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A Cruz de Cristo - John Stott, Notas de estudo de Cultura

A Cruz de Cristo - John Stott

Tipologia: Notas de estudo

2016

Compartilhado em 19/03/2016

adriana-fagundes-7
adriana-fagundes-7 🇧🇷

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Baixe A Cruz de Cristo - John Stott e outras Notas de estudo em PDF para Cultura, somente na Docsity! JOHN STOTT A CRUZ DE CRISTO MAIS DE 22 000 EXEMPLARES VENDIDOS EEN ss nas © 1986, de John Stott Título do original The Cross of Christ EDITORA VIDA Rua Júlio de Castilhos, 280 CEP 03059-000 São Paulo, SP Tel.:0xx 11 6618 7000 Fax: 0xx 11 6618 7050 www.editoravida.com.br www.vidaacademica.net Capa: Douglas Lucas Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Stott, John A cruz de Cristo / John Stott: tradução João Batista — São Paulo : Editora Vida, 2006. Título original: The Cross of Christ. Bibliografia ISBN 85-7367-146-7 1. Jesus Cristo - Crucificação 2. Redenção I. Título. Índices para catálogo sistemático 1. Jesus Cristo : Crucificação : Teologia cristã 232.963 Digitalização, revisão e formatação de: Fabrício Valadão Batistoni www.portaldetonando.com.br/forumnovo/ 2 princípio ao fim. O que Vincent Taylor não quis aceitar não foi a doutrina em si, mas as cruezas de pensamento e expressão das quais os advogados da substituição têm, com bastante freqüência, sido culpados. Minha segunda surpresa, em vista da centralidade da cruz de Cristo, é que nenhum livro sobre este tópico foi escrito por um escritor evangélico para leitores sérios (até dois ou três anos atrás) por quase meio século. É verdade, surgiram vários livros pequenos, e apareceram algumas obras de peso. Gostaria de prestar tributo especial aos notáveis labores neste campo do Dr. Leon Morris, de Melbourne, Austrália. O seu livro Pregação Apostólica da Cruz (1955) deixou-nos todos em dívida, e alegro-me de que ele tenha trazido o conteúdo da obra ao alcance dos leigos em A Expiação (1983). Ele se tomou mestre da vasta literatura de todas as épocas sobre este tema, e seu livro A Cruz no Novo Testamento (1965) permanece, provavelmente, o exame mais completo hoje disponível. Dessa obra cito com caloroso endosso sua afirmativa de que "a cruz domina o Novo Testamento". Todavia, até à recente publicação do livro de Ronald Wallace intitulado A Morte Expiatória de Cristo (1981) e do de Michael Green A Cruz Vazia de Jesus (1984), não conheço outro livro evangélico para os leitores que tenho em mente, desde a obra de H. E. Guillebaud Por que a Cruz? (1937), que foi um dos primeiros livros editados pela IVF. Foi um livro corajoso, que enfrentou diretamente os críticos da expiação substitutiva com três perguntas: (1) "é cristã?"; (isto é, compatível com os ensinos de Jesus e seus apóstolos); (2) "é imoral?" (isto é, compatível ou incompatível com a justiça); e (3) "é incrível?" (isto é, compatível ou incompatível com problemas como o tempo e a transferência da culpa. Meu interesse é um pouco mais abrangente, pois este não é um livro apenas sobre a expiação, mas também sobre a cruz. Depois dos três capítulos introdutórios que formam a Primeira Parte, chego, na Segunda Parte, ao que chamei de "o coração da cruz", na qual argumento em favor de uma compreensão verdadeiramente bíblica das noções de "satisfação" e "substituição". Na Terceira Parte passo a três grandes realizações da cruz, a saber, salvar os pecadores, revelar a Deus e vencer o mal. A Quarta Parte, porém, trata de áreas que muitas vezes são omitidas nos livros sobre a cruz, isto é, o que significa a comunidade cristã "viver sob a cruz". Procuro mostrar que a cruz a tudo transforma. Ela dá um relacionamento novo de adoração a Deus, uma compreensão nova e equilibrada de nós mesmos, um incentivo novo para nossa missão, um novo amor para com nossos inimigos e uma nova coragem para encarar as perplexidades do sofrimento. Ao desenvolver o meu tema, conservei em mente o triângulo Escritura, tradição e mundo moderno. Meu primeiro desejo foi ser fiel à Palavra de Deus, permitindo que ela diga o que tem para dizer e não pedindo que ela diga o que eu gostaria que ela dissesse. Não há alternativa à exegese textual cuidadosa. Em segundo lugar, procurei partilhar alguns dos frutos das minhas leituras. Ao procurar compreender a cruz, não podemos ignorar as grandes obras do passado. Desrespeitar a tradição e a teologia histórica é desrespeitar o Espírito Santo que tem ativamente iluminado a igreja em todos os séculos. Então, em terceiro lugar, tentei compreender a Escritura, não apenas à sua própria luz e à luz da tradição, mas também com relação ao mundo contemporâneo. Perguntei o que a cruz de Cristo diz para nós que vivemos no final do século vinte. Ao ousar escrever (e ler) um livro a respeito da cruz, há, é claro, um grande perigo de presunção. Isto, em parte, advém do fato de que o que realmente aconteceu quando "Deus estava reconciliando consigo mesmo o mundo em Cristo" é um mistério cujas profundezas passaremos a eternidade examinando; e, em parte, porque seria muitíssimo impróprio fingir um frio desprendimento à medida que contemplamos a cruz de Cristo. Quer queiramos, quer não, estamos envolvidos. Nossos pecados o colocou aí. De sorte que, longe de nos elogiar, a cruz mina nossa justiça própria. Só podemos nos aproximar dela com a cabeça curvada e em espírito de contrição. E aí permanecemos até que o Senhor Jesus nos conceda ao coração sua palavra de perdão e aceitação, e nós, presos por seu amor, e transbordantes de ação de graças, saíamos para o mundo a fim de viver as nossas vidas no serviço dele. Sou grato a Roger Beckwith e a David Turner por terem lido porções do manuscrito e por terem feito úteis comentários. Agradeço a participação de meus quatro assistentes mais recentes — Mark Labberton, Steve Ingraham, Bob Wismer e Steve Andrews. Steve Andrews, como é sua característica, foi meticuloso na leitura do manuscrito, na compilação da bibliografia e dos índices, e na leitura e correção das provas. Reservo, porém, para o final, meus agradecimentos sinceros a Frances Whitehead, que em 1986 completou trinta anos como minha secretária. Este livro é um dos muitos que ela datilografou. Jamais poderei elogiar em demasia sua eficiência, ajuda, lealdade e entusiasmo constante pela obra do Senhor. Com grande gratidão dedico-lhe este livro. 5 Primeira Parte Aproximando-se da Cruz Natal de 1985 John Stott 1 A Centralidade da Cruz Conhece o leitor o quadro de Holman Hunt, líder da Irmandade Rafaelita, intitulado "A Sombra da Morte"? Ele representa o interior da carpintaria de Nazaré. Jesus, nu até a cintura, está em pé ao lado de um cavalete de madeira sobre o qual colocou a serra. Seus olhos estão erguidos ao céu, e seu olhar é de dor ou de êxtase, ou de ambas as coisas. Seus braços também estão estendidos acima da cabeça. O sol da tarde, entrando pela porta aberta, lança, na parede atrás dele, uma sombra negra em forma de cruz. A prateleira de ferramentas tem a aparência de uma trave horizontal sobre a qual suas mãos foram crucificadas. As próprias ferramentas lembram os fatídicos prego e martelo. Em primeiro plano, no lado esquerdo, uma mulher está ajoelhada entre as aspas de madeira. Suas mãos descansam no baú em que estão guardadas as ricas dádivas dos magos. Não podemos ver a face da mulher, pois ela se encontra virada. Mas sabemos que é Maria. Ela parece sobressaltar-se com a sombra em forma de cruz que seu filho lança na parede. Os pré-rafaelitas têm fama de serem sentimentais. Contudo, eram artistas sérios e sinceros, e o próprio Holman Hunt estava decidido, conforme ele mesmo disse, a "batalhar contra a arte frívola da época" — o tratamento superficial de temas banais. Ele passou os anos de 1870 a 1873 na Terra Santa, onde pintou "A Sombra da Morte" em Jerusalém, no telhado da sua casa. Embora a idéia historicamente seja fictícia, é, contudo, teologicamente verdadeira. Desde a infância de Jesus, deveras desde o seu nascimento, a cruz lança uma sombra no seu futuro. Sua morte se encontrava no centro da sua missão. E a igreja sempre reconheceu essa realidade. Imagine um estranho fazendo uma visita à Catedral de São Paulo em Londres. Tendo sido criado numa cultura não cristã, o visitante quase nada sabe a respeito do Cristianismo. Todavia, ele é mais que um simples turista; tem interesse por obras de arte e deseja aprender. Descendo a Rua Fleet, ele se impressiona com a grandeza das proporções do edifício, e se admira de que Sir Christopher Wren pudesse ter concebido um prédio desses depois do Grande Incêndio de Londres em 1666. A proporção que seus olhos tentam abarcar a tudo, ele não consegue deixar de perceber a enorme cruz dourada que domina a cúpula. Ele entra na catedral e vai até seu ponto central, e pára sob a cúpula. Tentando compreender o tamanho e a forma do edifício, ele se conscientiza de que a planta baixa, que consiste de nave e transeptos, é cruciforme. Andando ao redor, ele observa que cada capela lateral contém o que lhe parece uma mesa, sobre a qual, proeminentemente exposta, está uma cruz. Ele desce à cripta a fim de ver os sepulcros de homens famosos como o próprio Sir Christopher Wren, Lord Nelson e o duque de Wellington: em cada um deles encontra-se gravada ou estampada em relevo uma cruz. Voltando para cima, ele resolve assistir ao culto que está prestes a começar. O homem ao seu lado usa uma pequena cruz na lapela, e a senhora do seu outro lado leva uma cruz no colar. Seus olhos agora observam o vitral colorido da janela ao leste. Embora de onde está ele não possa ver os detalhes, percebe, porém, que o vitral contém uma cruz. De repente, a congregação se põe de pé. Entram o coro e os clérigos, precedidos por alguém que carrega uma cruz processional. Entram cantando um hino. O visitante olha para o boletim de culto e lê as palavras de abertura: No calvário se ergueu uma cruz contra o céu, Como emblema de afronta e de dor. Mas eu amo essa cruz: foi ali que Jesus Deu a vida por mim, pecador. Do que vem a seguir, ele chega a compreender que está testemunhando um culto de Santa Comunhão, e que este enfoca a morte de Jesus. Pois quando as pessoas que se encontram ao seu redor vão ao altar para receber o pão e o vinho, o ministro lhes fala do corpo e do sangue de Cristo. O culto termina com o cântico de outro hino: 6 Ao contemplar a tua cruz E o que sofreste ali, Senhor, Sei que não há, ó meu Jesus, Um bem maior que o teu amor. Não me desejo gloriar Em nada mais senão em ti; Pois que morreste em meu lugar, Teu, sempre teu, serei aqui. Embora a congregação se esteja dispersando, uma família fica para trás. Trouxeram o filho para ser batizado. Juntando-se a eles na frente, o visitante vê o ministro primeiro derramar água sobre a criança e então fazer o sinal da cruz na sua testa, dizendo: "Eu te marco com o sinal da cruz a fim de mostrar que não te deves envergonhar de confessar a fé do Cristo crucificado. . ." O estranho deixa a catedral impressionado, mas intrigado. A insistência, repetida por palavra e símbolo, à centralidade da cruz foi admirável. Contudo, levantaram-se questões em sua mente. Um pouco da linguagem usada pareceu exagerada. Será que os cristãos, por causa da cruz, realmente relegam o mundo como perda, e se gloriam somente nela, sacrificando tudo por ela? Pode a fé cristã ser resumida corretamente como a "fé do Cristo crucificado"? Quais as bases, pergunta-se ele, dessa concentração na cruz de Cristo? O sinal e o símbolo da cruz Todas as religiões e ideologias têm seu símbolo visual, que exemplifica um aspecto importante de sua história ou crenças. A flor de loto, por exemplo, embora tenha sido usada pelos chineses, egípcios e hindus antigos com outros significados, hoje está particularmente associada ao budismo. Por causa de sua forma de roda, pensa-se que represente o círculo do nascimento e da morte ou a emergência da beleza e da harmonia das águas turvas a partir do caos. Às vezes representa-se Buda entronizado na flor de loto totalmente aberta. O judaísmo antigo, com medo de quebrar o segundo mandamento, que proíbe a fabricação de imagens, evitava sinais e símbolos visuais. O judaísmo moderno, porém, emprega o assim chamado Escudo ou Estrela de Davi, um hexagrama formado pela combinação de dois triângulos eqüiláteros. O Escudo fala da aliança de Deus com Davi de que o trono deste seria estabelecido para sempre e que o Messias viria da sua descendência. O islã, a outra fé monoteísta que se levantou no Oriente Médio, é simbolizado pelo crescente ou meia-lua, pelo menos na Ásia Ocidental. Originalmente o crescente representava uma fase da lua e era o símbolo de soberania em Bizâncio antes da conquista muçulmana. As ideologias seculares deste século também possuem seus sinais que são universalmente reconhecíveis. O martelo e a foice do marxismo, adotados em 1917 pelo governo soviético e retirados de um quadro belga do século dezenove, representam a indústria e a agricultura. O fato de serem cruzados significa a união de operários e camponeses, da fábrica e do campo. Da suástica, por outro lado, há vestígios de 6.000 anos atrás. As pontas se dobram para a direita, simbolizando ou o movimento do sol no céu, ou o ciclo das quatro estações, ou o processo de criatividade e prosperidade ("svasti" em sânscrito significa "bem-estar"). No início deste século, porém, alguns alemães adotaram a suástica como símbolo da raça ariana. Então Hitler se apossou dela e ela passou a representar a sinistra intolerância racial nazista. O Cristianismo, portanto, não é exceção quanto a possuir um símbolo visual. Todavia, a cruz não foi o primeiro. Por causa das selvagens acusações dirigidas contra os cristãos, e da perseguição a que estes foram submetidos, eles tiveram de "ser muito circunspectos e evitar ostentar sua religião. Assim a cruz, agora símbolo universal do Cristianismo, a princípio foi evitada, não somente por causa da sua associação direta com Cristo, mas também em virtude de sua associação vergonhosa com a execução de um criminoso comum."1 De modo que nas paredes e tetos das catacumbas (sepulcros subterrâneos na periferia de Roma, onde os cristãos perseguidos provavelmente se esconderam), os primeiros motivos cristãos parecem ter sido ou pinturas evasivas de um pavão (que se dizia simbolizar a imortalidade), uma pomba, o louro dos atletas ou, em particular, de um peixe. Somente os iniciados saberiam, e ninguém mais poderia adivinhar que ichthys ("peixe") era o acrônimo de Iesus Christos Theou Huios Soter ("Jesus Cristo Filho de Deus Salvador"). Mas o peixe não permaneceu como símbolo cristão, sem dúvida porque a associação entre Jesus e o peixe era meramente acronímica (uma disposição fortuita de letras) e não possuía nenhuma importância visual. Um pouco mais tarde, provavelmente durante o segundo século, os cristãos perseguidos parecem ter preferido pintar temas bíblicos como a arca de Noé, Abraão matando o cordeiro no lugar de Isaque, Daniel na cova dos leões, seus três amigos na fornalha de fogo, Jonas sendo vomitado pelo peixe, alguns batismos, um pastor carregando uma ovelha, a cura do paralítico e a ressurreição de Lázaro. Tudo isso simbolizava a redenção de 7 encontra-se hoje no Museu Kircherian de Roma. Qualquer que tenha sido a origem da acusação do culto ao burro (atribuída tanto a judeus quanto a cristãos), era o conceito da adoração a um homem que estava sendo exposto ao motejo. Detectamos a mesma nota de escárnio em Luciano de Samosata, satirista pagão do segundo século. Em O Passamento de Peregrino (um convertido cristão fictício a quem ele apresenta como charlatão), Samosata difama os cristãos, dizendo que "adoravam o próprio sofista crucificado e viviam sob suas leis". A perspectiva de Jesus O fato de a cruz se tornar um símbolo cristão, e que os cristãos, teimosamente, se recusaram, apesar do ridículo, a descartá-lo em favor de alguma coisa menos ofensiva, só pode ter uma explicação. Significa que a centralidade da cruz teve origem na mente do próprio Jesus. Foi por lealdade a ele que seus seguidores se apegaram com tanta tenacidade a esse sinal. Que evidência há, pois, de que a cruz se encontrava no centro da perspectiva do próprio Jesus? Nosso único vislumbre da mente em desenvolvimento do menino Jesus nos é dado na história de como, com a idade de 12 anos, ele foi levado a Jerusalém na época da Páscoa e então, por engano, deixado para trás. Quando seus pais o encontraram no templo, "assentado no meio dos mestres, ouvindo-os e interrogando-os", eles o repreenderam. Disseram que o procuravam aflitos. "Por que me pro-curáveis?" respondeu ele com inocente espanto. "Não sabíeis que me cumpria estar na casa de meu Pai?" (Lucas 2:41-50). Lucas conta a história com uma agonizante economia de detalhes. Portanto, devemos ter cuidado em não colocar nela mais do que a própria narrativa justifica. Isto, porém, podemos afirmar, que já com a idade de 12 anos Jesus se referia a Deus como seu "Pai" e também sentia uma compulsão interior de se ocupar com os assuntos dele. Ele sabia possuir uma missão. Seu Pai o tinha enviado ao mundo com um propósito. Essa missão ele devia realizar; esse propósito ele devia cumprir. E estes emergem gradativamente na narrativa dos Evangelhos. Os evangelistas sugerem que o batismo e a tentação de Jesus foram ocasiões em que ele se comprometeu em seguir o caminho de Deus em vez do caminho do diabo, o caminho do sofrimento e da morte em vez do caminho da popularidade e da fama. Contudo, Marcos (acompanhado por Mateus e Lucas) aponta um evento posterior no qual Jesus começou a ensinar claramente sua missão. Foi o ponto mais importante de seu ministério público. Tento-se retirado com os apóstolos para o distrito norte, nos arredores de Cesaréia de Filipe, aos pés do monte Hermom, ele lhes fez a pergunta direta sobre quem eles pensavam que ele era. Quando Pedro respondeu que ele era o Messias de Deus, imediatamente Jesus "advertiu-os de que a ninguém dissessem tal coisa a seu respeito" (Marcos 8:29-30). Esta ordem estava de acordo com suas instruções prévias acerca de guardarem o assim chamado "segredo messiânico". Contudo, agora algo novo aconteceu: Jesus então começou a ensinar-lhes que era necessário que o Filho do homem sofresse muitas coisas, fosse rejeitado pelos anciãos, pelos principais sacerdotes e pelos escribas, fosse morto e que depois de três dias ressuscitasse. E isto ele expunha claramente (Marcos 8:31-32). "Claramente" é tradução de parresia, cujo significado é "com liberdade de discurso", ou "abertamente". Não devia haver segredo acerca do assunto. O fato de sua messianidade havia sido mantido em segredo porque o povo tinha entendido mal o seu caráter. A expectativa messiânica popular era de um líder político revolucionário. João nos diz que no auge da popularidade galiléia de Jesus, depois de alimentar os cinco mil, as multidões tinham querido "arrebatá-lo para o proclamarem rei" (João 6:15). Agora que os apóstolos haviam claramente reconhecido e confessado a sua identidade, contudo, ele podia explicar a natureza de sua messianidade, e fazê-lo abertamente. Pedro censurou-o, horrorizado pelo destino que ele havia predito para si mesmo. Mas Jesus repreendeu a Pedro com palavras fortes. O mesmo apóstolo que, ao confessar a messianidade divina de Jesus, tinha recebido uma revelação do Pai (Mateus 16:17), havia sido enganado pelo diabo, com o intuito de negar a necessidade da cruz. "Arreda! Satanás", disse Jesus, com uma veemência que deve ter assustado os seus ouvintes. "Porque não cogitas das coisas de Deus, e, sim, das dos homens" (Marcos 8:31-33).15 Em geral esse incidente é tido como a primeira "predição da paixão". Já tinha havido alusões passageiras (exemplo: Marcos 2:19-20); mas essa foi bem direta. A segunda alusão foi feita um pouco mais tarde, enquanto Jesus passava, incógnito, pela Galiléia. Disse ele aos Doze: O Filho do homem será entregue nas mãos dos homens, e o matarão; mas, três dias depois da sua morte, ressuscitará (Marcos 9:31). Marcos afirma que os discípulos não compreenderam o que ele queria dizer, e tiveram medo de lhe perguntar. Mateus acrescenta que "se entristeceram grandemente" (Mateus 17:22-23). Foi este, provavelmente, o tempo em 10 que, segundo Lucas, Jesus "manifestou no semblante a intrépida resolução de ir para Jerusalém" (9:51). Ele estava decidido a cumprir o que fora escrito a seu respeito. Jesus fez a terceira "predição da paixão" quando se dirigiam à Cidade Santa. Marcos a introduz com uma gráfica descrição do espanto que a resolução do Senhor inspirou nos discípulos: Estavam de caminho, subindo para Jerusalém, e Jesus ia adiante dos seus discípulos. Esses se admiravam e o seguiam tomados de apreensões. E Jesus, tornando a levar à parte os doze, passou a revelar-lhes as coisas que se lhe deviam sobrevir, dizendo: Eis que subimos para Jerusalém e o Filho do homem será entregue aos principais sacerdotes e aos escribas; condená-lo-ão à morte e o entregarão aos gentios; hão de escarnecê-lo, cuspir nele, açoitá-lo e matá-lo; mas depois de três dias ressuscitará. Lucas acrescenta o seu comentário de que "vai cumprir-se ali tudo quanto está escrito por intermédio dos profetas, no tocante ao Filho do homem" (Lucas 18:31-34).16 Esta repetição tripla da predição da paixão acrescenta uma nota de solenidade à narrativa de Marcos. É desta forma que ele, delibera-damente, prepara seus leitores, como Jesus, deliberadamente, preparou os Doze para os terríveis eventos que estavam pela frente. Ajuntando as três predições, a ênfase mais impressionante não é que Jesus seria traído, rejeitado e condenado por seu próprio povo e seus líderes, nem que eles o entregariam aos gentios que dele escarneceriam e o matariam, nem que depois de três dias ele ressurgiria dentre os mortos. Nem é tampouco que Jesus se designava de "Filho do homem" (a figura celestial a quem Daniel viu em sua visão, vindo nas nuvens do céu, recebendo autoridade, glória e poder soberano, e recebendo adoração das nações) e, contudo, paradoxalmente, afirmava que, como Filho do homem, ele sofreria e morreria, combinando assim, com ousada originalidade, as duas figuras messiânicas do Antigo Testamento, a do Servo Sofredor de Isaías 53, e a do Filho do homem reinante de Daniel 7. Mais impressionante ainda é a determinação que ele tanto expressou como exemplificou. Ele devia sofrer, ser rejeitado e morrer, disse ele. Tudo o que fora escrito a seu respeito na Escritura devia ser cumprido. Assim, ele se dirige para Jerusalém e vai adiante dos Doze. Ele instantaneamente reconheceu que o comentário negativo de Pedro era de procedência satânica e, portanto, instantaneamente o repudiou. Embora essas três predições formem um trio óbvio por causa da sua estrutura e palavreado semelhante, os Evangelhos registram pelo menos mais oito ocasiões em que Jesus se referiu à sua morte. Descendo do monte onde havia sido transfigurado, ele advertiu de que sofreria nas mãos dos seus inimigos assim como João Batista havia sofrido,17 e em resposta ao pedido injuriosamente egoísta de Tiago e João, que desejavam os melhores lugares no reino, disse que ele próprio tinha vindo para servir, não para ser servido, e "para dar a sua vida em resgate de muitos".18 As restantes seis alusões foram todas feitas durante a última semana da sua vida, à proporção que a crise se aproximava. Ele via a sua morte como a culminância de séculos de rejeição judaica da mensagem de Deus e predisse que o juízo divino traria um fim ao privilégio nacional judaico.19 Então na terça- feira, mencionando a páscoa, ele disse que ia ser "entregue para ser crucificado"; na casa em Betânia ele descreveu o perfume derramado na sua cabeça como em preparação para o seu sepultamento; no cenáculo ele insistiu em que o Filho do homem iria assim como dele estava escrito, e deu-lhes pão e vinho como emblema do seu corpo e sangue, assim prefigurando sua morte e requisitando sua comemoração. Finalmente, no jardim do Getsêmani ele recusou ser defendido por homens ou anjos, pois "como, pois, se cumpririam as Escrituras, segundo as quais assim deve suceder?"20 Desta forma, os evangelistas sinóticos dão testemunho comum ao fato de que Jesus tanto previu claramente quanto repetidamente predisse a aproximação da sua morte. João omite estas predições precisas. Contudo, ele dá testemunho do mesmo fenômeno mediante suas sete referências à "hora" de Jesus (geralmente hora, mas uma vez kairos, "tempo"). Era a hora do seu destino, na qual ele deixaria o mundo e voltaria ao Pai. Além disso, sua hora estava sob o controle do Pai, de modo que a princípio ainda não havia chegado, embora no final ele diria confiantemente que ela havia chegado. Quando Jesus disse a sua mãe nas bodas de Caná, depois que o vinho acabara, e a seus irmãos, quando queriam que ele subisse para Jerusalém e se manifestasse publicamente: "A minha hora ainda não chegou", o significado era claro. Mas João queria que seus leitores detectassem o significado mais profundo, embora a mãe e os irmãos de Jesus não o tivessem percebido.21 João continua a partilhar este segredo com seus leitores, e o usa a fim de explicar por que as afirmativas aparentemente blasfemas de Jesus não levaram à sua prisão. "Então procuravam prendê-lo", comenta ele, "mas ninguém lhe pôs a mão, porque ainda não era chegada a sua hora".22 Somente quando Jesus chega a Jerusalém pela última vez é que João torna explícita a referência. Quando alguns gregos pediram para vê-lo, a princípio ele disse: "E chegada a hora de ser glorificado o Filho do homem", e então, depois de falar claramente da sua morte, ele prossegue: "Agora está angustiada a minha alma, que direi 11 eu? Pai, salva-me desta hora? Mas precisamente com este propósito vim para esta hora. Pai, glorifica o teu nome."23 Então, duas vezes no cenáculo, ele fez referências finais a que o tempo havia chegado para que ele deixasse o mundo e fosse glorificado.24 Por mais incertos que possamos nos sentir acerca das primeiras alusões à sua "hora" ou "tempo", não podemos ter dúvidas a respeito das últimas três. Pois Jesus especificamente chamou a sua "hora" de o tempo de sua "glorificação", o qual (como veremos mais tarde), começou com sua morte, e acrescentou que não podia pedir que fosse livrado dela porque era este o motivo de ele ter vindo ao mundo. Deveras, não é provável que o paradoxo registrado por João tenha sido acidental, que a hora pela qual ele tinha vindo era a hora em que o deixava. Marcos torna a questão ainda mais explícita ao identificar a sua "hora" com o seu "cálice".25 Tendo esta evidência, suprida pelos escritores dos Evangelhos, o que podemos dizer sobre a perspectiva de Jesus acerca da sua própria morte? Além de qualquer dúvida, ele sabia que ela ia acontecer — não no sentido em que todos nós sabemos que morreremos um dia, mas no sentido em que ele teria uma morte violenta, prematura e, contudo, intencional. Mais do que isso, ele apresenta três motivos interligados para sua inevitabilidade. Primeiro, ele sabia que ia morrer por causa da hostilidade dos líderes nacionais judaicos. Parece que esta hostilidade fora despertada bem cedo durante o seu ministério público. A sua atitude para com a lei em geral, e para com o Sábado em particular, os enraivecia. Quando ele insistiu em curar numa sinagoga, no dia de Sábado, um homem que tinha a mão ressequida, Marcos nos diz que "retirando-se os fariseus, conspiravam logo com os herodianos, contra ele, em como lhe tirariam a vida" (3:6). Jesus deve ter percebido a intenção deles. Ele também conhecia o registro da perseguição dos profetas fiéis no Antigo Testamento.26 Embora soubesse que era mais do que profeta, ele também sabia que não era menos, e que, portanto, podia esperar tratamento semelhante. Ele era uma ameaça à posição e preconceito dos líderes. Segundo Lucas, depois que Jesus leu e explicou Isaías 61 na sinagoga de Nazaré, em cuja exposição ele parecia ensinar uma preferência divina pelos gentios, "todos na sinagoga, ouvindo estas coisas, se encheram de ira. E íevantando-se, expulsaram-no da cidade e o levaram até ao cume do monte sobre o qual estava edificada, para de lá o precipitaram abaixo". Acrescenta Lucas que "Jesus, porém, passando por entre eles, retirou-se" (4:16-30). Mas ele escapou por pouco. Jesus sabia que mais cedo ou mais tarde eles o apanhariam. Segundo, ele sabia que ia morrer porque era isto o que estava escrito nas Escrituras acerca do Messias. "Pois o Filho do homem vai, como está escrito a seu respeito" (Marcos 14:21). Deveras, referindo-se ao testemunho profético do Antigo Testamento, ele tinha a tendência de ligar a morte e a ressurreição, os sofrimentos e a glória do Messias. Pois as Escrituras ensinavam a ambos. E o Senhor ainda insistia sobre este assunto mesmo depois de haver ressurgido. Ele disse aos discípulos na estrada de Emaús: "Porventura não convinha que o Cristo padecesse e entrasse na sua glória? E, começando por Moisés, discorrendo por todos os profetas, expunha-lhes o que a seu respeito constava em todas as Escrituras" (Lucas 24:25-26; cf. versículos 44-47). Gostaríamos muitíssimo de estar presentes a essa exposição de "Cristo por todas as Escrituras". Pois o número real de suas citações reconhecíveis extraídas do Antigo Testamento em relação à cruz e à ressurreição não é grande. Ele predisse o afastamento dos apóstolos, citando Zacarias, que quando o pastor fosse ferido as ovelhas se espalhariam.27 Ele concluiu sua parábola dos viticultores com uma referência impressionante à pedra que, embora rejeitada pelos construtores, subseqüentemente foi feita a pedra angular.28 E enquanto ele pendia da cruz, três das assim chamadas "sete palavras", foram citações diretas das Escrituras: "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?" é o Salmo 22:1; "Tenho sede", vem do Salmo 69:21, e "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito" do Salmo 31:5. Estes três salmos descrevem a profunda angústia de uma vítima inocente, que está sofrendo tanto física quanto mentalmente nas mãos dos seus inimigos, mas que, ao mesmo tempo, mantém sua confiança em Deus. Embora, é claro, tenham sido escritos para expressar a angústia do próprio salmista, contudo, Jesus tinha, evidentemente, chegado a ver-se a si mesmo e seus próprios sofrimentos como o cumprimento final deles. E, contudo, de Isaías 53 que Jesus parece ter extraído a predição mais clara não somente dos seus sofrimentos, mas também de sua glória subseqüente. Pois aí o servo de Yavé é primeiramente apresentado como "desprezado, e o mais rejeitado entre os homens; homem de dores e que sabe o que é padecer" (v. 3), sobre quem o Senhor colocou os nossos pecados para que ele fosse "trespassado pelas nossas transgressões, e moído pelas nossas iniqüidades" (vv. 5-6), e então, no final dos capítulos 52 e 53, ele "será exaltado e elevado, e será mui sublime" (52:13) e recebe "como a sua parte e com os poderosos repartirá ele o despojo" (53:12), como resultado do qual ele "causará admiração às nações" (52:15) e "justificará a muitos" (53:11). A única citação direta, registrada dos lábios de Jesus, é o versículo 12: "Foi contado com os transgressores". "Pois vos digo que importa que se cumpra 12 em "Príncipe e Salvador", dando-lhe autoridade para salvar os pecadores concedendo-lhes arrependimento, perdão e o dom do Espírito.37 Além do mais, diz-se que essa salvação completa é devida ao "nome" poderoso (a soma total da sua pessoa, morte e ressurreição), no qual as pessoas devem crer e no qual devem ser batizadas, "porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos".38 Quando nos voltamos dos primeiros sermões dos apóstolos, registrados no livro de Atos, para as afirmativas mais maduras de suas cartas, a proeminência que dão à cruz se torna ainda mais marcante. É verdade que algumas das cartas mais curtas não a mencionam (como a carta de Paulo a Filemom, a carta de Judas, e a segunda e a terceira cartas de João), e, não é de surpreender que a homilia principalmente ética de Tiago não se refira a ela. Contudo, os três maiores escritores de cartas do Novo Testamento — Paulo, Pedro e João — são unânimes em testemunhar da sua centralidade, como também o faz a carta aos Hebreus e o Apocalipse. Comecemos com Paulo. Ele não achou ser anomalia alguma definir o seu evangelho como "a mensagem da cruz", seu ministério como "a pregação de Cristo crucificado", o batismo como a iniciação "da sua morte", e a Ceia do Senhor como uma proclamação da morte do Senhor. Ele ousadamente declarou que, embora a cruz parecesse loucura ou "pedra de tropeço" aos que confiam em si mesmos, era de fato a própria essência da sabedoria e do poder de Deus.39 Tão convicto estava desse fato que havia deliberadamente decidido, como disse aos coríntios, renunciar à sabedoria do mundo e, em vez dela, a nada conhecer entre eles senão "a Jesus Cristo e este crucificado" (1 Coríntios 2:1-2). Quando, mais tarde na mesma carta, ele desejou lembrá-los do seu evangelho, que ele próprio havia recebido e entregado a eles, o qual se tornara o fundamento sobre o qual se firmavam, e as boas novas mediante as quais estavam sendo salvos, o "de primeira importância" (disse ele) era que "Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado, e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. E apareceu. . ." (1 Coríntios 15:1-5). E quando, alguns anos mais tarde, ele desenvolveu esse esboço, transformando-o em manifesto completo do evangelho, que é a sua carta aos Romanos, a ênfase que deu à cruz foi ainda maior. Pois havendo provado que toda a humanidade é pecadora e culpada perante Deus, ele explica que o modo justo de Deus de tornar os injustos corretos consigo mesmo opera "mediante a redenção que há em Cristo Jesus; a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé" (Romanos 3:21-25). Conseqüentemente, somos "justificados pelo seu sangue", e "reconciliados com Deus mediante a morte do seu Filho" (Romanos 5:9-10). Sem a morte sacrificial de Cristo por nós a salvação teria sido impossível. Não é de admirar que Paulo se vangloriasse em nada mais senão na cruz (Gálatas 6:14). O testemunho do apóstolo Pedro é igualmente claro. Ele inicia sua primeira carta com a afirmativa admirável de que seus leitores foram aspergidos com o sangue de Jesus Cristo. E, alguns versículos mais tarde, ele os lembra de que o preço da redenção do seu antigo modo vazio de vida não foi "coisas corruptíveis, como prata ou ouro", mas antes, o "precioso sangue, como de cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de Cristo" (1 Pedro 1:18-19). Embora as referências restantes de sua carta à morte de Jesus a relacionem com os sofrimentos injustos dos cristãos ("glória através do sofrimento", sendo o princípio que ele apresenta para os crentes), Pedro, entretanto, aproveita a oportunidade para dar profundas instruções acerca da morte do Salvador. "Carregando ele mesmo em seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados" e "Cristo morreu, uma única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos, para conduzir-vos a Deus" (2:24; 3:18), em cumprimento à profecia de Isaías 53. Visto que, no contexto, Pedro está dando ênfase à cruz como nosso exemplo, é ainda mais notável que ele tivesse escrito a respeito de Cristo como nosso substituto e portador de nosso pecado. A ênfase das cartas de João é sobre a encarnação. Por estar o apóstolo combatendo uma heresia primitiva que tentava separar a Cristo de Jesus, o Filho divino do ser humano, ele insistiu em que "Cristo veio em carne" e quem negasse esse fato era o anticristo.40 Entretanto, ele viu a encarnação como possuindo uma vista para a expiação. Pois o singular amor de Deus não foi visto tanto na vinda como na morte do seu Filho, a quem ele "enviou. . . como propiciação pelos nossos pecados" e cujo "sangue. . . nos purifica de todo o pecado".41 A epístola aos Hebreus, mais um tratado teológico do que uma carta, foi escrita para os cristãos judeus que, sob a pressão da perseguição, estavam sendo tentados a renunciar a Cristo e voltar ao judaísmo. A tática do autor foi demonstrar a supremacia de Jesus Cristo, não somente como Filho sobre os anjos, e como Profeta sobre Moisés, mas também em particular como Sacerdote sobre o agora obsoleto sacerdócio levítico. Pois o ministério sacrificial de Jesus, nosso "grande sumo sacerdote" (4:14), é incomparavelmente superior ao deles. Ele não tinha pecados pelos quais fazer sacrifício; o sangue que ele derramou não foi de bodes, nem de bezerros, mas o seu próprio; ele não tinha necessidade alguma de oferecer os mesmos sacrifícios repetidamente, os quais jamais poderiam tirar os pecados, porque ele fez "um sacrifício eterno pelos pecados", e assim obteve uma "redenção 15 eterna" e estabeleceu uma "aliança eterna" que contém a promessa: "Perdoarei a sua maldade e dos seus pecados jamais me lembrarei".42 Ainda mais notável, porém, é a maneira pela qual o último livro da Bíblia, o Apocalipse, retrata a Jesus. O primeiro capítulo nos apresenta o Mestre como "o primogênito dos mortos" (v. 5) e "aquele que vive", que foi morto mas agora vive para sempre, e que tem as chaves da morte e do inferno (v. 18). Acrescenta-se uma doxologia