmente o processo inflamatório é sempre focal e relacionado com o parasita, fato demonstrado já em 1911 por Vianna e confir- mado em estudos a microscopia eletrônica por Tafuri em 1974. Formam-se tantos microfocos inflamatórios quantos os ninhos e células que se romperam. Com a evolu- ção da infecção os microfocos podem confluir, conferindo à inflamação aspecto difu- so. É por esta razão que nos casos fatais agudos de DC há uma miocardite aguda difusa. Na fase aguda da DC predominam, durante o processo inflamatório, os fenô- menos vasculares, exsudativos e degenerativo-necróticos, aos quais se associa parasi¬ tismo tecidual, em geral intenso (CHAPADEIRO et al., 1985). Em condições experi- mentais, já nos primeiros dias de infecção tem-se descrito o início de neoformação conjuntiva (fibrose) (ANDRADE et al., 1989). O exsudato celular é constituído, predo- minantemente, por macrófagos, linfócitos e seus derivados (blastos e plasmóticos) e quantidade variável de mastócitos e granulócitos, inclusive eosinófilos. Por vezes, o número de granulócitos eqüivale ao de mononucleares, podendo ultrapassá-lo. O fenômeno alterativo é representado pelas lesões degenerativo-necróticas celulares, sendo as mais destacadas, por suas conseqüências, as das células musculares (cardía- cas e lisas) e as dos neurônios. Neste período agudo da doença, a resposta inflamatória e as lesões celulares que acometem o miocárdio e o sistema nervoso, pela freqüência e repercussão, são as mais importantes. A intensidade destes processos patológicos é extremamente va- riável de caso para caso e, dentro de um mesmo caso, de órgão para órgão. Ainda que não haja dados conclusivos, tomando-se por base os atuais conhecimentos sobre a patologia da DC aguda humana e dados experimentais, pode-se admitir que a infla- mação e as lesões celulares em alguns pacientes na fase aguda da tripanossomiase, particularmente nos assintomáticos, são de pequena intensidade. De modo oposto, nos poucos casos em que a DC aguda é fatal, a flogose e as alterações celulares, em especial as do miocárdio e do sistema nervoso, são intensas e graves. A freqüência e a intensidade do parasitismo tecidual na fase aguda, assim como sua relação topográfica com a reação inflamatória e as alterações celulares, justificam a importância da ação direta do T.cruzi no desencadear destas duas lesões fundamentais da tripanossomiase. Entretanto, as características do exsudato inflama- tório, a formação, já na fase aguda, de granulomas no miocárdio e outros dados levam à suspeita de que a inflamação e as lesões celulares, desde esta fase da enfer- midade, possam, pelo menos em parte, relacionar-se também a mecanismos imunoló¬ gicos. Ao que parece, a resposta imunitária celular ao parasita desenvolve-se rapida- mente, fato comprovado nos pacientes com fase aguda sintomática, nos quais, já no chagoma de inoculação, pode desenvolver-se reação granulomatosa; a miocardite é, em geral, grave. Pelo contrário, nos casos de fase aguda assintomática ou oligossinto¬ mática, a resposta imunitária ao T.cruzi é baixa e os dados clínicos e eletrocardiogrᬠficos sugerem que a miocardite é pouco intensa. Sabe-se que nos chagásicos que sobrevivem à fase aguda da doença, (o que ocorre em mais de 90% dos casos sintomáticos) à medida que os parasitas escasseiam no sangue periférico, a sintomatologia se atenua. Em pacientes não tratados especifi- camente para a doença, após um tempo médio de 2 a 4 meses, esta entra em período de latência e torna-se crônica (forma indeterminada). Na passagem da fase aguda para a crônica parece haver importantes fenôme- nos de imunomodulação: a resposta imunitária celular ao parasita e os possíveis antígenos do hospedeiro decresce, havendo redução do processo inflamatório mio¬ cárdico. Do ponto de vista anatomopatológico, a julgar-se pelo que se conhece dos poucos dados obtidos em necropsia (LOPES et al., 1981) e biópsias miocárdicas (PE- REIRA BARRETO et al., 1990) em casos humanos e nos escassos estudos experimen- tais (LOPES et al. 1987), nesta forma indeterminada há focos inflamatórios no miocár¬ dio e/ou na parede das vísceras ocas do tubo digestivo na quase totalidade dos casos, como adiante será descrito. Na fase crônica da DC, as lesões básicas, a exemplo do que sucede na fase aguda, também tendem a ser multifocals, podendo, por confluência destes focos, tomar aspecto zonal ou difuso (RASO et al., 1985). O processo inflamatório na fase crônica da DC mostra sempre sinais de ativida- de. De grande importância, pelas informações que podem ser trazidas para o esclare- cimento da história natural, da terapêutica, do prognóstico e dos mecanismos da doença, é o conhecimento da natureza das células do exsudato inflamatório. Este é constituído predominantemente por linfócitos e macrófagos, tendo ao lado menor número de eosinófilos, plasmócitos, neutrófilos e mastócitos. Em alguns casos há significativo número de eosinófilos. Recentes estudos imuno-histoquímicos (REIS et al., 1993; TOSTES, 1993) têm mostrado que as células predominantes no exsudato inflamatório de miocardites de cardiopatas chagásicos crônicos são os linfócitos Τ (LT), havendo poucos linfócitos Β (LB) e macrófagos. Dos LT predominam os CD8+ (células citotóxicas/supressoras) duas a três vezes mais freqüentes que os CD4+ (células auxiliares). A importância destes achados reside em que a resposta imune depende prima- riamente de três tipos celulares: macrófagos, linfócitos derivados do timo (LT) e de linfócitos derivados da medula óssea (LB), células estas que interagem entre si. Os LT CD4+ são os principais coordenadores da resposta imune, uma vez que são funda- mentais para a ativação das principais células que efetuam a resposta, os LT CD8+, cuja função principal é destruir células que expressam antígenos estranhos e os LB produtores de anticorpos. Portanto, os achados imuno-histoquímicos referidos acima, associados a outros dados da literatura, apontam para a participação dos linfócitos Τ CD4 e CD8 positivos na gênese de lesões de células nobres na DC. Outro dado importante mostrado pela resposta inflamatória na DC é o de que, por vezes, ela adquire o tipo granulomatoso, fato indicativo de que a inflamação na DC é, pelo menos em parte, uma imuno-inflamação causada por agente com poder imunogênico capaz de induzir resposta do tipo imunitário. Lesões celulares são representadas por degeneração hialina, edema, hipotrofia e necrose; a exemplo do que sucede no período agudo, também na fase crônica as mais significativas são aquelas das células musculares e as dos neurônios. O parasitismo tecidual no período crônico é sem dúvida incomparavelmente menor do que o observado na fase aguda, chegando-se mesmo a admitir que o en- contro de formas amastigotas do T.cruzi em tecidos de chagásicos crônicos fosse excepcional. Entretanto, estudos mais recentes executados com técnicas imuno-his¬ toquímicas (HIGUCHI et al., 1993) têm mostrado associação entre infiltrado inflama- tório e a presença de T.cruzi no miocárdio de chagásicos crônicos, em até 87% dos casos. Da mesma forma, através do emprego da reação da polimerase em cadeia (PCR) em fragmentos miocárdicos de chagásicos crônicos, demonstrou-se QONES et al., 1993) que o DNA do T.cruzi, ou parte dele, estava presente nos focos inflamató¬ rios dos sete cardiopatas chagásicos crônicos analisados. Acresça-se a estes dados, outros (JORG & BAÉZ, 1993; LUZ et al., 1993) que revelam, através de técnicas de hemocultura, a presença do parasita no sangue circulante da quase totalidade dos chagásicos crônicos. 2 . 1 . 1 . 2 . Tubo digestivo No sistema digestivo, os processos patológicos fundamentais, cujas características básicas já foram descritas, são encontrados predominantemente nas camadas musculares e nos plexos nervosos intramurais das vísceras ocas. Há miosite focal com lesões das células musculares e dos componentes do interstício. Nos plexos intramurais, as lesões inflamatórias distribuem-se de forma irregular e imprevisível, encontrando-se gânglios aparentemente normais ao lado de outros alterados ou até completamente destruídos. O parasitismo tecidual é freqüente. 2 . 1 . 1 . 3 . Sistema Nervoso Além das lesões já referidas no sistema nervoso autônomo dos pacientes com manifestações neurológicas graves, há meningoencefalite multifocal, caracterizada pelo arranjo nodular do exsudato inflamatório constituído por células mononucleadas. Amastigotas do T.cruzi, com freqüência, são encontrados na intimidade dos focos inflamatórios ou em células gliais, no tecido adjacente. A meningoencefalite chagásica associa-se invariavelmente com a miocardite chagásica aguda usualmente intensa, sendo esta associação responsável pela gravidade do quadro e pela mortalidade nes- ses pacientes. Ao lado destes casos de envolvimento grave do SNC, existem outros com le- sões inflamatórias mais esparsamente distribuídas, com ou sem parasitas, aparente- mente sem repercussões clínicas. 