apropriada: "Aquele que nos ama, e pelo sangue nos libertou dos nossos pecados, e nos constituiu reino, sacerdotes para o seu Deus e Pai, a ele a glória e o domínio pelos séculos dos séculos!" (vv.5-6). A designação mais comum que João dá a Jesus, consoante com sua imagem simbólica do Apocalipse, é simplesmente "o Cordeiro". O motivo deste título, que lhe é aplicado vinte e oito vezes através do livro, pouco tem que ver com a mansidão do seu caráter (embora uma vez suas qualidades tanto de "leão" como de "cordeiro" são deliberadamente contrastadas (5:5-6); é antes porque ele foi morto como uma vítima sacrificial e, mediante o seu sangue, libertou o seu povo. A fim de compreender a perspectiva mais ampla da qual João vê a influência do Cordeiro, pode ser útil dividi-la em quatro esferas — salvação, história, adoração e eternidade. O redimido povo de Deus (aquela "grande multidão que ninguém poderia contar"), tirado de cada nação e língua, e que permanece de pé na presença do trono de Deus, atribui a sua salvação especificamente a Deus e ao Cordeiro. Clamam em grande voz: Ao nosso Deus que se assenta no trono, e ao Cordeiro, pertence a salvação. Mediante uma figura de pensamento muito dramática, diz-se que eles "lavaram as suas vestiduras, e as alvejaram no sangue do Cordeiro". Por outras palavras, devem sua permanência justa perante Deus inteiramente à cruz de Cristo, através da qual seus pecados foram perdoados e sua impureza purificada. A sua salvação por meio de Cristo também é segura, pois não apenas os seus nomes estão escritos no livro da vida do Cordeiro, mas também o nome do Cordeiro está escrito nas suas testas.43 Na visão de João, porém, o Cordeiro é mais do que o Salvador de uma multidão incontável; ele também é retratado como o senhor de toda a história. Para começar, ele é visto em pé no centro do trono, isto é, partilhando o governo soberano do Deus Todo-poderoso. Mais do que isso, o ocupante do trono traz na mão direita um rolo selado com sete selos, o qual geralmente é identificado como o livro da história. A princípio João chora muito porque ninguém no Universo podia abrir o rolo, nem mesmo olhar dentro dele. Mas, então, final- mente diz-se que o Cordeiro é digno. Ele pega o rolo, quebra os selos um a um, e assim (parece), desenrola a história capítulo por capítulo. E significativo que aquilo que o qualifica para assumir esse papel é a sua cruz; pois esta é a chave da história e do processo redentor que ela inaugura. Apesar dos seus sofrimentos por causa das guerras, fomes, pragas, perseguições e outras catástrofes, o povo de Deus ainda pode vencer o diabo "pelo sangue do Cordeiro", e recebe a segurança de que a vitória final será dele e deles, visto que o Cordeiro prova ser "Senhor dos senhores e Rei dos reis".44 Não é de surpreender descobrirmos que o Autor da salvação e Senhor da história é também o objeto da adoração no céu. No capítulo 5 ouvimos como um coro após o outro entra para aumentar o louvor do Cordeiro. Primeiro, quando ele tomou o rolo, "os quatro seres viventes e os vinte e quatro anciãos" (provavelmente representando toda a criação por um lado, e toda a igreja de ambos os Testamentos, por outro), caíram perante o Cordeiro. . ; e cantaram um cântico novo: Digno és de tomar o livro e de abrir os selos, porque foste morto e com o teu sangue compraste para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação. . . A seguir, João ouviu a voz de milhões de milhões e milhares de milhares de anjos, ou mais, os quais constituíam o círculo externo dos que cercavam o trono. Eles também cantavam com grande voz: Digno é o Cordeiro, que foi morto, de receber o poder, e riqueza, e sabedoria, e força, e honra, e glória, e louvor. Então, finalmente, ele "ouviu que toda criatura que há no céu e na terra, debaixo da terra e no mar, e tudo o que neles há" — a criação universal — estava cantando: Àquele que está sentado no trono, e ao Cordeiro, seja o louvor, e a honra, e a glória, e o domínio pelos séculos dos séculos. A este cântico, os quatro seres viventes responderam com o seu "amém", e os anciãos se prostraram e o adoraram.45 Jesus, o Cordeiro, hoje é mais do que o centro do palco na salvação, na história e na adoração. Ele terá um lugar central quando a história terminar e a cortina se abrir para a eternidade. No dia do juízo aqueles que o rejeitaram tentarão fugir dele. Clamarão às montanhas e rochas que os soterrem: "Caí sobre nós, escondei-nos da 16 face daquele que se assenta no trono, e da ira do Cordeiro, porque chegou o grande dia da ira deles; e quem é que pode suster-se?" Para aqueles que confiaram nele e o seguiram, porém, aquele dia será como um dia de festa de casamento. Pois a união final de Cristo com o seu povo é retratada em termos do casamento do Cordeiro com a sua noiva. Mudando a metáfora, a Nova Jerusalém descerá do céu. Nela não haverá templo, "porque o seu santuário é o Senhor, o Deus Todo-poderoso e o Cordeiro"; nem precisará do Sol nem da Lua, "pois a glória de Deus a ilumina, e o Cordeiro é a sua lâmpada".46 Não podemos deixar de perceber, nem de nos impressionar com a ligação inibida e repetida que o vidente faz de "Deus e o Cordeiro". A pessoa a quem ele coloca em igualdade com Deus é o Salvador que morreu pelos pecadores. Ele o retrata como sendo o mediador da salvação de Deus, partilhando o trono de Deus, recebendo a adoração de Deus (adoração que lhe é devida) e difundindo a luz de Deus. E a sua dignidade, que o qualifica a estes privilégios singulares, deve-se ao fato de que foi morto, e que pela sua morte nos trouxe a salvação. Se (como pode ser) o livro da vida pertence "ao Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo", como afirma 13:8, então o que João nos está dizendo é que desde a eternidade passada à eternidade futura o centro do palco é ocupado pelo Cordeiro de Deus que foi morto. Persistência apesar da oposição Este exame não nos deixa dúvida de que os contribuintes principais do Novo Testamento criam na centralidade da cruz de Cristo, e criam que sua convicção se derivava da mente do próprio Mestre. A igreja primitiva do período pós-apostólico, portanto, tinha uma base dupla e firme — no ensino de Cristo e de seus apóstolos — para transformar a cruz em sinal e símbolo do Cristianismo. A tradição eclesiástica provou, neste caso, ser um reflexo fiel da Escritura. Além do mais, não devemos perder de vista a sua admirável tenacidade. Eles sabiam que aqueles que haviam crucificado o Filho de Deus o haviam sujeito à vergonha pública e que, a fim de suportar a cruz, Jesus teve de se humilhar e expor-se à sua ignomínia.47 Entretanto, o que era odioso, até mesmo vergonhoso aos críticos de Cristo, aos olhos dos seus seguidores era muitíssimo glorioso. Haviam aprendido que o servo não é maior do que seu mestre, e que para eles, como o foi para ele, o sofrimento era o meio da glória. Mais do que isso, o sofrimento era a glória, e sempre que eram insultados por causa do nome de Cristo, então, o Espírito da glória descansava sobre eles.48 Contudo, os inimigos do evangelho não partilhavam nem partilham dessa perspectiva. Não há ruptura maior entre a fé e a descrença do que as atitudes respectivas deles para com a cruz. Onde a fé vê a glória, a descrença vê apenas desgraça. O que era loucura para os gregos, e continua sendo para os intelectuais modernos que confiam em sua própria sabedoria, é, contudo, a sabedoria de Deus. E o que permanece como pedra de tropeço para os que confiam em sua própria justiça, como os judeus do primeiro século, prova ser o poder salvador de Deus (1 Coríntios 1:18-25). Um dos aspectos mais tristes do islamismo é rejeitar a cruz, declarando inapropriado que um grande profeta de Deus chegasse a um fim tão ignominioso. O Alcorão não vê necessidade nenhuma da morte de um Salvador que tirasse os pecados. Pelo menos cinco vezes declara categoricamente que "alma nenhuma levará o fardo de outra". Deveras, "se uma alma sobrecarregada clamar por ajuda, nem mesmo um parente próximo partilhará do seu fardo". Por que isto? É porque "cada homem colherá os frutos de suas próprias ações", embora Alá seja misericordioso e perdoe os que se arrependem e praticam o bem. Negando a necessidade da cruz, o Alcorão prossegue para a negação do fato. Os judeus "proferiram uma falsidade monstruosa", ao declararem: "matamos o Messias Jesus, filho de Maria, apóstolo de Alá", pois "não o mataram, nem o crucificaram, mas pensaram tê-lo feito".49 Embora os teólogos muçulmanos interpretem essa afirmativa de modos diferentes, a crença mais comumente aceita é que Deus lançou um encanto sobre os inimigos de Jesus a fim de salvá-lo, e que ou Judas Iscariotes50 ou Simão, de Cirene, tenha tomado o seu lugar no último instante. No século dezenove a seita Ahmadiya do islamismo emprestou, de diferentes escritores cristãos liberais, a noção de que Jesus apenas desmaiou na cruz, e reviveu no túmulo, acrescentando que, subseqüentemente ele viajou para a Índia a fim de ensinar, onde morreu; dizem ser os guardiães do seu túmulo que está em Cashmir. Mas os mensageiros cristãos das boas-novas não podem permanecer calados a respeito da cruz. Eis o testemunho do missionário norte- americano Samuel M. Zwemer (1867-1952), que trabalhou na Arábia, e foi redator do Mundo Muçulmano durante quarenta anos, e que às vezes é chamado de "o apóstolo do islamismo": O missionário entre os muçulmanos (para os quais a cruz de Cristo é pedra de tropeço e a expiação, loucura) é levado diariamente a uma meditação mais profunda sobre esse mistério da redenção, e a uma convicção mais forte de que aqui está o próprio coração de nossa mensagem e missão. . . 17 Ao lembrar-me disso, uma sensação do meu próprio fracasso pesa profundamente sobre mim. Eu devia tê-la usado sobre o coração; devia tê-la carregado como um precioso estandarte, que jamais deveria sair de minhas mãos; embora eu caísse, devia ser segurada no alto. Ela devia ter sido o meu culto, o meu uniforme, a minha linguagem, a minha vida. Não terei desculpas; não posso dizer que não sabia. Eu sabia desde o princípio, e me afastei.56 Mais tarde, porém, ele voltou, como cada um de nós que já teve um vislumbre da realidade do Cristo crucificado deve fazer. Pois o único Jesus autêntico é o que morreu na cruz. Mas por que ele morreu? Quem foi responsável por sua morte? Essa é a pergunta a que nos voltamos no próximo capítulo. 2 Por que Cristo morreu? Por que Cristo morreu? Quem foi responsável por sua morte? Muitos não vêem problema algum nestas perguntas e, portanto, não têm dificuldade alguma em responder a elas. Para esses, os fatos parecem tão claros como o dia. Jesus não "morreu", dizem; ele foi morto, executado publicamente como um criminoso. Achavam que as doutrinas que ele ensinava eram perigosas, até mesmo subversivas. Os dirigentes judaicos ficaram furiosos com sua atitude desrespeitosa para com a lei e com suas reivindicações provocadoras, enquanto os romanos ouviram dizer que ele se estava proclamando rei dos judeus, e, assim, desafiava a autoridade de César. Para ambos os grupos, Jesus parecia ser um pensador e pregador revolucionário, e alguns o consideravam também como ativista revolucionário. Ele perturbou o status quo tão profundamente que decidiram acabar com ele. De fato, entraram em uma aliança maligna a fim de fazê-lo. No tribunal apresentou-se uma acusação teológica contra ele, blasfêmia. No tribunal romano a acusação era política, sedição. Mas quer seu delito tenha sido visto como primariamente contra Deus, quer contra César, o resultado foi o mesmo. Percebiam-no como uma ameaça à lei e à ordem, a qual não podiam tolerar. De modo que o liquidaram. Por que ele morreu? Ostensivamente, ele morreu como um criminoso, mas na realidade, como a vítima de mentes medíocres, e como um mártir de sua própria grandeza. Um dos aspectos fascinantes que os escritos dos relatos dos Evangelhos fazem do julgamento de Jesus é essa mescla de fatores legais e morais. Todos eles indicam que tanto no tribunal judaico como no romano seguiu-se certo procedimento legal. A vitima foi presa, acusada e examinada, e chamaram-se testemunhas. Então o juiz deu o seu veredicto e pronunciou a sua sentença. Contudo, os evangelistas também esclarecem que o preso não era culpado das acusações, que as testemunhas eram falsas, e que a sentença de morte foi um horrendo erro judicial. Além do mais, o motivo desse erro foi a presença de fatores pessoais e morais que influenciaram a execução da lei. Caifás, sumo sacerdote judaico, e Pilatos, procurador romano, não eram apenas oficiais da igreja e do estado, no cumprimento e execução de seus deveres oficiais; eram seres humanos decaídos e falíveis, levados pelas paixões sombrias que governam a todos nós. Pois nossos motivos são confusos. Podemos ter êxito em preservar um pouco de retidão no desempenho do dever público, mas por trás dessa fachada espreitam emoções violentas e pecaminosas, as quais estão ameaçando explodir. Os evangelistas expõem esses pecados secretos, enquanto contam a história da prisão, julgamento, sentença e execução de Jesus. É um dos propósitos da sua narrativa, pois o material dos Evangelhos era usado na instrução oral dos convertidos. Os soldados romanos e Pilatos Os responsáveis imediatos pela morte de Jesus foram, é claro, os soldados romanos que executaram a sentença. Todavia, nenhum dos quatro evangelistas descreveu o processo de crucificação. Se tivéssemos de depender exclusivamente dos Evangelhos, não saberíamos o que aconteceu, Outros documentos contemporâneos, porém, nos dizem como era feita a crucificação. Primeiro, o prisioneiro era despido e humilhado publicamente. A seguir era forçado a deitar-se de costas no chão, suas mãos eram pregadas ou atadas ao braço horizontal da cruz (o patibulum), e seus pés ao poste vertical. Então a cruz era erguida e jogada num buraco escavado para ela no chão. Em geral, providenciava-se um pino ou assento rudimentar a fim de receber um pouco do peso do corpo da vítima para que não se rasgasse e caísse. Aí ficava o crucificado pendurado, exposto à intensa dor física, ao ridículo do povo, ao calor do dia e ao frio da noite. A tortura durava vários dias. 20 Os escritores dos Evangelhos não descrevem o processo de crucificação. Unindo o que eles nos dizem, parece que, segundo um costume romano conhecido, Jesus começou carregando sua própria cruz ao lugar da execução. Supõe-se, contudo, que ele caiu sob o peso dela, pois um homem chamado Simão, natural de Cirene, no Norte da África, que naquele momento entrava na cidade, vindo do campo, foi detido e forçado a levar a cruz de Jesus. Quando chegaram ao "lugar chamado Gólgota (que significa o lugar da Caveira)", ofereceram a Jesus vinho misturado com mirra, um gesto de misericórdia cuja finalidade era atenuar a dor. Mas, embora o tivesse provado, segundo Mateus, Jesus se recusou a bebê-lo. A seguir, os quatro evangelistas simplesmente escrevem: "E o crucificaram".1 E é só. Haviam descrito, com alguns detalhes, como os soldados zombaram dele no Pretório (residência do governador): Vestiram-no com um manto de púrpura, colocaram uma coroa de espinhos na sua cabeça e um cetro de caniço na sua mão direita, vendaram-lhe os olhos, cuspiram nele e bateram-lhe na face e deram-lhe na cabeça, ao mesmo tempo que o desafiavam a identificar quem o feria. Também ajoelharam- se na sua frente em zombaria. Os evangelistas, porém, não oferecem detalhes da crucificação; não fazem referência alguma ao martelo, aos pregos, à dor, nem mesmo ao sangue. Tudo o que nos dizem é: "E o crucificaram". Isto é, os soldados haviam executado o seu horrendo dever. Não há evidência de que tenham tido prazer nele, nem sugestão de terem sido cruéis ou sádicos. Estavam apenas obedecendo a uma ordem. Era o seu dever. Fizeram o que tinham de fazer. E o tempo todo, diz-nos Lucas, Jesus continuava a orar em voz alta: "Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem" (23:34). Embora os escritores dos Evangelhos pareçam sugerir que nenhuma culpa tinham os soldados romanos por crucificarem a Jesus (e acrescentam que mais tarde o centurião responsável por eles creu, ou pelo menos quase creu), quanto ao procurador romano que ordenou a crucificação, o caso é bem diferente. "Então Pilatos o entregou para ser crucificado. Tomaram eles, pois, a Jesus. . . Onde o crucificaram" (João 19:16-18). Pilatos era culpado. De fato, a sua culpa encontra-se em nosso credo cristão o qual declara que Jesus foi "crucificado sob Pôncio Pilatos". Sabe-se que Pilatos foi nomeado procurador (isto é, governador romano) da província fronteiriça da Judéia pelo imperador Tibério e serviu durante dez anos, de cerca de 26 a 36 A.D. Ele adquiriu a fama de hábil administrador, tendo um senso de justiça tipicamente romano. Os judeus, porém, o odiavam porque ele os desprezava. Eles não se esqueciam de seu ato de provocação do início do seu governo quando exibiu os estandartes romanos na própria cidade de Jerusalém. Josefo descreve outra de suas loucuras, a saber, que desapropriou dinheiro do templo a fim de construir um aqueduto.2 Muitos acham que foi no motim que se seguiu que ele misturou sangue de certos galileus com os seus sacrifícios (Lucas 13:1). Estas são apenas algumas amostras do seu temperamento esquentado, de sua violência e crueldade. De acordo com Filão, o rei Agripa I, numa carta ao imperador Calígula, descreveu Pilatos como: "Um homem de disposição inflexível, e muito cruel como também obstinado",3 Seu objetivo principal era manter a lei e a ordem, conservar os judeus perturbadores firmemente sob controle, e, se necessário para esses fins, ser implacável na supressão de qualquer tumulto ou ameaça de motim. O retrato de Pôncio Pilatos nos Evangelhos se encaixa nessa evidência externa. Quando os dirigentes judaicos levaram Jesus a ele, dizendo: "Encontramos este homem pervertendo a nossa nação, vedando pagar tributo a César e afirmando ser ele o Cristo, Rei" (Lucas 23:2), Pilatos não pôde deixar de lhes dar atenção. À medida que a sua investigação prossegue, os evangelistas ressaltam dois pontos importantes. Primeiro, Pilatos estava convicto da inocência de Jesus. Ele obviamente ficou impressionado com a nobre conduta, com o domínio próprio e a inocência política do prisioneiro. De forma que ele declarou publicamente três vezes não achar nele culpa alguma. A primeira declaração ele a fez logo depois do amanhecer de sexta-feira quando o Sinédrio lhe levou o caso. Pilatos os ouviu, fez algumas perguntas a Jesus, e depois de uma audiência preliminar anunciou: "Não vejo neste homem crime algum".4 A segunda ocasião foi quando Jesus voltou, depois de ter sido examinado por Herodes. Pilatos disse aos sacerdotes e ao povo: "Apresentastes-me este homem como agitador do povo; mas, tendo-o interrogado na vossa presença, nada verifiquei contra ele dos crimes que o acusais. Nem tampouco Herodes, pois no-lo tornou a enviar. E, pois, claro que nada contra ele se verificou digno de morte."5 A esta altura a multidão gritou: "Crucifica-o! Crucifica-o!" Mas Pilatos respondeu, pela terceira vez: "Que mal fez este? De fato nada achei contra ele para condená-lo à morte".6 Além disso, a convicção pessoal do Procurador acerca da inocência de Jesus foi confirmada pela mensagem enviada por sua mulher: "Não te envolvas com esse justo; porque hoje, em sonhos, muito sofri por seu respeito" (Mateus 27:19). A insistência repetida de Pilatos sobre a inocência de Jesus é o pano de fundo essencial ao segundo ponto a seu respeito ao qual os evangelistas dão ênfase, a saber, suas 21 engenhosas tentativas de evitar ter de tomar um partido. Ele queria evitar sentenciar a Jesus (visto acreditar ser ele inocente) e ao mesmo tempo evitar exonerá-lo (visto acreditarem os dirigentes judaicos ser ele culpado). Como poderia Pilatos conseguir conciliar esses fatores irreconciliáveis? Vemo-lo contorcer-se à medida que tenta soltar a Jesus e pacificar os judeus, isto é, ser justo e injusto simultaneamente. Ele tentou quatro evasões. Primeira, ao ouvir que Jesus era da Galiléia, e, portanto, estar sob a jurisdição de Herodes, enviou-o ao rei para julgamento, esperando transferir a ele a responsabilidade da decisão. Herodes, porém, devolveu Jesus sem sentença (Lucas 23:5-12). Segunda, ele tentou meias-medidas: "Portanto, depois de o castigar, soltá-lo-ei" (Lucas 23:16, 22). Ele esperava que a multidão se satisfizesse com algo menos que a penalidade máxima, e que o desejo de sangue do povo fosse saciado ao verem as costas de Jesus laceradas. Foi uma ação mesquinha. Pois se Jesus era inocente, devia ter sido imediatamente solto, não primeiramente açoitado. Terceira, ele tentou fazer a coisa certa (soltar a Jesus) com o motivo errado (pela escolha da multidão). Lembrando-se do costume que o Procurador tinha de dar anistia de páscoa a um prisioneiro, ele esperava que o povo escolhesse a Jesus para esse favor. Então ele podia soltá-lo como um ato de clemência em vez de um ato de justiça. Era uma idéia astuta, mas inerentemente vergonhosa, e o povo a frustrou exigindo que o perdão fosse dado a um notório criminoso e assassino, Barrabás. Quarta, ele tentou protestar sua inocência. Tomando água, lavou as mãos na presença do povo, dizendo: "Estou inocente do sangue deste justo" {Mateus 27:24). E então, antes que suas mãos se secassem, entregou-o para ser crucificado. Como pôde ele incorrer nessa grande culpa imediatamente depois de ter proclamado a inocência de Jesus? E fácil condenar a Pilatos e passar por alto nosso próprio comportamento igualmente tortuoso. Ansiosos por evitar a dor de uma entrega completa a Cristo, nós também procuramos subterfúgios. Deixamos a decisão para alguém mais, ou optamos por um compromisso morno, ou procuramos honrar a Jesus pelo motivo errado (como mestre em vez de Senhor), ou até mesmo fazemos uma afirmação pública de lealdade a ele, mas ao mesmo tempo o negamos em nossos corações. Três expressões na narrativa de Lucas iluminam o que, finalmente, Pilatos fez: "o seu clamor prevaleceu", "Pilatos decidiu atender-lhes o pedido", e "quanto a Jesus, entregou à vontade deles" (Lucas 23:23-25). O clamor deles, pedido deles, vontade deles: a estes Pilatos, em sua fraqueza, capitulou. Ele desejava soltar a Jesus (Lucas 23:20), mas também desejava "contentar a multidão" (Marcos 15:15). A multidão venceu. Por quê? Porque lhe disseram: "Se soltas a este, não és amigo de César; todo aquele que se faz rei é contra César" (João 19:12). A escolha era entre a honra e a ambição, entre o princípio e a conveniência. Ele já estivera em dificuldades com Tibério César em duas ou três ocasiões prévias. Ele não podia arcar com mais uma. Claro, Jesus era inocente. Claro, a justiça exigia a sua liberdade. Mas como podia ele patrocinar a inocência e a justiça se, fazendo-o, estaria negando a vontade do povo, desfeiteando os dirigentes da nação e, acima de tudo, provocando um levante, o que o levaria a perder o favor imperial? Sua consciência afogou-se nas altas vozes da racionalização. Ele fez concessões por ser covarde. O povo judaico e seus sacerdotes Embora não possamos exonerar a Pilatos, certamente podemos reconhecer que ele se encontrava em um dilema difícil, e que foram os líderes judaicos que aí o colocaram. Foram eles quem entregaram Jesus a Pilatos para ser julgado, quem o acusaram de reivindicações e ensino subversivos, e quem atiçaram a multidão levando- a a exigir a crucificação. Portanto, como o próprio Jesus disse a Pilatos: "Quem me entregou a ti, maior pecado tem" (João 19:11). Pode ser que, visto ter ele empregado o singular, se referisse ao sumo sacerdote Caifás, mas o Sinédrio todo estava implicado. Deveras, o povo também, como Pedro audazmente lhes disse logo depois do Pentecoste: "Israelitas. . . Jesus, a quem vós traístes e negastes perante Pilatos, quando este havia decidido soltá- lo. Vós, porém, negastes o Santo e o Justo e pedistes que vos concedessem um homicida. Dessarte matastes o Autor da vida. . ." (Atos 3:12-15). Parece que as mesmas multidões que haviam recebido a Jesus em Jerusalém no Domingo de Ramos com grande alegria, dentro de cinco dias estavam em altas vozes pedindo o seu sangue. Contudo, a culpa dos dirigentes, por tê-las incitado, era muito maior. Jesus, desde o início, havia perturbado o estabelecimento judaico. Para começar, ele era irregular. Embora se dissesse Rabi, não havia entrado pela porta certa, nem subido a escada certa. Ele não tinha credenciais, nem autorização apropriada. Além disso, ele havia chamado sobre si mesmo a controvérsia por causa do seu comportamento provocante, confraternizando com gente de má fama, festejando em vez de jejuar, e profanando 22 modo totalmente diferente. Observando-a com incredulidade, eles fungaram de indignação autojustificada. "Que desperdício!" disseram. "Que extravagância maligna! O perfume podia ser vendido por um preço equivalente a mais de um ano de salários, e o dinheiro dado aos pobres." O comentário deles, porém, era insincero, como João prossegue a dizer. Judas não disse isso porque se importava com os pobres mas porque era ladrão; como guardador da bolsa, ele se servia do dinheiro que nela era colocado. Deveras, tendo testemunhado e denunciado o que viu como o desperdício irresponsável de Maria, ele parece ter ido diretamente aos sacerdotes a fim de recuperar um pouco da perda. O que estão dispostos a me dar se eu o entregar a vocês? perguntou ele. Sem dúvida alguma, então começaram a pechinchar, e no fim concordaram em dar-lhe 30 moedas de prata, o preço de resgate de um escravo comum. Os evangelistas, com o seu senso de alto drama, deliberadamente contrastam Maria com Judas, a generosidade desprendida daquela e a pechincha friamente calculada deste. Acerca das outras paixões sombrias que estariam queimando o coração de Judas só podemos conjeturar, mas João insiste em que foi a ganância que finalmente o venceu. Inflamado pelo desperdício dos salários de um ano, ele foi e vendeu a Jesus por menos de um terço dessa quantia.16 Não é por acaso que Jesus nos diz que nos acautelemos de toda a cobiça, ou que Paulo declara que o amor do dinheiro é raiz de todos os tipos de males.17 Na busca do ganho material os seres humanos têm descido às profundezas da depravação. Os magistrados têm pervertido a justiça por subornos, como os juizes de Israel de quem Amós escreveu: "Vendem o justo por dinheiro, e condenam o necessitado por causa de um par de sandálias" (2:6). Os políticos têm usado o seu poder para a concessão de contratos ao que faz uma proposta melhor, e os espiões têm descido ao ponto de vender ao inimigo os segredos de seu país. Os negociantes têm feito transações desonestas, pondo em perigo a prosperidade de outros a fim de ganhar mais. Até mesmo professores supostamente espirituais têm transformado a religião em uma empresa comercial, e alguns ainda hoje o fazem, de modo que o candidato ao pastorado recebe a advertência: não seja amante do dinheiro.18 O linguajar de todas essas pessoas é o mesmo que o de Judas: dependendo do que me derem, eu o entregarei a vocês. Pois todo mundo tem o seu preço, assevera O cínico, desde o assassino contratado, disposto a pechinchar a vida de alguém, ao mais baixo oficial que atrasa a emissão de um documento ou um passaporte enquanto não receber o seu suborno. Judas não foi exceção. Jesus dissera que é impossível servir a Deus e ao dinheiro. Judas escolheu o dinheiro. Muitos outros têm feito o mesmo. Os pecados deles e os nossos Examinamos os três indivíduos — Pilatos, Caifás e Judas — a quem os evangelistas apõem culpa maior pela crucificação de Jesus, e seus associados: os sacerdotes, o povo e os soldados. Acerca de cada pessoa ou grupo usa-se o mesmo verbo: paradidomi, traduzido por "entregar" ou "trair". Jesus havia predito que seria entregue nas mãos dos homens, ou "entregue para ser crucificado".19 E os evangelistas, ao contarem sua história, demonstram que a predição de Jesus foi verdadeira. Primeiro, Judas o entregou aos sacerdotes (por causa da ganância). A seguir, os sacerdotes o entregaram a Pilatos (por causa da inveja). Então Pilatos o entregou aos soldados (por causa da covardia), e eles o crucificaram.20 Nossa reação instintiva a esse mal acumulado é dar eco à pergunta espantada de Pilatos, quando a multidão gritou pedindo o sangue de Jesus: "Que mal fez ele?" (Mateus 27:23). Pilatos, porém, não recebeu uma resposta lógica. A multidão histérica clamava cada vez mais alto: "Crucifica-o! Crucifica-o!" Mas por quê? É natural encontrarmos desculpas para eles, pois vemos a nós mesmos neles e gostaríamos de ser capazes de nos desculparmos. Deveras, havia algumas circunstâncias mitigantes. Como o próprio Jesus disse ao orar pelo perdão dos soldados que o estavam crucificando: "pois não sabem o que fazem". Da mesma forma, Pedro disse a uma multidão de judeus em Jerusalém: "Eu sei que o fizestes por ignorância, como também as vossas autoridades." Paulo acrescentou que, se "os poderosos deste século" tivessem compreendido, "jamais teriam crucificado o Senhor da glória."21 Contudo, sabiam o suficiente para ser culpados, aceitar o fato de sua culpa e ser condenados por suas ações. Não estavam eles reivindicando responsabilidade total quando clamaram: "Caia sobre nós o seu sangue, e sobre nossos filhos"?22 Pedro falou com toda a franqueza no dia de Pentecoste: "Esteja absolutamente certa, pois, toda a casa de Israel de que a este Jesus que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo." Além do mais, longe de discordar do seu veredicto, o coração dos ouvintes de Pedro se compungiu e perguntaram o que deviam fazer (Atos 2:36,37). Estêvão foi ainda mais direto em seu discurso ao Sinédrio, o qual o levou ao martírio. Chamou o Concilio de "homens de dura cerviz e incircuncisos de coração e de ouvidos, vós sempre resistis ao Espírito Santo, assim como o fizeram vossos pais também vós o fazeis." Pois seus pais haviam perseguido os profetas e matado aqueles que predisseram a vinda do Messias, e agora tinham traído e 25 assassinado o próprio Messias (Atos 7:51-52). Paulo, mais tarde, usou linguagem parecida ao escrever aos tessalonicenses acerca da oposição judaica do seu tempo ao evangelho: eles "mataram o Senhor Jesus e os pro- fetas, como também nos perseguiram". Por estarem tentando conservar os gentios afastados da salvação, o juízo viria sobre eles (1 Tessalonicenses 2:14-16). Culpar o povo judeu pela crucificação de Jesus hoje é extremamente fora de moda. Deveras, se a crucificação for usada como uma desculpa para matá-los e persegui-los (como aconteceu no passado), ou para propagar o anti-semitismo, é absolutamente indefensável. O modo de evitar o preconceito anti-semítico, contudo, não é fingir que os judeus são inocentes, mas, tendo admitido a sua culpa, acrescentar que outros partilharam dela. É assim que os apóstolos viram a situação. Herodes e Pilatos, gentios e judeus, disseram eles, tinham juntos "conspirado" contra Jesus (Atos 4:27). Mais importante ainda, nós mesmos também somos culpados. Se estivéssemos no lugar deles, teríamos feito exatamente o que fizeram. Deveras, nós o fizemos. Pois sempre que nos desviamos de Cristo, estamos "crucificando" para nós mesmos o Filho de Deus, e o "expondo à ignomínia" (Hebreus 6:6). Nós também sacrificamos Jesus à nossa ganância como Judas, à nossa inveja como os sacerdotes, à nossa ambição como Pilatos. "Estavas lá quando crucificaram o meu Senhor?" pergunta o cântico espiritual. E devemos responder: "Sim, eu estava lá." Não apenas como espectadores, mas também como participantes, participantes culpados, tramando, traindo, pechinchando e entregando-o para ser crucificado. Como Pilatos, podemos tentar tirar de nossas mãos a responsabilidade por meio da água. Mas nossa tentativa será tão fútil quanto foi a dele. Pois há sangue em nossas mãos. Antes que possamos começar a ver a cruz como algo feito para nós (que nos leva à fé e à adoração), temos de vê-la como algo feito por nós (que nos leva ao arrependimento). Deveras, "somente o homem que está preparado para aceitar sua parcela de culpa da cruz", escreve Canon Peter Green, "pode reivindicar parte na sua graça".23 A resposta que até agora demos à pergunta: "Por que Cristo morreu"? procurou refletir o modo pelo qual os escritores do evangelho contam a sua história. Eles indicam a corrente de responsabilidade (de Judas aos sacerdotes, dos sacerdotes a Pilatos, de Pilatos aos soldados), e, pelo menos, sugerem que a ganância, a inveja e o temor, os quais instigaram o comportamento dos envolvidos, também instigam o nosso. Contudo, esse não é o relato final dos evangelistas. Omiti uma evidência vital que eles apresentam. É esta: embora Jesus tivesse sido levado à morte pelos pecados humanos, ele não morreu como mártir. Pelo contrário, ele foi à cruz espontaneamente, até mesmo deliberadamente. Desde o começo do seu ministério público, ele se consagrou a esse destino. No seu batismo, ele se identificou com os pecadores (como mais tarde o faria por completo sobre a cruz), e em sua tentação ele se recusou a desviar-se do caminho da cruz. Ele predisse muitas vezes os seus sofrimentos e morte, como vimos no capítulo anterior, e, decididamente, partiu para Jerusalém a fim de morrer aí. O uso cons- tante que ele faz da palavra "deve" em relação à sua morte expressa não uma compulsão exterior, mas sua resolução interior de cumprir o que a seu respeito havia sido escrito. "O Bom Pastor dá a sua vida pelas ovelhas", disse ele. Então, deixando de lado a metáfora, "eu dou a minha vida. . . Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou" (João 10:11, 17,18). Além disso, quando os apóstolos resolveram escrever acerca da natureza voluntária da morte de Jesus, usaram várias vezes o mesmo verbo (paradidomi) o qual os evangelistas empregaram com relação ao ser ele entregue à morte por outros. Assim, Paulo pôde escrever que o "Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou (paradontos) por mim".24 A afirmação do apóstolo talvez tenha sido um eco de Isaías 53:12, que diz que ele "derramou (pareáothe) a sua alma na morte". Paulo também usou o mesmo verbo ao olhar para a auto-entrega voluntária do Filho à entrega do Pai. Por exemplo, "aquele que não poupou ao seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou (paredoken), porventura não nos dará graciosamente com ele todas as coisas?"25 Octavius Winslow resumiu o assunto com uma bela afirmativa: "Quem entregou Jesus para morrer? Não foi Judas, por dinheiro; não foi Pilatos, por temor; não foram os judeus, por inveja — mas o Pai, por amor!"26 É essencial que conservemos juntos estes dois modos complementares de olhar para a cruz. No nível humano, Judas o entregou aos sacerdotes, os quais o entregaram a Pilatos, que o entregou aos soldados, os quais o crucificaram. Mas, no nível divino, o Pai o entregou, e ele se entregou a si mesmo para morrer por nós. A medida que encaramos a cruz, pois, podemos dizer a nós mesmos: "Eu o matei, meus pecados o enviaram à cruz"; e: "ele se matou, seu amor o levou à cruz". O apóstolo Pedro uniu as duas verdades em sua admirável afirmativa do dia de Pentecoste: "Sendo este entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o por mão de iníquos."27 Assim, Pedro atribuiu a morte de Jesus simultaneamente ao plano de Deus e à maldade dos homens. Pois a cruz, que é uma exposição da maldade humana, como temos 26 considerado em particular neste capítulo, é ao mesmo tempo a revelação do propósito divino de vencer a maldade humana assim exposta. Volto, ao terminar este capítulo, à pergunta com a qual o comecei: por que Jesus Cristo morreu? Minha primeira resposta foi que ele não morreu; ele foi morto. Agora, porém, devo equilibrar essa resposta com o seu oposto. Ele não foi morto, ele morreu, entregando-se voluntariamente para fazer a vontade do Pai. A fim de discernir o que era a vontade do Pai, temos de examinar novamente os mesmos eventos, desta vez olhando abaixo da superfície. 3 Olhando Abaixo da Superfície Nos capítulos anteriores procurei estabelecer dois fatos acerca da cruz. Primeiro, sua importância central (para Cristo, para seus apóstolos e para a igreja mundial desde então), e, segundo, seu caráter deliberado (pois embora tenha sido devida à maldade humana, foi também por causa de um propósito determinado de Deus, volun- tariamente aceito por Cristo, que se entregou a si mesmo à morte). Mas por quê? Voltamos a esse enigma básico. O que há acerca da crucificação de Jesus que, apesar de seu horror, vergonha e dor, a faz tão importante ao ponto de Deus a planejar de antemão e de Cristo vir para suportá- la? Uma construção inicial Pode ser útil responder a essa pergunta em quatro estágios, começando com o claro e não controverso, e, passo a passo, ir penetrando mais profundamente no mistério. Primeiro, Cristo morreu por nós. Além de ser necessária e voluntária, sua morte foi altruísta e benéfica. Ele a empreendeu por nossa causa, não pela sua, e cria que através dela nos garantia um bem que não poderia ser garantido de nenhum outro modo. O Bom Pastor, disse ele, ia dar a sua vida pelas ovelhas, em benefício delas. Similarmente, as palavras que ele proferiu no cenáculo, ao dar o pão aos seus discípulos, foram: "Isto é o meu corpo oferecido por vós". Os apóstolos pegaram esse simples conceito e o repetiram, às vezes tornando-o mais pessoal, trocando a segunda pessoa pela primeira: "Cristo morreu por nós".1 Ainda não há nenhuma explicação e nenhuma identificação da bênção que ele nos assegurou mediante a sua morte, mas pelo menos concordamos quanto às expressões "por vós" e "por nós". Segundo, Cristo morreu para conduzir-nos a Deus (1 Pedro 3:18). O foco do propósito benéfico da sua morte é a nossa reconciliação. Como diz o Credo Niceno: "por nós (geral) e por nossa salvação (particular) ele desceu do céu. . ." A salvação que ele conseguiu para nós mediante sua morte é retratada de vários modos. Às vezes é concebida negativamente como redenção, perdão ou libertação. Outras vezes é positiva — vida nova ou eterna, ou paz com Deus no gozo de seu favor e comunhão.2 No presente, o vocabulário preciso não importa. O ponto importante é que, em conseqüência da sua morte, Jesus é capaz de conferir-nos a grande bênção da salvação. Terceiro, Cristo morreu por nossos pecados. Nossos pecados eram o obstáculo que nos impedia de receber o dom que ele desejava darnos. De modo que eles tinham de ser removidos antes que a salvação nos fosse outorgada. E ele ocupou-se dos nossos pecados, ou os levou, na sua morte. A expressão: "por nossos pecados" (ou fraseado muito similar) é usada pela maioria dos escritores do Novo Testamento; parece que eles tinham certeza de que — de um modo ainda não determinado — a morte de Cristo e nossos pecados se relacionavam. Eis uma amostra de citações: "Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras" (Paulo); "Cristo morreu pelos pecados uma vez por todas" (Pedro); "ele apareceu de uma vez por todas. . . para desfazer o pecado mediante o sacrifício de si mesmo", e ele "ofereceu de uma vez por todas um sacrifício pelos pecados" (Hebreus); "o sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo o pecado" (João); "àquele que nos ama e nos libertou de nossos pecados através do seu sangue. . . seja a glória" (Apocalipse).3 Todos estes versículos (e mui- tos mais) ligam a morte de Jesus aos nossos pecados. Que elo é esse? Quarto, Cristo sofreu a nossa morte, ao morrer por nossos pecados. Isso quer dizer que se a sua morte e os nossos pecados estão ligados, esse elo não é efeito de mera conseqüência (ele foi vítima de nossa brutalidade humana), mas de penalidade (ele suportou em sua pessoa inocente a pena que nossos pecados mereciam). Pois segundo a Escritura, a morte se relaciona com o pecado como sua justa recompensa: "o salário do pecado é a morte" (Romanos 6:23). A Bíblia toda vê a morte humana não como um evento natural, mas penal. E uma invasão alienígena do bom mundo de Deus, e não faz parte de sua intenção original para a humanidade. É certo 27 durante os quais o povo se esqueceu de Deus, quebrou a sua aliança e provocou o seu juízo, até que um dia no sétimo século a.C. a palavra do Senhor veio a Jeremias, dizendo: Eis aí vêm dias, diz o Senhor, e firmarei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá. Não conforme a aliança que fiz com seus pais, no dia em que os tomei pela mão, para os tirar da terra do Egito; porquanto eles anularam a minha aliança, não obstante eu os haver desposado, diz o Senhor. Porque esta é aliança que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles dia, diz o Senhor. Na mente lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhas inscreverei; eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo. Não ensinará jamais cada um ao seu próximo, nem cada um ao seu irmão, dizendo: Conhece ao Senhor, porque todos me conhecerão, desde o menor até ao maior deles, diz o Senhor. Pois, perdoarei as suas iniqüidades, e dos seus pecados jamais me lembrarei. (Jeremias 31:31-34) Passaram-se mais seis séculos, anos de espera paciente e expectativa crescente, até uma noite num cenáculo de Jerusalém, em que um camponês galileu, carpinteiro de profissão e pregador por vocação, ousou dizer, com efeito: "Esta nova aliança, profetizada por Jeremias, está prestes a ser estabelecida; o perdão de pecados prometido como uma das bênçãos distintivas está prestes a ficar disponível; e o sacrifício para selar esta aliança e assegurar este perdão será o derramamento do meu sangue na morte." Será possível exagerar a natureza espantosa dessa reivindicação? Aqui está a visão que Jesus tinha da sua morte. É o sacrifício divinamente ordenado pelo qual a nova aliança com a sua promessa de perdão será ratificada. Ele vai morrer a fim de levar o seu povo a um novo relacionamento de aliança com Deus. A terceira lição que Jesus estava ensinando referia-se à necessidade de apropriarmo-nos pessoalmente da sua morte. Se tivermos razão em dizer que, no cenáculo, Jesus estava apresentando uma dramatização de sua morte, é importante que observemos a forma que ela tomou. Não consistia em um ator num palco, e doze pessoas no auditório. Não; envolveu a todos como também a ele, de modo que tanto eles como ele participaram do drama. É verdade que Jesus tomou o pão, abençoou-o e o quebrou, mas então, enquanto comiam, ele explicou a significação do seu gesto. Novamente, ele tomou o cálice e o abençoou, mas então, enquanto bebiam, explicou a significação do seu gesto. Assim, não eram meros espectadores deste drama da cruz; eram participantes dele. Não poderiam ter deixado de entender a mensagem. Assim como não era suficiente que o pão fosse quebrado e o vinho derramado, mas que tinham de comer e beber, da mesma forma não era suficiente que ele morresse, mas eles tinham de se apropriar pessoalmente dos benefícios da sua morte. O comer e o beber eram, como ainda o são, uma parábola viva de recebermos a Cristo como nosso Salvador crucificado, e nos alimentarmos dele, pela fé, em nossos corações. Jesus já havia ensinado essa mensagem em seu grande discurso sobre o Pão da Vida, o qual veio logo depois da alimentação dos cinco mil: Em verdade, em verdade vos digo: Se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tendes vida em vós mesmos. Quem comer a minha carne e beber o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Pois a minha carne é verdadeira comida, e o meu sangue é verdadeira bebida (João 6:53-55). As palavras de Jesus naquela ocasião, e suas ações no cenáculo testemunham a mesma realidade. Dar ele o seu corpo e o seu sangue na morte era uma coisa; apropriarmo-nos nós das bênçãos da sua morte é outra muito diferente. Contudo, muitos ainda não aprenderam essa distinção. Posso ainda lembrar-me da grande revelação que foi para mim, na juventude, quando me disseram que era necessário uma ação de minha parte. Eu costumava imaginar que, por haver Cristo morrido, o mundo tinha sido corrigido automaticamente. Quando alguém me explicou que Cristo havia morrido por mim, respondi um tanto altivamente: "Todo mundo sabe disso", como se o fato em si ou o meu conhecimento do fato me houvesse trazido a salvação. Mas Deus não força as suas dádivas sobre nós; temos de recebê-las mediante a fé. A Ceia do Senhor permanece como o sinal externo perpétuo tanto da dádiva divina como da recepção humana. Tem o propósito de ser a comunhão do corpo e do sangue de Cristo (1 Coríntios 10:16). Portanto, eis as lições do cenácúlo acerca da morte de Cristo. Primeira, ocupava o centro do pensamento que ele tinha acerca de si mesmo e de sua missão, e ele desejava que fosse o centro do nosso. Segunda, aconteceu a fim de estabelecer a nova aliança e assegurar o seu perdão prometido. Terceira, precisa ser apropriada individualmente, se quisermos desfrutar os seus benefícios (a aliança e o perdão). A Ceia do Senhor instituída por Jesus não tinha o propósito de ser um "não-me-esqueça" piegas, mas, antes, um culto rico de significação espiritual. 30 O que torna os eventos do cenácúlo e a significação da Ceia do Senhor ainda mais impressionantes é pertencerem ao contexto da Páscoa. Já vimos que Jesus pensava em sua morte como sendo um sacrifício do Antigo Testamento. Mas qual dos sacrifícios tinha ele em mente? Parece que ele pensava no sacrifício do monte Sinai, de Êxodo 24, mediante o qual a aliança foi renovada, mas também no da Páscoa, de Êxodo 12, o qual se transformou em celebração anual da libertação de Israel e uma aliança da parte de Deus com eles. Segundo os evangelistas sinóticos, a última ceia foi a refeição pascal que se realizava depois que os cordeiros eram sacrificados. Essa idéia está clara na pergunta que os discípulos fizeram a Jesus: "Onde queres que a preparemos?" E o próprio Jesus se referiu à refeição como "esta páscoa".11 Segundo João, porém, a refeição da páscoa não seria realizada até a noite de sexta-feira, o que significa que Jesus morria na cruz no mesmo instante em que os cordeiros pascais estavam sendo mortos.32 Em seu importante livro As Palavras Eucarísticas de Jesus, Joachim Jeremias elaborou as três principais tentativas que se têm feito para harmonizar essas duas cronologias. O melhor parece ser declarar que ambas estão corretas, pois ambas foram seguidas por um grupo diferente. Ou os fariseus e os saduceus usavam calendários alternativos, com a diferença de um dia, ou havia tantos peregrinos em Jerusalém por ocasião do festival (talvez até 100.000) que os galileus matavam os seus cordeiros na quinta-feira e os comiam nessa noite, ao passo que os judeus observavam a celebração um dia depois. Qualquer que seja o modo de reconciliar as duas cronologias, o contexto da páscoa reforça ainda mais as três lições que já consideramos. A importância central que Jesus atribuía à sua morte é acentuada pelo fato de que ele, na realidade, estava dando instruções no sentido de que sua própria ceia substituísse a celebração anual da páscoa. Pois proferiu palavras de explicação sobre o pão e o vinho ("Isto é o meu corpo. . . Isto é o meu sangue. . ."), assim como o chefe da família arameu-judaica fazia sobre o alimento pascal ("Este é o pão de aflição que nossos pais comeram quando saíram do Egito".13 Assim, "Jesus modelou seus ditos no ritual de interpretação da páscoa." As palavras de Jesus esclarecem ainda mais a compreensão que ele tinha do propósito da sua morte. Ele "pressupõe", escreveu Jeremias "uma morte que separou a carne e o sangue. Por outras palavras, Jesus falou de si mesmo como um sacrifício." Deveras, é bem provável que ele "estivesse falando de si mesmo como o cordeiro pascal", de modo que o significado de sua última parábola foi: "Eu vou à morte como o verdadeiro sacrifício da páscoa." As implicações deste raciocínio são muito abrangentes, pois na páscoa original no Egito cada cordeiro morreu em lugar do primogênito, e o primogênito só seria poupado se um cordeiro morresse em seu lugar. O cordeiro não apenas tinha de ser morto, mas também o seu sangue tinha de ser aspergido na porta da frente, e a sua carne comida numa refeição de comunhão. Assim, o ritual da páscoa também ensina a terceira lição: era necessário que os benefícios da morte sacrificial fossem apropriados pessoalmente. A agonia no jardim do Getsêmani A ceia terminou e Jesus acabou de dar suas instruções aos apóstolos. Ele instou com eles a que permanecessem nele assim como os ramos permanecem na videira. Ele os advertiu da oposição do mundo, con- tudo, encorajou-os a testemunhar dele, lembrando-lhes de que o Espírito da verdade seria a testemunha principal. Ele também orou — primeiro por si mesmo, para que glorificasse o seu Pai no suplício que se seguiria, então pelos discípulos, para que se mantivessem na verdade, santidade, missão e unidade, e, por último, orou por aqueles que fariam parte de gerações subseqüentes e que creriam nele através da mensagem dos apóstolos. É provável que depois disso tenham cantado um hino, e, juntos tenham deixado o cenáculo. Andam pelas ruas da cidade no silêncio da noite; à suave luz da lua pascal atravessam o vale de Cedrom, começam a subir o monte das Oliveiras, e entram num jardim de oliveiras, como o nome "Getsêmani" ("prensa de azeite") sugere. Este é, evidentemente, um dos retiros favoritos de Jesus, pois João comenta que "ali estivera muitas vezes com seus discípulos" (18:2). Aqui acontece algo que, apesar da maneira sombria como os evangelistas o descrevem, simplesmente clama por uma explicação, e começa a revelar o enorme preço da cruz de Cristo. Nós o chamamos, de modo correto, de "a agonia do jardim". Deixando a maioria dos apóstolos para trás, e instando com eles a que vigiem e orem, Jesus leva a Pedro, Tiago e João — os três íntimos — a certa distância, diz-lhes que se sente "profundamente triste até à morte", e pede-lhes que vigiem com ele. Então se adianta um pouco, prostra-se com o rosto em terra e ora, dizendo: "Meu Pai: se possível, passa de mim este cálice! Todavia, não seja como eu quero, e, sim, como tu queres". Voltando aos apóstolos, encontra-os dormindo e os repreende. Saindo pela segunda vez, ele ora: "Meu Pai, se não é possível passar de mim este cálice sem que eu o beba, faça-se a tua vontade." Novamente encontra os discípulos dormindo. De modo que os deixa uma vez mais e ora, pela terceira vez, dizendo as mesmas palavras. Depois 31 desse terceiro período de oração, ele volta e os encontra dormindo novamente, pois não conseguem penetrar o inconcebível mistério do seu sofrimento. Esse é um caminho que ele tem de palmilhar sozinho. A certa altura Lucas diz que ele estava "em agonia", e orava mais intensamente de modo que "o seu suor se tornou como gotas de sangue caindo sobre a terra".14 Ao nos aproximarmos dessa cena sagrada, devemos primeiro considerar as palavras vigorosas que Jesus e os evangelistas usaram para expressar as suas fortes emoções. Fomos preparados para elas por duas afirmativas anteriores do Mestre. A primeira, registrada por Lucas, foi que ele tinha um "batismo com o qual hei de ser batizado" e "se angustiava" (no grego synecho) até que se realizasse. A segunda é um dito registrado por João de que a alma de Cristo estava angustiada (no grego tarasso) de tal modo que ele não sabia se devia pedir que o seu Pai o livrasse dessa hora. É uma antecipação do Getsêmani.15 B. B. Warfield escreveu um excelente estudo intitulado "Acerca da Vida Emocional de Nosso Senhor", no qual se referiu aos termos empregados pelos evangelistas sinóticos com relação ao Getsêmani. A palavra agonia, registrada por Lucas, ele a define como "consternação, relutância pavorosa". Mateus e Marcos possuem duas expressões em comum. A idéia primária de "perturbar" {ademoneo), sugere ele, é "aversão repugnante, talvez misturada com tristeza", enquanto a autodescrição de Jesus como "profundamente triste" (pe-rilypos) "expressa uma tristeza, ou talvez melhor disséssemos, uma dor mental, ou uma perturbação que o pressiona de todos os lados, da qual, pois, não há escape". Marcos usa outra palavra, "profundamente perturbada" (ekthambeomai), que pode ser traduzida por "tomado de horror"; e, acrescenta Warfield: "é um termo que define mais estreitamente a aflição como consternação — se não exatamente pavor, contudo, um assombro alarmado".16 Reunidas, essas palavras expressivas indicam que Jesus estava sentindo uma dor emocional aguda, que causava profuso suor, à medida que ele olhava com apreensão e quase terror para o seu suplício vindouro. Ele se refere a esse suplício como um "cálice" amargo pelo qual ardentemente ora que, se possível, passe dele, para que não tenha de bebê-lo. Que cálice é esse? Será um sofrimento físico do qual deseja desviar-se, a tortura do açoite e da cruz juntamente, talvez, com a angústia mental da traição, negação e deserção da parte dos seus amigos, e a zombaria e o abuso dos seus inimigos? Nada poderia fazer-me crer que o cálice que Jesus temia era qualquer uma destas coisas (por mais terríveis fossem) ou todas juntas. Sua coragem física e moral durante todo o seu ministério público havia sido indomável. Para mim, é ridículo supor que agora ele estava com medo da dor, do insulto e da morte. Sócrates, na cela de um cárcere em Atenas, segundo relato de Platão, tomou o cálice de cicuta "sem tremer nem mudar de cor ou de expressão". Então ele "levou o cálice aos lábios, e alegre e tranqüilamente o sorveu". Quando seus amigos começaram a chorar, ele os repreendeu por seu comportamento "absurdo" e instou com eles a que "se aquietassem e fossem fortes".17 Ele morreu sem temor, pesar ou protesto. Seria Sócrates mais corajoso do que Jesus? Ou continham os seus cálices venenos diferentes? Então vêm os mártires cristãos. O próprio Jesus dissera aos seus seguidores que quando fossem insultados, perseguidos e injuriados, deviam "regozijar-se e alegrar-se". Será que Jesus não praticava o que pregava? Seus apóstolos o fizeram. Deixando o Sinédrio com as costas sangrando de um açoite sem misericórdia, eles, na realidade, regozijavam-se por terem sido achados dignos de sofrer vergonha pelo "Nome". A dor e a rejeição para eles eram alegria e privilégio, não um suplício do qual deviam fugir em assombro.18 No período pós-apostólico até mesmo surgiu o anseio de se unir a Cristo no martírio. Inácio, bispo de Antioquia da Síria, no começo do segundo século, a caminho de Roma, implorou à igreja aí que não tentasse procurar sua liberdade a fim de não privá-lo dessa honra! "Que o fogo e a cruz", escreveu ele, "que a companhia das feras selvagens, que o quebrar de ossos e o despedaçar de membros, que o moer de todo o corpo, e toda a malícia do diabo venham sobre mim; que assim seja, se tão-somente eu puder ganhar a Cristo Jesus!"19 Alguns anos mais tarde, nos meados do segundo século, Policarpo, bispo de Esmirna, de oitenta anos de idade, tendo-se recusado a escapar da morte pela fuga ou pela negação de Cristo, foi queimado na fogueira. Logo antes de acender-se o fogo, ele orou, dizendo: "Ó Pai, bendigo-te por teres-me achado digno de receber a minha porção entre o número dos mártires".20 Quanto a Albano, o primeiro mártir cristão inglês de que se tem conhecimento, durante uma das severas perseguições do terceiro século, primeiro ele foi "surrado cruelmente, contudo, sofreu-o pacientemente, aliás, com alegria, por amor do Senhor", e então foi decapitado.21 E assim continuou em todas as gerações. "Oh, as alegrias que os mártires em Cristo sentiram", exclamou Richard Baxter, "no meio das chamas ardentes!" Embora feito de carne e sangue como nós, continuou ele, as suas almas podiam regozijar-se até mesmo enquanto seus corpos se queimavam.22 32 esse terrível grito de "abandono" (deserção), têm sido oferecidas. Todos os comentaristas concordam em que ele estava citando o Salmo 22:1. Mas não concordam sobre o motivo de tê-lo feito. Qual era a importância dessa citação nos seus lábios? Primeira, sugerem alguns que foi um grito de raiva, descrença ou desespero. Talvez ele se tivesse apegado à esperança de que até no último instante o Pai enviaria anjos para salvá-lo, ou, pelo menos, que em meio à sua obediência total à vontade do Pai ele continuaria a experimentar o conforto da presença paterna. Mas não, agora estava claro que ele havia sido abandonado, e clamou com um "por quê" de partir o coração cheio de consternação e desafio. Sua fé falhou. Mas, é claro, acrescentam esses intérpretes, ele estava enganado. Ele se imaginava abandonado, quando na realidade não estava. Aqueles que desse modo explicam o grito de abandono mal conseguem compreender o que fazem. Estão negando a perfeição moral do caráter de Jesus. Estão dizendo que ele foi culpado de descrença na cruz, de covardia no jardim. Eles o estão acusando de fracasso, e fracasso no momento de seu maior e supremo auto-sacrifício. A fé cristã protesta contra essa explicação. Uma segunda interpretação, uma modificação da primeira, vê o grito de abandono como um grito de solidão. Jesus, sustenta-se agora, conhecia as promessas que Deus havia feito de jamais deixar nem abandonar a seu povo.28 Ele conhecia a fidelidade da aliança de amor de Deus. De modo que o seu "por quê?" não era uma reclamação de que Deus o houvesse realmente abandonado; antes, que lhe houvesse permitido sentir-se abandonado. "Às vezes penso", escreveu T. R. Glover, "que jamais houve uma palavra que revela de modo mais espantoso a distância entre o sentimento e o fato".29 Em vez de dirigir-se a Deus como "Pai", ele podia agora chamá-lo apenas de "meu Deus", o que é, deveras, uma afirmação de fé em sua fidelidade da aliança, mas fica aquém de declarar sua bondade amorosa de pai. Nesse caso, Jesus não estava nem enganado nem descrente, mas experimentava o que os santos têm chamado de a "escura noite da alma", e, de fato, fazendo-o deliberadamente em solidariedade conosco. Nessa condição, como diz Thomas J. Crawford, o povo de Deus "não extrai satisfação consciente das alegrias do seu favor e dos confortos da sua comunhão". Não se lhes garante "um sorriso de aprovação, uma voz de reconhecimento, uma manifestação do favor divino".30 Essa explicação é possível, pois não desdoura o caráter de Jesus, como a primeira. Contudo, parece haver uma dificuldade insuperável no modo pelo qual é adotada, a saber, que as palavras do Salmo 22:1 expressem uma experiência de ser, e não apenas de sentir-se abandonado por Deus. Uma terceira e bem popular interpretação diz que o grito de Jesus era um grito de vitória, exatamente o oposto da primeira, que diz ser um grito de desespero. Agora o argumento é que, embora Jesus citasse somente o primeiro versículo do Salmo 22, ele o fez com a intenção de representar o salmo todo que começa e continua com um relato dos aterroradores sofrimentos, mas termina com grande confiança, e até mesmo triunfo: "A meus irmãos declararei o teu nome; cantar-te-ei louvores no meio da congregação; vós que temeis o Senhor, louvai-o. . . Pois não desprezou nem abominou a dor do aflito, nem ocultou dele o rosto, mas o ouviu, quando lhe gritou por socorro" (vv. 22-24). Essa é uma interpretação engenhosa mas (a mim me parece) improvável. Por que citaria Jesus o começo do Salmo se na realidade indiretamente se referia ao seu final? Pareceria um tanto perverso. Teria alguém compreendido a sua intenção? A quarta explicação é simples e direta. Ela aceita o valor real das palavras e as interpreta como um grito genuíno de abandono. Concordo com Dale, que escreveu: "Recuso-me a aceitar qualquer explicação destas palavras que diga que não representam a verdade real da disposição do nosso Senhor".31 Jesus não tinha necessidade alguma de se arrepender de ter proferido um grito falso. Até esse momento, embora abandonado pelos homens, ele podia acrescentar: "Contudo não estou só, porque o Pai está comigo" (João 16:32). Na escuridão, porém, ele estava completamente sozinho, sendo agora também abandonado por Deus. No dizer de Calvino: "Se Cristo tivesse morrido apenas uma morte física, teria sido ineficaz. . . A menos que a sua alma partilhasse do castigo, ele teria sido um Redentor de corpos somente". Em conseqüência, "ele pagou um preço maior e muito mais excelente ao sofrer em sua alma os terríveis tormentos de um homem condenado e abandonado".32 Portanto, uma separação real e pavorosa aconteceu entre o Pai e o Filho; ela foi aceita, voluntariamente, tanto pelo Pai como pelo Filho; foi devida aos nossos pecados e sua justa recompensa; Jesus expressou esse horror de grandes trevas, este abandono de Deus, citando o único versículo da Escritura que corretamente o descrevia, e ao qual ele tinha cumprido perfeitamente, a saber: "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?" Das objeções e dos problemas teológicos trataremos mais tarde, embora já insistimos em que o desamparo de Jesus na cruz deve ser equilibrado com uma afirmação igualmente bíblica como: "Deus estava reconciliando consigo mesmo o mundo em Cristo". C. E. B. Cranfield tem razão ao enfatizar tanto a verdade de que Jesus experimentou "não apenas um abandono sentido, mas real,, de seu Pai" e "o paradoxo que, embora 35 esse abandono de Deus fosse totalmente real, a unidade da bendita Trindade permaneceu ainda assim com- pleta".33 A esta altura, porém, é suficiente sugerir que Jesus estivera meditando no Salmo 22, que descreve o cruel castigo de um homem inocente e justo, assim como ele estava meditando em outros salmos os quais citou da cruz;34 que ele citou o versículo 1 pelo mesmo motivo que citou todas as outras passagens bíblicas, a saber, que cria as estar cumprindo; que o seu grito teve a forma de uma pergunta, não porque não conhecesse a resposta, mas somente porque o próprio texto do Antigo Testamento (o qual ele estava citando) possuía essa forma. Quase imediatamente depois do grito de abandono, Jesus proferiu, em rápida sucessão, mais três palavras ou frases. Primeira: "Tenho sede". Seus grandes sofrimentos espirituais tinham-lhe cobrado o preço fisicamente. Segunda, ele clamou, novamente (segundo Mateus e Marcos) com grande voz: "Está consumado". E a terceira, tranqüila, voluntária e confiante auto-recomendação: "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!", enquanto tomava o último fôlego.35 O grito do meio, o alto grito de vitória é, nos Evangelhos, a palavra tetelestai. Estando no tempo perfeito, significa: "foi e para sempre será consumado". Percebemos a realização que Jesus reivindicou logo antes de morrer. Não foram os homens que consumaram sua ação brutal; foi ele que realizou o que veio ao mundo realizar. Ele levou os pecados do mundo. Deliberada, livre e perfeitamente em amor ele suportou o juízo em nosso lugar. Ele nos conseguiu a salvação, estabeleceu uma nova aliança entre Deus e a humanidade, e tornou disponível a principal bênção da aliança, o perdão dos pecados. Imediatamente, a cortina do templo, que durante séculos tinha simbolizado a alienação dos pecadores de Deus, rasgou-se de alto a baixo, a fim de demonstrar que Deus havia destruído a barreira do pecado, e aberto o caminho à sua presença. Trinta e seis horas mais tarde, Deus ressuscitou a Jesus dentre os mortos. Aquele que havia sido condenado ã morte em nosso lugar, foi publicamente vindicado em sua ressurreição. Foi a demonstração decisiva de Deus de que Jesus não havia morrido em vão. Tudo isso apresenta um quadro coerente e lógico. Dá uma explicação da morte de Jesus, tomando em relato científico apropriado os dados disponíveis, sem deixar nenhum de fora. Explica a importância central que Jesus atribuía à sua morte, por que ele instituiu a ceia a fim de comemorá-la, e como, mediante a sua morte, ratificou a nova aliança, com sua promessa de perdão. Explica a sua agonia de antecipação no jardim, sua agonia de abandono na cruz, e sua reivindicação de ter decisivamente realizado a nossa salvação. Todos esses fenômenos tornam-se inteligíveis se aceitarmos a explicação que Jesus deu aos seus apóstolos de que ele mesmo levou os nossos pecados em seu corpo no madeiro. Em conclusão, a cruz reforça três verdades: acerca de nós mesmos, acerca de Deus e acerca de Jesus Cristo. Primeira, nosso pecado deve ser extremamente horrível. Nada revela a gravidade do pecado como a cruz. Pois, em última instância, o que enviou Cristo ali não foi nem a ambição de Judas, nem a inveja dos sacerdotes, nem a covardia vacilante de Pilatos, mas a nossa própria ganância, inveja, covardia e outros pecados, e a resolução de Cristo em amor e misericórdia de levar o juízo desses pecados e desfazê-los. É impossível que encaremos a cruz de Cristo com integridade e não sintamos vergonha de nós mesmos. Apatia, egoísmo e complacência vicejam em todos os lugares do mundo, exceto junto à cruz. Aí, essas ervas nocivas secam-se e morrem. São vistas como as coisas horríveis e venenosas que realmente são. Pois se não havia outro modo pelo qual o Deus justo pudesse justamente perdoar a nossa injustiça, a não ser que a levasse sobre si mesmo em Cristo, deve ela, deveras, ser séria. Só quando vemos essa seriedade é que, desnudados de nossa autojustiça e auto-satisfação, estamos prontos para colocar nossa confiança em Jesus Cristo como o Salvador de quem urgentemente necessitamos. Segunda, a maravilha do amor de Deus deve ir além da compreensão. Deus podia, com justiça, ter-nos abandonado ao nosso próprio destino. Ele podia ter-nos deixado sozinhos para colhermos o fruto de nossos erros e perecermos em nossos pecados. É isso o que merecíamos. Mas ele não nos abandonou. Por causa do seu amor por nós, ele veio procurar-nos em Cristo. Ele nos foi ao encalço até mesmo na desolada angústia da cruz, onde levou o nosso pecado, a nossa culpa, o nosso juízo e a nossa morte. É preciso que o coração seja duro e de pedra para não se comover face a um amor como esse. E mais do que amor. Seu nome correto é "graça", que é o amor aos que não o merecem. Terceira, a salvação de Cristo deve ser um dom gratuito. Ele a "comprou" para nós com o alto preço de seu próprio sangue. De modo que o que nos resta pagar? Nada! Visto que ele reivindicou que tudo estava "consumado", nada há com que possamos contribuir. Não, é claro, que agora temos a permissão de pecar e podemos sempre contar com o perdão de Deus. Pelo contrário, a mesma cruz de Cristo, que é o fundamento de uma salvação gratuita, é também o incentivo mais poderoso a uma vida santa. Mas essa nova vida vem depois. Primeiro, temos de nos humilhar aos pés da cruz, confessar que pecamos e nada merecemos de suas mãos a não 36 ser o juízo, agradecer-lhe o nos ter amado e morrido por nós, e receber dele um perdão completo e gratuito. Contra essa humilhação própria o nosso orgulho se rebela. Ressentimos a idéia de que não podemos ganhar — nem mesmo contribuir — para a nossa própria salvação. De modo que tropeçamos, como disse Paulo, na pedra de tropeço da cruz.36 Segunda Parte O Coração da Cruz 4 O Problema do Perdão O "olhar abaixo da superfície" do capítulo anterior pode ter provocado em alguns leitores uma reação de im- paciência. "A simples ceia no cenáculo", você pode estar dizendo, "e até mesmo a oração de agonia no jardim e o grito da cruz, tudo isso deve ter explicação mais direta. Por que você complica tudo com o seu teologizar tor- tuoso?" É uma reação compreensível. Em particular, a nossa insistência de que segundo o evangelho a cruz de Cristo é o único fundamento sobre o qual Deus perdoa pecados confunde a muita gente. "Por que o nosso perdão depende da morte de Cristo?" perguntam. "Por que Deus não nos perdoa simplesmente, sem a necessidade da cruz?" Como disse certo cínico francês: "le bon Dieu me pardonnera; c'est son métier".1 "Afinal de contas", pode continuar o discordante, "se pecamos uns contra os outros, requer-se que perdoemo-nos uns aos outros. Somos até mesmo advertidos das terríveis conseqüências da falta de perdão. Por que Deus não pratica o que prega e é igualmente generoso? Não é preciso que ninguém morra para que nos perdoemos uns aos outros. Então por que Deus cria tanta confusão acerca de perdoar-nos e até declara que sem o sacrifício do seu Filho pelo pecado o perdão é impossível? Parece uma superstição primitiva a qual as pessoas modernas há muito deviam ter atirado fora." É essencial fazer essas perguntas e responder a elas. Podemos dar-lhes, de imediato, duas respostas, embora necessitemos do restante do capítulo a fim de elaborá-las. A primeira resposta vem do arcebispo Anselmo em seu grande livro Cur Deus Homo?, escrito no final do século onze. Escreveu ele que se alguém imagina que Deus pode simplesmente nos perdoar como nós perdoamos uns aos outros, essa pessoa "ainda não pensou na seriedade do pecado", ou literalmente "que peso tão grande o pecado é" (I.XXI). Poderíamos expressar a segunda resposta de modo similar: "Você ainda não considerou a majestade de Deus". Quando a percepção que temos de Deus e do homem, da santidade e do pecado, é tortuosa, então nossa compreensão da expiação provavelmente também será tortuosa. O fato é que a analogia entre o nosso perdão e o de Deus está muito longe de ser exata. É verdade, Jesus nos ensinou a orar, dizendo: "Perdoa-nos as nossas dívidas assim como nós temos perdoado aos nossos devedores". Mas ele estava ensinando a impossibilidade de perdão da parte da pessoa que não perdoa, e, assim, a obrigação que o perdoado tem de perdoar, como deixa claro a parábola do servo incompassivo; ele não estava fazendo um paralelo entre Deus e nós com relação à base do perdão.2 Argumentarmos que "perdoamo-nos uns aos outros incondicionalmente, que Deus faça o mesmo por nós", trai não sofisticação mas superficialidade, visto que deixa de lado o fato elementar de que não somos Deus. Somos indivíduos particulares, e os pequenos delitos das outras pessoas são danos pessoais. Deus não é um indivíduo particular, contudo, e o pecado tampouco é mero dano pessoal. Pelo contrário, o próprio Deus é o criador das leis que quebramos e o pecado é rebeldia contra ele. A pergunta crucial que devemos fazer, portanto, é diferente. Não é por que "Deus acha difícil perdoar, mas como é que ele acha possível, de algum modo, fazê-lo". Como disse Emil Brunner: "O perdão é o oposto de tudo aquilo que podemos ter como certo. Nada é menos óbvio do que o perdão".3 Ou, nas palavras de Carnegie Simpson: "O perdão, para o homem, é o mais claro dos deveres; para Deus é o mais profundo dos problemas".4 O problema do perdão é constituído pela colisão inevitável entre a perfeição divina e a rebeldia humana, entre Deus como ele é e nós como somos. O obstáculo ao perdão não é somente o nosso pecado nem somente a nossa culpa, mas também a reação divina em amor e ira para com os pecadores culpados. Pois embora, deveras, "Deus seja amor", contudo, temos de lembrar-nos de que o seu amor é "um amor santo",5 amor que anseia pelos pecadores enquanto ao mesmo tempo se recusa a tolerar o pecado. Como, pois, poderia Deus expressar o seu 37 criminal assume que as pessoas têm o poder de escolher obedecer à lei ou quebrá-la, e trata-as de acordo. Entretanto, a responsabilidade do crime pode ser atenuada, e até mesmo excluída por certas condições "justificativas". Em seus ensaios sobre a filosofia da lei intitulados Castigo e Responsabilidade, H. L. A. Hart define o princípio como segue: "Em todos os sistemas legais avançados, a responsabilidade da condenação por crimes sérios torna-se dependente, não apenas do ofensor, pelo fato de ter cometido esses atos externos proibidos pela lei, mas também pelo fato de tê-los praticado em certa estrutura mental, ou sob determinada vontade".6 Esse estado de mente e de vontade é conhecido tecnicamente como mens rea que, embora possa ser traduzido literalmente por mente culpada, na realidade refere-se à "intenção" da pessoa. Por exemplo, a distinção entre o homicídio intencional e o não intencional, isto é, entre o assassínio e o homicídio não premeditado volta diretamente à lei mosaica. O princípio também possui uma aplicação mais ampla. Se a pessoa comete um delito enquanto está fora de si, sob pressão ou como um autômato, não se pode estabelecer a responsabilidade criminal. A provocação pode reduzir o assassínio a homicídio não premeditado. A contestação por insanidade tem sido aceita durante anos, e tem sido interpretada desde as Regras de McNaghten de 1843 como "doença da mente", levando a coisas como "um defeito da razão", e que o ofensor ou não conhecia a "natureza e a qualidade do ato que estava praticando", ou, se o conhecia, "não sabia que o que estava fazendo era errado". Todavia, as Regras foram criticadas por se concentrarem na ignorância do ofensor, em vez de na falta de capacidade de controle pró- prio. De forma que o Ato de Infanticídio de 1938 faz provisão para atos cometidos por uma mulher quando "o equilíbrio de sua mente foi perturbado por motivo de ela não se ter recuperado totalmente do efeito do parto. . .", e o Ato de Homicídio de 1957 provê que uma pessoa "não será condenada por assassínio se estiver sofrendo de uma anomalia mental. . . a qual prejudicou substancialmente a responsabilidade mental de seus atos. . ." Assim, também, o Parlamento Inglês decidiu que criança alguma abaixo de dez anos de idade pode ser considerada culpada de um delito, ao passo que entre as idades de dez a quatorze anos é necessário que se prove especificamente que a criança sabia que o que estava fazendo era seriamente errado. Assim, a responsabilidade legal depende da responsabilidade mental e moral, isto é, da mens rea, a intenção da mente e da vontade. As objeções baseadas na falta de conscientização ou de controle, porém, sempre necessitarão de ser definidas com precisão, e constituem-se exceções. O acusado certamente não pode apelar para sua herança genética ou criação social como desculpa de um comportamento criminal, muito menos para a negligência pessoal ("Simplesmente não pensava no que fazia"). Não, em geral, o procedimento de julgar, condenar e sentenciar em nossos tribunais descansa sobre o conceito de que os seres humanos são livres para fazer escolhas e responsáveis pelas escolhas que fazem. A mesma coisa acontece nas situações do dia-a-dia. Admitimos que somos condicionados por nossos genes e por nossa educação, mas o espírito humano (para não mencionar a mente cristã) protesta contra o reducionismo segundo o qual o ser humano não passa de um computador (programado para realizar e responder) ou um