2 . 1 . 1 . 4 . Outros órgãos Lesões morfológicas ocorrem também nos músculos esqueléticos, fígado, baço etc., porém são discretas e desprovidas de importância prática. 2 .1 .2 . Fase Crônica 2 . 1 . 2 . 1 . Forma indeterminada Do ponto de vista morfológico, as lesões cardíacas, na sua qualidade, são semelhantes às observadas na forma cardíaca da doença (ver adiante); entretanto, quantitativamente, apresentam-se bem menos acentuadas. Há cardite focal discreta em 80% dos casos e de grau moderado ou intenso em 20%. O comportamento morfo- lógico do sistema de condução, estudado em poucos casos, revela discretas lesões inflamatórias e/ou fibróticas ou ausência de alterações. Não há estudos morfológicos sistematizados abordando o SNAIC na forma indeterminada. Por ser focal e, em geral, discreta, a cardite não produz alterações funcionais, o que explica a ausência de sinais e sintomas e a normalidade do eletrocardiograma convencional. Não há, tampouco, aumento da área cardíaca, como se comprova ao Rx de tórax. Por outro lado, as lesões explicam os achados nos exames não invasivos de maior sensibilidade (ver capítulo: Forma Crônica Indeterminada). 2.1 .2 .2 . Forma Cardíaca A cardiopatia chagásica crônica, que tem como substrato morfológico fun- damental uma miocardite crônica progressiva e fibrosante (Figura 2), pode ser assintomática ou manifestar-se como síndrome congestiva e/ou com alterações do ritmo cardíaco e da condução do estímulo elétrico. Outras vezes, sua primeira manifestação é a morte súbita. Do ponto de vista morfológico, os corações dos chagásicos incluídos nesta forma da doença mostram epicardite, miocardite e endocardite parietal. O processo inflamatório com as características básicas detalhadas anteriormente tem intensidade variável. No miocárdio, o processo se mantém em atividade pela eclosão de repetidos focos flogósticos que tendem a confluir com o tempo, conferindo à lesão, nas suas fases mais avançadas, o aspecto zonal ou difuso. O infiltrado inflamatório, cujas características já foram descritas, enfilei¬ ra-se ao longo do endomísio, dissociando os feixe de fibras, afastando-os entre si e dos capilares sangüíneos. Desde as fases iniciais do processo há alterações degenerativo necróticas das fibrocélulas já expostas anteriormente. À medida que o processo evolui, a fibrose substitui as fibras cardíacas destruídas e afasta e circunda as demais fibrocélulas (Figura 2), que se atrofiam e podem desaparecer. Em conseqüência, o conjuntivo interrompe, parcial ou totalmente, miocardiócitos e fascículos musculares inteiros. A maioria das fibras não atingidas pelos processos degenerativo-necróticos se hipertrofiam, e a intensidade desta interrupção parece diretamente ligada a fibrose (CHAPADEI¬ RO, 1965). No sistema excito-condutor, além das mesmas lesões do miocárdio fun- cional, há dilatação e tortuosidade de vasos, infiltração por tecido adiposo e fibrose da íntima e média das arteríolas, com espessamentos da íntima. As alterações morfológicas combinam-se em proporções variáveis de caso para caso e, por vezes, apresentam caprichosa topografia (ROCHA, 1986; ANDRADE, 1974). A epicardite crônica é constante nestes chagásicos, sendo ora focal ora difusa, com predomínio do fenômeno exsudativo ou do produtivo. É ela que explica as lesões macroscópicas do epicárdio (placas, espessamentos monilifor¬ mes etc.). Lesões do SNAIC (Figura 3) (representadas por ganglionite, perigangli¬ onite, neurite e perineurite crônicas) são quase que constantes, sendo decor- rentes ou não da propagação da epicardite. Como já acentuado, as lesões iniciam-se na fase aguda e contribuem para a destruição neuronal que con- tinua na fase crônica da infecção. A qualidade e a intensidade das lesões neuronals, bem como a redução destas células, são variáveis de caso para caso (LOPES et al., 1987) . A endocardite é, em geral, discreta e exclusivamente parietal, podendo estar associada a trombose. As lesões miocárdicas são as principais responsáveis por alguns dos achados macroscópicos da cardiopatia chagásica crônica. Os aumentos de peso e volume do coração (Figura 4) observados em graus variáveis na quase totalidade dos portadores da forma cardíaca sintomática da DC, devem-se especialmente à hiper- trofia do miocárdio, embora outros fatores possam concorrer para sua instalação. A dilatação das cavidades cardíacas (em geral mais marcante à direita) e dos óstios átrio-ventriculares também concorrem para a cardiomegalia e para a insuficiência funcional da mitral e da tricúspide. Cerca de 55% a 60% dos corações dos portadores da forma cardíaca da doença, apresentam um peculiar adelgaçamento do vórtice cardíaco (Figura 5), que se conhece como lesão vorticilar (lesão de ponta, aneurisma de ponta, lesão atrófica do vórtice etc.). Há várias hipóteses sobre sua patogênese (LO- PES et al., 1987). Em cerca de 75% dos chagásicos falecidos subitamente e em 40% daque- les com insuficiência cardíaca observa-se aumento de volume (infartamento) dos linfonodos intrapericárdicos situados entre aorta e pulmonar. Nos primei- ros, o quadro histológico é de um estado reacional e nos segundos, de deple¬ ção linfocítica. Com relativa freqüência observa-se nos chagásicos crônicos, especial- mente naqueles com insuficiência cardíaca, trombos que têm como sede pre- ferencial o átrio direito e o ventrículo esquerdo (Figura 5), a partir do qual podem desprender-se embolos, principalmente para os pulmões, encéfalo, rins e baço, nos quais provoca conseqüências. É este o substrato da síndrome do tromboembolismo do cardiopata chagásico crônico. 2 . 1 . 2 . 2 . 1 . Correlação Anatomoclínica na Cardiopatia Chagásica Crônica Certo número de chagásicos assintomáticos desenvolve após vários anos sinto- matologia evidente. Esta pode ser caracterizada pelo predomínio das arritmias e/ou das manifestações de insuficiência cardíaca. Por vezes, a primeira manifestação da doença nos cardiopatas é a morte súbita inesperada. Na gênese das arritmias parece exercer papel de importância a inflama- ção do miocárdio, podendo produzir focos geradores de mecanismos de reen¬ trância ou aumento da automatização ventricular. A lesão do vortex tem sido correlacionada com arritmias e, em algumas ocasiões, estas podem ser abolidas pela ressecção cirúrgica da lesão. O acometimento do sistema excito-condutor do coração pelas lesões já descritas poderia explicar os diferentes tipos de bloqueios. No entender de alguns (BOGLIOLO, 1976), a diminuição da massa muscular miocárdica em conseqüência da inflamação e das lesões das fibrocélulas cardíacas (processos contínuos e progressivos) associada a interrupção de fibras e de fascículos miocárdios são os principais fatos anatômicos responsáveis pela insuficiência cardíaca congestiva nos cardiopatas chagásicos crônicos. Para que os megas se instalem, parece obrigatória a existência de lesões, inclu- sive destruição neuronal, no SNAIM (MENEGHELLI, 1985; ADAD et al., 1991). Entre- tanto, em sua patogênese e fisiopatologia é possível que, além destas lesões do SNA- IM, outras sejam necessárias. A fisiopatologia dos megas está exposta no esquema abaixo. 2.2.6. Forma Nervosa Muito discutida é a presença de alterações morfológicas sistematizadas no teci- do nervoso central que possam constituir o substrato anatômico de uma verdadeira forma crônica nervosa da doença. São necessários mais estudos para esclarecimento da questão. 2.2 .7 . Forma com Exacerbações Agudas Descrita inicialmente por Chagas em 1911. O cientista julgou desnecessário manter a individualidade desta forma (PRATA, 1990) em 1916. Nas últimas décadas, no entanto, o uso de imunodepressores, os transplantes de órgãos e o surgimento da AIDS criaram condições para a agudização da infecção pelo T.cruzi c o m graves reper- cussões orgânicas, especialmente encefálicas e cardíacas (ROCHA et al., 1994). Em virtude disso, esta forma tornou-se relativamente freqüente e deve ser considerada à parte, como inicialmente foi sugerido por Chagas. 2.2.8. Forma Congênita O primeiro caso humano de doença de Chagas congênita (DCC) foi comprova- do por Dao, em 1948, na Venezuela. Sua prevalência varia de país para país e, dentro destes, de região para região. No Brasil há áreas, como na Bahia, em que apresenta significativa prevalência (10.5%) e outras, como no Triângulo Mineiro e São Paulo, em que a freqüência é muito baixa. A passagem do T.cruzi da mãe ao filho se dá por via placentária, produzindo- se uma placentite aguda, em alguns casos com lesões numerosas e disseminadas e em outros escassas e focais. Na maioria das ocorrências, o parasitismo é acentuado. Nos casos de natimortalidade há, no produto da concepção, parasitismo e lesões inflamatórias mais freqüentes no sistema nervoso central, coração fígado, trato esofagogastrintestinal e pele. O óbito na DC congênita deve-se, em geral, a cardite, a meningoencefalite ou a infecções intercorrentes. Referências Bibliográficas ANDRADE, Z.A., 1974. Patologia do sistema excito-condutor do coração na miocardiopatia chagásica. Revista de Patologia Tropical, 3: 367-428. ANDRADE, S.G., GRIMAUD, J.A. & STOCKER-GUERRET, S., 1989. Sequential hanges in the corrective matrix components of the myocardium (fibronectin and laminin) and evolution of cardiac fibrosis in mice infected with Trypanosoma cruzi. Am. J . trop. Med. Hyg., 40. 