animal (à mercê de seus instintos). Contra esses conceitos apelamos ao sentido inerradicável do homem de que, dentro de limites razoáveis, somos agentes livres, capazes de tomar nossas decisões e decidir nossas próprias ações. Quando uma alternativa se nos apresenta, sabemos que somos capazes de escolher. E quando fazemos uma escolha errada, reprovamos a nós mesmos, porque sabemos que podíamos ter-nos comportado de modo diferente. Também agimos na assunção de que as outras pessoas são livres e responsáveis, pois tentamos persuadi-las a aceitar nossa perspectiva, e "todos nós louvamos ou culpamos as pessoas de vez em quando".7 Acho que Sir Norman Anderson tem razão em chamar a atenção para esse senso humano de responsabilidade. Por um lado, escreve ele, podemos especular acerca da extensão a que as pessoas são "pre- condicionadas pela constituição e condição de seus cérebros, pela estrutura psicológica que herdaram ou adquiriram, pelo curso cego e inevitável da 'natureza' ou pela soberania de um Deus Criador, para se comportarem do modo como o fazem". Mas, por outro lado, é possível "afirmar inequivocamente que não há motivo nenhum para supor que os homens comuns estão enganados em sua firme convicção de que têm, dentro de limites, uma liberdade de escolha e ação genuína, e que esta traz, necessariamente, uma medida correspondente de responsabilidade moral".8 Os três contribuintes às Preleções sobre o Cristianismo Contemporâneo de Londres, em 1982, intituladas Livres para Ser Diferentes, chegaram à mesma conclusão. O Professor Malcolm Jeeves falou e escreveu como psicólogo, o Professor Sam Berre como geneticista, e o Dr. David Atkinson como teólogo. Juntos, investigaram as influências da "natureza" (nossa herança genética), da "nutrição" (nosso condicionamento social) e da "graça" (a iniciativa amorosa e transformadora de Deus) sobre o comportamento humano. Concordaram em que estas coisas, evidentemente, tanto amoldam como restringem o nosso comportamento. Entretanto, suas 40 preleções foram uma rejeição vigorosa e interdisciplinar do determinismo e uma asserção da responsabilidade humana. Embora o assunto todo seja, compreensivelmente, complexo, e não nos seja possível desembaraçar todos os fios, contudo os três contribuintes foram capazes de expressar esta conclusão comum: Não somos autômatos, incapazes de fazer qualquer coisa a não ser reagir mecanicamente aos genes, ambiente ou até mesmo à graça de Deus. Somos seres pessoais criados por Deus para si mesmo. . . Além do mais, o que Deus nos deu não deve ser visto como um dom estático. Nosso caráter pode ser refinado. Nosso comportamento pode mudar. Nossas convicções podem amadurecer. Nossas dádivas podem ser cultivadas. . . Nós, de fato, somos livres para ser diferentes. . .9 Quando nos voltamos para a Bíblia, descobrimos a mesma tensão, da qual temos consciência em nossa experiência pessoal, entre as pressões que nos condicionam e nos controlam, e nossa responsabilidade moral permanente. A Bíblia dá ênfase à influência de nossa herança, o que somos "em Adão". A doutrina do pecado original significa que a própria natureza que herdamos está manchada e distorcida pela centralidade do ego. É, portanto, de dentro do coração dos homens, ensinou Jesus, que procedem os pensamentos maus e as más ações (Marcos 7:21-23). Não é de surpreender que ele também descreveu o pecador como escravo do pecado (João 8:34). De fato, somos escravizados ao mundo (moda e opinião pública), à carne (nossa natureza caída), e ao diabo (forças demoníacas). Mesmo depois que Cristo nos liberta e nos torna seus escravos, não nos livramos inteiramente do poder insidioso de nossa queda, de modo que Paulo pode concluir seu argumento no capítulo 7 de Romanos com o seguinte resumo: "De maneira que eu, de mim mesmo, com a mente . sou escravo da lei de Deus, mas, segundo a carne, da lei do pecado" (v. 25b). A Escritura reconhece a sutileza e o poder dessas forças, as quais, verdadeiramente, diminuem nossa responsabilidade. E porque Deus sabe como fomos formados e se lembra de que somos pó que ele é paciente conosco, lento para irar e não nos trata como os nossos pecados merecem (Salmo 103:10, 14). Da mesma forma, o Messias de Deus é gentil com os fracos, recusando-se a quebrar a cana machucada ou apagar o pavio que fumega.10 Ao mesmo tempo, o reconhecimento bíblico de que nossa responsabilidade é diminuída não significa que ela tenha sido destruída. Pelo contrário, a Escritura, invariavelmente, trata-nos como agentes moralmente responsáveis. Coloca sobre nós a necessidade de escolher entre a vida e o bem, a morte e o mal, entre o Deus vivo e os ídolos.11 Exorta-nos à obediência e adverte-nos quando desobedecemos. O próprio Jesus pleiteou com a Jerusalém recalcitrante a que o reconhecesse e lhe desse as boas-vindas. Muitas vezes, disse ele, dirigindo-se à cidade, em seu discurso: "Quis eu reunir os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e vós não o quisestes!" (Mateus 23:37). Assim, ele atribuiu a cegueira espiritual de Jerusalém, sua apostasia e juízo vindouro à obstinação. É verdade que ele também disse que ninguém ia a ele a não ser que o Pai o levasse, mas somente depois de haver dito que eles se recusavam a ir a ele.12 Por que é que as pessoas não vão a Cristo? Será que não podem, ou será que não o desejam? Jesus ensinou ambas as coisas. E neste "não podem" e "não desejam" está o antinômio último entre a soberania divina e a responsabilidade humana. Mas, não importa a maneira pela qual a expressemos, não devemos eliminar nenhuma das partes. Nossa responsabilidade perante Deus é um aspecto inalienável de nossa dignidade humana. Sua expressão final será no dia do juízo. Todas as pessoas, grandes e pequenas, sem se levar em conta sua classe social, comparecerão perante o trono de Deus, não moídas ou forçadas, a fim de receber esse derradeiro sinal de respeito pela responsabilidade humana, à medida que cada um apresenta um relato do que fez. Emil Brunner certamente tem razão em dar ênfase à nossa responsabilidade como um aspecto indispensável de nossa condição de ser humano. "Hoje nosso slogan deve ser: fora com o determinismo por todos os meios! Pois torna impossível toda a compreensão do homem como homem."13 O homem tem de ser visto como "um ser que pensa e que tem vontade" responsivo e responsável para com o seu Criador, "a contraparte criada de sua auto-existència divina". Além do mais, essa responsabilidade humana é, em primeiro lugar, "não. . . um dever, mas um dom,. . . não lei, mas graça". Expressa-se em "amor que crê e é responsivo". De modo que, "a pessoa que compreendeu a natureza da responsabilidade entende a natureza do homem. A responsabilidade não é um atributo, é a 'substância' da existência humana. Contém tudo. . . é ela que distingue o homem das outras criaturas. . .". Portanto, "se a responsabilidade for eliminada, todo o sentido da existência humana desaparece." Mas, a Queda não enfraqueceu seriamente a responsabilidade do ser humano? Já não é ele responsável por suas ações? Sim, ele é. "O homem jamais peca totalmente por causa da fraqueza, mas sempre também pelo fato de que se entrega em fraqueza. Mesmo no mais obtuso pecador há uma fagulha de decisão", deveras uma rebelião desafiadora para com Deus. De modo que o ser humano não pode atribuir a sua responsabilidade à sua 41 própria maldade. "Destino algum, constituição metafísica alguma, fraqueza alguma de sua natureza, mas ele mesmo, o ser humano, no centro de sua personalidade é feito responsável pelo seu pecado." A culpa falsa e a verdadeira Se os seres humanos pecaram (o que aconteceu), e se são responsáveis por seus pecados (o que são), então são culpados perante Deus. A culpa é dedução lógica das premissas do pecado e responsabilidade. Erramos por nossa própria falta, e, portanto, devemos arcar com a justa penalidade de nosso erro. É este o argumento dos primeiros capítulos da carta aos Romanos. Paulo divide a raça humana em três secções maiores, e mostra como cada uma conhece algo do seu dever moral, mas deliberadamente suprime seu conhecimento a fim de seguir o seu próprio caminho pecaminoso. Nos dizeres de João: "O julgamento é este: Que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz; porque as suas obras eram más" (João 3:19). Nada é mais sério do que a rejeição deliberada da luz da verdade e bondade. Paulo inicia falando da sociedade decadente romana. O povo conheceu o poder e a glória de Deus através da criação, e sua santidade por meio da sua consciência, mas se recusaram a viver de acordo com o seu conhecimento. Pelo contrário, deixaram a adoração e se entregaram à idolatria. De modo que Deus os entregou à imoralidade e outras formas de comportamento anti-social (Romanos 1:18-32). A segunda secção da humanidade a que Paulo se dirige é o mundo autojustificado, cujo conhecimento da lei de Deus pode estar nas Escrituras (os judeus) ou em seus corações (os gentios). A terceira secção é o mundo especificamente judaico, cujos membros têm orgulho do conhecimento que possuem e da instrução moral que dão a outros. Contudo, à mesma lei que ensinam, também desobedecem. Sendo esse o estado deles, sua condição privilegiada de povo da aliança não os protegerá do juízo divino (2:17-3:20). É esse ponto de vista um tanto mórbido? Nós, os cristãos, com freqüência temos sido criticados (não menos os cristãos evangélicos) por falarmos continuamente do pecado, por nos tornarmos obcecados com ele em nossas próprias vidas e especialmente em nossa evangelização, por tentarmos induzir nos outros um sentimento de culpa. Nietzsche, por exemplo, reclamava amargamente de que o "Cristianismo necessita de doença. . . Tornar doente é o objetivo verdadeiro e oculto de todo o sistema de procedimentos de salvação pregado pela Igreja. . . A pessoa não se 'converte' ao Cristianismo — ela deve estar suficientemente enferma para ele".14 Nietzsche em parte estava certo, a saber, que o Cristianismo é remédio para os doentes do pecado. Afinal de contas, o próprio Jesus defendeu sua concentração nos publicanos e pecadores, dizendo: "Os sãos não precisam de médico, e, sim, os doentes; não vim chamar justos, e, sim, pecadores" (Marcos 2:17). Entretanto, vigorosamente negamos que o papel da igreja é "tornar" as pessoas doentes a fim de convertê-las. Pelo contrário, temos de fazê-las conscientes de sua enfermidade, a fim de que se voltem para o grande Médico. Contudo, persiste a crítica de que os cristãos possuem uma preocupação doentia pelo pecado. Um porta-voz desse modo de pensar, contemporâneo e eloqüente, é o ex-correspondente para Assuntos Religiosos da BBC, Gerald Priestland. Em uma de suas palestras da série Progresso de Priestland, transmitida pelo rádio, ele contou que aos dez anos de idade pensava que o Cristianismo se ocupava do pecado, e ao chegar aos quinze estava tendo "vislumbres do abismo da depressão", acompanhados de temores da vingança divina por seus "inomináveis crimes secretos", temores que continuaram a crescer nos próximos trinta anos. O seu Cristianismo não lhe ajudou em nada. "Quando eu olhava para a cruz, e sua vítima sofredora, a única mensagem que recebia era: Você fez isto — e não há saúde em você!" Sua conversão, equivalente à experiência na estrada de Damasco, aconteceu finalmente no "divã do psiquiatra", pois foi aí que ele aprendeu "o elemento que faltava do perdão". Desde então ele confessa possuir "um nível relativamente baixo de culpa pessoal e pouco interesse pelo assunto do pecado". A história de Gerald Priestland não pára aí, mas esse trecho é ilustração suficiente do grave dano que meias- verdades podem causar. Como poderia alguém imaginar que o Cristianismo se ocupa do pecado em vez do perdão de pecados? Como pode alguém olhar para a cruz e ver somente a vergonha do que fizemos a Cristo, em vez da glória do que ele fez por nós? O filho pródigo teve de "cair em si" (reconhecer a centralidade do seu ego) antes que pudesse "vir a seu pai". Foi necessária a humilhação da penitência, antes da alegria da reconciliação. Não teria havido anel, veste, beijo, festa se ele tivesse permanecido no país distante, ou retornado impenitente. Uma consciência culpada será uma grande bênção somente se nos forçar a voltar para casa. Não quero dizer com isto que a nossa consciência seja um guia de confiança. Há a consciência mórbida, exageradamente escrupulosa, e procurar deliberadamente criar uma desse tipo seria daninho. Entretanto, nem todos os sentimentos de culpa são patológicos. Pelo contrário, os que se declaram sem pecado e sem culpa 42 Deus "pune" ou "julga" o mal? Sim, podemos e devemos. Deveras, o pano de fundo essencial da cruz não é somente o pecado, a responsabilidade e a culpa dos seres humanos, mas também a justa reação de Deus a essas coisas, em outras palavras, sua santidade e ira. A santidade de Deus é o fundamento da religião bíblica. Também o é o corolário de que o pecado é incompatível com a sua santidade. Os olhos dele são puros demais para contemplar o mal e ele não pode tolerar o erro. Portanto, os nossos pecados eficazmente nos separam dele, de modo que o seu rosto está escondido de nós e ele se recusa a ouvir as nossas orações.19 Em conseqüência, os autores bíblicos entendiam claramente que ser humano algum jamais poderia ver a Deus e sobreviver. Pode ser que lhes fosse permitido ver as suas "costas" mas não o seu "rosto", o brilho do sol, mas não o Sol.20 E todos aqueles que receberam até mesmo um vislumbre da glória divina não conseguiram suportar a visão. Moisés escondeu o rosto porque estava com medo de olhar para Deus. Quando Isaías teve a sua visão de Yavé entronizado e exaltado, foi vencido pelo senso de sua im- pureza. Quando Deus se revelou pessoalmente a Jó, a reação deste foi desprezar a si mesmo e arrepender-se na cinza e no pó. Ezequiel viu somente a aparência da semelhança da glória do Senhor, em chama ardente e luz brilhante, mas foi suficiente para que ele caísse prostrado ao chão. Em uma visão similar, Daniel também caiu com o rosto ao chão e desmaiou. Quanto àqueles que foram confrontados pelo Senhor Jesus Cristo, até mesmo durante a sua vida terrena, quando a sua glória estava velada, sentiram um profundo incômodo. Por exemplo, em Pedro ele provocou um senso de sua pecaminosidade e indignidade de estar na presença do Senhor. E quando João viu a elevada magnificência do Senhor, caiu a seus pés como morto.21 Intimamente relacionada com a santidade de Deus está a sua ira, a qual é, de fato, sua reação santa ao mal. Certamente não podemos descartá-la dizendo que o Deus de ira pertence ao Antigo Testamento, ao passo que o Deus do Novo é amor. Pois o amor de Deus claramente se manifesta no Antigo Testamento, como também a sua ira no Novo. R. V. G. Tasker escreveu, com acerto: "É um axioma bíblico não haver incompatibilidade entre estes dois atributos da divina natureza; e, em sua maioria, os grandes teólogos e pregadores cristãos do passado esforçaram-se para ser leais a ambos os lados da auto-revelação divina."22 Contudo, o conceito de um Deus irado continua a levantar problemas na mente dos cristãos. Como pode uma emoção, perguntam, a qual Jesus equiparou ao assassínio, e a qual Paulo declarou ser um dos "atos da natureza pecaminosa", e da qual devemos nos livrar, ser atribuída ao Deus todo-santo?23 Uma tentativa de explicação associa-se especialmente com o nome de C. H. Dodd, e com o seu comentário sobre a Epístola de Paulo aos Romanos. Ele ressalta que, embora ao lado das referências que Paulo faz ao amor de Deus ele também tenha escrito que Deus nos amou, contudo, ao lado das referências à ira divina ele jamais escreve que Deus está irado contra nós. Além da ausência do verbo "irar", Paulo constantemente usa o substantivo orge (ira ou raiva) "de um modo curiosamente impessoal". Ele se refere à "ira" sem especificar de quem ela é, e assim, quase a torna absoluta. Por exemplo, ele escreve do dia da ira de Deus, ou como a lei traz a ira, e de como a ira desceu sobre os judeus incrédulos, ao passo que os crentes foram salvos da ira vindoura através de Jesus Cristo.24 A dedução que Dodd faz dessa evidência é que Paulo reteve o conceito da ira "não com a finalidade de descrever a atitude de Deus para com o homem, mas a fim de descrever um processo inevitável de causa-efeito sobre um Universo moral". O Professor A. T. Hanson elaborou a tese de C. H. Dodd em uma de suas pesquisas bíblicas. Chamando a atenção para uma "marcante tendência" entre os autores bíblicos pós-exílicos de "falar da ira divina de maneira muito impessoal", ele a define como o "processo inevitável de o pecado solucionar-se por si mesmo na história". Indo ao Novo Testamento, escreve ele: "não pode haver dúvida de que para Paulo o caráter impessoal da ira era importante; liberava-o da necessidade de atribuir ira diretamente a Deus, transformava a ira de atributo divino em nome de um processo, o qual os pecadores trazem sobre si mesmos". Porque a ira é "totalmente impessoal" e "não descreve uma atitude de Deus, mas uma condição dos homens". A expressão "liberava-o da necessidade" é reveladora. Sugere que Paulo sentia-se incomodado com a noção da ira pessoal de Deus, procurava escapar de ter de crer nela e ensiná-la, e foi liberto do seu fardo ao descobrir que a ira não era uma emoção divina, atributo ou atitude, mas um processo histórico impessoal que afetava os pecadores. Nessa questão, parece que o Professor Hanson está projetando sobre Paulo o seu próprio dilema, pois é franco o suficiente ao ponto de confessar que também tem um problema desses. Para o final do seu argumento, ele escreve: "Uma vez que nos permitamos ser levados a pensar que a referência à ira de Deus no Novo Testamento significa que a sua concepção é a de um Deus irado. . . não podemos deixar de manter que em algum sentido o Filho suportou a ira do Pai, não podemos deixar de pensar em termos forenses, com toda a tensão e violência ao nosso senso de justiça moral dado por Deus que tal teoria envolve". Ele parece estar 45 dizendo que é a fim de vencer essas "apavorantes dificuldades" que reinterpretou a ira de Deus. Dizer que Cristo levou a "ira" sobre a cruz, mantém Hanson, significa que ele "suportou as conseqüências dos pecados dos homens", não a sua penalidade. Portanto, devemos tomar cuidado com nossas pressuposições. É perigoso começar com qualquer condição a priori, até mesmo com um "senso de justiça moral dado por Deus", o qual então molda nossa compreensão da cruz. É mais prudente e seguro começar indutivamente com uma doutrina da cruz dada por Deus, a qual então molda nossa compreensão da justiça moral. Mais tarde espero demonstrar que é possível manter um conceito bíblico e cristão da "ira" e da "propiciação" que, longe de contradizer a justiça moral, expressa-a e a protege. As tentativas que C. H. Dodd, A. T. Hanson e outros fizeram de reconstruir a "ira" como um processo impessoal devem ser consideradas, no mínimo, não provadas. É certo que às vezes a palavra é usada sem referência explícita a Deus, e com ou sem o artigo definido, mas a frase completa "a ira de Deus" também é usada, aparentemente sem embaraço algum, tanto por Paulo como por João. Sem dúvida, Paulo também ensinou que a ira de Deus estava sendo revelada no presente através da deterioração moral da sociedade pagã e por meio da administração da justiça estatal.25 Todavia, estes processos não são identificados com a ira de Deus, mas tidos como manifestações dela. A verdade de que a ira de Deus (isto é, seu antagonismo ao mal) está ativa através dos processos sociais e legais não leva à conclusão de que ela é, em si mesma, um contínuo puramente impessoal de causa-e-efeito. Talvez o motivo de Paulo ter adotado expressões impessoais não seja a fim de afirmar que Deus jamais se enraivece, mas enfatizar que sua ira não possui nenhum matiz de malícia pessoal. Afinal, Paulo às vezes menciona charis (graça) sem se referir a Deus. Ele pode escrever, por exemplo, do aumento da graça e do reino da graça (Romanos 5:20, 21). Contudo, por esse motivo não despersonalizamos a graça nem a convertemos numa influência ou processo. Pelo contrário, graça é a palavra mais poderosa de todas; graça é o próprio Deus agindo graciosamente para conosco. E assim como charis representa a atividade pessoal graciosa do próprio Deus, da mesma forma orge representa sua hostilidade à impiedade, igualmente pessoal. Como, pois, definiremos a ira? Escrevendo a respeito da ira humana, James Denney chamou-a de "o ressentimento ou a reação instintiva da alma a tudo o que percebe como errado ou prejudicial", e "a repulsão veemente daquilo que fere".26 De maneira similar, a ira de Deus, nas palavras de Leon Morris, é sua "revulsão pessoal e divina ao mal" e sua "oposição pessoal e vigorosa" a ele.27 Referir-se desta forma à ira de Deus, é fazer uso de um antropormofismo legítimo, desde que o consideremos apenas como um tosco e fácil paralelo, visto que a ira de Deus é absolutamente pura e não contaminada pelos elementos que tornam pecaminosa a ira humana. A ira humana em geral é arbitrária e desinibida; a ira divina é sempre íntegra e controlada. Nossa ira tende a ser uma explosão espasmódica, despertada por melindres e desejos de vingança; a de Deus é um antagonismo contínuo e constante, despertado somente pelo mal, e expresso na condenação dele. Deus é totalmente livre de animosidade ou sentimentos de vingança pessoal; de fato, ele é alimentado simultaneamente pelo amor constante ao ofensor. O resumo de Charles Cranfaeld é que a orge de Deus não é nenhum "pesadelo de uma fúria indiscriminada, descontrolada e irracional, mas a ira de um Deus santo e misericordioso trazida para fora pela asebeia (impureza) e adikia (injustiça) dos homens e contra elas dirigida".28 O fator comum aos conceitos bíblicos da santidade e da ira de Deus é a verdade de que não podem coexistir com o pecado. A santidade de Deus expõe o pecado, e a sua ira se opõe a ele. De forma que o pecado não pode chegar-se a Deus, e Deus não pode tolerar o pecado. A Escritura usa diversas metáforas vividas como ilustração desse fato voluntarioso. A primeira é a altura. Freqüentemente, na Bíblia, o Deus da criação e da aliança é chamado de o "Deus Altíssimo", e vários salmos o apresentam como o "Senhor Altíssimo".29 Sua elevada exaltação expressa tanto a sua soberania sobre as nações, a terra e todos os deuses,30 como sua irtacessibilidade aos pecadores. É verdade que o seu trono é chamado de "trono da graça", e é rodeado pelo arco-íris da promessa da aliança. Entretanto, é o "Alto, o Sublime" e ele próprio é o "alto e exaltado", que não habita em casas feitas por mãos humanas, visto que o céu é o seu trono e a terra o estrado dos seus pés; de modo que os pecadores não tomem a liberdade de chegar-se a ele.31 É verdade, repito, que ele desce até o contrito e humilde, que encontra segurança em sua sombra. Os pecadores orgulhosos, porém, ele os conhece apenas de longe, e não pode suportar o orgulho e a altivez dos olhos dos arrogantes.32 A "alta" exaltação de Deus não é literal, é claro, e jamais deve ser tomada como tal. O recente clamor acerca de abandonar um Deus "lá em cima" foi em grande parte supérfluo. Os escritores bíblicos usaram a altura como um símbolo da transcendência, assim como nós o fazemos. É mais expressiva do que profundeza. "O 46 Fundamento do Ser" pode falar da realidade última a algumas pessoas, mas "o Alto e Sublime" transmite mais explicitamente a singularidade divina. Quando pensarmos no Deus grande e vivente, é melhor olharmos para cima do que para baixo, e para fora do que para dentro de nós mesmos. O segundo quadro é de distância. Deus não apenas está alto acima de nós, mas também "longe de nós". Não ousamos chegar perto demais. De fato, muitos são os mandamentos bíblicos a que mantenhamos nossa distância. "Não te chegues para cá", disse Deus a Moisés, da sarça ardente. De modo que as preparações para o culto de Israel expressavam as verdades contemporâneas da proximidade de Deus ao povo por causa da sua aliança e da separação que mantinha para com eles em virtude de sua santidade. Mesmo quando desceu até o povo no monte Sinai a fim de revelar-se, Deus disse a Moisés que colocasse limites para o povo ao redor da base da montanha e instasse com eles a que não chegassem perto. Da mesma forma, quando Deus deu instruções para a construção do tabernáculo (mais tarde do templo), prometeu viver entre o seu povo e ao mesmo tempo admoestou-os a erigir uma cortina no Santo dos Santos como um sinal permanente de que ele estava fora de alcance dos pecadores. Ninguém tinha permissão de penetrar no véu, sob pena de morte, exceto o sumo sacerdote, e ainda este, apenas uma vez por ano no dia da Expiação, e então só se levasse consigo o sangue do sacrifício.33 E quando os israelitas estavam para cruzar o Jordão e entrar na Terra Prometida, receberam este mandamento preciso: "Haja a distância de cerca de dois mil côvados entre vós e ela (a arca). Não vos chegueis a ela" (Josué 3:4). É contra o pano de fundo desse ensino claro acerca da santidade de Deus e acerca dos perigos da presunção que se deve compreender a história da morte de Uzá. Quando os bois que levavam a arca tropeçaram, ele estendeu a mão e a segurou. "Então a ira do Senhor se acendeu contra Uzá, e Deus o feriu ali por esta irreverên- cia",34 e ele morreu. Alguns comentaristas têm a tendência de protestar que essa "primitiva" compreensão do Antigo Testamento da ira de Deus é "fundamentalmente uma coisa irracional e, em última análise, inexplicável, que irrompeu com força enigmática, misteriosa e primeva" e que chegou bem perto do "capricho".35 Mas não, nada há de inexplicável acerca da ira de Deus: sua explicação é sempre a presença do mal de uma forma ou de outra. Os pecadores não podem chegar-se ao todo-santo Deus sem impunidade. No último dia, os que não encontraram refúgio e purificação em Cristo ouvirão as palavras mais terríveis de todas: "Apartai-vos de mim".36 O terceiro e quarto quadros da inacessibilidade do Deus santo aos pecadores são os de luz e fogo: "Deus é luz", e "nosso Deus é fogo consumidor". Ambos desanimam, de fato inibem, uma aproximação. A luz brilhante cega; nossos olhos não podem suportar o seu brilho, e no calor do fogo tudo murcha e morre. De modo que Deus "habita em luz inacessível"; "homem algum jamais viu, nem é capaz de ver". E aqueles que deliberadamente rejeitam a verdade têm "certa expectação horrível de juízo e fogo vingador prestes a consumir os adversários. . . Horrível coisa é cair nas mãos do Deus vivo."37 A quinta metáfora é a mais dramática de todas. Indica que o santo Deus rejeita o mal tão decisivamente quanto o corpo humano rejeita o veneno mediante o vômito. O vômito é, provavelmente, a reação mais violenta do corpo humano. As práticas imorais e idolatras dos cananeus eram tão repulsivas, como está escrito, que a terra "vomitou os seus moradores", e os israelitas foram prevenidos de que se cometessem as mesmas ofensas, a terra os vomitaria também. Além do mais, o que se afirma ser o repúdio do mal da parte da terra na realidade o é da parte do Senhor. Pois no mesmo contexto declara-se que ele "se aborreceu" dos cananeus por causa de suas atividades ímpias. Usa-se a mesma palavra hebraica com relação à desobediência voluntariosa de Israel no deserto: "Durante quarenta anos estive desgostado com essa geração". Aqui também é provável que o verbo se refira ao alimento nauseante, como na afirmativa: "Nossa alma tem fastio deste pão vil". Nossa criação delicada pode achar que esta metáfora natural seja embaraçosa. Contudo, ela continua no Novo Testamento. Quando Jesus ameaça "vomitar" os membros da igreja de Laodicéia por serem mornos, é justamente isso que o verbo grego significa (emeo). O quadro pode ser chocante, mas seu significado é claro. Deus não pode tolerar ou "digerir" pecado e hipocrisia. Não lhe causam meramente dissabor, mas também desgosto, São-Ihe tão repugnantes que deve livrar-se deles. Deve cuspi-los ou vomitá-los.38 As cinco metáforas exemplificam a incompatibilidade total da santidade divina com o pecado humano. Altura e distância, luz, fogo e vômito, tudo diz que Deus não pode estar na presença do pecado, e que se este chegar-se a ele é repudiado e consumido. Contudo, essas noções são estranhas ao homem moderno. O tipo de Deus que agrada à maioria das pessoas hoje teria uma disposição fácil quanto à tolerância de nossas ofensas. Ele seria amável, gentil, acomodatício, e não possuiria nenhuma reação violenta. Infelizmente, até mesmo na igreja parece que perdemos a visão da majestade de Deus. Há tanta superficialidade e frivolidade entre nós. Os profetas e os salmistas provavelmente diriam de nós que não temos o temor de Deus perante nossos olhos. Na adoração pública nosso hábito é nos 47 Para nós, a analogia do anzol é grotesca, como também o uso sermônico da imagem da ratoeira de Agostinho. Pedro Lombardo usaria a mesma imagem séculos mais tarde, afirmando que a "cruz foi uma ratoeira que continha a isca do sangue de Cristo".4 É certo que esses teólogos podem muito bem ter desenvolvido tais quadros como uma concessão à mente popular, e os Pais primitivos viram certa justiça na idéia de que aquele que havia enganado a raça humana, levando-a à desobediência, fosse enganado e levado à derrota. Porém atribuir ação fraudulenta a Deus é indigno dele. O valor permanente dessas teorias é que, primeiro, levaram a sério a realidade, a malevolência e o poder do diabo (o "valente, bem armado" de Lucas 11:21), e, segundo, que proclamaram a sua derrota decisiva e objetiva na cruz para nossa libertação (por aquele "mais valente" que o atacou e o sobrepujou (Lucas 11:22).5 Entretanto, R. W. Dale não estava exagerando quando as chamou de "intoleráveis, monstruosas e profanas".6 Negamos que o diabo tenha sobre nós quaisquer direitos que Deus seja obrigado a satisfazer. Conseqüentemente, toda noção da morte de Cristo que a relacione a uma necessária transação com o diabo, ou com o seu engano, está fora de cogitação. Satisfazendo à lei Outra maneira de explicar a necessidade moral da "satisfação" divina na cruz tem sido exaltar a lei. Pecado é "transgressão da lei" (1 João 3:4), desrespeito e desobediência à lei de Deus. A lei, porém, não pode ser quebrada sem a punição do infrator. Os pecadores, portanto, incorrem na penalidade da sua transgressão. Não podem simplesmente sair ilesos. A lei deve ser sustentada, sua dignidade defendida e suas justas penalidades pagas. A lei, assim, é "satisfeita". Uma ilustração popular dessa verdade é a história do rei Dario no livro de Daniel (capítulo 6). Ele nomeou 120 sátrapas para governar Babilônia, e colocou três administradores acima deles, entre os quais estava Daniel. Além disso, tais eram as qualidades excepcionais de Daniel e o seu serviço que o rei planejou promovê-lo, colocando-o acima de todos os seus colegas. Isso despertou-lhes a inveja, e começaram imediatamente a tramar a sua queda. Vigiando-o como gaviões, tentaram descobrir alguma incoerência ou ineficiência em sua conduta pública para que pudessem levantar acusações contra ele. Mas falharam, "porque ele era fiel, e não se achava nele nenhum erro nem culpa" (v. 4). De forma que voltaram seu exame à vida privada de Daniel; sua única esperança, pensavam, era culpá-lo por alguma falta técnica em relação com sua devoção religiosa regular. Conseguiram fazer com que o rei estabelecesse um decreto e fizesse "firme o interdito que todo o homem que, por espaço de trinta dias fizer petição a qualquer outro deus, ou a qualquer homem, e não a ti, ó rei, seja lançado na cova dos leões" (v. 7). Com incrível ingenuidade, o rei caiu na armadilha deles. Mandando escrever o decreto, tornou-o inalterável, "segundo a lei dos medos e dos persas, que se não pode revogar" (vv. 8 e 9). A publicação do decreto chegou aos ouvidos de Daniel, mas não fez que ele mudasse sua rotina. Pelo contrário, continuou a orar ao seu Deus três vezes por dia. O seu costume era orar em seu quarto no andar superior, cujas janelas davam para Jerusalém, Aí ele era visível aos transeuntes, e aí os seus inimigos o viram. Voltaram imediatamente ao rei e relataram a quebra flagrante por Daniel do decreto real. "Tendo o rei ouvido estas coisas, ficou muito penalizado, e determinou consigo mesmo livrar a Daniel; e até ao pôr-do-sol se empenhou por salvá-lo" (v. 14). Mas não conseguiu encontrar solução ao problema legal que havia criado para si mesmo. Seus administradores e sátrapas lembraram-no de que "é lei dos medos e dos persas que nenhum interdito ou decreto, que o rei sancione, se pode mudar" (v. 15). Assim, Dario, relutantemente, curvou-se ao inevitável e deu ordem para que Daniel fosse atirado na cova dos leões. A lei havia triunfado. Muitos são os pregadores (e eu estou incluído nesse grupo) que têm usado essa história com a finalidade de ressaltar o dilema divino. Dario respeitava a Daniel e se empenhou por encontrar um meio de salvá-lo, mas a lei deve percorrer seu percurso e não deve ser molestada. Assim, Deus nos ama a nós, pecadores, e anseia salvar- nos, mas não pode fazê-lo mediante a violação da lei que justamente nos condenou. Daí a necessidade da cruz, sobre a qual a penalidade da lei foi paga e a sua santidade vindicada. Como um recente expositor dessa perspectiva menciono Henry Wace, Deão de Cantuária de 1903 a 1924: Uma lei que não possui sanção, no sentido técnico dessa expressão — em outras palavras, uma lei que pode ser quebrada sem penalidade adequada, não é lei de modo nenhum; é inconcebível que a lei moral de Deus possa ser violada sem trazer conseqüências do tipo mais terrível. A mera quebra de uma das suas leis físicas pode trazer, quer os homens tenham pretendido violá-la quer não, a miséria mais duradoura e geral; 50 será que podemos supor, com razão, que a quebra mais flagrante e voluntariosa das mais altas de todas as leis — as da verdade e da justiça — não trariam tais resultados?7 Repetimos, "Deus não pode abolir a constituição moral das coisas que estabeleceu". É verdade que o Deão Wace prosseguiu a qualificar essas afirmativas, Iembrando-nos de que o mundo moral não é "uma espécie de máquina moral na qual as leis operam, assim como o fazem na natureza física", e que "temos de tratar não simplesmente com uma ordem estabelecida, mas também com uma personalidade viva, com um Deus vivo". Entretanto, ele se refere novamente à "penalidade necessariamente envolvida na violação da lei divina".8 Não tenho o propósito de discordar dessa linguagem, e, deveras, eu mesmo continuo a usá-la. Ela possui, de fato, boa justificativa escriturística. Paulo cita Deuteronômio com aprovação, no sentido de que cada infrator da lei é "amaldiçoado", e a seguir afirma que "Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar" (Gálatas 3:10, 13). Se, portanto, Paulo não teve receio de usar uma expressão impessoal como "maldição da lei", nós também não devemos tê-lo. Os Pais latinos do quarto século, como Ambrósio e Hilário, regularmente expunham a cruz nesses termos. Indo mais longe que Tertuliano, o primeiro a usar os termos legais "mérito" e "satisfação" acerca da relação do cristão com Deus, interpretaram textos como Galatas 3:13 à luz do "satisfactio da lei pública romana, que significa a perduração da sentença da lei".9 Os Reformadores do século dezesseis desenvolveram essa idéia um pouco mais. Enfatizaram corretamente que a submissão pessoal de Jesus Cristo à lei era indispensável à nossa redenção da sua condenação. Também ensinaram que a submissão dele tomou duas formas, sua perfeita obe- diência à lei durante a vida e o seu carregar a penalidade em sua morte. Chamaram a primeira de obediência "ativa" e a segunda de "passiva". Contudo, esses adjetivos são inexatos, uma vez que a obediência de Jesus até à morte na cruz foi tão "ativa" (isto é, voluntária e determinada) como a sua submissão obediente à lei moral. Sua obediência à vontade do Pai é a mesma, quer em sua conduta quer em sua missão, em sua vida ou em sua morte. O valor de continuarmos a falar da obediência "dupla" de Cristo é que então distinguimos entre o cumprimento das exigências da lei e o sofrimento da condenação da lei. Ambos os tipos de submissão eram essenciais à eficácia da cruz. Entretanto, precisamos estar alertas aos perigos da linguagem legal e da inadequação de compararmos a lei moral de Deus às leis civis do país ou às leis físicas do Universo. É verdade que parte da glória de uma monarquia constitucional é que até mesmo o monarca não está acima da lei, mas sob ela, sendo necessário que obedeça às suas provisões e (se as quebrar) sofra suas penalidades. Dario provê um bom exemplo dessa situação. Entretanto, o decreto que ele promulgou foi tolo e apressado, uma vez que não continha uma cláusula acerca da consciência religiosa e, assim, levou ao castigo de um homem justo por uma ação justa. O rei jamais havia pretendido que seu decreto tornasse tal ação uma ofensa punível, Não podemos pensar que Deus se deixasse apanhar numa confusão técnica e legal desse tipo. Nem é prudente comparar as leis morais divinas às suas leis físicas e então declará-las igualmente inflexíveis. Por exemplo, "se a pessoa puser a mão no fogo ela se queimará, e se quebrar os Dez Mandamentos, será punida". Há verdade na analogia, mas o conceito de penalidades mecânicas é enganoso. Pode ser verdade quanto às leis naturais, embora estritamente não sejam "leis" que comprometam as ações divinas, mas uma descrição da uniformidade normal de sua ação a qual o seres humanos observaram. O motivo real pelo qual a desobediência às leis morais de Deus traz condenação não é que Deus seja prisioneiro delas, mas que ele é o seu criador. Como R. W. Dale disse, a conexão de Deus com a lei não "é uma relação de sujeição, mas de identidade. . . Em Deus a lei é viva; ela reina no seu trono, brande o seu cetro,.