252-260. BOGLIOLO, L., 1976. 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Notar o processo inflamatório com processos regressivos em alguns neurônios. HE 200%. Figura 4 Forma e volume de corações de cbagásicos crônicos (MS e ICC) comparados com coração controle. Hipertrofia mais evidente no coração (centro) de chagásico com morte súbita (MS) do que no portador de insuficiência cardtaca (IC, coração à direita). Neste siltimo, a dilata- ção mascara a biperirofia. 83 - - Edilson Rai Lopas a Edmundo Chopudelra Figura 5 Corte frontal de coração de chagásico crônico. Lesão vorticilar à esquerda em correspondência com a qual bá trombose. 84 5 D I A G N Ó S T I C O P A R A S I T O L Ó G I C O D A D O E N Ç A D E C H A G A S Egler Chiari Lúcia Maria da Cunha Galvão SUMÁRIO: 1.Introdução. 2.Diagnóstico Parasitológico na Fase Aguda. 3.Diagnóstico Parasitológico na fase Crônica. 4.Xenodiagnóstico. 5.Xenodiagnóstico Artificial. 6.Xenocultura. 7.Hemocultura. 8.lnoculação em Animais. 9.Cultura Celular In Vitro. 1 0 . Comentários. 11.Técnicas. 1 . Introdução O diagnóstico parasitológico na fase aguda da doença de Chagas é realizado pela demonstração de formas tripomastigotas do Trypanosoma cruzi em amostras de sangue diretamente ao exame microscópico. Nessa etapa, o número de parasitos na corrente sangüínea é geralmente bastante elevado. A fase crônica, que se segue ao estágio agudo da infecção, caracteriza-se por níveis baixos de parasitos circulantes e títulos altos de anticorpos específicos contra antígenos do T.cruzi Portanto, em indivíduos infectados, o diagnóstico da fase crôni- ca se baseia principalmente na presença de anticorpos anti-T.cruzi no soro, detecta- dos pelos testes usados na sorologia convencional, como imunofluorescência indireta (IFI), hemaglutinação (HA), reação imunoenzimática (ELISA), reação de Guerreiro- Machado ou fixação do complemento (RFC) (atualmente em desuso) e, mais recente- mente, radioimunoensaio. Esses testes são bastante sensíveis, mas resultados falso- positivos e falso negativos têm sido demonstrados nos diferentes procedimentos de diagnóstico presuntivo (Camargo & Takeda, 1979). Na fase crônica da infecção chagásica, os parasitos podem ser localizados por métodos indiretos, tais como o xenodiagnóstico e a hemocultura, os quais são alta- mente específicos, mas requerem procedimentos laboriosos. Geralmente esses méto- dos confirmam a presença do parasito em 50% dos indivíduos infectados realizando- se um único teste (Chiari et al., 1989; Galvão, 1990). Resultados recentes mostram que, com a realização de uma única hemocultura, a positividade alcançou 79% em um grupo de indivíduos chagásicos na fase crônica da infecção e com três hemoculturas a positividade alcançou 94% (Luz et al., 1994). No entanto, esses dados são de tão alta relevância que necessitam posterior confirmação por diferentes pesquisadores em locais distintos: outros grupos de pacientes e maior amostragem são desejáveis dentro de uma postura consensual. Neste capítulo descreveremos os diferentes métodos diretos e indiretos utiliza- dos para a detecção do T.cruzi. Discutiremos, também, vários aspectos da parasitemia dos indivíduos na fase crônica da infecção e a aplicabilidade desses métodos de diagnóstico antes e após a quimioterapia específica. Em relação a fatores ligados a técnica, é necessário que sejam observa- das as condições adequadas para colonização; seleção adequada das fases evolutivas; acondicionamento e transporte, especialmente quando se realiza trabalho de campo; manutenção de exemplares até o exame e condições mínimas para o exame dos triatomíneos, como, por exemplo, treinamento de pessoal e segurança para a execução do trabalho. Devem ser lembradas as variáveis relacionadas aos indivíduos, tais como naturalidade, fases da doença (aguda ou crônica), formas clínicas da doença (indeterminada, cardíaca ou digestiva), idade e sexo, tempo de evolução da doença e outras doenças associadas (Chiari, 1992). O pessoal técnico precisa ser adequadamente treina- do para