é coroada com a sua glória".10 Pois a lei é a expressão do seu próprio ser moral, e o seu ser moral é sempre autocoerente. Nathaniel Dimock capta muito bem essa verdade nas seguintes palavras; Não pode haver nada. . . nas exigências da lei, na sua severidade, e na sua condenação, na sua morte, e na sua maldição, que não seja um reflexo (parcial) das perfeições de Deus. Tudo o que for devido à lei é devido a ela por ser a lei de Deus, e, portanto, é devido ao próprio Deus.11 Satisfazendo à honra e à justiça de Deus Se os Pais gregos primitivos representavam a cruz primariamente como uma "satisfação" ao diabo, no sentido de ser o preço do resgate que ele exigiu e que lhe foi pago, e os País latinos viam-na como uma satisfação da lei de Deus, Anselmo de Cantuária, no décimo primeiro século, deu-lhe um tratamento novo em seu Cur Deus Homo? fazendo uma exposição sistemática da cruz como uma satisfação da honra ofendida de Deus. O livro dele "marcou época em toda a história de nossa doutrina", escreveu R. S. Franks, "pois pela primeira vez, de uma maneira completa e coerente, aplica à elucidação do assunto as concepções da satisfação 51 e do mérito".12 James Denney foi além e chamou-o de "o livro mais verdadeiro e mais excelente sobre a ex- piação que jamais foi escrito."13 Anselmo, um italiano piedoso, primeiro viveu na Normandia, e depois, em 1093, após a conquista normanda foi nomeado arcebispo de Cantuária. Ele tem sido descrito como o primeiro representante do "eruditismo" medieval, uma tentativa de reconciliar a filosofia com a teologia, a lógica aristotélíca com a revelação bíblica. Embora ele tivesse incluído em seus escritos grande número de citações bíblicas, e tivesse feito referências à Sagrada Escritura como um "firme fundamento", seu interesse maior era ser "agradável à razão". Nas palavras de Boso, seu interlocutor imaginário: "o caminho pelo qual me conduzes é tão fechado pelo raciocínio em ambos os lados que parece que eu não consigo virar-me nem para a direita nem para a esquerda". Em Cur Deus Homo?, o maior tratado de Anselmo sobre o relacionamento da encarnação com a expiação, ele concorda em que o diabo precisava ser derrotado, mas rejeita as teorias patrísticas de resgate pelo motivo de que "Deus nada devia ao diabo a não ser castigo". Deveras, o homem devia algo a Deus, e essa é a dívida que necessitava ser paga. Pois Anselmo define o pecado como "não dar a Deus o que lhe é devido", a saber, a submissão de toda a nossa vontade a ele. Pecar, portanto, é "tomar de Deus o que é dele", o que significa roubar dele e, assim, desonrá-lo. Se alguém imagina que Deus pode simplesmente perdoar-nos do mesmo modo que devemos perdoar uns aos outros, ainda não considerou a seriedade do pecado. Sendo uma desobediência inescusável da vontade conhecida de Deus, o pecado o desonra e o insulta, e "nada é menos tolerável. . . do que tomar a criatura do Criador a honra que lhe é devida, e não devolver o que retira". Deus não pode tolerar tal coisa. "Não é correto Deus passar por alto os pecados assim não punidos". É mais do que inapropriado, é impossível. "Não condiz com Deus fazer qualquer coisa injusta ou irregularmente, não está dentro do alcance de sua liberdade ou bondade ou vontade deixar sem punição o pecador que não devolve a Deus o que tomou". "Deus a nada tem como mais justo do que a honra de sua própria dignidade". Portanto, o que se pode fazer? Se desejamos ser perdoados, devemos pagar o que devemos. Contudo, somos incapazes de fazê-lo, por nós mesmos ou por outras pessoas. Nossa obediência presente e boas obras não podem satisfazer a nossos pecados, pois elas são requeridas de nós de qualquer modo. De forma que não podemos salvar a nós mesmos. Nem pode qualquer outro ser humano salvar-nos, visto que "um pecador não pode justificar outro pecador". Daí o dilema com o qual termina o Livro I: "O homem pecador deve a Deus, por causa do pecado, o que não pode pagar, e a menos que pague não pode ser salvo". No início do Livro II, revela-se a única saída do dilema humano: "não há ninguém. . . que pode trazer satisfação a não ser o próprio Deus. . . Mas ninguém deve fazê-la a não ser o homem; de outra forma o homem não oferece satisfação". Portanto, "é necessário que alguém que seja Deus-homem a faça". Um ser que é Deus e não homem, ou homem e não Deus, ou uma mistura de ambos e, portanto, nem homem nem Deus, não se qualificaria. "É preciso que a mesma Pessoa que fará a satisfação seja perfeitamente Deus e perfeitamente homem, uma vez que ninguém pode fazê-la a não ser que seja perfeitamente homem". Essa afirmativa leva Anselmo a apresentar a Cristo. Ele foi (e é) uma Pessoa singular, visto que nele "Deus o Verbo e o homem se encontraram". Ele também realizou uma obra singular, pois entregou-se à morte — não como uma dívida {visto que era sem pecado e, portanto, sem nenhuma obrigação de morrer), mas espontaneamente pela honra de Deus. Era também razoável que o homem, "que, ao pecar, furtou-se de Deus tão completamente quanto pôde, devia, ao dar a satisfação, se entregar a Deus tão completamente quanto pudesse", a saber, mediante a oferta voluntária de si mesmo para a morte. Por mais sério que fosse o pecado humano, contudo, a vida do Deus-homem era tão boa, tão exaltada e tão preciosa que o seu oferecimento na morte "pesa mais do que o número e a grandeza de todos os pecados", e a reparação devida foi feita à honra ofendida de Deus. Os maiores méritos da exposição de Anselmo são que ele percebeu claramente a extrema gravidade do pecado (como uma rebelião voluntariosa contra Deus, na qual a criatura afronta a majestade do seu Criador), a santidade imutável de Deus (como incapaz de tolerar qualquer violação da sua honra), e as perfeições singulares de Cristo (como o Deus-homem que voluntariamente se entregou à morte por nós). Em alguns lugares, contudo, seu raciocínio escolástico levou-o além dos limites da revelação bíblica, como quando ele especulou se o pagamento de Cristo foi exatamente o que os pecadores deviam ou mais, e se o número dos seres humanos redimidos excederia o número dos anjos caídos. Além disso, toda a sua apresentação reflete a cultura feudal da época, na qual a sociedade era rigidamente estratificada, cada pessoa permanecia na dignidade que lhe fora conferida, a conduta "apropriada" ou "digna" dos inferiores aos superiores (e especialmente ao rei) era determinada, quebras desse código eram punidas, e todas as dívidas deviam ser honrosamente saldadas. 52 que ele deve "satisfazer a si mesmo" significa que ele deve ser ele mesmo e agir segundo a perfeição de sua natureza ou "nome". A necessidade de "satisfação" para Deus, portanto, não se encontra em nada fora de si, mas dentro de si mesmo, em seu próprio caráter imutável. É uma necessidade inerente ou intrínseca. A lei à qual ele deve se conformar, a qual ele deve satisfazer, é a de seu próprio ser. No sentido negativo, ele "não pode negar-se a si mesmo" (2 Timóteo 2:13); ele não pode contradizer-se a si mesmo; ele "não pode mentir" (Tito 1:2), pelo simples motivo de que "é impossível que Deus minta" (Hebreus 6:18); ele jamais é arbitrário, imprevisível ou caprichoso; ele diz: "jamais. . . desmentirei a minha fidelidade" (Salmo 89:33). No sentido positivo, "Deus é fidelidade, e não há nele injustiça: é justo e reto" (Deuteronômio 32:4). Isto é, é verdadeiro a si mesmo; é sempre e invariavelmente ele mesmo. A Escritura tem vários modos de chamar a atenção para a autocoerência divina, e em especial de acentuar que quando Deus é obrigado a julgar os pecadores, ele o faz porque deve, se deseja permanecer verdadeiro a si mesmo. O primeiro exemplo é a linguagem da provocação. Yavé é descrito (de fato, descreve-se a si mesmo) como "provocado" à ira ou ciúme ou a ambos por causa da idolatria de Israel. Por exemplo, "com deuses estranhos o provocaram a zelos, com abominações o irritaram".20 Os profetas exílicos, como Jeremias e Ezequiel, constantemente empregavam esse vocabulário.21 Não queriam dizer que Yavé estivesse irritado ou exasperado, ou que o procedimento de Israel tivesse sido tão "provocante" que desfizera a paciência divina. Não, a linguagem da provocação exprime a reação inevitável da natureza perfeita de Deus ao mal. Indica que há dentro de Deus uma intolerância santa para com a idolatria, a imoralidade e a injustiça. Onde quer que essas ocorrerem, agem como estímulos ao desencadeamento de sua resposta de ira ou indignação. Ele jamais é provocado sem motivo. O mal, e somente o mal o provoca, e deve ser assim necessariamente, visto que Deus deve ser Deus (e proceder como Deus). Se o mal não o provocasse à ira ele perderia nosso respeito, pois já não seria Deus. Segundo, há a linguagem do ardor. Aqui podemos mencionar os verbos que descrevem a ira de Deus como fogo. É verdade que também se diz que a ira dos seres humanos se acende.22 Mas esse vocabulário no Antigo Testamento é aplicado mais freqüentemente a Yavé, cuja ira se acende sempre que vê seu povo desobedecendo à sua lei e quebrando a sua aliança.23 De fato, é precisamente quando é "provocado" à ira que se diz que ele se queima com ela,24 ou que se diz que sua ira explode e consome como o fogo.25 Em conseqüência disso, lemos do fogo da sua ira ou do fogo do seu ciúme; deveras, o próprio Deus os une, fazendo referência ao "fogo do meu zelo".26 Como acontece com a provocação de Yavé à ira, também com o fogo da sua ira subentende-se certa inevitabilidade. No calor seco de um verão na Palestina o fogo acende-se facilmente. O mesmo acontecia com a ira de Yavé. Contudo, jamais era ativada pelo capricho, mas sempre em resposta ao mal. Nem sua ira jamais era descontrolada. Pelo contrário, nos primeiros anos da vida nacional de Israel ele "muitas vezes desvia a sua ira, e não dá largas a toda a sua indignação".27 Porém, quando não mais pôde suportar a obstinada rebeldia do seu povo, disse: "Não tornarei atrás, não pouparei nem me arrependerei; segundo os teus caminhos e segundo os teus feitos serás julgada, diz o Senhor Deus".28 Se era fácil acender um fogo durante a estação seca na Palestina, era igualmente difícil apagá-lo. O mesmo acontecia com a ira divina. Uma vez que fosse justamente despertada, ele não desistia "do furor da sua grande ira, ira com que ardia contra Judá". Uma vez acendida, ela não era facilmente "apagada".29 Pelo contrário, quando a ira de Yavé "ardia" contra o povo, ela os "consumia". Isto é, como o fogo leva à destruição, da mesma forma a ira de Yavé levava ao juízo. Pois Yavé é um fogo consumidor.30 O fogo da sua ira era "apagado" so- mente quando o juízo estava completo,31 ou quando ocorria uma regeneração radical, resultando em justiça social.32 A imagem do fogo endossa o ensino do vocabulário da provocação. Algo no ser essencial moral de Deus é "provocado" pelo mal, é por ele "acendido", e a seguir "arde" até que o mal seja "consumido". Terceiro, há a linguagem da própria satisfação. Um grupo de palavras parece afirmar a verdade de que Deus deve ser ele mesmo, que o que está dentro dele deve sair, e que as exigências de sua própria natureza e caráter devem ser preenchidas mediante ação apropriada da sua parte. A palavra principal é kalá, que é empregada especialmente por Ezequiel em relação à ira de Deus. Significa "ser completo, terminado, realizado, gasto". Ocorre em vários contextos no Antigo Testamento, quase sempre com a indicação do "fim" de alguma coisa, ou porque foi destruída ou porque foi terminada de algum outro modo. O tempo, o trabalho e a vida, todos têm fim. As lágrimas se acabam por meio do choro, a água é usada, e a grama seca na estação do estio, e nossa força física se desgasta. De modo que, por meio de Ezequiel, Yavé adverte a Judá de que está prestes a "realizar", "satisfazer" ou "gastar" sua ira "sobre" ou "contra" eles.33 Recusaram-se a dar-lhe ouvidos e persistiram em sua idolatria. De 55 modo que agora, finalmente "vem o tempo; é chegado o dia. . . em breve derramarei o meu furor sobre ti, cumprirei a minha ira contra ti" (Ezequiel 7:7-8). É importante que o "derramar" e o "cumprir" vão juntos, pois o que é derramado não pode ser de novo ajuntado, e o que está cumprido está terminado. As mesmas imagens são acopladas em Lamentações 4:11: "Deu o Senhor cumprimento à sua indignação, derramou o ardor da sua ira". Deveras, a ira de Yavé só "cessa" quando é "cumprida". Esses verbos implicam o mesmo conceito de necessidade interior. O que existe dentro de Yavé deve ser expresso; e o que é expresso deve ser completamente "cumprido" ou "satisfeito". Resumindo, Deus é "provocado" à ira zelosa por seu povo em virtude dos pecados deles. Uma vez acesa, a sua ira "arde" e não pode ser facilmente apagada. Ele a "solta", "derrama", e "gasta". Esse vocabulário tríplice vividamente retrata o juízo de Deus como procedendo de dentro de si mesmo, de seu caráter santo, totalmente consoante com ele, e, portanto, inevitável. Até aqui, contudo, o quadro tem sido unilateral. Por causa da história da apostasia de Israel, os profetas concentraram-se na ira de Yavé e seu conseqüente juízo. Mas a razão pela qual essa ameaça de destruição nacional é tão triste é que foi proferida contra o pano de fundo do amor de Deus por Israel, sua escolha e sua aliança com eles. Esse relacionamento especial com Israel, o qual Deus iniciou e sustentou, e o qual prometeu renovar, emergira também do seu caráter. Ele tinha agido por amor do seu nome. Ele não havia dado o seu amor a Israel nem os tinha escolhido porque fossem mais numerosos do que outros povos, pois eram o menor deles. Não, ele havia dado o seu amor a eles somente porque os amava (Deuteronômio 7:7, 8). Não se podia dar explicação alguma de seu amor pelo povo, senão o amor divino. De modo que a Escritura acentua a autocoerência de Deus de outra maneira, a saber, usando a linguagem do Nome. Deus sempre age "segundo o seu nome". É certo que esse não é o único critério de sua atividade. Ele também trata conosco "segundo nossas obras". Contudo, de modo nenhum de maneira invariável. De fato, se o fizesse, seríamos destruídos. De forma que ele "não nos trata segundo os nossos pecados, nem nos retribui consoante as nossas iniqüidades".34 Pois ele é um Deus "compassivo, clemente e Iongânimo, e grande em misericórdia e fidelidade" (Êxodo 34:6). Embora nem sempre nos trate "segundo nossas obras", entretanto, ele sempre o faz "segundo o seu nome", isto é, de maneira coerente com sua natureza revelada.35 Em Ezequiel 20:44 o contraste é deliberado: "Sabereis que eu sou o Senhor, quando eu proceder para convosco por amor do meu nome, não segundo os vossos maus caminhos, nem segundo os vossos feitos corruptos, ó casa de Israel, diz o Senhor Deus". Jeremias 14 exprime com inteireza enfática o reconhecimento de que Yavé é e sempre será fiel a seu nome, isto, a si mesmo. A situação era de seca devastadora: as cisternas estavam vazias, o chão rachado, os agricultores pasmados e os animais desorientados (vv. 1-6). Em seu extremo de aflição, Israel clamou a Deus: "Posto que as nossas maldades testificam contra nós, ó Senhor, age por amor do teu nome" (v. 7). Em outras palavras, "embora não possamos apelar a ti para que ajas na base no que nós somos, podemos e o fazemos na base de quem tu és". Israel se lembrou de que era o povo escolhido de Deus, e suplicou que ele agisse de modo condizente com sua graciosa aliança e constante caráter, pois, acrescentaram: "somos chamados pelo teu nome" (vv. 8,9). Em contraste com os pseudo-profetas, que pregaram uma mensagem desequilibrada de paz sem juízo (vv. 13-16), Jeremias profetizava "espada, fome e peste" (v. 12). Mas também olhava além do juízo e via a restauração. Convicto de que Yavé agiria, disse-lhe: "por amor do teu nome" (v. 21). Ezequiel 36 desenvolve um pouco mais o mesmo tema. Aqui Yavé prometeu a seu povo que depois do juízo viria a restauração, mas apresentou suas razões com grande franqueza: "Não é por amor de vós que eu faço isto, ó casa de Israel, mas pelo meu santo nome" (v. 22). Eles o tinham profanado, fazendo que fosse desprezado e até mesmo blasfemado pelas nações. Mas Yavé teria pena do seu grande nome e uma vez mais demonstraria a sua santidade, sua singularidade perante o mundo. Então as nações saberiam que ele era o Senhor (vv. 21, 23). Quando Deus assim age, "por amor do seu nome", não apenas o protege contra uma representação errada; está decidido a ser-lhe fiel. O interesse do Senhor por sua reputação é menor do que o por sua coerência. A luz de todo esse material bíblico acerca da autocoerência divina, podemos compreender por que é impossível que Deus faça o que Cristo nos ordenou fazer. Ele mandou que negássemos a nós mesmos, mas Deus não pode negar-se a si mesmo.36 Por quê? Por que Deus não faz, na verdade não pode fazer o que nos ordena? É porque Deus é Deus e não homem, muito menos homem caído. Temos de negar ou rejeitar tudo o que dentro de nós for falso à nossa verdadeira humanidade. Mas nada há em Deus que seja incompatível com sua divindade verdadeira, e, portanto, nada para negar. É com a finalidade de sermos nossos verdadeiros seres que temos de negar a nós mesmos; é porque Deus jamais é outro senão o seu verdadeiro ser que ele não pode negar 56 nem negará a si mesmo. Ele pode esvaziar-se da glória a que tem direito e humilhar-se ao ponto de se tornar servo. Na verdade, foi precisamente isso o que ele fez em Cristo (Filipenses 2:7, 8). Mas ele não pode repudiar nenhuma parte de si mesmo, porque é perfeito. Ele não pode contradizer-se. Essa é a sua integridade. Quanto a nós, estamos constantemente cônscios de nossas incoerências humanas, as quais geralmente dão origem a comentários. "Essa não é uma característica sua", dizemos, ou "você não é você mesmo hoje", ou "esperava algo melhor de você". Mas já lhe passou pela imaginação dizer tais coisas a Deus ou a respeito dele? Ele é sempre ele mesmo e jamais incoerente. Se ele se comportasse de um modo "não característico", de um modo não condizente com o seu caráter, ele cessaria de ser Deus, e o mundo seria lançado em confusão moral. Não, Deus é Deus; jamais se desvia um nada de ser completamente o que ele é. O santo amor de Deus Que tem isso a ver com a expiação? Apenas que o modo pelo qual Deus escolhe perdoar os pecadores e reconciliá-los consigo mesmo deve, acima de tudo, ser totalmente coerente com seu próprio caráter. Não é somente que ele deve subverter e desarmar o diabo a fim de resgatar os seus cativos. Nem é somente que ele deve satisfazer à sua lei, sua honra, sua justiça ou a ordem moral: é que deve satisfazer a si mesmo. Essas outras formulações corretamente insistem em que pelo menos uma expressão divina deve ser satisfeita, sua lei ou honra ou justiça moral ou ordem; o mérito dessa formulação que vai mais além é que acentua a satisfação do próprio Deus em todos os aspectos do seu ser, incluindo-se sua justiça e seu amor. Quando, porém, fazemos essa distinção entre os atributos de Deus, e colocamos um contra o outro, e até mesmo nos referimos a um "problema" ou "dilema" divino por causa desse conflito, não estaremos em perigo de ir além da Escritura? Tinha P. T. Forsyth razão em escrever que "nada há na Bíblia acerca da luta dos atributos"?37 Acho que não. É certo que falar acerca de "luta" ou "conflito" em Deus é usar uma linguagem muito antropomórfica. A Bíblia, porém, não teme os antropomorfismos. Todos os pais conhecem o grande preço do amor, e o que significa ser "despedaçados" por emoções conflitantes, especialmente quando surge a necessidade de punir os filhos. Talvez o modelo humano de Deus mais audaz de todos na Escritura seja a dor da paternidade que lhe é atribuída no capítulo 11 de Oséias. Ele se refere a Israel como seu "filho" (v. 1), a quem ensinou a andar, tomando-o nos braços (v. 3) e inclinando-se para alimentá-lo (v. 4). Contudo, seu filho provou ser um desgarrado e não reconheceu seu terno amor de pai. Israel estava decidido a apartar-se dele em rebeldia (vv. 5- 7). Portanto, merecia ser punido. Mas, pode o seu próprio pai forçar-se a puni-los? De modo que Yavé fala consigo mesmo: Como te deixaria, ó Efraim? Como te entregaria, ó Israel? Como te faria como a Admá? Como fazer-te um Zeboim? Meu coração está comovido dentro de mim, as minhas compaixões à uma se acendem. Não executarei o furor da minha ira; não tornarei para destruir a Efraim, porque eu sou Deus e não homem, o Santo no meio de ti; não voltarei em ira (Oséias 11:8, 9). Aqui certamente existe um conflito de emoções, uma luta de atributos, dentro de Deus. As quatro perguntas que iniciam com a palavra "como" dão testemunho de uma luta entre o que Yavé devia fazer por causa da sua justiça e o que não pode fazer por causa do seu amor. E qual é a mudança dentro dele senão uma tensão interior entre sua "compaixão" e o "furor" da sua ira? A Bíblia contém muitas outras expressões que, de modos diferentes, expressam essa "dualidade" de Deus. Ele é "Deus compassivo, clemente e longânimo. . .ainda que não inocenta o culpado", nele "encontraram-se a graça e a verdade, a justiça e a paz se beijaram"; ele se anuncia como "Deus justo e Salvador", além do qual não há outro; e em ira, lembra-se da misericórdia. João descreve o Verbo que se fez carne, o unigênito do Pai, como "cheio de graça e de verdade"; e Paulo, contemplando as lides de Deus com os judeus e com os gentios, convida-nos a considerar "a bondade e a severidade de Deus". Quanto à cruz e à salvação, Paulo também escreve que Deus demonstrou a sua justiça "para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus", e nada descobre de anômalo acerca da justaposição de referências à "ira" e ao "amor" de Deus, enquanto João nos assegura que, se confessarmos os nossos pecados, Deus será "fiel e justo" para nos perdoar.38 São exemplos de duas verdades complementares acerca de Deus, como se a lembrar-nos de que devemos ter cuidado em falar de um aspecto do caráter de Deus sem mencionarmos a sua equivalência. Emil Brunner, no livro O Mediador, não hesitou em falar da "natureza dual" de Deus como sendo "o mistério central da revelação cristã". Pois "Deus não é simplesmente amor. A natureza de Deus não pode ser esgotada com uma única palavra". Deveras, a oposição moderna à linguagem forense com relação à cruz é, principalmente, "devida ao fato de que a idéia da santidade divina foi tragada na do amor divino; isso significa 57 de alienação de Deus por causa do seu pecado e culpa. Características da primeira eram a oferta "pacífica" ou de "comunhão" freqüentemente associada com as ações de graça (Levítico 7:12), a oferta queimada (na qual tudo era consumido) e o ritual das três festas anuais da colheita (Êxodo 23:14-17). Características da segunda eram a oferta pelo pecado e a pela culpa, na qual se reconhecia claramente a necessidade de expiação. Seria incorreto fazer distinção entre esses dois tipos de sacrifícios como se representassem respectivamente a aproximação do homem a Deus (oferecendo dádivas, muito menos subornos com o fim de assegurar o seu favor) e a aproximação de Deus ao homem (oferecendo perdão e reconciliação). Pois ambos os tipos de sacrifício eram essencialmente reconhecimentos da graça de Deus e expressões de dependência dela. Seria melhor distingui-los, como o fez B. B. Warfield, vendo no primeiro o "homem concebido meramente como criatura" e no último "as necessidades do homem como pecador". Ou, a fim de elaborar a mesma distinção, no primeiro o ser humano é "uma criatura que pede proteção", e no segundo "um pecador que anseia pelo perdão".4 Assim, pois, por um lado os sacrifícios revelam Deus como o Criador, de quem depende a vida física do homem, e por outro como simultaneamente o Juiz que exige a expiação pelo pecado e o Salvador que a prove. Destes dois tipos de sacrifício reconhecia-se ainda que o último é o fundamento do primeiro, pois a reconciliação com nosso Juiz é necessária mesmo antes da adoração do nosso Criador. E, portanto, significativo que, por ocasião da purificação do templo realizada por Ezequias, a oferta pelo pecado "de todo o Israel" tenha sido feita antes da oferta queimada (2 Crônicas 29:20-24). Além disso, é possível que possamos discernir os dois tipos de oferta nos sacrifícios de Caim e Abel, embora ambos sejam denominados minha, uma oferta voluntária. O motivo por que o de Caim foi rejeitado, somos informados, foi que ele não respondeu com fé, como Abel, à revelação de Deus (Hebreus 11:4). Em contraste com a vontade revelada de Deus, ou ele colocou a adoração antes da expiação ou, na sua apresentação dos frutos do solo, distorceu o reconhecimento das dádivas do Criador em oferta própria. A noção de substituição é que uma pessoa toma o lugar de outra, especialmente a fim de levar sua dor e livrá- la dela. Tal ação é universalmente vista como nobre. É bom poupar dor às pessoas; é duplamente bom fazê-lo ao custo de levá-la sobre si mesma. Admiramos o altruísmo de Moisés em estar disposto a ter o nome apagado do livro de Yavé se tão-somente com esse gesto Israel fosse perdoado (Êxodo 32:32). Respeitamos também um desejo quase idêntico expressado por Paulo (Romanos 9:1-4), e sua promessa de pagar as dívidas de Onésimo (Filemom 18-19). Da mesma forma, em nosso século, não podemos deixar de nos comover com o heroísmo de Ma-ximilian Kolbe, um franciscano polonês, no acampamento de concentração de Auschwitz. Quando vários prisioneiros foram selecionados para execução, e um deles gritou que era casado e tinha filhos, "Kolbe deu um passo à frente e perguntou se podia tomar o lugar do condenado. As autoridades aceitaram a sua oferta, e ele foi abandonado numa cela subterrânea para morrer de fome".5 De modo que não é de surpreender que esse princípio comumente compreendido da substituição tivesse sido aplicado pelo próprio Deus aos sacrifícios. Abraão "ofereceu em holocausto, em lugar de seu filho", o carneiro que Deus havia providenciado (Gênesis 22:13). Moisés determinou que, no caso de um assassínio não solucionado, os anciãos da cidade deviam primeiro declarar sua própria inocência e a seguir oferecer uma novilha em lugar do assassino desconhecido (Deuteronômio 21:1-9). Miquéias evidentemente compreendia bem o princípio substitutivo, pois falou de como devia apresentar-se perante Yavé, e perguntou a si mesmo se devia levar ofertas queimadas, animais, ribeiros de azeite ou até mesmo "o meu primogênito pela minha transgressão? o fruto do meu corpo pelo pecado da minha alma?" O fato de ele ter dado a si mesmo uma resposta moral em vez de ritual, e especialmente o fato de ele ter rejeitado a horrorosa idéia de sacrificar seu próprio filho em lugar de si mesmo, não significa que ele tenha rejeitado o princípio substitutivo do Antigo Testamento, embutido no sistema sacrificial (Miquéias 6:6-8). Esse elaborado sistema provia a subsistência das ofertas diárias, semanais, mensais, anuais e ocasionais. Incluía também cinco tipos principais de ofertas, que são apresentadas com detalhes nos primeiros capítulos de Levítico, a saber, a queimada, a de cereal, a de paz, a pelo pecado e a pela culpa. Visto que a oferta de cereal consistia em trigo e azeite, em vez de carne e sangue, era atípica e, portanto, feita em associação com uma das outras. As quatro restantes eram sacrifícios de sangue e, embora houvesse algumas diferenças entre elas (com relação a sua ocasião própria e ao uso preciso da carne e do sangue), todas partilhavam o mesmo ritual básico que requeria o adorador e o sacerdote. Era muito vivido. O adorador trazia a oferta, colocava a mão ou as mãos sobre a oferta e a matava. Então o sacerdote aplicava o sangue, queimava parte da carne, e dispunha para o con- sumo do que sobrava. Este era um importante simbolismo, não uma magia sem sentido. Ao colocar as mãos sobre o animal, o ofertante certamente se estava identificando com ele e "solenemente" designando "a vítima como estando em seu lugar".6 Alguns eruditos vão mais longe e vêem a imposição das mãos como "uma 60 transferência simbólica dos pecados do adorador ao animal",7 o que era explicitamente verídico no caso do bode expiatório, de que trataremos mais adiante. Em qualquer dos casos, o animal substituto, tendo tomado o lugar do ofertante, era morto em reconhecimento de que a penalidade do pecado era a morte, seu sangue (simbolizando que a morte havia sido realizada) era aspergido, e a vida do ofertante era poupada. A observação mais clara de que os sacrifícios de sangue do ritual do Antigo Testamento possuíam significado substitutivo, entretanto, e que por causa desse significado o derramamento e a aspersão do sangue eram indispensáveis à expiação, encontra-se nesta afirmativa, feita por Deus, ao explicar a proibição de comer o sangue: Porque a vida da carne está no sangue. Eu vo-lo tenho dado sobre o altar, para fazer expiação pelas vossas almas: porquanto é o sangue que fará expiação em virtude da vida (Levítico 17:11). Esse texto faz três importantes afirmações acerca do sangue. Primeira, o sangue é o símbolo da vida. A compreensão de que "sangue é vida" parece ser muito antiga. Volta pelo menos até a época de Noé, a quem Deus proibiu comer carne "com seu sangue" (Gênesis 9:4), e essa proibição mais tarde foi repetida na fórmula "o sangue é a vida" (Deuteronômio 12:23). A ênfase, contudo, não era sobre o sangue que corre nas veias, o símbolo da vida sendo vivida, mas sobre o sangue derramado, o símbolo da vida terminada, geralmente por meios violentos. Segunda, o sangue faz expiação, e o motivo de seu significado expiador é dado na repetição da palavra "vida". É somente porque "a vida da carne está no sangue" que "é o sangue que fará expiação em virtude da vida". Uma vida é poupada; outra vida é sacrificada no seu lugar. O que torna a expiação "sobre o altar" é o derramamento do sangue substitutivo. T. J. Crawford expressou-o bem: "O texto, portanto, segundo sua importância clara e óbvia, ensina a natureza viçaria do ritual do sacrifício. Dava-se vida por vida, a vida da vítima pela vida do ofertante", deveras, "a vida da vítima inocente pela vida do ofertante pecador".8 Terceira, Deus deu o sangue com esse propósito expiador. "Eu vo-lo tenho dado", diz ele, "sobre o altar para fazer expiação pelas vossas almas". Assim, devemos pensar no sistema sacrificial como dado por Deus, e não feito pelo homem, e nos sacrifícios individuais não como um recurso humano para aplacar a Deus, mas como um meio de expiação providenciado pelo próprio Deus. Essa perspectiva do Antigo Testamento ajuda-nos a compreender dois textos cruciais da carta aos Hebreus. O primeiro é que "sem derramamento de sangue não há remissão" (9:22), e o segundo que "é impossível que sangue de touros e de bodes remova pecados" (10:4). Não haver perdão sem sangue significa não haver expiação sem substituição. Tinha de haver vida por vida ou sangue por sangue. Mas os sacrifícios de sangue do Antigo Testamento não passavam de sombras; a substância era Cristo. Para que um substituto seja eficaz, deve ser um equivalente adequado. O sacrifício de animais não podia expiar os seres humanos porque "mais vale um homem do que uma ovelha" (Mateus 12:12). Somente o "precioso. . . sangue de Cristo" tinha valor suficiente (1 Pedro 1:19). A Páscoa e o "tirar o pecado" Voltamo-nos agora do princípio da substituição, como visto no que o Antigo Testamento diz acerca do sacrifício de sangue em geral, a dois exemplos particulares desse sacrifício, a saber, a Páscoa e o conceito do "tirar o pecado". Começar com a Páscoa é apropriado por duas razões. A primeira é que a Páscoa original marcou o princípio da vida nacional de Israel. "Este mês vos será o principal dos meses", Deus lhes havia dito, "será o primeiro mês do ano" (Êxodo 12:2). Devia inaugurar o calendário anual deles porque nesse mês Deus os redimira do longo e opressivo cativeiro egípcio, e porque o êxodo os levara à renovação da aliança de Deus com eles no monte Sinai. Mas antes do êxodo e da aliança vinha a Páscoa. Deviam celebrar esse dia "como solenidade ao Senhor: nas vossas gerações o celebrareis por estatuto perpétuo" (12:14, 17). A segunda razão para iniciar aqui é que o Novo Testamento claramente identifica a morte de Cristo com o cumprimento da Páscoa, e a emergência de sua comunidade nova e redimida com o novo êxodo. Não é somente por ter João Batista apresentado a Jesus como "o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!" (João 1:29, 36),9 nem apenas pelo fato de que, segundo a cronologia do fim, Jesus estava pendurado na cruz no momento preciso em que o cordeiro da Páscoa era morto,10 nem também porque no livro do Apocalipse ele é adorado como o Cordeiro que foi morto e que, por meio do seu sangue, comprou os homens para Deus.11 É, de modo especial, pelo que Paulo categoricamente declara: "Cristo, nosso Cordeiro pascal, foi imolado. Por isso celebramos a festa. . ." (1 Coríntios 5:7, 8). 61 O que, pois, aconteceu na primeira Páscoa? E o que isso nos diz acerca de Cristo, nosso cordeiro pascal? A história da Páscoa (Êxodo 11—13) é uma auto-revelação do Deus de Israel em três papéis. Primeiro, Yavé revelou-se como Juiz. O cenário foi a ameaça da praga final. Moisés devia advertir a Faraó nos termos mais solenes de que à meia-noite o próprio Yavé passaria através do Egito e feriria todo primogênito. Não haveria discriminação entre os seres humanos e os animais, nem entre as diferentes classes sociais. Todo primogênito masculino morreria. Haveria apenas um meio de escape, determinado e provido pelo próprio Deus. Segundo, Yavé revelou-se como o Redentor. No dia dez do mês cada casa israelita devia escolher um cordeiro (macho de um ano de idade, sem defeito), e no crepúsculo da tarde do dia quatorze matá-lo. Então deviam tomar do sangue do cordeiro, molhar nele um ramo de hissopo e aspergi-lo na verga e em ambas as ombreiras da porta da frente. Não deviam sair de casa toda aquela noite. Tendo derramado e aspergido o sangue, deviam refugiar-se sob ele. Pois Yavé, que já havia anunciado a intenção de "passar pelo" Egito em juízo, agora acrescentava sua promessa de "passar por cima" de cada casa marcada com o sangue, a fim de protegê-la da destruição por ele ameaçada. Terceiro, Yavé revelou-se como o Deus da aliança de Israel. Ele os havia redimido a fim de torná-los seu próprio povo. De modo que quando ele os salvou de seu próprio juízo, deviam comemorar e celebrar a bondade divina. Na noite da páscoa deviam banquetear-se com o cordeiro assado, com ervas amargas e pão não levedado, e deviam fazê-lo com os lombos cingidos, as sandálias nos pés e o cajado na mão, prontos a qualquer momento para a sua salvação. Alguns aspectos da refeição falava-lhes da sua opressão (e.g. ervas amargas), e outros, da sua libertação (e.g. sua vestimenta). Então em cada aniversário o festival devia durar sete dias, e deviam explicar aos seus filhos o que significava toda a cerimônia: "É o sacrifício da páscoa ao Senhor que passou por cima das casas dos filhos de Israel no Egito, quando feriu os egípcios e livrou as nossas casas." Além da celebração da qual participaria toda a família, devia haver também um rito especial para os filhos primogênitos. Eram eles que haviam sido pessoalmente salvos da morte pela morte do cordeiro da páscoa. Assim redimidos, pertenciam de um modo especial a Yavé que os havia comprado com o sangue, e portanto deviam ser consagrados ao seu serviço. A mensagem deve ter sido absolutamente clara aos israelitas; é igualmente clara a nós que vemos o cumprimento da páscoa no sacrifício de Cristo. Primeiro, o Juiz e Salvador são a mesma pessoa. Foi o Deus que "passou através" do Egito a fim de julgar os primogênitos, que "passou por cima" das casas dos israelitas a fim de protegê-los. Jamais devemos caracterizar o Pai como Juiz e o Filho como Salvador. É o mesmo Deus que por intermédio de Cristo nos salva de si mesmo. Segundo, a salvação foi (e o é) por meio da substituição. Os únicos primogênitos poupados foram aqueles em cujas famílias um cordeiro tinha morrido em seu lugar. Terceiro, o sangue do cordeiro, depois de derramado, devia ser aspergido. Devia haver uma apropriação individual da provisão divina. Deus tinha de "ver o sangue" antes de salvar a família. Quarto, cada família salva por Deus era, pois, comprada para Deus. A vida toda deles agora pertencia a ele. A mesma coisa acontece com a nossa. E a consagração conduz à celebração. A vida dos redimidos é um banquete, ritualmente expresso na Eucaristia, o festival cristão de ações de graça, como examinaremos com maiores detalhes no capítulo 10. O segundo exemplo maior do princípio da substituição é a noção de "levar o pecado". No Novo Testamento lemos a respeito de Cristo que ele mesmo carregou "em seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados" (1 Pedro 2:24), e de igual forma que foi "oferecido uma vez para sempre para tirar os pecados de muitos" (Hebreus 9:28). Mas o que significa "levar o pecado"? Deve ser a expressão compreendida em termos de levar a penalidade do pecado, ou pode ser interpretada de outras maneiras? E está a "substituição" necessariamente relacionada com o "levar o pecado"? Se assim for, que tipo de substituição tem-se em mente? Pode ela referir-se somente ao substituto inocente, provido por Deus e que toma o lugar do partido culpado e sofre a penalidade no seu lugar? Ou há tipos alternativos de substituição? Nos últimos cem anos fizeram-se muitas tentativas engenhosas para reter-se o vocabulário da "substituição", enquanto se rejeitava a "substituição penal" ("penal" vem de poena, penalidade ou castigo). A origem dessas tentativas pode ser traçada ao protesto de Abelardo contra Anselmo no século doze, e ainda mais à rejeição escarnecedora da parte de Socinus da doutrina dos reformadores, no século dezesseis. Em seu livro De Jesu Christo Servatore (1578) Faustus Socinus negou não somente a divindade de Jesus mas também toda a idéia de "satisfação" na sua morte. A noção de que a culpa pode ser transferida de uma pessoa para outra,12 dizia ele, era incompatível tanto com a razão quanto com a justiça. Não somente era impossível, mas também desnecessária. Pois Deus é perfeitamente capaz de perdoar os pecadores sem ela. Ele os conduz ao arrependimento, e assim, os torna perdoáveis. 