evitar erros por ação de contaminantes de soluções diluentes que podem fornecer resultados falso-positivos nos testes de xenodiagnóstico. Os exames parasitológicos devem ser repetidos com certa freqüência para au- mentar as chances de comprovação dos parasitos no sangue na fase crônica de indi- víduos chagásicos, os quais muitas vezes apresentam parasitemias extremamente bai- xas, mas permanecendo detectáveis 50-60 anos após a infecção inicial (Lana & Chiari, 1986; Miles, 1979; Salgado et al., 1962). Em condições ideais, a hemocultura pode ser tão sensível quanto o xenodiagnóstico, mas sua aplicação em condições de campo não é viável, em função da necessidade de procedimentos assépticos. No entanto, é possível realizar o teste de hemocultura utilizando equipamentos existentes em pequenos hospitais, centros e postos de saúde em áreas rurais; no interior do Brasil, vários pesquisadores têm tirado proveito dessas facilidades locais. 4. Xenodiagnóstico O xenodiagnóstico é um método parasitológico indireto usado na doença de Chagas, sobretudo na fase crônica, quando os parasitos circulantes são escassos no sangue de indivíduos sorologicamente positivos. Na triagem de pacientes chagásicos, também pode ser empregado com fins terapêuticos, no controle do tratamento espe- cífico e no isolamento de cepas do T.cruzi. Embora seja praticamente impossível a padronização total desse método, a parcial ou mínima mostra-se viável, no sentido de avaliar os conhecimentos obtidos e permitir a preconização de novos modelos, com- parando-se os resultados obtidos em estudos clínicos e experimentais da doença de Chagas. Esse método, por ser de procedimento biológico complexo, sofre influência de vários fatores, apresentando uma série de variações conforme o objetivo que se pretende. Com base na nossa experiência e dados da literatura pertinente, os resultados obtidos nesses últimos anos sugerem o emprego de mais de uma espécie de triatomíneo, em número de 40 ninfas de determinado estádio. Em geral são usadas ninfas de 3º estádio quando as espécies são Triatoma infestans, Panstrongylus megistus, Rhodnius prolixus e ninfas de 1º estádio para Dipetalogaster maximus. Essas ninfas são distri- buídas em 10 exemplares por caixa, sendo que quatro caixas por espécie são aplica- das no braço e antebraço do indivíduo para que os insetos realizem o seu repasto sangüíneo. A utilização da segunda espécie estaria condicionada ao operacional, ten¬ dose como preferência, em primeiro lugar, o triatomíneo mais prevalente na região, que na maior parte do território brasileiro é o T.infestans e na Colômbia e Venezuela, por exemplo, é o Rhodnius prolixas, o qual deve ser evitado por causa das reações adversas. Tradicionalmente, o exame do xenodiagnóstico é realizado 30 e 60 dias após o repasto sangüíneo. As fezes e urina e/ou os intestinos dos triatomíneos, obtidos por compressão ou dissecção, são colocados em solução fisiológica e examinados ao microscópio em médio aumento para a pesquisa de formas epimastigotas e tripomastigotas metacíclicas do T.cruzi. Schenone et al. (1968, 1974) obtiveram positividade de 49,3% entre os pacientes chagásicos na fase crônica da infecção, utilizando quatro a oito caixas que continham cinco a dez triatomíneos e examinando-os 30-60 dias depois do repasto sangüíneo. Esse procedimento foi modificado posteriormente, reduzindo-se o tempo de exame para 25-30 dias após o repasto sangüíneo, semeando-se o material em meio LIT "Liver Infusion Tryptose" (Camargo, 1964), denominado de xenocultura (Bronfen et al., 1989). O principal objetivo desta técnica é permitir o fácil isolamento de cepas de T.cruzi, bem como servir de controle de qualidade do exame do xenodiagnóstico realizado no Laboratório em questão. Resumidamente, consiste em esterilizar previamente os triatomíneos alimenta- dos em solução de WHITE ( H C l 0,25g, NaCl 6,50g, HCl concentrado l,25ml, etanol 250ml e água destilada 750ml) por uma hora e trinta minutos. Um grupo de dez insetos de cada espécie é dissecado e feito um "pool" do conteúdo e paredes intestinais em solução salina tamponada. Este material é homogeneizado e triturado por fricção antes do exame ao microscópio para a verificação da presença de parasitos. A seguir semeia-se 2501 da suspensão em meio LIT com 6,6mg/ml de ampicilina sódica. As xenoculturas são incubadas a 26-28ºC e examinadas após 20 dias (Bronfen et al., 1989). 