62 ascensão, é vista como cumprimento do padrão predito em Isaías 53. Oscar Cullmann tem argumentado que no batismo Jesus deliberadamente fez-se um com aqueles cujos pecados ele viera levar, que sua resolução de "cumprir toda a justiça" (Mateus 3:15) era uma determinação de ser o "servo justo" de Deus, que, mediante sua morte para levar o pecado, justificaria a muitos (Isaías 53:11), e que a voz do Pai ouvida do céu, declarando comprazer-se no Filho, também o identificou com o servo (Isaías 42:1).28 Da mesma forma, Vincent Taylor ressaltou que já no primeiro sermão apostólico do capítulo 2 de Atos o "conceito dominante é o do servo, humilhado na morte e exaltado. . ."29 Mais recentemente, o professor Martin Hengel, de Tübingen, chegou à mesma conclusão, argumentando que esse uso de Isaías 53 deve voltar à mente do próprio Jesus.30 Até aqui o meu propósito quanto a Isaías tem sido mostrar quão fundamental é o capítulo à compreensão que o Novo Testamento tem de Jesus. Deixei para o final suas duas afirmações mais importantes, as quais focalizam a natureza expiatória de sua morte. A primeira é a "afirmação de resgate": "Pois o próprio Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos" (Marcos 10:45). Aqui Jesus une as profecias divergentes do "Filho do homem" e do "servo". O Filho do homem viria "com as nuvens do céu" e todas as nações o serviriam (Daniel 7:13-14), ao passo que o Servo não seria servido, mas serviria, e completaria o seu serviço através do sofrimento, especialmente dando a sua vida como resgate em lugar de muitos. Era somente por meio do serviço que ele seria servido, somente pelo sofrimento que ele entraria na sua glória. O segundo texto pertence à instituição da Ceia do Senhor, quando Jesus declarou que seu sangue seria "derramado em favor de muitos",31 um eco de Isaías 53:12: "derramou a sua alma na morte".32 Além do mais, ambos os textos dizem que ele ou daria a sua vida ou derramaria o seu sangue "em favor de muitos", o que de novo faz eco a Isaías 53:12: "levou sobre si o pecado de muitos". Alguns têm-se embaraçado por causa da natureza aparentemente restritiva dessa expressão. Mas Joachim Jeremias argumentou que, segundo a interpretação judaica pré-cristã, "os muitos" eram os "sem Deus tanto entre os judeus quanto os gentios". A expressão, portanto, não "é exclusiva ('muitos, mas não todos') mas, no modo de falar semítico, inclusiva ('a totalidade, consistindo de muitos'), que era "um conceito (messiânico) desconhecido no pensamento rabínico contemporâ- neo."33 Parece assim definido, além de toda dúvida, que Jesus aplicou Isaías 53 a si mesmo e que compreendia a sua morte à luz dessa passagem como uma morte expiatória. Como o "servo justo" de Deus, ele seria capaz de "justificar a muitos", porque ia "levar o pecado de muitos". É este o cerne de todo o capítulo, não apenas que seria desprezado e rejeitado, oprimido e aflito, levado como uma ovelha para o matadouro e cortado da terra dos viventes, mas, em particular, que seria trespassado pelas nossas transgressões, que o Senhor poria sobre ele as iniqüidades de nós todos, que assim seria contado com os transgressores, e que ele próprio levaria as iniqüidades deles. "O cântico faz doze afirmativas distintas e explícitas", escreveu J. S. Whale, "que o servo sofre a penalidade dos pecados de outros homens: não somente sofrimento vicário, mas substituição penal é o significado claro dos versículos quatro, cinco e seis."34 A luz dessa evidência acerca da natureza expiatória da morte de Jesus, agora sabemos como interpretar a simples afirmativa de que ele "morreu por nós". A preposição "por" é tradução de hyper ("em favor de") ou anti ("em lugar de"). A maioria das referências contém hyper. Por exemplo: "Deus prova o seu próprio amor para conosco, pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores" (Romanos 5:8), e de novo: "um morreu por todos" (2 Coríntios 5:14). Anti aparece somente nos versículos de resgate, a saber, em Marcos 10:45 (literalmente: "para dar a sua vida como um resgate em lugar de muitos") e em 1 Timóteo 2:6 ("O qual a si mesmo se deu em resgate por todos", onde "por" é novamente hyper, mas a preposição anti encontra-se no substantivo, antilytron. As duas preposições, contudo, nem sempre permanecem fiéis ao sentido que lhes dá o dicionário. Até mesmo a palavra mais abrangente hyper ("em favor de") muitas vezes é, como demonstra o contexto, usada no sentido de anti ("em lugar de"), como, por exemplo, quando se diz que somos "embaixadores em nome de Cristo" (2 Coríntios 5:20), ou quando Paulo queria conservar a Onésimo em Roma a fim de que este o servisse "em lugar de" Filemom, seu amo (Filemom 13). O mesmo sentido está claro nas duas afirmações mais diretas do significado da morte de Cristo nas cartas de Paulo. Uma é que Deus "Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós" (2 Coríntios 5:21), e a outra que "Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar" (Gálatas 3:13). Alguns comentaristas têm achado difícil aceitar essas afirmativas. Karl Barth referiu-se à primeira como "quase insuportavelmente severa"35 e A. W. F. Blunt descreveu a linguagem da segunda como "quase chocante".36 Deve-se observar que em ambos os casos Paulo diz que o que aconteceu a Cristo na cruz ("fez pecado", "fazendo-se maldição") foi "por nós", ou em nosso favor ou para o nosso benefício. 65 Mas exatamente o que foi que aconteceu? Aquele que não tinha pecado foi "feito pecado por nós", o que deve significar que levou a penalidade de nosso pecado em nosso lugar, e que nos resgatou da maldição da lei "fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar", o que deve significar que a maldição da lei que jazia sobre nós por causa da nossa desobediência foi transferida a ele, de modo que foi ele e não nós quem a levou. Ambos os versículos vão além dessas verdades negativas (que ele levou o nosso pecado e maldição a fim de redimir-nos deles) a verdades positivas. Por um lado ele levou a maldição a fim de que pudéssemos herdar a bênção prometida a Abraão (Gálatas 3:14), e por outro, Deus fez que o Cristo, que não tinha pecado, fosse feito pecado por nós a fim de que "nele fôssemos feitos justiça de Deus" (2 Coríntios 5:21). Assim, ambos os versículos indicam que quando somos unidos a Cristo acontece uma misteriosa troca: ele levou a nossa maldição para que possamos receber a sua bênção; ele tornou-se pecado com o nosso pecado para que possamos tornar- nos justiça com a sua justiça. Em outro lugar Paulo escreve acerca dessa transferência em termos de "imputação". Por um lado, Deus recusou-se a "imputar" a nós os nossos pecados, ou "contá-los" contra nós (2 Coríntios 5:19), com a implicação de que, em vez disso, ele os imputou a Cristo. Por outro lado, Deus imputou a justiça de Cristo a nós.37 Muitos se ofendem com esse conceito e dizem que é artificial e injusto da parte de Deus o arranjar tal transferência. Contudo, a objeção provém de um mal-entendido, que Thomas Crawford esclarece. Imputação, escreve ele, "de maneira alguma sugere a transferência das qualidades morais de uma pessoa a outra". Tal coisa seria impossível, e prossegue citando John Owen que "nós mesmos não fizemos nada daquilo que nos é imputado, nem Cristo fez nada do que lhe é imputado". Seria absurdo e incrível imaginar, continua Crawford, "que a torpeza moral de nossos pecados tivesse sido transferida a Cristo, de modo que o tornasse pessoalmente pecaminoso e merecedor do mal; e que a excelência moral da sua justiça nos é transferida, de modo que nos torne pessoalmente justos e louváveis." Não, o que foi transferido a Cristo não foi qualidades morais, mas conseqüências legais: ele voluntariamente aceitou a responsabilidade de nossos pecados. É isso o que significam as expressões "feito pecado" e "feito maldição". Da mesma forma, "a justiça de Deus" na qual nos transformamos quando estamos "em Cristo" não é justiça de caráter e conduta (embora essa cresça dentro de nós mediante a operação do Espírito Santo), antes, é uma posição justa diante de Deus.38 Quando revisamos todo esse material do Antigo Testamento (o derramamento e a aspersão de sangue, a oferta pelo pecado, a páscoa, a significação do "levar o pecado", o bode expiatório e Isaías 53), e consideramos a sua aplicação neotestamentária à morte de Cristo, somos obrigados a concluir que a cruz foi um sacrifício substitutivo. Cristo morreu por nós. Cristo morreu em nosso lugar. Deveras, como diz J. Jeremias, esse uso de imagens sacrificiais "tem a intenção de expressar o fato de que Jesus morreu sem pecado em substituição por nossos pecados."39 Quem é o substituto? A questão-chave da qual agora temos de tratar é esta: exatamente quem foi o nosso substituto? Quem tomou o nosso lugar, levou o nosso pecado, tornou-se a nossa maldição, sofreu a nossa penalidade, morreu a nossa morte? É certo que "Deus prova o seu próprio amor para conosco, pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores" (Romanos 5:8). Essa seria a resposta simples, superficial. Mas quem foi esse Cristo? Como devemos pensar a respeito dele? Foi ele apenas homem? Se assim for, como poderia um ser humano substituir a outros seres humanos? Então, foi ele apenas Deus, com a aparência de homem, mas na realidade não sendo o homem que aparentava? Se assim for, como poderia ele representar a humanidade? Além do mais, como poderia ele ter morrido? Nesse caso, devemos pensar em Cristo não como apenas homem nem como apenas Deus, mas antes, como o único Deus-homem que, por causa da sua pessoa singularmente constituída, foi singularmente qualificado para mediar entre Deus e o homem? Nossas respostas a estas questões determinarão se o conceito de expiação substitutiva é racional, moral, plausível, aceitável, e acima de tudo, bíblico. A possibilidade de substituição repousa na identidade do substituto. Portanto, necessitamos examinar com maior profundeza as três explicações que esbocei acima. A primeira proposta é que o substituto foi o homem Cristo Jesus, visto como ser humano, e concebido como indivíduo separado de Deus e de nós, como um terceiro partido independente. Aqueles que começam com esse a priori expõem-se a compreensões gravemente distorcidas da expiação e assim difamam a verdade da substituição. Têm a tendência de representar a cruz de dois modos, dependendo de a iniciativa ter sido de Cristo ou de Deus. No primeiro caso representam a Cristo como intervindo a fim de pacificar um Deus irado e arrancar dele uma relutante salvação. No outro, atribui-se a Deus a intervenção, o qual então começa a punir ao Jesus 66 inocente em nosso lugar, pecadores culpados, merecedores do castigo. Em ambos os casos Deus e Cristo estão separados: ou Cristo persuade a Deus ou Deus pune a Cristo. O que as duas representações têm em comum é o fato de denegrirem o Pai. Relutando em Sofrer, Deus vitima a Cristo. Relutando ele em perdoar, Cristo o convence a fazê-lo. Ele é visto como um bicho-papão impiedoso cuja ira tem de ser apaziguada, cuja má vontade em agir tem de ser vencida pelo auto-sacrífício amoroso de Jesus. Interpretações rudes da cruz como essas ainda emergem em alguns de nossos exemplos evangélicos, como acontece quando descrevemos a vinda de Cristo para livrar-nos do juízo de Deus, ou quando o retratamos no bode expiatório que é punido em lugar do verdadeiro culpado, ou como o condutor de eletricidade ao qual a carga letal de energia é desviada. Há, é claro, alguma justificação na Escritura para ambos os tipos de formulações, ou jamais teriam sido desenvolvidas por cristãos cujo desejo e reivindicação é serem bíblicos. Assim, diz-se que Jesus Cristo é a "propiciação" de nossos pecados e nosso "advogado" com o Pai (1 João 2:2), o que à primeira vista sugere que ele morreu a fim de aplacar a ira de Deus e agora intercede a fim de persuadi-lo a perdoar-nos. Mas outras partes da Escritura proíbem-nos de interpretar a linguagem da propiciação e advocacia dessa maneira, como veremos no próximo capítulo. A noção inteira de um Cristo compassivo induzindo um Deus relutante a agir em nosso favor soçobra no fato do amor divino. Não houve Umstimmung em Deus, Cristo não assegurou uma mudança de mente ou de coração. Pelo contrário, a iniciativa salvadora teve origem nele. Foi por causa da "entraxihável misericórdia de nosso Deus" (Lucas 1:78) que Cristo veio, "por causa do grande amor com que nos amou",40 "porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora" (Tito 2:11). Quanto à outra formulação (de que Deus castigou a Jesus pelos nossos pecados), é verdade que os pecados de Israel eram transferidos ao bode expiatório, que "o Senhor fez cair" sobre ele, o seu servo sofredor, a iniqüidade de todos nós (Isaías 53:6), que "ao Senhor agradou moê-lo" (Isaías 53:10), e que Jesus aplicou a si mesmo a profecia de Zacarias de que Deus feriria "o pastor".41 É também verdade que o Novo Testamento diz que Deus "enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados" (1 João 4:9-10), entregou-o por nós,42 "a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação" (Romanos 3:25), "condenou Deus, na carne, o pecado" (Romanos 8:3), e "o fez pecado por nós" (2 Coríntios 5:21). Essas afirmativas são admiráveis. Porém, não temos a liberdade de interpretá-las de modo que sugiram que ou Deus impeliu a Jesus a fazer o que ele próprio não estava disposto a fazer, ou que Jesus foi uma vítima relutante da dura justiça de Deus. Jesus Cristo deveras levou a penalidade de nossos pecados, mas Deus estava agindo na obra de Cristo e através dela, e Cristo desincumbia- se de sua parte livre e espontaneamente (e.g. Hebreus 10:5-10). Portanto não devemos dizer que Deus estava castigando a Jesus ou que Jesus estava sendo persuadido por Deus, pois fazê-lo é lançar um contra o outro como se agissem independentemente um do outro ou estivessem em conflito um com o outro. Jamais devemos fazer de Cristo o objeto do castigo de Deus, nem de Deus o objeto da persuasão de Cristo, pois tanto Deus quanto Cristo eram sujeitos e não objetos, tomando a iniciativa juntos de salvar os pecadores. O que aconteceu na cruz em termos de "abandono da parte de Deus" foi voluntariamente aceito por ambos no mesmo santo amor que tornou necessária a expiação. Foi "Deus em nossa natureza abandonado de Deus".43 Se o Pai "deu o Filho", o Filho "deu a si mesmo". Embora o "cálice " do Getsêmani simbolizasse a ira de Deus, ele foi "dado" pelo Pai (João 18:11) e voluntariamente "tomado" pelo Filho. Embora o Pai tenha "enviado" o Filho, o mesmo Filho "veio". O Pai não colocou sobre o Filho uma carga que este não estava disposto a carregar, nem o Filho extraiu do Pai uma salvação que este estava relutante a conceder. Não há em lugar algum do Novo Testamento discórdia entre o Pai e o Filho, "quer pelo Filho arrebatando perdão de um Pai indisposto quer pelo Pai exigindo um sacrifício de um Filho indisposto".44 Não houve relutância de nenhuma parte. Pelo contrário, as vontades deles coincidiram no perfeito sacrifício de amor. Se então o nosso substituto não foi Cristo somente como um terceiro partido independente de Deus, é a verdade que Deus somente tomou o nosso lugar, levou o nosso pecado e morreu a nossa morte? Se não podemos exaltar a iniciativa de Cristo ao ponto de praticamente eliminar a contribuição do Pai, podemos inverter os papéis, e atribuir a iniciativa e a realização toda ao Pai, assim praticamente eliminando a Cristo? Pois se o próprio Deus fez tudo o que era necessário para a nossa salvação, será que isso não tornaria a Cristo redundante? Essa solução proposta ao problema é, à primeira vista, teologica-mente atraente, pois evita todas as distorções que se levantam quando se concebe a Jesus como um terceiro partido. Como vimos no capítulo anterior, é Deus que, como santo amor, deve satisfazer a si mesmo. Ele não estava disposto a agir em amor a expensas da sua santidade ou em santidade a expensas do seu amor. De modo que podemos dizer que ele satisfez ao seu santo amor ao morrer ele mesmo a morte e assim levar o juízo que os pecadores mereciam. Ele exigiu e ao mesmo 67 Quando o ministério público de Jesus teve início, sua autocons-cientização confirmou que Deus estava operando nele e através dele, Pois embora ele tivesse falado em "agradar ao Pai" (João 8:29) e "obedecer" a ele (João 15:10), em fazer a sua vontade e terminar o seu trabalho,54 contudo, essa entrega era inteiramente voluntária, de modo que a sua vontade e a do Pai sempre estavam em perfeita harmonia.55 Mais que isso, segundo João ele falou de uma "habitação" mútua, ele no Pai e o Pai nele, até mesmo uma "união" entre eles.56 Essa convicção de que o Pai e o Filho não podem ser separados, especialmente quando estamos pensando ha expiação, visto que o Pai estava agindo por meio do Filho, vem à sua expressão mais plena em algumas das grandes observações de Paulo acerca da reconciliação. Por exemplo, "tudo provém de Deus" (referindo-se à obra da nova criatura, 2 Coríntios 5:17, 18), que "nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo" e "estava em Cristo reconciliando consigo o mundo" (vv. 18 e 19). Não parece ter muita importância onde, ao traduzir-se o grego, colocamos as expressões "por meio de Cristo" e "em Cristo". O importante é que Deus e Cristo estavam juntos ativos na obra da reconciliação, deveras que foi em Cristo e através dele que Deus estava efetuando a reconciliação. Dois outros importantes versículos paulinos forjam um elo indissolúvel entre a pessoa e a obra de Cristo, indicando assim que ele só foi capaz de fazer o que fez porque era quem era. Ambos falam que a "plenitude" de Deus habitava nele e operava através dele (Colos-senses 1:19, 20; 2:9). Essa obra é retratada de vários modos, mas atribui-se tudo à plenitude de Deus que residia em Cristo — reconciliando consigo todas as coisas, fazendo a paz pelo sangue da cruz, ressuscitando-nos com Cristo, perdoando todos os nossos pecados, cancelando a dívida que existia contra nós, levando-a, pregando-a na cruz, e desarmando os principados e potestades, triunfando sobre eles ou "pela" cruz ou "nele" (Cristo). Anselmo tinha razão ao dizer que somente o homem devia fazer reparação pelos seus pecados, visto que foi ele que pecou. E também tinha igual razão em dizer que somente Deus podia fazer a reparação necessária, visto que foi ele quem a exigiu. Jesus Cristo é, pois, o único Salvador, visto que é a única pessoa em quem "devemos" e "podemos" ser unidos, sendo ele mesmo tanto Deus quanto homem. A fraqueza da formulação de Anselmo, provavelmente em virtude de sua formação cultural no feudalismo medieval, é ter ele dado ênfase exagerada à humanidade de Cristo, visto que o homem pecador deve pagar a dívida em que incorreu e reparar o dano que fez. Mas a ênfase do Novo Testamento recai mais sobre a iniciativa de Deus, que "enviou" ou "deu" ou "entregou" seu Filho por nós,57 e que, portanto, participou dos sofrimentos do seu Filho. George Buttrick escreveu acerca de um quadro que se encontra numa igreja italiana, embora não o tenha identificado. A primeira vista é como qualquer outra pintura da crucificação. Quando a pessoa o examina mais atentamente, contudo, percebe a diferença pois "há uma grande e ensombreada Figura atrás da figura de Jesus. O cravo pregado na mão de Jesus atravessa até a mão de Deus. A lança que lhe trespassa o lado chega até Deus."58 Começamos mostrando que Deus deve "satisfazer a si mesmo", respondendo às realidades da rebeldia humana de um modo que seja perfeitamente consoante com o seu caráter. Essa necessidade interna é o nosso ponto de partida fixo. Em conseqüência, seria impossível para nós pecadores permanecer eternamente os únicos objetos de seu santo amor, visto que ele não pode ao mesmo tempo punir-nos e perdoar-nos. Daí a segunda necessidade, a saber, a substituição. A única maneira de o santo amor de Deus ser satisfeito é a sua santidade ser dirigida em juízo sobre o substituto por ele designado, a fim de que o seu amor possa ser dirigido a nós em perdão. O substituto sofre a penalidade para que nós pecadores possamos receber o perdão. Quem, pois, é o substituto? Certamente não é Cristo, se ele for visto como um terceiro partido. Toda noção de substituição penal em que três atores independentes desempenham um papel — o partido culpado, o juiz punitivo e a vítima inocente — deve ser repudiada com extrema veemência. Não apenas seria injusta em si mesma mas também refletiria uma cristologia deficiente. Pois Cristo não é uma terceira pessoa independente, mas o eterno Filho do Pai, que é um com o Pai em seu ser essencial. O que vemos, portanto, no drama da cruz não são três atores, mas dois, nós mesmos de um lado e Deus, do outro. Não Deus como ele é em si mesmo (o Pai), mas Deus, entretanto, Deus-feito-homem-em-Cristo (o Filho). Daí a importância das passagens do Novo Testamento que falam da morte de Cristo como a morte do Filho de Deus; por exemplo: "Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho unigênito", "Aquele que não poupou a seu próprio Filho", e "fomos reconciliados com Deus mediante a morte do seu Filho".59 Pois ao dar o seu Filho ele estava dando a si mesmo. Sendo isso verdade, é o próprio Juiz que em santo amor assumiu o papel da vítima inocente, pois na pessoa do seu Filho, e por meio dela, ele mesmo levou a penalidade que ele próprio infligiu. Como disse Dale: "a misteriosa unidade do Pai e do Filho tornou possível que Deus ao mesmo tempo sofresse e infligisse sofrimento penal".60 Não há injustiça severa nem amor sem princípios nem heresia cristológica nisso; 70 há somente insondável misericórdia. Pois a fim de nos salvar de tal modo que satisfizesse a si mesmo, Deus por meio de Cristo substituiu-se a si mesmo por nós. O amor divino triunfou sobre a ira divina mediante o divino auto-sacrifício. A cruz foi um ato simultâneo de castigo e anistia, severidade e graça, justiça e misericórdia. Vistas desse modo, as objeções a uma expiação substitutiva se evaporam. Nada há nem mesmo remotamente imoral aqui, visto que o substituto dos infratores da lei não é outro senão o próprio Legislador. Também não há transação mecânica, visto que o auto-sacrifício do amor é a mais pessoal de todas as ações. E o que é alcançado por meio da cruz não é uma mera troca externa de posição, pois os que vêem nela o amor de Deus, e são unidos a Cristo através do seu Espírito, transformam-se radicalmente em aparência e caráter. Rejeitamos fortemente, portanto, toda explicação da morte de Cristo que não possui no centro o princípio da "satisfação através da substituição", em verdade, a auto-satisfação divina através da auto-subs-tituição divina. A cruz não foi uma troca comercial feita com o diabo, muito menos uma transação que o tenha tapeado e apanhado numa armadilha; nem um equivalente exato, um quid pro quo que satisfizesse um código de honra ou um ponto técnico da lei; nem uma submissão compulsória da parte de Deus a uma autoridade moral acima dele da qual ele, de outra forma, não poderia escapar; nem um castigo de um manso Cristo por um Pai severo e punitivo; nem uma procuração de salvação por um Cristo amoroso de um Pai mim e relutante; nem uma ação do Pai que deixasse de lado a Cristo como Mediador. Em vez disso, o Pai justo e amoroso humilhou-se, tornando-se em seu Filho unigênito e através dele carne, pecado e maldição por nós, a fim de remir-nos sem comprometer o seu próprio caráter. Necessitamos cuidadosamente definir e salvaguardar os termos teológicos "satisfação" e "substituição", mas não podemos, em circunstância alguma, abrir mão deles. O evangelho bíblico da expiação é Deus satisfazendo-se a si mesmo e substituindo-se a si mesmo por nós. Pode-se dizer, portanto, que o conceito da substituição está no coração tanto do pecado quanto da salvação. Pois a essência do pecado é o homem substituindo-se a si mesmo por Deus, ao passo que a essência da salvação é Deus substituindo-se a si mesmo pelo homem. O homem declara-se contra Deus e coloca-se onde Deus merece estar; Deus sacrifica-se a si mesmo pelo homem e coloca-se onde o homem merece estar. O homem reivindica prerrogativas que pertencem somente a Deus; Deus aceita penalidades que pertencem ao homem somente. Se a essência da expiação é a substituição, seguem-se pelo menos duas importantes inferências, a primeira teológica e a segunda pessoal. A inferência teológica é que é impossível manter-se a doutrina histórica da cruz sem se manter a doutrina histórica de Jesus Cristo como único Deus-homem e Mediador. Como já vimos, nem Cristo somente como homem nem o Pai somente como Deus podia ser nosso substituto. Somente Deus em Cristo, o unigênito Filho do próprio Deus Pai feito homem, podia tomar o nosso lugar. Na raiz de cada caricatura da cruz jaz uma cristologia distorcida. A pessoa e a obra de Cristo vão juntas. Se ele não é quem os apóstolos dizem que é, então não podia ter feito o que dizem que fez. A encarnação é indispensável à expiação. Em particular, é essencial à afirmação de que o amor, a santidade e a vontade do Pai são idênticos ao amor, santidade e vontade do Filho. Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo. Talvez nenhum outro teólogo do século vinte tenha visto essa verdade mais claramente, ou a tenha expressado mais vigorosamente, do que Karl Barth.61 A cristologia, insistia ele, é a chave da doutrina da reconciliação. E cristologia significa confessar que Jesus Cristo, o Mediador, repetiu ele várias vezes, é "o próprio Deus, o próprio homem, e o próprio Deus-homem". Há, pois, "três aspectos cristológicos" ou "três perspectivas" para a compreensão da expiação. O primeiro é que "em Jesus Cristo temos de ver com o próprio Deus. A reconciliação do homem com Deus acontece quando o próprio Deus ativamente intervém". O segundo é que "em Jesus Cristo temos de ver com o verdadeiro homem. . . É assim que ele se torna o reconciliador entre Deus e o homem". O terceiro é que, embora sendo o próprio Deus e o próprio homem, "Jesus Cristo é um. Ele é o Deus-homem". Somente quando se afirma esse relato bíblico de Jesus Cristo, pode-se compreender a singularidade de seu sacrifício expia-dor. A iniciativa está "com o próprio Deus eterno, que deu-se a si mesmo em seu Filho para ser homem, e, como homem, tomar sobre si mesmo esta paixão humana. . . É o Juiz que nesta paixão toma o lugar daqueles que deviam ser julgados, que nesta paixão permite ser julgado em lugar deles". "A paixão de Jesus Cristo é o juízo de Deus, na qual o próprio Juiz foi julgado". A segunda inferência é pessoal. A doutrina da substituição afirma não apenas um fato (Deus em Cristo substituiu-se por nós), mas também a sua necessidade (não havia outro meio pelo qual o santo amor de Deus pudesse ser satisfeito e os seres humanos rebeldes pudessem ser salvos). Portanto, enquanto permanecemos perante a cruz, começamos a ganhar uma visão clara tanto de Deus quanto de nós mesmos, especialmente em relação um ao outro. Em vez de infligir sobre nós o juízo que merecíamos, Deus em Cristo o suportou em nosso 71 lugar. A única alternativa é o inferno. É este o "escândalo", a pedra de tropeço, da cruz. Pois nosso coração orgulhoso se rebela contra ela. Não podemos suportar o conhecimento ou a seriedade do nosso pecado ou culpa da nossa dívida total para com a cruz. Certamente, dizemos, deve haver algo mais que possamos fazer, ou pelo menos algo com que possamos contribuir, a fim de fazer reparação? Ainda que não o digamos, com freqüência damos a impressão de que preferiríamos sofrer o nosso próprio castigo a ter a humilhação de ver a Deus através de Cristo suportá-lo em nosso lugar. Insistimos em pagar pelo que fizemos. Não podemos suportar a humilhação de reconhecer a nossa bancarrota e permitir que alguém mais pague por nós. A noção de que esse alguém mais possa ser o próprio Deus é demais para nós. Preferiríamos perecer a arrepender-nos, preferiríamos perder-nos a humilhar-nos. Além do mais, somente o evangelho exige uma auto-humilhação tão abjeta da nossa parte, pois somente ele ensina a substituição divina como o único meio de salvação. Outras religiões ensinam diferentes formas de auto- salvação. O hinduísmo, por exemplo, faz da recusa em admitir a pecaminosidade uma virtude. Numa preleção perante o Parlamento de Religiões em Chicago em 1893, o Swami Vivekananda disse: "O hindu recusa-se a chamar-vos pecadores. Vós sois os filhos de Deus; os participantes de bênção imortal, seres santos e perfeitos. Vós, divindades sobre a terra, pecadores? E pecado chamar o homem de pecador. É um libelo sobre a natureza humana." Além do mais, se for preciso admitir que os seres humanos pecam, então o hinduísmo insiste em que podem salvar-se a si mesmos.62 Como disse Brunner: "Todas as outras formas de religião — sem mencionar a filosofia — tentam resolver o problema da culpa à parte da intervenção divinal, e, portanto, chegam a uma conclusão barata. Nelas o homem é poupado da humilhação final de saber que, em vez dele, o Mediador é quem deve levar o castigo. A esse jugo ele não precisa submeter-se. Ele não é deixado totalmente nu."63 Mas não podemos fugir à vergonha de nos apresentarmos nus na presença de Deus. Não adianta tentarmos cobrir-nos como Adão e Eva no jardim. Nossas tentativas de autojustificação são tão inúteis quanto as folhas de figueira do primeiro casal. Temos de reconhecer a nossa nudez, ver o substituto divino usando os nossos trapos imundos em nosso lugar, e permitir que ele nos vista com a sua própria justiça.64 Ninguém jamais o disse melhor do que Augustus Toplady em seu hino imortal "Rocha Eterna": Nada posso, meu Senhor! Nada eu tenho a te ofertar! Sou tão só um pecador Teu amparo a suplicar. Rocha eterna, mostra, assim, Tua graça e amor por mim! Terceira Parte A Realização da Cruz 7 A Salvação dos Pecadores Movido pela perfeição do seu santo amor, Deus em Cristo substituiu-se por nós, pecadores. É esse o coração da cruz de Cristo. Ele nos leva agora a nos voltarmos do acontecimento para as suas conseqüências, do que aconteceu na cruz para o que ela alcançou. Por que tomou Deus o nosso lugar e levou o nosso pecado? O que realizou ele com seu auto-sacrifício e sua auto-substituição? O Novo Testamento dá três respostas principais a essas perguntas, as quais podemos resumir com as palavras "salvação", "revelação" e "conquista". O que Deus fez em Cristo por meio da cruz é salvar-nos, revelar-se a si mesmo e vencer o mal. Neste capítulo enfocaremos a salvação mediante a cruz. Seria difícil exagerar a magnitude das mudanças ocorridas como resultado da cruz, tanto em Deus quanto em nós, especialmente nos tratos de Deus conosco e em nosso relacionamento com ele. Verdadeiramente, quando Cristo morreu e ressurgiu dentre os mortos, raiou um novo dia, teve início uma nova era. Esse novo dia é o "dia da salvação" (2 Coríntios 6:12), e as bênçãos "de tão grande salvação" (Hebreus 2:3) são tão ricamente diversas que não podemos defini-las adequadamente. Seriam necessários muitos quadros para retratá-las. Assim como a igreja de Cristo é apresentada na Escritura como a sua noiva e o seu corpo, como as ovelhas do seu rebanho e os ramos da sua videira, como a sua nova humanidade, sua casa ou família, como templo do Espírito Santo e pilar e fortaleza da verdade, da mesma forma a salvação de Cristo é ilustrada através 72 Se concedermos que C. H. Dodd tenha perdido o seu argumento lingüístico, ou que, pelo menos, não "provou" o seu caso, e que o grupo de palavras hilaskomai significa "propiciação" e não "expiação", resta-nos ainda como retratar a ira de Deus e o seu desvio. É fácil caricaturá-las de tal modo que as despeçamos como ridículas. Foi isso o que fez William Neil na seguinte passagem: É digno de nota que a escola teológica de "fogo e enxofre" que se deleita em idéias como as que dizem que Cristo foi feito um sacrifício a fim de apaziguar um Deus irado, ou que a cruz foi uma transação legal na qual uma vítima inocente é forçada a pagar a pena dos crimes de outro, uma propiciação de um Deus severo não encontra apoio em Paulo. Estas noções entraram na teologia cristã por meio da mente legalista dos clérigos medievais; não são o cristianismo bíblico.17 Mas é claro que isso não é nem o Cristianismo da Bíblia em geral, nem o de Paulo em particular. E de duvidar que alguém jamais tenha crido em construção tão grosseira como essa. Pois são noções pagãs da propiciação, recobertas somente por uma capa cristã muito fina. Se quisermos desenvolver uma doutrina da propiciação verdadeiramente bíblica, necessitaremos distingui-la das idéias pagãs em três pontos cruciais, relacionados ao motivo da necessidade da propiciação, quem a fez e o que ela é. Primeiro, o motivo pelo qual a propiciação é necessária é que o pecado suscita a ira de Deus. Isso não quer dizer (como temem os animistas) que ele é capaz de explodir à mais trivial provocação, muito menos que ele perde as estribeiras por nenhum motivo aparente. Pois nada há de caprichoso ou arbitrário no santo Deus. Nem jamais ele é irascível, malicioso, rancoroso ou vingativo. A ira dele não é misteriosa nem irracional. Jamais é imprevisível, mas sempre previsível por ser provocada pelo mal e pelo mal somente. A ira de Deus, como examinamos com mais detalhes no capítulo 4, é o seu antagonismo firme, constante, contínuo e descomprometido para com o pecado em todas as suas formas e manifestações. Em resumo, a ira de Deus está mundos à parte da nossa. O que provoca a nossa ira (a vaidade ferida) jamais provoca a dele; o que provoca a ira dele (o mal) raramente provoca a nossa. Segundo, quem faz a propiciação? Num contexto pagão é sempre seres humanos que procuram desviar a ira divina mediante a realização meticulosa de rituais, ou através da recitação de fórmulas mágicas, ou por meio de oferecimento de sacrifícios (vegetais, animais e até mesmo humanos). Pensam que tais práticas aplaquem a divindade ofendida. Mas o evangelho começa com a afirmação ousada de que nada do que possamos fazer, dizer, oferecer ou até mesmo dar pode compensar os nossos pecados nem afastar a ira divina. Não há possibilidade alguma de bajularmos, subornarmos ou persuadirmos Deus a nos perdoar, pois nada merecemos das suas mãos a não ser o julgamento. Nem, como já vimos, tem Cristo, por meio do seu sacrifício, prevalecido sobre Deus a fim de que ele nos perdoe. Não, foi o próprio Deus que, em sua misericórdia e graça, tomou a iniciativa. Esse fato já estava claro no Antigo Testamento, pois nele os sacrifícios eram reconhecidos não como obras humanas, mas como dádivas divinas. Eles não tornavam a Deus gracioso; eram providos por um gracioso Deus a fim de que pudesse agir graciosamente para com o seu povo pecaminoso. "Eu vo-lo tenho dado sobre o altar", disse Deus a respeito do sangue do sacrifício, "para fazer expiação pelas vossas almas" (Levítico 17:11). E o Novo Testamento reconhece essa verdade com mais clareza, e não menos os textos principais acerca da propiciação. O próprio Deus "apresentou" ou "propôs" a Jesus Cristo como sacrifício propiciatório (Romanos 3:25). Não é que tenhamos amado a Deus, mas que ele nos amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados (1 João 4:10). Não podemos enfatizar demais que o amor de Deus é a fonte, e não a conseqüência da expiação. Como o expressou P. T. Forsyth: "A expiação não assegurou a graça, mas fluiu dela".18 Deus não nos ama porque Cristo morreu por nós; Cristo morreu por nós porque Deus nos amou. É