5. Xenodiagnóstico Artificial O xenodiagnóstico artificial é aceitável e pode ser utilizado em particularidades operacionais com a finalidade a que se destina, como, por exemplo, em hospitais nos quais não se admite a entrada de triatomíneos, no caso em que indivíduos hiperalérgicos apresentem reações adversas e/ou recusa por parte dos mesmos à aplicação do xenodiagnóstico. 6. Xenocultura Essa técnica facilita o isolamento de cepas de T.cruzi e controla a qualidade dos xenodiagnósticos realizados pela equipe. Ela também pode ser empregada para sistematizar os xenodiagnósticos negativos, mas não representa em geral acréscimo significativo na positividade dos exames. Na rotina em Laboratório sugere-se que não seja usada, todavia pode sê-lo em avaliações eventuais do xenodiagnóstico. 7 . Hemocultura O T.cruzi é um protozoário facilmente cultivado em inúmeros meios acelulares contendo componentes como sais, proteínas e derivados da hemina. Durante muitos anos, a hemocultura não era utilizada para o diagnóstico parasitológico da doença de Chagas na fase crônica, porque autores como Pedreira de Freitas (1952) e Pifano (1954) obtiveram distintamente resultados negativos ou positividade muito baixa. Por esta razão, o xenodiagnóstico era empregado como método de escolha para a comprovação parasitológica de indivíduos portadores da infecção chagásica, principalmente na fase crônica. Apesar disso, Chiari & Brener (1966) obtiveram 31,8% de positividade da hemocultura usando o meio LIT. A partir dessa época, a técnica de hemocultura começou a ganhar credibilidade entre os pesquisadores da área, abrindo novas possibilidades de tornar-se a fazer uso do sangue para cultura com a finalidade de diagnóstico da doença de Chagas median- te a utilização do meio líquido com semeadura direta. Importante trabalho nesse campo foi desenvolvido por Mourão & Mello (1975), que introduziram o procedimento de remover o plasma e lavar as células para remoção de anticorpos e outros fatores que poderiam aparentemente inibir o crescimento do T.cruzi. Mourão & Chiari (1975) realizaram hemoculturas seriadas em 15 pacientes na fase crônica da doença de Chagas semeando 0,2ml de sangue em meio LIT e encontraram 86,6% de positividade. Nesse mesmo ano, Chiari & Dias (1975) re- produziram independentemente a técnica citada acima, iniciando um projeto de trabalho no qual o volume de sangue coletado era aumentado de 10ml para 30ml, a fim de melhorar a sensibilidade do método. Além do meio de cultura LIT, os autores empregaram também o meio de Warren (1960) e, além da praticidade, obtiveram eficiência semelhante. Outras abordagens experimentais com o meio de Warren mostraram resultados positivos usando de 10 a 20 tripomastigotas (Neal & Miles, 1977a e b) . Recentemente, em trabalho realizado na Argentina, Jorg & Baez (1993) de- monstraram 86,6% de positividade com hemoculturas seriadas em um grupo de 90 pacientes na fase crônica da doença de Chagas. Simultaneamente, no Brasil, Luz et al. (1994) também encontraram 94% de positividade em pacientes chagásicos quan- do efetuaram hemoculturas seriadas. Mourão & Chiari (1975) comprovaram 86,6% de pacientes com a hemocultura seriada e já naquela época recomendavam esta técnica para ser aplicada na triagem de pacientes em ensaios clínicos ou outros tipos de pesquisa que indiquem a necessidade de um prévio diagnóstico parasitológico. A técnica de hemocultura utilizada repetidamente em pacientes chagásicos submetidos a quimioterapia específica permitiu concluir que se encontravam cura- dos (Galvão et al., 1993). Esses dados sugeriram o uso da hemocultura ou o desse teste associado ao xenodiagnóstico no diagnóstico parasitológico e controle de cura da doença de Chagas humana crônica. A importância desse método é a de também permitir a comprovação de fato dos pacientes candidatos a ensaios clíni- cos e estabelecer a eficácia das drogas candidatas a quimioterapia específica. Nesta linha de raciocínio, é importante assinalar que o xenodiagnóstico apre¬ 10 . Comentários Os resultados obtidos mediante o uso dos testes parasitológicos efetuados em diferentes períodos mostram que há grande diversidade nos padrões de parasitemia dos pacientes na fase crônica da doença de Chagas. Quando se repete o xenodiagnóstico ou a hemocultura no mesmo paciente duas, três ou mais vezes, são obtidos freqüentemente muitos resultados negativos. No entan- to, pequeno número de pacientes apresentam positividade constante no xenodiagnóstico (Cançado & Brener, 1979) e hemocultura (Chiari et al., 1989, Galvão, 1990). A idade do paciente e a duração da fase crônica da infecção chagásica podem aparentemente afetar a positividade das hemoculturas. É possível relaci- onar-se a parasitemia detectada na fase aguda aos resultados obtidos com o teste de hemocultura na fase crônica da infecção desses pacientes. Quando o parasito é localizado por métodos diretos na fase aguda da doença, a taxa de positividade das hemoculturas apresenta-se aparentemente maior na fase crônica. Existem várias condições, como o volume de sangue usado, remoção do plasma, meio de cultura adotado, quantidade de insetos utilizados para o xenodiagnóstico, o número de espécies de triatomíneos, sendo que a susceptibilidade desses insetos ao T.cruzi mostra-se variável de acordo com a espécie escolhida (Bronfen et al., 1989; Cerisola et al., 1974; Chiari et al., 1989). Após muitos anos de pesquisas realizadas nesse campo por diferentes autores e métodos, tornou-se possível demonstrar que o limite de positividade dos testes parasitológicos detectam aproximadamente 50% de pacientes na fase crônica da doença de Chagas (Chiari & Brener, 1966 - 42,8%; Schenone et al., 1974 - 49,3%; Mourão & Melo, 1975 - 45%; Chiari & Dias 1975 - 43,7%; Albesa & Eraso, 1983 - 48%; Galvão et al., 1993 - 47%; Bronfen et al., 1989 - 49,2%). Mais recentemente, Jorg & Baez (1993), realizando hemoculturas seriadas, detectaram o parasito em 86% dos pacientes chagásicos crônicos; Luz et al. (1994), introduzindo modificações na técnica e também efetuando hemoculturas seriadas, obtiveram 94% de positividade em pacientes na fase crônica da doença de Chagas. A confirmação do parasito em 100% dos indivíduos na fase crônica da infecção chagásica pode vir a ser atingida pela introdução de técnicas mais sensíveis. Acredi- tamos que a biologia molecular suprirá a deficiência dessa tecnologia pelo emprego de sondas de DNA ou kDNA sensíveis e específicas capazes tanto de detectar o DNA de tripomastigotas de T.cruzi, quanto a reação em cadeia da polimerase (PCR), assim podendo solucionar muito em breve o problema do diagnóstico parasitológico específico. O uso simultâneo dos testes de hemocultura e xenodiagnóstico para a doença de Chagas, sugerido por Chiari & Brener (1966), deve ser empregado principalmen- te quando o sangue for coletado em trabalhos de campo e em áreas onde os pacien- tes apresentam baixos níveis de parasitos circulantes. Para o xenodiagnóstico é acon- selhável adotar mais que uma espécie de triatomíneo, por exemplo, T.infestans e P. megistus ou D. maximus. Em triagens clínicas ou ensaios de drogas, a hemocultura e o xenodiagnóstico devem ser repetidos em diferentes ocasiões no mesmo pacien- te duas vezes ou mais. 1 1 . Técnicas a) Meio LIT O meio de cultura LIT foi inicialmente formulado na década de 60 pelo Dr. R. Yaeger e logo adaptado em muitos laboratórios. Desde a publicação, em 1964, do pri- meiro trabalho do crescimento do T.cruzi e m LIT por Camargo, este meio axênico tem sido usado com sucesso. Em alguns laboratórios, culturas de T.cruzi são mantidas por passagens sucessivas em meio LIT durante quase 20 anos. * Hemina pode ser dissolvida em trietanolamina ou hidróxido de sódio. Em substi- tuição à hemina é possível usar o lisado de hemoglobina. ** Soro bovino fetal ou bovino pode ser empregado, embora se recomende um pré- teste porque às vezes surgem problemas com algumas partidas de soro. Preparação do LIT Todos os componentes do meio devem ser dissolvidos em água e o pH ajusta- do para 7,2 com ácido clorídrico concentrado (HCl). O meio é filtrado através de membranas EKS-Seitz, sobre pressão negativa, ou através de filtro Millipore, sobre pressão positiva. Antes da filtração, o meio deve ser aquecido por 1 hora na tempera- tura de 680C para a inativação do soro. Preferimos não adicionar antibióticos ao meio LIT, mas tanto ampicilina (10mg/ml) quanto penicilina mais estreptomicina podem ser usados (100.000 Unidades e 100 microgramas, respectivamente, por litro de meio). Após a fíltração e a inativação, é possível estocar o meio LIT a 20DC por vários meses. Referências Bibliográficas ALBESA, I. & ERASO, A.J., 1983. Primary isolation of Trypanosoma cruzi by hemoculture: influence of glucose concentration. American Journal of Tropical Medicine Hygiene, 32: 963- 967. AZEVEDO, L.G.R., 1945. Patogenia da moléstia de Chagas. 2 Congresso Médico Paulista (São Paulo). 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