a ira de Deus que necessitava ser propiciada, é o amor de Deus que fez a propiciação. Se pudermos dizer que a propiciação "mudou a Deus" ou que por meio dela ele mudou a si mesmo, esclareçamos que a sua mudança não foi da ira para o amor, da inimizade para a graça, visto que o seu caráter é imutável. O que a propiciação mudou foi os seus tratos para conosco. "A distinção que eu peço que vocês observem", escreveu P. T. Forsyth, é "entre uma mudança de sentimento e uma mudança de tratamento. . . o sentimento de Deus para conosco jamais necessitou mudar. Mas o tratamento de Deus com referência a nós, o relacionamento prático de Deus para conosco — esse teve de mudar".19 Ele nos perdoou e nos recebeu no lar. Terceiro, qual foi o sacrifício propiciatório? Não foi animal, vegetal nem mineral. Não foi uma coisa, mas uma pessoa. E a pessoa que Deus ofereceu não foi alguém mais, uma pessoa humana ou um anjo, nem mesmo o seu Filho considerado como alguém distinto dele ou exterior a si mesmo. Não, ele ofereceu-se a si mesmo. Ao 75 dar o seu Filho, ele estava dando a si mesmo. Como escreveu repetidamente Karl Barth: "Foi o Filho de Deus, isto é, o próprio Deus". Por exemplo, "o fato de que foi o Filho de Deus, de que foi o próprio Deus, quem tomou o nosso lugar no Gólgota e, através desse ato, nos libertou da ira e do juízo divino, revela primeiro a implicação total da ira de Deus e a sua justiça condenadora e punitiva". Repetimos, "porque foi o Filho de Deus, isto é, o próprio Deus, que tomou o nosso lugar na Sexta-Feira da Paixão, para que a substituição fosse eficaz e pudesse assegurar-nos a reconciliação com o Deus justo. . . Somente Deus, nosso Senhor e Criador, poderia colocar-se como nossa segurança, poderia tomar o nosso lugar, poderia sofrer a morte eterna em nosso lugar como conseqüência de nossos pecados de tal modo que ela fosse finalmente sofrida e vencida."20 E tudo isso, esclarece Barth, foi expressão não somente da santidade da justiça divina, mas também das "perfeições do amor divino"; deveras, do "santo amor divino". Portanto, o próprio Deus está no coração de nossa resposta às três perguntas acerca da propiciação divina. É o próprio Deus que, em ira santa, necessita ser propiciado, o próprio Deus que, em santo amor, resolveu fazer a propiciação, e o próprio Deus que, na pessoa do seu Filho, morreu pela propiciação dos nossos pecados. Assim, Deus tomou a sua própria iniciativa amorosa de apaziguar sua própria ira justa levando-a em seu próprio ser no seu próprio Filho ao tomar o nosso lugar e morrer por nós. Não há nenhuma grosseria aqui que evoque o nosso ridículo, apenas a profundeza do santo amor que evoca a nossa adoração. Ao procurar, assim, defender e reinstituir a doutrina bíblica da propiciação, não temos intenção alguma de negar a doutrina bíblica da expiação. Embora devamos resistir a toda tentativa de substituir a propiciação pela expiação, damos boas-vindas a todas as tentativas que procuram vê-las unidas na salvação. Assim F. Büchsel escreveu que "hilasmos. . . é a ação na qual Deus é propiciado e o pecado expiado".21 O Dr. David Wells elaborou sucintamente sobre essa idéia: No pensamento paulino o homem é alienado de Deus pelo pecado e Deus é alienado do homem pela ira. É na morte substitutiva de Cristo que o pecado é vencido e a ira desviada, de modo que Deus possa olhar para o homem sem desprazer, e o homem olhar para Deus sem temor. O pecado é expiado, e Deus propiciado.22 Redenção Passaremos agora da "propiciação" para a "redenção". Ao procurarmos compreender a realização da cruz, as imagens mudam do santuário para o mercado, do reino cerimonial para o mercantil, dos rituais religiosos para as transações comerciais. Pois, no que tem de mais básico, "redimir" é comprar ou comprar de volta, quer como uma transação comercial quer como um resgate. Inevitavelmente, pois, a ênfase da imagem redentora se encontra em nosso estado deplorável — deveras, nosso cativeiro — no pecado que tornou necessário um ato de salvação divina. A "propiciação" enfoca a ira de Deus a qual foi aplacada pela cruz; a "redenção" centraliza-se na má situação dos pecadores da qual foram resgatados pela cruz. E "resgate" é a palavra correta a ser usada. As palavras gregas lytroo (geralmente traduzida por "redimir'') e apolytrosis ("redenção") derivam-se de lytron ("um resgate" ou "o preço da soltura"), que era um termo quase técnico no mundo antigo para a compra ou a ma-numissão de um escravo. Em vista do "uso invariável de autores seculares", a saber, que esse grupo de palavras se refere a "um processo que envolve a liberação através do pagamento de um preço de resgate",23 muitas vezes bem custoso, escreveu Leon Morris, não temos liberdade alguma de diluir o seu significado numa liberação vaga e até mesmo barata. Fomos "resgatados" por Cristo, não meramente "redimidos" ou "libertos" por ele. B. B. Warfield tinha razão em ressaltar que estamos "assistindo junto ao leito de morte de uma palavra. É triste testemunhar a morte de qualquer coisa digna — até mesmo de uma palavra. E palavras dignas realmente morrem, como qualquer outra coisa digna — se não cuidarmos bem delas." Mais triste ainda é "a morte no coração dos homens daquilo que as palavras representam".24 Ele se referia à perda da sua geração de um senso de gratidão àquele que pagou o nosso resgate. No Antigo Testamento, a propriedade, os animais, as pessoas e a nação eram todos "redimidos" pelo pagamento de certa quantia. O direito (e mesmo o dever) de fazer o papel do "parente resgatador" e comprar de volta a propriedade que fora alienada, a fim de conservá-la na família ou tribo, é ilustrado no caso de Boaz e no de Jeremias.25 Quanto aos animais, os machos primogênitos de todo o gado pertenciam por direito a Yavé; os burros e os animais impuros, contudo, podiam ser redimidos (isto é, comprados de volta) pelo dono.26 No caso dos israelitas, cada um tinha de pagar um "resgate pela sua vida" na época do censo nacional; os filhos primogênitos (os quais desde a Páscoa pertenciam a Deus), e especialmente aqueles que excediam o número dos Ievitas que os substituíam, tinham de ser redimidos; o dono de um touro notoriamente perigoso que matasse um homem a chifradas, devia ser morto, a menos que remisse a sua vida mediante o pagamento de certa multa; o 76 israelita pobre que foi forçado a se vender à escravidão podia mais tarde redimir a si mesmo ou ser redimido por um parente.27 Em todos esses casos de "redenção" havia uma intervenção custosa e decisiva. Alguém pagava o preço necessário para libertar a propriedade da hipoteca, os animais do matadouro, e as pessoas da escravidão, até mesmo da morte. E quanto à nação? Certamente o vocabulário da redenção foi usado para descrever a libertação de Israel tanto da escravidão no Egito28 quanto do exílio na Babilônia.29 Mas nesse caso, visto que o remador não era um ser humano, mas o próprio Deus, podemos ainda afirmar que "redimir" é "resgatar"? Que preço teve Yavé de pagar a fim de remir o seu povo? B. F. Wescott parece ter sido o primeiro a sugerir a resposta: "a idéia do exercício de uma poderosa força, a idéia de que a 'redenção' custa muito, está presente em todos os lugares".30 Warfield ampliou esse pensamento: "a idéia de que a redenção do Egito foi o efeito de um grande gasto de poder divino e no sentido de que custou muito, tem proeminência nas alusões que a ela se fazem, e parece constituir a idéia central que se procura transmitir".31 Pois Deus remiu a Israel "com um braço estendido" e "com mão poderosa".32 Concluímos que a redenção sempre exigiu o pagamento de um preço, e que a redenção de Israel por Yavé não foi exceção. Até aqui, resume Warfield, "o conceito do pagamento de um preço, intrínseco no lutrousthai é preservado. . . Uma redenção sem um preço pago é tão anômala quanto a transação de venda sem a troca de dinheiro".33 Ao entrarmos no Novo Testamento e examinarmos seu ensino a respeito da redenção, de imediato atingem-nos duas mudanças. Embora ainda seja inerente o conceito de que aqueles que necessitam de redenção se encontram em má situação e que só podem ser redimidos mediante o pagamento de um preço, contudo agora a má situação é moral em vez de material, e o preço é a morte expiatória do Filho de Deus. Essa parte já se evidencia no famoso dito de resgate de Jesus, o qual, no Novo Testamento, é fundamental à doutrina da redenção: "O próprio Filho do homem, não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos" (Marcos 10:45). A linguagem figurada subentende que somos conservados em cativeiro do qual somente o pagamento de um resgate nos pode libertar, e que o resgate é nada menos que a própria vida do Messias. A nossa vida é confis- cada; a dele será sacrificada. F. Büchsel certamente tem razão em dizer que a afirmação "sem dúvida alguma implica substituição". A combinação dos dois adjetivos na expressão grega antilytron hyper pollon (literalmente: "um resgate no lugar de e por causa de muitos") deixa essa idéia bem clara. "A morte de Jesus significa que lhe acontece o que teria acontecido a muitos. Daí tomar ele o nosso lugar".34 Uma expressão paralela (talvez um eco da anterior) ocorre em 1 Timóteo 2:5-6: "Cristo Jesus. . . O qual a si mesmo se deu em resgate por todos". É instrutivo que Josefo, historiador judaico, ao descrever a visita do general romano Crassus ao templo de Jerusalém em 54-53 a.C, com a intenção de saquear o santuário, tenha usado linguagem semelhante. Um sacerdote chamado Eleazar, que era guardião dos tesouros sagrados, deu-lhe uma grande barra de ouro (no valor de 10.000 sidos) como lytron anii panton, cuja tradução é: "um resgate em lugar de tudo". Isto é, a barra de ouro era oferecida como um substituto pelos tesouros do Templo.35 Qual é, pois, a difícil situação humana da qual não podemos nos libertar e que torna necessária a nossa redenção? Vimos que no Antigo Testamento o povo era redimido de variadas e sérias situações sociais como dívida, cativeiro, escravidão, exílio e execução. Mas o cativeiro de que Cristo nos libertou é moral. Essa escravidão agora é descrita como nossas "transgressões" ou "pecados" (visto que em dois ver-sículos-chave "redenção" é sinônimo de "perdão dos pecados"36), como "a maldição da lei" (a saber, o juízo divino que ela pronuncia sobre os infratores da lei),37 e como "o vosso fútil procedimento que vossos pais vos legaram".38 Entretanto, nem mesmo a nossa libertação destes cativeiros completa a nossa redenção. Há mais pela frente. Pois Cristo "a si mesmo se deu por nós, a fim de remir-nos de toda iniqüidade",39 a fim delibertar-nos de todos os danos da Queda. Ainda não experimentamos essa libertação. Assim como o povo de Deus do Antigo Testamento, embora já remidos do exílio do Egito e da Babilônia, ainda aguardavam a promessa de uma redenção mais plena, "esperavam a redenção de Jerusalém",40 da mesma forma o povo de Deus do Novo Testamento, embora já remidos da culpa e do juízo, ainda aguardam "o dia da redenção" no qual seremos tornados perfeitos. Nessa esperança está incluída a "redenção dos nossos corpos". Nessa altura toda a criação que geme será libertada de seu cativeiro à corrupção e levada a partilhar da liberdade da glória dos filhos de Deus. Nesse ínterim, o Espírito Santo que em nós habita é o selo, a garantia e as primícias de nossa redenção final. 41 Somente então Cristo nos terá redimido (e ao Universo) de todo pecado, dor, futilidade e corrupção. Segundo, tendo considerado a difícil situação da qual fomos remidos, necessitamos considerar o preço pelo qual, fomos remidos. O Novo Testamento jamais leva a imagem ao ponto de indicar a quem foi pago o resgate, mas não deixa dúvida nenhuma acerca do preço: foi o próprio Cristo. Para começar, houve o custo da 77 "desceu justificado para sua casa" (Lucas 18:14). De fato, remonta ao Antigo Testamento, no qual o servo de Deus, justo e sofredor "justificará a muitos", porque "levará as suas iniqüidades" (Isaías 53:11). Terceiro, necessitamos dar uma olhada nas razões pelas quais os católicos romanos rejeitam o ensino dos reformadores a respeito da justificação pela fé. Poderíamos resumir, não injustamente, a doutrina do Concilio de Trento em três cabeçalhos que se referem à natureza da justificação, o que a precede e a ocasiona, e o que a segue. Primeiro, o Concilio ensinou que a justificação acontece no batismo , e inclui tanto o perdão como a renovação. A pessoa batizada é purificada de todos os pecados originais e atuais e é simultaneamente infundida com uma justiça nova e sobrenatural. Segundo, antes do batismo a graça preveniente de Deus predispõe as pessoas a se "converterem à sua própria justificação livremente, concordando e cooperando com essa graça". Terceiro, os pecados pós-batismais (se "mortais", que causam a perda da graça) não são incluídos no âmbito da justificação. Têm de ser purgados através de contrição, confissão e penitência (também, se restarem alguns na hora da morte, pelo purgatório), de modo que se pode dizer que essas e outras boas obras pós-batismais "merecem" a vida eterna.55 As igrejas protestantes tinham boa razão para ser profundamente perturbadas por esse ensino. Ao mesmo tempo, nenhum dos lados ouvia cuidadosamente ao outro, e ambos eram marcados pelo espírito acrimonioso e polêmico de sua época. Hoje a questão básica, o caminho da salvação, permanece crucial. Muito se encontra em jogo. Entretanto, o ambiente mudou. Também o espantoso monógrafo de Hans Küng sobre a doutrina da justificação de Karl Barth56 abriu novas possibilidades de diálogo. Da mesma forma o fez o Segundo Concilio Vaticano no início dos anos sessentas.57 O livro de Hans Küng divide-se em duas partes. Com relação à primeira, que expõe "a teologia da justificação de Karl Barth", o próprio Barth escreveu a Hans Küng: "Você reproduziu total e acuradamente as minhas visões como eu próprio as compreendo. . . Você me fez dizer o que realmente faço e digo e. . . o significado do que digo é o que você apresentou". Com referência à segunda parte, que oferece "uma tentativa de resposta católica", e que em sua conclusão reivindica "um acordo fundamental entre a teologia católica e a protestante, precisamente na teologia da justificação", Barth escreveu: "Se for esse o ensino da igreja católica romana, então devo certamente admitir que minha perspectiva da justificação concorda com o ponto de vista católico romano, se tão somente pelo motivo de que o ensino católico estaria então, de modo admirável, de acordo com o meu!" A seguir ele pergunta como esse acordo "pôde permanecer oculto por tanto tempo e de tantos", e inquire se Hans Küng o descobriu antes, durante ou depois de ler a Dogmática da Igreja! Hans Küng certamente faz afirmativas admiráveis, embora talvez seja uma pena que a sua tese procure demonstrar concordância entre Trento e Barth, em vez de Lutero, por quem ele parece ter menos simpatia. No capítulo 27 ele define a graça segundo a Escritura como "graciosidade", "favor" de Deus ou "amabilidade generosa". "A questão não é eu ter graça, mas ele ser gracioso". No capítulo 28 ele escreve que a justificação "deve ser definida como uma declaração de justiça por ordem do tribunal, e que no Novo Testamento "jamais se encontra ausente a associação com uma situação jurídica". Outra vez, é um "evento judicial", "uma justiça maravilhosamente graciosa e salvadora". Então, no capítulo 31 Hans Küng vigorosamente afirma a verdade da sola fides (somente pela fé), e diz que Lutero estava totalmente correto e ortodoxo em acrescentar a palavra "somente" ao texto de Romanos 3:28, visto não ter sido "invenção de Lutero", já que tinha aparecido em várias outras traduções e Trento não pretendia contradizê-lo. De modo que "devemos reconhecer um acordo fun- damental", escreve ele, "em relação à fórmula sola fides. . . O homem é justificado por Deus somente à base da fé". Além do mais, "a justificação através da 'fé somente' fala da completa incapacidade e incompetência do homem para qualquer tipo de autojustificação". "Assim, o homem é justificado somente por meio da graça de Deus; o homem nada realiza; não há nenhuma atividade humana. Antes, o homem simplesmente se submete à justificação de Deus; ele não realiza obras; ele crê". Todavia, o professor Küng não se detém aí. Apesar da sua ênfase na natureza judicial da justificação como declaração divina, ele insiste em que a Palavra de Deus é sempre eficaz, de modo que tudo o que Deus pronuncia vem a existir. Portanto, quando Deus diz "você é justo", "o pecador é justo, real e verdadeiramente, externa e internamente, total e completamente. Seus pecados são perdoados, e o homem é justo em seu coração. . . Em resumo, a declaração divina de justiça é. . .ao mesmo tempo o no mesmo ato um tornar justo". Justificação é "o ato único que simultaneamente declara justo e torna justo". 80 Porém há aqui uma perigosa ambigüidade, especialmente na sentença retórica acerca do pecador justificado ser "total e completamente justo". O que implica essa afirmativa? Se "justo" aqui significa "perdoado, aceito, certo com Deus", então deveras nos tornamos de imediata, total e completamente o que Deus declara que somos; desfrutamos a situação justa a qual ele nos conferiu. Esse é o significado verdadeiro de "justificação". Se "justo" é usado com a significação de "tornado novo, feito vivo", então, repetimos, a palavra criadora de Deus imediatamente nos torna o que ele declara. Contudo, esse seria um mau uso da palavra "justo", porque o que agora se descreve não é justificação, mas regeneração. Se "justo" significa "ter caráter justo" ou "ser conformado à imagem de Cristo", então a declaração de Deus não a garante de imediato, mas apenas a inicia. Pois isso não é justificação mas santificação, um processo contínuo e vitalício. Até mesmo o Excursus II explanatório de Hans Küng, "Justificação e Santificação no Novo Testamento", não expõe de modo claro o que ele quer dizer com Deus "tornar" o pecador "justo". Ele reconhece o problema de que o Novo Testamento usa a linguagem da "santificação" em dois sentidos distintos. Às vezes é quase sinônimo de justificação, pois denota a santidade de nosso status, não nosso caráter. Nesse sentido, no mesmo momento de nossa justificação somos feitos "santos", pois fomos "santificados em Cristo Jesus", separados para pertencer ao povo santo de Deus.58 Outras vezes "santificação" descreve o processo de se crescer na santidade e se tornar à semelhança de Cristo.59 Parece que a confusão surge porque Hans Küng não mantém coerentemente essa distinção. Ele se refere à justificação e à santificação como acontecendo junta e simultaneamente ("Deus simultaneamente justifica e santifica") e como sendo juntas capazes de crescimento (Trento falou da "necessidade de. . . crescimento na justificação"). Essa afirmativa, contudo, é enganosa. No debate acerca da justificação seria prudente manter a palavra "santificação" no seu sentido distintivo de "crescimento em santidade". Pois então podemos afirmar que a justificação (Deus nos tornar justos através da morte do seu Filho) é instantânea e completa, não admitindo graus, ao passo que a santificação (Deus nos tornando justos através da habitação do seu Espírito), embora iniciada no momento em que somos justificados, é gradual e incompleta por toda vida, à medida que somos transformados à semelhança de Cristo "de glória em glória" (2 Coríntios 3:18). Ao desejar um esclarecimento maior nesse ponto, minha intenção não é diminuir a tour de force de Hans Küng. Ao mesmo tempo, já se passou mais de um quarto de século desde a publicação do seu livro, e não se tem consciência de nenhuma proclamação geral na igreja católica romana do evangelho da justificação somente pela graça através da fé somente. Correndo o risco de excessiva simplificação, pode-se dizer que os evangélicos e os católicos romanos juntos ensinam que Deus pela sua graça é o único Salvador dos pecadores, que a auto-salvação é impossível, e que a morte de Jesus Cristo como sacrifício propiciatório é o fundamento último da justificação. Mas precisamente o que é a justificação, como se relaciona a outros aspectos da salvação, como acontece — são estas as áreas de contínuos e ávidos debates. Os evangélicos sentem a necessidade de pressionar os católicos romanos acerca do pecado, da graça, da fé e das obras. Os católicos romanos sentem-se incomodados quando falamos acerca da "total depravação" (que cada aspecto de nossa humanidade foi distorcido pela Queda), que está por trás de nossa insistência sobre a necessidade de uma salvação radical e de graça não contributiva. Acham que essa é uma perspectiva pessimista da condição humana, envolvendo uma doutrina inadequada da criação. Acrescentam que os seres humanos não perderam o seu livre-arbítrio, e são, portanto, capazes de cooperar com a graça e contribuir para a salvação. Nós, contudo, vemos a necessidade de sublinhar as antíteses do Novo Testamento referentes à salvação. "Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie." "Sabendo. . . que o homem não é justificado por obras da lei, e, sim, mediante a fé em Cristo Jesus". De novo, "não por obras de justiça praticadas por nós, mas segundo sua misericórdia, ele nos salvou".60 Não podemos evitar a alternativa inflexível que tais textos colocam diante de nós. Não por obras, mas por graça. Não por lei, mas por fé. Não por ações de nossa justiça, mas pela misericórdia dele. Não há aqui nenhuma cooperação entre Deus e os homens, somente uma escolha entre dois modos mutuamente exclusivos, o dele e o nosso. Além do mais, a fé que justifica é enfaticamente não outra obra. Não, dizer "justificação pela fé" não passa de outro modo de dizer "justificação por Cristo". A fé, em si mesma, não tem absolutamente nenhum valor; seu valor está somente em seu objeto. A fé é o olho que olha para Cristo, a mão que o segura, a boca que bebe a água da vida. E quanto mais claramente vemos a adequação absoluta da pessoa divina e humana de Jesus 81 Cristo e sua morte que tira o pecado, tanto mais incongruente parece que alguém pudesse supor que temos algo a oferecer. É por isso que a justificação pela fé somente — e citamos de novo a Cranmer — "avança a verdadeira glória de Cristo e desfaz a vangloria do homem". Se desejarmos pressionar os católicos romanos nesses pontos, contudo, também necessitamos responder às pressões que fazem a nós. A principal delas poderia ser uma série de perguntas como as seguintes: "Vocês ainda insistem que quando Deus justifica os pecadores ele os pronuncia mas não os torna justos? que a justificação é uma declaração legal, não uma transformação moral? que a justiça é 'imputada' a nós, mas não 'infundida' em nós, nem mesmo 'transmitida' a nós? que vestimos a justiça de Cristo como um casaco, o que oculta nossa pecaminosidade contínua? que a justificação, embora mude nossa situação, deixa nosso caráter e conduta intactos? que cada cristão justificado, como ensinaram os reformadores, é simul justus et peccator (ao mesmo tempo uma pessoa justa e pecadora)? Se assim for, não é a justificação uma ficção legal, até mesmo um gigan- tesco engano, uma transação falsa externa a nós mesmos, a qual nos deixa sem renovação interna? Não estão vocês reivindicando ser mudados quando, de fato, não o são? Não é a sua doutrina da 'justificação pela fé somente' uma licença finamente disfarçada para continuarem pecando?" Essas são perguntas penetrantes. De um modo ou de outro, já ouvi a todas. E não há dúvida de que nós, evangélicos, em nosso zelo por enfatizar a liberdade total da salvação, às vezes temos sido incautos em nossa fraseologia, e dado a impressão de que boas obras não são importantes. Mas então, o apóstolo Paulo também podia, evidentemente, ter sido incauto, visto que seus críticos lhe atiraram a mesma acusação, o que o levou a clamar: "Que diremos, pois? permaneceremos no pecado, para que seja a graça mais abundante?'"' (Romanos 6:1). Sua resposta indignada à sua própria pergunta retórica foi lembrar a seus leitores o batismo deles. Não sabiam que, quando foram batizados em Cristo Jesus, foram batizados na sua morte? Tendo, assim, morrido com ele para o pecado, como poderiam viver nele? (vv. 2-3). O que Paulo estava fazendo com essa resposta era mostrar que a justificação não é a única imagem da salvação. Seria inteiramente errôneo fazer a equação "salvação é igual a justificação". "Salvação" é uma palavra abrangente que possui muitas facetas exemplificadas por quadros diferentes, dos quais a justificação é apenas um. Redenção, como vimos, é outra faceta e dá testemunho de nossa liberdade radical do pecado e também da culpa. Outra é a recriação, de modo que "se alguém está em Cristo, é nova criatura" (2 Coríntios 5:17). Ainda outra é a regeneração ou o novo nascimento, que é obra interior do Espírito Santo, que então permanece como uma presença graciosa, transformando o crente à imagem de Cristo, que é o processo da santificação. Todos os quadros vão juntos. A regeneração não é um aspecto da justificação, mas ambas são aspectos da salvação, nem uma delas pode ocorrer sem a outra. De fato, a grande afirmação "ele nos salvou" é dividida em seus componentes, que são "o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo" por um lado e ser "justificados por graça" por outro (Tito 3:5-7). A obra justificadora do Filho e a obra regene-radora do Espírito não podem ser separadas. É por isso que as boas obras do amor seguem a justificação e o novo nascimento, como evidência necessária deles. Pois a salvação, que jamais é "por obras", é sempre "para obras". Lutero costumava exemplificar a ordem correta dos eventos com uma referência à árvore e ao seu fruto: "A árvore deve vir primeiro, então o fruto. Pois não é a maçã que faz a árvore, mas a árvore que faz a maçã. De modo que primeiro a fé faz a pessoa, que, depois, produz as obras."61 Uma vez que mantenhamos que a obra do Filho por nós e a obra do Espírito em nós, isto é, a justificação e a regeneração, são gêmeas inseparáveis, é seguro prosseguirmos insistindo em que a justificação é uma declaração externa e legal de que o pecador foi tornado justo com Deus, perdoado e reinstituído. O uso popular da palavra torna claro esse ponto. Como ressaltou Leon Morris: "quando falamos de justificar uma opinião ou uma ação, não queremos dizer que a mudamos ou a aprovamos. Antes, queremos dizer que lhe garantimos um veredicto, que a vindicamos".62 Similarmente, quando Lucas disse que todo mundo, ao ouvir o ensino de Jesus, justificava a Deus, o que ele queria dizer era que reconheciam que Deus estava certo (Lucas 7:29). O vocabulário da justificação e condenação ocorre regularmente no Antigo Testamento. Moisés instruiu os juizes israelitas de que deviam decidir os casos que lhe fossem levados, "justificando ao justo e condenando ao culpado" (Deuteronômio 25:1). Todo mundo sabia que Yavé jamais justificaria o ímpio (Êxodo 23:7), e que "o que justifica o perverso e que condena o justo, abomináveis são para o Senhor, tanto um como o outro" (Provérbios 17:15). O profeta Isaías pronunciou um terrível ai contra os magistrados que "por suborno justificam o perverso, e ao justo negam justiça!" (5:23). Condenar o justo e justificar o ímpio seria colocar a administração da justiça de cabeça para baixo. É contra esse ambiente de prática judicial aceita que Paulo deve ter chocado seus leitores romanos, ao escrever que "Deus. . . justifica o ímpio" (Romanos 4:5). Como podia Deus fazer uma coisa 82 Dois outros termos do Novo Testamento confirmam a ênfase de que reconciliação significa paz com Deus, a saber "adoção" e "acesso". Com referência ao primeiro, foi o próprio Jesus, que sempre se dirigiu intimamente a Deus como "Aba, Pai", quem nos deu a permissão de fazer o mesmo, aproximando-nos dele como "nosso Pai que está no céu". Os apóstolos o ampliaram. João, que atribui o fato de sermos filhos de Deus ao nosso nascimento de Deus, expressa seu sentido de maravilha de que o Pai nos tivesse amado tanto ao ponto de nos chamar, e deveras fazer-nos seus filhos.74 Paulo, por outro lado, prefere traçar a nossa condição de filhos de Deus à adoção em vez de ao novo nascimento, e enfatiza os privilégios que temos em ser filhos em vez de escravos, e, portanto, herdeiros de Deus também.75 "Acesso" a Deus (prosagoge) é outra bênção da reconciliação. Parece denotar a comunhão ativa com Deus, especialmente em oração, a qual seus filhos reconciliados desfrutam. Duas vezes Paulo equipara "acesso a Deus" a "paz com Deus", a primeira vez atribuindo-os à nossa justificação em vez de à nossa reconciliação (Romanos 5:1-2), e a segunda vez explicando o "acesso" como uma experiência trinitariana, na qual temos acesso ao Pai através do Filho mediante o Espírito (Efésios 2:17-18), e "pelo qual temos ousadia e acesso com confiança" (Efésios 3:12). Pedro usa o verbo cognato, declarando que foi a fim de "conduzir-nos" a Deus (prosago) que Cristo morreu por nós de uma vez por todas, o justo pelos injustos (1 Pedro 3:18). E o escritor da carta aos Hebreus toma emprestado do ritual do Dia da Expiação a fim de transmitir a proximidade de Deus a qual Cristo tornou possível pelo seu sacrifício e sacerdócio. "Tendo, pois, irmãos, intrepidez para entrar no Santo dos Santos, pelo sangue de Jesus", escreve ele, "aproximemo-nos, com sincero coração, em plena certeza de fé. . ." (Hebreus 10:19-22). Assim, reconciliação, paz com Deus, adoção em sua família e acesso à sua presença — todos dão testemunho do mesmo relacionamento novo a que Deus nos trouxe. Todavia, a reconciliação possui um plano horizontal como também um vertical. Pois Deus nos reconciliou uns com os outros em sua nova comunidade, como também a si mesmo. Uma segunda grande passagem do Novo Testamento (Efésios 2:11-22) enfoca esse fato, e, em particular, a cura da separação entre judeus e gentios, de modo que às vezes não está claro a que reconciliação Paulo está-se referindo. Ele lembra a seus leitores cristãos gentios que outrora estavam, por um lado, "separados da comunidade de Israel, e estranhos às alianças da promessa", e por outro, "sem Cristo. . . e sem Deus no mundo" (v. 12). Sim, estavam "distantes" tanto de Deus quanto de Israel, duplamente alienados; "mas agora em Cristo Jesus", prossegue ele, "vós, que antes estáveis longe, fostes aproximados pelo sangue de Cristo" — aproximados de Deus e de Israel (v. 13). De fato, Cristo, que "é a nossa paz", quebrou a barreira que existia entre essas duas metades da raça humana, e "de ambos fez um" (v. 14). Ele "aboliu" os regulamentos da lei que os separava e "criou" em si mesmo "um novo homem, fazendo a paz" dos dois (v. 15). Conhecendo a amargura e o desprezo mútuos que judeus e gentios sentiam uns pelos outros, essa reconciliação foi um milagre da graça e do poder de Deus. O seu resultado foi o surgimento de uma humanidade única, nova e unificada, cujos membros através da cruz foram reconciliados com Deus e uns com os outros. Anteriormente inimigos, tiveram morta a sua hostilidade recíproca. Agora são co-cidadãos do reino de Deus, irmãos e irmãs na família de Deus (v. 19), membros do corpo de Cristo e co-participantes da promessa messiânica (3:6). Essa igualdade completa entre os judeus e os gentios na nova comunidade é o "mistério" que por séculos estivera oculto, mas que agora Deus revelava aos apóstolos, especialmente a Paulo, o apóstolo dos gentios (3:4-6). Mesmo essa igualdade não completa a reconciliação que Deus realizou através de Cristo. Em Colossenses, que é a epístola irmã de Efésios por causa dos muitos paralelos que ambas contêm, Paulo acrescenta uma dimensão cósmica à obra de Cristo. Quer a grande passagem cristológica (Colossenses 1:15-20) seja um hino cristão primitivo, como acreditam muitos eruditos, quer seja uma composição original paulina, é uma afirmativa sublime da supremacia absoluta de Jesus Cristo na criação e na redenção, do Universo e da igreja. Ao mesmo tempo, é aptamente dirigida aos hereges colossenses que parece terem ensinado a existência de seres angelicais intermediários ("tronos, soberanias, principados, potestades") entre o Criador e a criação material, e podem ter sugerido que Jesus era um deles. Paulo não concordou com tal idéia nem por um instante. Sua ênfase é em "tudo", expressão que ele usa cinco vezes e que em geral significa "cosmo", mas aqui, evidentemente, inclui principados e potestades. Todas as coisas foram criadas por Deus em Cristo, através de Cristo e para Cristo (v. 16). Ele é "antes" de todas as coisas no tempo e na hierarquia, e "nele" todas as coisas são sustentadas e integradas (v. 17). Visto que todas as coisas existem em Cristo, através dele e para ele, ele é, por direito, o senhor supremo. Além disso, ele é a cabeça do corpo, a igreja, sendo o primogênito dentre os mortos, para que tivesse primazia em todas as coisas (v. 18). E essa segunda esfera da sua supremacia deve-se ao fato de que 85 aprouve a Deus que em Cristo residisse toda a plenitude (v. 19) e realizasse a sua obra de reconciliação através dele fazendo paz mediante o sangue derramado na cruz. Dessa vez tudo o que é reconciliado é novamente chamado de "todas as coisas", descritas ainda mais como "coisas, quer sobre a terra, quer nos céus" (v. 20). Não podemos ter certeza daquilo a que Paulo estava-se referindo. Presumimos que a expressão "todas as coisas" reconciliadas (v. 20) tenha a mesma identidade de "todas as coisas" criadas (vv. 16-17). Mas se o que foi criado por meio de Cristo mais tarde necessitava ser reconciliado por intermédio dele, algo deve ter saído errado no entremeio. Como disse Peter O'Brien: "A pressuposição é que a unidade e harmonia do cosmo sofreram um deslocamento considerável, até mesmo uma ruptura, requerendo assim a reconciliação".76 Se a referência for à ordem natural, então talvez sua "reconciliação" seja a mesma que a liberdade do "cativeiro da corrupção" (Romanos 8:21), embora esse seja um evento futuro. Se, por outro lado, a referência for a seres cósmicos inteligentes ímpios ou anjos caídos, não há garantia no Novo Testamento que nos leve a esperar que tais foram (ou serão) reconciliados com Deus. Parece mais provável, portanto, que principados e potestades foram "reconciliados" no sentido do capítulo seguinte, a saber, que foram "desarmados" por Cristo, que "publicamente os expôs ao desprezo, triunfando deles na cruz" (Colossenses 2:15). Admitimos que é um uso estranho da palavra "reconciliados", mas, uma vez que Paulo também descreve essa reconciliação como "fazendo a paz" (1:20), talvez F. F. Bruce tenha razão ao dizer que o apóstolo está falando de uma "pacificação" de seres cósmicos "submetendo-se contra suas vontades a um poder que não podem resistir".77 Nesse caso, pode- se ter em mente a mesma situação que em outro lugar é descrita como cada joelho dobrando-se a Jesus e cada língua confessando o seu senhorio (Filipenses 2:9-11), e todas as coisas sendo colocadas por Deus debaixo dos pés de Cristo até o dia em que serão unidas sob uma única cabeça, a cabeça de Cristo (Efésios 1:10, 22). Até aqui investigamos os objetos da obra reconciliadora de Deus através de Cristo. Ele reconciliou os pecadores a si mesmo, judeus e gentios uns com os outros, e até mesmo os poderes cósmicos no sentido de desarmá-los e pacificá-los. Agora necessitamos considerar como se realizou a reconciliação, e quais são, no grande drama da reconciliação, os papéis respectivos desempenhados por Deus, Cristo e nós. A fim de conseguir luz para essas questões, voltamo-nos para a quarta passagem da reconciliação, 2 Coríntios 5:18-21. Tudo provém de Deus que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo, e nos deu o ministério da reconciliação, a saber, que Deus estava em Cristo, reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens as suas transgressões, e nos confiou a palavra da reconciliação. De sorte que somos embaixadores em nome de Cristo, como se Deus exortasse por nosso intermédio. Em nome de Cristo, pois, rogamos que vos reconcilieis com Deus. Àquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus. A primeira verdade dessa passagem deixa claro que Deus é o autor da reconciliação. De fato, é essa a ênfase principal da passagem toda. "Tudo (ta panta, todas as coisas") provém de Deus". Talvez a referência a "todas as coisas" nos remeta às "coisas novas" da nova criação com a qual o versículo anterior termina. Deus é o Criador; a nova criação provém dele. Seguem-se oito verbos nesses parágrafos os quais têm a Deus como sujeito. Descrevem a graciosa iniciativa divina — Deus reconciliando, Deus concedendo, Deus apelando, Deus fazendo Cristo pecado por nós. Portanto, não é bíblica a explicação da expiação que tira a iniciativa de Deus e a dá a nós ou a Cristo. A iniciativa certamente não é nossa. Nada temos para oferecer, contribuir, apelar. Na frase memorável de William Temple, "tudo é de Deus; a única coisa minha com a qual contribuo para a minha redenção é o pecado do qual preciso ser redimido". A iniciativa primária tampouco foi de Cristo. Qualquer interpretação da expiação que atribua a iniciativa a Cristo, de tal modo que a retire do Pai, não serve. Cristo deveras tomou a iniciativa de vir, mas apenas no sentido em que podia dizer: "Eis aqui estou. . . Para fazer, ó Deus, a tua vontade" (Hebreus 10:7). A iniciativa do Filho foi em submissão à iniciativa do Pai. Não houve relutância da parte do Pai. Não houve intervenção da parte de Cristo, como um terceiro partido. Não, a reconciliação foi concebida e dada à luz no amor de Deus. "Deus tanto amou o mundo que deu seu Filho unigênito". Notamos aqui que sempre que o verbo "reconciliar" ocorre no Novo Testamento, Deus é o seu sujeito (ele nos reconciliou consigo) ou, se o verbo estiver na passiva, nós o somos (fomos reconciliados com ele). Deus jamais é o objeto do verbo. Jamais se diz que "Cristo reconciliou o Pai conosco". Formal e lingüisticamente é esse o fato. Mas devemos ter cuidado em não construir teologicamente muito sobre ele. Pois se estivéssemos certos em dizer que Deus propiciou a sua própria ira por intermédio de Cristo, certamente poderíamos dizer que ele se reconciliou conosco por meio de Cristo. Se ele necessitava ser propiciado, ele igualmente necessitava ser reconciliado. Em outras palavras, é erro pensar que a barreira entre Deus e nós, a qual exigiu a obra da 86 reconciliação, estava inteiramente do nosso lado, de modo que carecemos ser reconciliados e Deus não. É verdade que éramos inimigos de Deus, hostis a ele em nossos corações.78 Mas a "inimizade" era de ambos os lados. A parede ou barreira entre Deus e nós era constituída tanto por nossa rebeldia a ele quanto por sua ira sobre nós por causa de nossa rebeldia. Três argumentos apóiam essa contenção. Primeiro, a linguagem. As próprias palavras "inimigo", "inimizade" e "hostilidade" implicam reciprocidade. Por exemplo, em Romanos 11:28 a palavra "inimigos", visto estar em contraste com o tempo passivo "amados", deve ser passiva. Também a "hostilidade" entre Jesus e os gentios de Efésios 2:14 foi recíproca, o que sugere que a outra "hostilidade" (entre Deus e os pecadores) também o foi. De modo que F. Büchsel escreve que não devemos interpretar a inimizade "unilateralmente", como hostilidade apenas "para com" Deus, mas que ela inclui o "permanecer sob a ira de Deus".79 O segundo argumento relaciona-se com o contexto, tanto de cada passagem individual quanto da Bíblia toda. Em todas as grandes passagens sobre a reconciliação, ou nas suas proximidades, faz-se referência à ira de Deus. A mais admirável é Romanos 5, onde "salvos da ira" (v. 9) é imediatamente seguida de "quando inimigos" (v. 10). Então há o contexto bíblico mais amplo. Leon Morris, em particular, o sublinha: "Há, na perspectiva bíblica, uma hostilidade definida da parte de Deus para com tudo o que é ímpio. . . Assim, muito separado dos detalhes de interpretação de determinadas passagens, há ensino forte e coerente no sentido de que Deus é ativo em sua oposição a tudo o que é ímpio."80 Terceiro, há a teologia. A lógica de Paulo era de que Deus tinha agido objetivamente na reconciliação antes que a mensagem de reconciliação fosse proclamada. De modo que a "paz" que os evangelistas pregam (Efésios 2:17) não pode ser que nosso inimizade foi vencida (antes pregam para que ela seja), mas que Deus se desviou da sua inimizade por causa da cruz de Cristo. Ele se reconciliou a si mesmo conosco; agora devemos ser reconciliados com ele. Emil Brunner expressou-se com precisão sobre esse assunto: A reconciliação pressupõe inimizade entre dois partidos. Dizendo-o mais acuradamente: a reconciliação, a reconciliação genuína, um ato objetivo de reconciliação, pressupõe inimizade de ambos os lados; isto é, que o homem é o inimigo de Deus e que Deus é o inimigo do homem.81 Brunner prossegue explicando que a nossa inimizade para com Deus é vista em nossa inquietação, que vai da frivolidade à renúncia aberta e ao ódio de Deus, ao passo que a inimizade dele para conosco é a sua ira. Além do mais, "Deus está presente nessa ira, que é, na realidade, a ira dele". Segundo, se Deus é o autor, Cristo é o agente da reconciliação. Os versículos 18 e 19 do capítulo 5 de 2 Coríntios tornam essa verdade clara como o cristal. "Deus. . . nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo" e "Deus estava em Cristo, reconciliando consigo o mundo". Ambas as afirmativas nos dizem que Deus tomou a iniciativa da reconciliação, e que ele o fez em Cristo e por meio dele. Nesse aspecto as sentenças são idênticas. Mas os beneficiários mudam de "nós" para "o mundo", a fim de mostrar o alcance universal da reconciliação, e a preposição muda de "por meio de" para "em", com o propósito de mostrar que Deus não estava operando por meio de Cristo como o seu agente à distância, mas estava, na realidade, presente nele enquanto este realizava a obra. Temos agora de notar os tempos passados, especialmente o aoristo ("reconciliou", v. 18). Ambos os verbos indicam que Deus estava fazendo, deveras fez, algo em Cristo. Deixemos que James Denney apresente a importância desse fato: A obra da reconciliação, no sentido do Novo Testamento, é uma obra que está terminada, e que devemos conceber como terminada, antes de o evangelho ser pregado. . . Reconciliação. . . não é algo que está sendo feito; é algo que está feito. Não resta dúvida de que há uma obra de Cristo em processo, mas tem a sua base numa obra terminada de Cristo. É em virtude de algo já consumado na cruz que Cristo é capaz de fazer a nós o apelo, o que ele faz, e conseguir a resposta na qual recebemos a reconciliação.82 Alguns anos mais tarde P. T. Forsyth expressou, com grande penetração, a mesma verdade: "Deus estava em Cristo, reconciliando", na realidade, reconciliando, terminando a obra. Não foi um caso tentativo, preliminar. . . A reconciliação estava terminada na morte de Cristo. Paulo não pregava uma reconciliação gradual. Ele pregava o que os antigos teólogos costumavam chamar de obra terminada. . . Ele pregava algo feito uma vez por todas — uma reconciliação que está na base da própria composição da alma, não um convite apenas.83 O que, pois, foi que Deus fez ou realizou em Cristo e por meio dele? Paulo dá a essa pergunta duas respostas complementares, uma negativa e uma positiva. De modo negativo, Deus recusou-se a imputar a nós as nossas transgressões (v. 19b). É claro que merecíamos que fossem contadas contra nós. Mas se ele nos levasse a juízo, 87 Segundo os Evangelhos Sinóticos, contudo, embora a glória de Jesus fosse vislumbrada na Transfiguração, a sua manifestação completa não se daria até a "parousia" e reino, época em que então se consumaria.4 Seria uma revelação de "poder e glória". O notável acerca da apresentação de João é que, embora a glória de Cristo tivesse sido manifestada poderosamente em seus milagres ou "sinais"5, acima de tudo devia ser vista em sua fraqueza presente, na auto-humilhação da encarnação. "E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai" (João 1:14). Não devemos perder as alusões do Antigo Testamento. A glória de Deus que sobreparava e enchia o tabernáculo no deserto agora está sendo demonstrada naquele que por um pouco habitou (eske-nosen, "tabernaculou") entre nós. E assim como Yavé mostrou a Moisés a sua glória, declarando que o seu nome era tanto misericordioso quanto justo, da mesma forma a glória que vimos em Jesus Cristo foi "cheia de graça e de verdade". Mais importante ainda é a antítese deliberada entre "carne" e "glória" e, portanto, o "paradoxo fundamental da glória da humilhação divina".6 A auto-humilhação do Filho de Deus, a qual começou na encarnação, culminou na sua morte. Contudo, nessa mesma humilhação ele foi "levantado", não apenas fisicamente elevado à cruz, mas também espiritualmente exaltado perante os olhos do mundo.7 Deveras, ele foi "glorificado". A cruz que parecia "vergonha" era, de fato, "glória". Ao passo que nos Evangelhos Sinóticos o sofrimento é o caminho da glória futura,8 para João é também a arena em que na realidade ocorre a glorificação.9 Em três ocasiões distintas Jesus se referiu à sua morte vindoura como a hora da sua glorificação. Primeira, em resposta ao pedido de alguns gregos que procuravam vê-lo, Jesus disse: "É chegada a hora de ser glorificado o Filho do homem", e prosseguiu imediatamente a falar da sua morte em termos tanto do grão de trigo que cai ao chão como da glória que o Pai havia de trazer ao seu próprio nome. Segunda, assim que Judas deixou o cenáculo e entrou na noite, Jesus disse: "Agora foi glorificado o Filho do homem, e Deus foi glorificado nele". Terceira, ele iniciou a sua grande oração no final da refeição no cenáculo, com as palavras: "Pai, é chegada a hora; glorifica a teu Filho, para que o teu Filho te glorifique a ti".30 O notável acerca das três passagens é que, primeiro, cada uma é introduzida por "agora" ou "é chegada a hora", em referência indisputável à cruz; e, segundo, que a glorificação será do Pai e do Filho juntos. De modo que o Pai e o Filho são revelados pela cruz. Mas o que é que revelam de si mesmos? Certamente a auto-humilhação e a au-todoação do amor estão implícitas aqui. Mas e a santidade desse amor, que tornou necessário que o Cordeiro de Deus tirasse o pecado do mundo e que o Bom Pastor desse a sua vida pelas ovelhas, e que fez mais expediente (como Caifás corretamente profetizou) que um homem morresse pelo povo em vez de perecer toda a nação?11 Essas afirmativas eram parte integral da compreensão que João tinha da morte mediante a qual Pai e Filho seriam glorificados. A glória que se irradia da cruz é a mesma combinação de qualidades divinas que Deus revelou a Moisés como misericórdia e justiça, e a qual vimos no Verbo feito carne como "graça e verdade".12 Essa é a "bondade" de Deus, a qual Calvino viu demonstrada no "teatro" da cruz: Pois na cruz de Cristo, como num esplêndido teatro, a incomparável bondade de Deus é apresentada diante do mundo todo. A glória de Deus brilha deveras em todas as criaturas de cima e de baixo, mas jamais tão viva quanto na cruz. . . Se alguém apresentar a objeção de que nada poderia ser menos gloriosa do que a morte de Cristo. . . respondo que nessa morte vemos a glória imensurável que está oculta aos ímpios*13 Quando passamos de João a Paulo, o conceito de que Deus se revelou na cruz e por meio dela, torna-se ainda mais explícito. O que para João é manifestação da glória de Deus, para Paulo é a demonstração, deveras, a vindicação, do seu caráter de justiça e amor. Pode ser útil, antes de estudarmos os dois textos-chave separadamente, examiná-los lado a lado. Ambos ocorrem na carta aos Romanos: A quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos; tendo em vista a manifestação da sua justiça no presente, para ele mesmo ser justo e justificador daquele que tem fé em Jesus (3:25-26). Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco, pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores (5:8). Os verbos gregos traduzidos por "demonstrar" no capítulo três e "provar" no cinco, apesar de serem diferentes, significam a mesma coisa, e Paulo está declarando que na morte de Cristo, Deus nos deu uma demonstração clara e pública da sua justiça e do seu amor. Já vimos como Deus "satisfez" a sua ira e amor, 90 justiça e misericórdia, dando-se a si mesmo em Cristo para levar o nosso pecado e condenação. Agora vamos ver como, ao satisfazer a esses atributos divinos na cruz, ele os demonstrou e expôs. A justiça de Deus Homens e mulheres de sensibilidade moral têm sempre ficado perplexos pela aparente injustiça da providência divina. Esse problema está longe de ser moderno. Desde o tempo de Abraão, que se indignou porque Deus pretendia destruir a Sodoma e Gomorra e no processo matar os justos com os ímpios, e proferiu o grito de angústia: "Não fará justiça o Juiz de toda a terra?" (Gênesis 18:25), os personagens e os autores da Bíblia têm lutado com essa questão. Ela é um dos temas recorrentes da Literatura de Sabedoria e domina o livro de Jó. Por que os ímpios florescem e os inocentes sofrem? Diz-se que "pecado e morte", transgressão humana e juízo divino encontram-se equilibrados, até mesmo unidos inseparavelmente. Por que, então, não vemos com mais freqüência pecadores castigados? Pelo contrário, com grande freqüência, parecem escapar impunes. Os justos, por outro lado, muitas vezes são acometidos por desastres. Não somente Deus não os protege, mas também não responde às suas orações e até mesmo parece não se importar com o destino deles. De modo que, evidentemente, há uma necessidade de uma "teodicia", uma vindicação da justiça de Deus, uma justificação à humanidade dos modos aparentemente injustos de Deus. A Bíblia responde a essa necessidade de dois modos complemen-tares. Primeiro, olhando para o juízo final e, segundo (da perspectiva dos crentes do Novo Testamento), olhando de volta para o juízo decisivo realizado na cruz. Quanto à primeira perspectiva, era ela a resposta-padrão ao problema no Antigo Testamento, resposta da qual o Salmo 73 é um exemplo. Os perversos prosperam. São saudáveis e ricos. Apesar de sua violência, arrogância e soberbo desafio a Deus, saem ilesos. Nenhum raio do céu os abate. O salmista admite que, ao invejar a liberdade deles de pecar e a sua imunidade ao sofrimento, quase se desviou de Deus, pois seus pensamentos eram mais semelhantes aos dos animais selvagens do que aos de um israelita piedoso. Até entrar "no santuário de Deus" ele não conseguiu chegar a nenhuma compreensão satisfatória. Então ele atinou "com o fim deles". Não têm consciência de que o lugar em que se firmam com tanta confiança é por demais escorregadio, e que um dia cairão, assolados pelo justo juízo de Deus. O Novo Testamento repete várias vezes essa mesma certeza de juízo último, no qual os desequilíbrios da justiça serão corrigidos. Paulo diz aos filósofos atenienses que Deus só não levou em conta a idolatria no passado porque "estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo com justiça, por meio de um varão que destinou e acreditou", e adverte seus leitores de Roma a não presumirem das riquezas da "bondade, tolerância e longanimidade" de Deus, as quais lhes estão dando espaço para o arrependimento. Pedro dirige a mesma mensagem aos "escarnecedores", que ridicularizam a noção de um juízo futuro. A razão de esse dia ainda não haver chegado é que Deus, em sua tolerância, está mantendo aberta a porta da oportunidade um pouco mais, "não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento".14 Se o propósito da primeira parte da "teodicia" bíblica é advertir acerca do juízo final vindouro, a segunda é declarar que esse juízo já se realizou na cruz. É por isso que Deus permitiu, por assim dizer, que os pecados se acumulassem no tempo do Antigo Testamento sem ser punidos (como mereciam) ou perdoados (visto ser "impossível que sangue de touros e de bodes remova pecados"). Mas agora, diz o escritor da carta aos Hebreus, Cristo é o "Mediador de nova aliança a fim de que, intervindo a morte para remissão das transgressões que havia sob a primeira aliança".15 Em outras palavras, o motivo da inação anterior de Deus em face do pecado não era indiferença moral mas tolerância pessoal até que Cristo viesse e o removesse na cruz. A passagem clássica sobre esse tema é Romanos 3:21-26. Vamos a ela. Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas; justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos [e sobre todos] os que crêem; porque não há distinção, pois todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus; a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos; tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e justificador daquele que tem fé em Jesus. Charles Cranheld descreveu esses seis versículos como "centro e coração" da carta aos Romanos. A fim de compreendê-los, teremos de começar pelo menos um breve exame da enigmática frase do versículo 21: "Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus". A construção fraseológica é quase idêntica à de 1:17: ("Visto 91 que a justiça de Deus se revela no evangelho"), com exceção de estarem os verbos respectivamente no passado e no presente. Qualquer que seja a "justiça de Deus", é claro que sua revelação se encontra no evangelho. Foi revelada no evangelho quando este, pela primeira vez, foi formulado, e continua a ser revelada no evangelho sempre que este é pregado. É certo não ser essa a única revelação que Paulo menciona. Ele já afirmou que o poder e a divindade de Deus são revelados na criação (1:19-20), e que a ira divina é revelada dos céus (1:18) aos ímpios que suprimem a verdade, especialmente na desintegração moral da sociedade. Mas o mesmo Deus que revelou o seu poder na criação e a sua ira na sociedade também revelou a sua justiça no evangelho. Tem-se debatido interminavelmente o artigo "a" que precede a palavra "justiça". São três as principais explicações apresentadas. Primeira, segundo a tradição medieval, diz-se que era o atributo divino da justiça, como nos versículos 25 e 26 onde afirma-se que Deus a manifestou. O problema dessa interpretação é que a justiça divina normalmente se manifesta em juízo (exemplo, Apocalipse 19:11), o que dificilmente seriam as boas novas reveladas no evangelho. Lutero sustentava essa primeira perspectiva e ela quase o levou ao desespero. É claro, se a justiça de Deus pudesse ser vista em certas circunstâncias, manifestando-se em justificação em vez de juízo, a questão seria bem diferente. Mas estou-me adiantando. Segundo, de acordo com os reformadores, a frase significava uma situação justa que é "de Deus" (caso genitivo) no sentido de que é "de Deus", concedida por ele. A justiça é "sem lei" (v. 21) porque a função da lei é condenar, e não justificar, embora "testemunhada pela lei e pelos profetas", porque é uma doutrina do Antigo Testamento. Visto que todos nós somos injustos (3:10) e não podemos estabelecer nossa própria justiça (3:20; 10:3), a justiça de Deus é um dom gratuito (5:17), ao qual nos devemos submeter (10:3), receber (9:30), ter (Fili- penses 3:9) e, assim, até mesmo nos tornar (2 Coríntios 5:21). "A justiça de Deus", sendo um dom para os injustos, recebida pela fé em Cristo somente (v. 22), de fato, nada mais é que a justificação. Terceiro, alguns eruditos recentes têm chamado a atenção para as passagens do Antigo Testamento, especialmente nos salmos e em Isaías, nas quais "a justiça de Deus" e "a salvação de Deus" são sinônimos, e referem-se à iniciativa divina em vir a fim de resgatar o seu povo e vindicá-lo quando oprimido.16 Nesse caso, a "justiça de Deus" não é nem seu atributo de justiça, nem seu dom da justificação, mas sua atividade dinâmica e salvadora. A principal objeção que se faz a essa interpretação é que Paulo, embora tivesse declarado que a lei e os profetas testificavam da justiça divina, não cita nenhum dos versículos apropriados. A segunda das três interpretações se encaixa melhor em cada contexto em que a expressão ocorre, e parece quase certamente correta. Por outro lado, pode não ser necessário rejeitar as outras duas. Pois se a justiça de Deus é a posição justa que ele concede àqueles que crêem em Cristo, é por meio de sua atividade dinâmica e salvadora que tal dádiva está disponível e é concedida, e a operação é totalmente de acordo com a sua justiça. "A justiça de Deus", então, pode ser definida como "o modo justo de Deus de justificar os injustos"; é a situação justa que ele concede aos pecadores a quem justifica. Além do mais, como vimos no capítulo anterior, o seu ato livre e gracioso de justificar é "mediante a redenção que há em Cristo Jesus" (v. 24), a quem "Deus propôs, no seu sangue, como propiciação" (v. 25). Se Deus em Cristo não tivesse pago o preço de nosso resgate e propiciado sua própria ira contra o pecado, na cruz, ele não nos poderia ter justificado. Agora, o motivo pelo qual ele fez isso, a saber, apresentou a Cristo como sacrifício de expiação, foi "demonstrar a sua justiça". Tão importante é esse objetivo divino que o apóstolo o afirma duas vezes com palavras virtualmente idênticas, embora em cada vez ele acrescente uma explicação diferente. Na primeira vez ele olha para o passado e diz que Deus demonstrou sua justiça na cruz por ter Deus "na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos" (v. 25). A segunda vez ele olha da cruz para o presente e para o futuro, e diz que Deus demonstrou (de fato, continua a demonstrar) a sua justiça "no tempo presente, para ele mesmo ser justo e justificador daquele que tem fé em Jesus" (v. 26). Por causa da sua tolerância passada para com os pecadores, Deus havia criado um problema para si mesmo. Pecado, culpa e juízo deviam estar inexoravelmente ligados em seu mundo moral. Por que, então, ele não havia julgado os pecadores, segundo as suas obras? Era preciso uma "teodicia" para vindicar a sua justiça. Embora em restrição própria ele pudesse ter adiado seu juízo, não poderia permitir que o acúmulo de pecados humanos continuasse indefinidamente, muito menos cancelar de todo o juízo. Se Deus não punisse o pecado justamente, seria "injusto a si mesmo", como o disse Anselmo, ou, nas palavras de James Denney, "não faria justiça a si mesmo", antes, "faria a si mesmo uma injustiça".17 De fato, ele destruiria tanto a si mesmo quanto a nós. Ele deixaria de ser Deus e nós cessaríamos de ser totalmente humanos. Ele se destruiria contradizendo seu caráter divino de justo Legislador e Juiz, e nos destruiria contradizendo a nossa dignidade humana de pessoas 92 amigável e atraente) poderá ser que alguém se anime a morrer. "Mas Deus prova o seu próprio amor para co- nosco" — seu amor singular — nisto, que ele morreu por pessoas pecadoras, ímpias, rebeldes e fracas como nós. O valor de um dom de amor é medido tanto pelo que custa a quem dá como pelo grau de merecimento de quem recebe. Um jovem apaixonado, por exemplo, dará à sua amada presentes caros, muitas vezes além de suas posses, como símbolos do seu amor, pois acha que ela os merece, e mais ainda. Jacó serviu sete anos por Raquel pelo amor que lhe tinha. Mas Deus, ao dar o seu Filho, deu-se a si mesmo para morrer por seus inimigos. Ele deu tudo por aqueles que nada dele mereciam. "E essa é a prova de Deus de seu amor para conosco". Em um de seus livros, Canon Wiliam Vanstone tem um capítulo intitulado "A Fenomenologia do Amor". A tese de Vanstone é que todos os seres humanos, até mesmo os que foram privados do amor desde a infância, são capazes de instintivamente discernir o amor autêntico. Então ele sugere que, "se podemos descrever a forma do amor autêntico, dificilmente necessitaremos procurar em outro lugar uma descrição do amor de Deus". Embora essa afirmativa entre em conflito com o que escrevi antes acerca de o amor de Deus definir o nosso, em vez de vice-versa, sei o que ele quer dizer e não desejo fazer-lhe objeção. Ele apresenta uma relação de seis marcas do amor falso, mediante as quais expõe-se a sua falsidade. São elas: a marca da limitação (algo é retirado), a do controle (manipulação das pessoas), e a da distância (permanecemos auto-suficientes, ilesos, insofridos). Em contraste, as características do amor autêntico são: dar de si mesmo sem limites, correr riscos sem certeza de êxito, ser vulnerável ao ponto de mágoa. Aconteceu de eu estar lendo o livro de Vanstone enquanto escrevia este capítulo, e não pude deixar de observar o paralelo (embora não seja exato) entre as suas três marcas do amor autêntico e as três marcas do amor de Deus revelado por Paulo em Romanos 5:8. Eis o resumo final de Canon Vanstone. O amor de Deus é "despendido em auto-doação, totalmente despendido, sem resíduo nem reserva, esgotado, gasto". Isto é, ao dar o seu Filho, ele deu-se a si mesmo. A seguir, o amor de Deus é "despendido em esforço precário, até mesmo posi- cionado à beira do fracasso. . ." Pois ele deu o seu Filho para morrer, correndo o risco de entregar o controle de si mesmo. Terceiro, o amor de Deus é visto "indefeso ante o que ele ama, aguardando no fim a resposta que será sua tragédia ou seu triunfo". Pois ao dar o seu Filho para morrer pelos pecadores, Deus se fez vulnerável à possibilidade de que eles o desprezassem e lhe voltassem as costas. O professor Jürgen Moltmann vai um pouco mais longe em sua tentativa de explicar como Deus revelou o seu amor na cruz. Ele apanha a notável expressão de Lutero "o Deus crucificado" (a qual o próprio Lutero tomou emprestado da teologia medieval), e, como o reformador, afirma que Deus define-se a si mesmo e que chegamos a conhecê-lo na cruz. A teologia crucis de Lutero, portanto, "não é apenas um capítulo da teologia, mas a assinatura-chave de toda a teologia cristã" 20 Teologia alguma é genuinamente cristã se não surgir da cruz e não se focalizar nela. Em particular, por "cruz" o professor Moltmann quer dizer, mais do que tudo, o grito de abandono. Escreve Moltmann que esse grito mostra que Jesus não apenas foi rejeitado pelos judeus como blasfemo, e executado pelos romanos como rebelde, mas, na realidade, também foi condenado e abandonado por seu Pai. Portanto, surge a pergunta: "Quem é o Deus que está na cruz de Cristo e que foi abandonado por Deus?" "Toda a teologia cristã e toda a vida cristã são, basicamente, uma resposta à pergunta que Jesus fez quando morria". É por isso que a teologia deve ser desenvolvida "a uma distância que nos permita ouvir o clamor de morte de Jesus". O que, pois, compreendemos de Deus quando vimos a Jesus crucificado e ouvimos o seu grito de abandono? Certamente vemos sua amorosa disposição de se identificar com os rejeitados humanos. Pois "o símbolo da cruz na igreja aponta para Deus que foi crucificado não entre duas velas sobre o altar, mas entre dois ladrões no lugar da caveira, local dos rejeitados, fora das portas da cidade". E nessa terrível experiência, que "divide Deus de Deus ao máximo grau de inimizade e distinção", temos de reconhecer que, embora de modos diferentes, tanto o Pai quanto o Filho sofreram o preço de sua entrega. "O Filho sofre morrendo, o Pai sofre a morte do Filho. O sofrimento do Pai é tão importante quanto a morte do Filho. A orfandade do Filho é igualada à desfilhação do Pai". Essa é uma frase encantadora. Confesso que o meu próprio desejo é que o professor Moltmann tivesse dado ênfase mais forte ao fato de que foi com os espiritualmente rejeitados, não apenas com os socialmente rejeitados, isto é, com os pecadores, não apenas com os criminosos, que Jesus se identificou na cruz. Então Vanstone poderia ter esclarecido a natureza e a causa do terrível abandono de Deus. Entretanto, sua aceitação sincera de que o abandono foi real e se constitui a maior evidência do amor de Deus, é comovedora. A teoria da "influência moral" A cruz permanece como uma demonstração tão evidente do amor que vários teólogos, em eras diferentes da história da igreja, têm tentado encontrar aí o seu valor expiador. Para eles o poder da cruz jaz não em um 95 objetivo qualquer, numa transação que tira o pecado, mas na sua inspiração subjetiva, não em sua eficácia legal (mudar a nossa posição perante Deus) mas em sua influência moral (mudar as nossas atitudes e ações). O expoente mais famoso dessa perspectiva, ao que se diz, foi o filósofo e teólogo francês Pedro Abelardo (1079—1142). Ele é mais conhecido por seu apaixonado apego a Heloise (com quem se casou secretamente depois do nascimento do filho deles), o qual teve conseqüências tão trágicas para ambos. Em sua vida acadêmica pública, contudo, suas cintilantes preleções e debates atraíram grandes auditórios. Contemporâneo mais jovem de Anselmo, Abelardo concordou com este em repudiar a noção de que a morte de Cristo foi o preço do resgate pago ao diabo. Mas ele discordou violentamente do ensino de Anselmo de que a morte de Cristo foi uma satisfação pelo pecado. "Quão cruel e ímpio parece", escreveu ele, "que alguém exigisse o sangue de uma pessoa inocente como preço de algo, ou que, de algum modo, agradasse a Deus que um homem inocente fosse morto — muito menos que Deus pensasse que a morte de seu Filho era tão agradável que, por meio dela, ele devia ser reconciliado com o mundo todo!"23 Pelo contrário, Abelardo retratou a Jesus como sendo primariamente nosso Mestre e Exemplo. Embora continuasse a usar frases tradicionais como "redimidos por Cristo", "justificados em seu sangue", e "reconciliados com Deus", ele interpretava a eficácia da morte do Senhor em termos exclusivamente subjetivos. O auto-sacrifício voluntário do Filho de Deus move-nos a responder em amor gracioso e, assim, leva-nos à contrição e ao arrependimento. Redenção é esse maior amor acendido em nós pela paixão de Cristo, um amor que não apenas nos livra do cativeiro do pecado, mas também nos adquire a verdadeira liberdade de filhos, onde o amor em vez do temor torna-se a afeição dominante.22 Em apoio à sua tese, Abelardo citou as palavras de Jesus: "perdoados lhe são os seus muitos pecados, porque ela muito amou" (Lucas 7:47). Mas ele compreendeu mal o texto, transformando o amor no fundamento para o perdão em vez do resultado deste. Perdão para ele era, de fato, o resultado da morte de Cristo, mas indiretamente, a saber, que a cruz evoca o nosso amor por Cristo, e quando o amamos, somos perdoados. "Justificação" se tornou para Abelardo uma divina infusão de amor. Como disse Robert Franks, "ele reduziu todo o processo da redenção a um único princípio claro, isto é, a manifestação do amor de Deus a nós em Cristo, a qual desperta um amor responsivo em nós".23 Pedro Lombardo, que se tornou bispo de Paris em 1159 e podia ser descrito como um dos discípulos de Abelardo, escreveu em seu famoso Livro das Sentenças: Um penhor tão grande de amor nos tendo sido dado, somos comovidos e acendidos para amar a Deus, que fez coisas tão grandes por nós; e mediante isso somos justificados, isto é, sendo despegados de nossos pecados, somos feitos justos. A morte de Cristo, portanto, nos justifica, ao ponto de através dela o amor ser estimulado em nossos corações.24 Nos princípios do século doze, então, tinha-se manifestado um debate teológico de imensa importância, debate cujos protagonistas principais foram Anselmo e Abelardo. Anselmo ensinava que a morte de Jesus foi uma satisfação objetiva pelo pecado. Abelardo ensinava que a eficácia da morte de Cristo era grandemente subjetiva na influência moral que exerce em nós. O fundamento mediante o qual Deus perdoa os nossos pecados era, para Anselmo, a morte propiciatória de Cristo; mas para Abelardo, era o nosso próprio amor, penitência e obediência que são em nós despertados ao contemplarmos a morte de Cristo. É provável que o defensor mais franco da teoria da "influência moral" deste século tenha sido o Dr. Hastings Rashdall, cujas Preleções Bampton de 1915 foram publicadas com o título A Idéia da Expiação na Teologia Cristã. Ele insistia em que era preciso fazer-se uma escolha entre a compreensão da expiação objetiva de Anselmo e a subjetiva de Abelardo, e que não tinha dúvida alguma de que Abelardo estava com a razão. Pois, segundo Jesus, dizia Rashdall, a única condição para a salvação era o arrependimento: "O homem verda- deiramente penitente que confessa os seus pecados a Deus recebe o perdão instantâneo". "Deus é um Pai amoroso que perdoará o pecado sob a única condição do verdadeiro arrependimento", e a morte de Jesus Cristo "opera, em realidade, ajudando a produzir esse arrependimento". Mais do que isso, "supõe-se que Deus somente possa perdoar tornando o pecador melhor, e, assim, removendo qualquer exigência de castigo". Em outras palavras, é o nosso arrependimento e a nossa conversão, produzidos em nós ao contemplarmos a cruz, que capacitam Deus a perdoar-nos. A importância da cruz não é ela expressar o amor de Deus no trato com os nossos pecados, mas evocar o nosso amor e, assim, tornar desnecessário qualquer trato divino com pecados. Boas obras de amor, em vez de serem evidências da salvação, tornam-se o fundamento sobre o qual ela é concedida. 96 Há três motivos pelos quais devemos confiantemente declarar inatingível a "influência moral" ou teoria "exemplarista", pelo menos por aqueles que levam a Escritura a sério. A primeira é que os que sustentam esse ponto de vista tendem eles mesmos a não levá-la a sério. Rashdall rejeitou todo texto incompatível com a sua teoria. Ele declarou que a afirmativa de resgate de Jesus (Marcos 10:45) era um "acréscimo doutrinariamente colorido", e suas palavras eucarísticas acerca do sangue da nova aliança e do perdão dos pecados similarmente secundárias. Em que base? Simplesmente que "nosso Senhor jamais ensinou que a sua morte era necessária para o perdão dos pecados", o que é um notável exemplo do raciocínio circular, assumindo o que deseja provar. Ele é mais sincero quando diz que nossa crença na inspiração bíblica não nos deve impedir de "audazmente rejeitar quaisquer fórmulas que. . . parecem dizer que o pecado não pode ser perdoado sem um sacrifício vicário". Em outras palavras, primeiro construa sua teoria da expiação, então defenda-a contra todas as objeções, e não permita que um assunto insignificante como a inspiração impeça o seu caminho. Pelo contrário, simplesmente afirme que a mensagem pura de Jesus foi corrompida pelo cristianismo pré-paulino, baseado em Isaías 53, e que Paulo completou o processo. Segundo, necessitamos citar contra Abelardo e Rashdal as palavras de Anselmo: "Vós ainda não considerastes a seriedade do pecado". A teoria da "influência moral" oferece um remédio superficial porque faz um diagnóstico superficial. Apela ao homem iluminado porque possui confiança ilimitada na razão e habilidade humanas. E totalmente despida da profunda compreensão bíblica da rebeldia radical do homem contra Deus, da ira de Deus como seu violento antagonismo ao pecado humano, e da necessidade indispensável de uma satisfação pelo pecado que satisfaça ao próprio caráter de justiça e amor de Deus. James Orr disse com razão que a perspectiva de Abelardo sobre a expiação era "defeituosa precisamente no lado em que a de Anselmo era errada",25 a saber, em sua análise do pecado, da ira e da satisfação. Terceiro, a teoria da influência moral possui uma falha fatal em sua própria ênfase central. O seu foco é o amor de Cristo, que ao mesmo tempo brilha da cruz e evoca o nosso amor em resposta. Sobre essas duas verdades desejamos dar ênfase igual. Nós também sabemos que foi porque Cristo nos amou que ele se deu a si mesmo por nós.26 Nós também descobrimos que o seu amor desperta o nosso. Nas palavras de João: "Nós amamos porque ele nos amou primeiro" (1 João 4:19). Concordamos com o que Denney escreveu: "Não hesito em dizer que o senso da dívida a Cristo é a mais profunda e penetrante de todas as emoções no Novo Testamento."27 Até aqui, pois, estamos de acordo. A cruz é o epítome do amor de Cristo e a inspiração do nosso. Mas a pergunta que desejamos fazer é: como é que a cruz expõe e demonstra o amor de Cristo? O que existe na cruz que revela amor? O verdadeiro amor tem propósito em sua autodoação; não faz gestos irresponsáveis e aleatórios. Se a pessoa se atirasse do quebra-mar e se afogasse, ou entrasse num edifício em chamas e morresse queimada, e se o seu auto- sacrifício não tivesse um propósito salvador, ela me convenceria da sua tolice, não do seu amor. Mas se eu me estivesse afogando no mar, ou me encontrasse preso num edifício em chamas, e foi na tentativa de me salvar que a pessoa perdeu a vida, então eu deveras veria amor e não tolice em sua ação. Assim também a morte de Jesus na cruz não pode ser vista como uma demonstração do próprio amor, mas somente se ele deu a sua vida a fim de salvar a nossa. A morte dele deve ser vista como possuindo um objetivo, antes que possa ter um apelo. Paulo e João viram amor na cruz porque entenderam-na respectivamente como uma morte pelos pecadores (Romanos 5:8) e como uma propiciação pelos pecados (1 João 4:10). Isto é, a cruz pode ser vista como prova do amor de Deus somente quando é, ao mesmo tempo, vista como prova da sua justiça. Daí a necessidade de con- servar essas duas demonstrações juntas em nossa mente, como é a insistência de Berkouwer: "Na cruz de Cristo o amor e a justiça de Deus são simultaneamente revelados, de modo que podemos falar do seu amor somente em conexão com a realidade da cruz."28 Repete ele: "A graça e a justiça de Deus são reveladas somente na substituição real, no sacrifício radical, na inversão de papéis". Da mesma forma, Paulo escreveu em 2 Coríntios 5:14-15: Pois o amor de Cristo nos constrange (literalmente "agarra-nos" e assim não nos dá oportunidade de escolher), julgando nós isto: um morreu por todos, logo todos morreram. E ele morreu por todos, para que os que vivem não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou. O constrangimento do amor de Cristo, diz Paulo, descansa numa convicção. É porque estamos convencidos do propósito e custo da cruz, a saber, que devemos a nossa vida à sua morte, que sentimos o aperto constrangedor do amor sobre nós, o qual não nos deixa alternativa a não ser viver para ele. R. W. Dale escreveu um dos seus excelentes livros para provar que a morte de Cristo na cruz foi objetiva antes que pudesse ser subjetiva, e que "a menos que o grande sacrifício seja concebido sob formas objetivas, 97
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