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A Cabeça Bem Feita!, Notas de estudo de Química

Este livro é dirigido a todos, mas poderia ajudar particularmente professores e alunos. Gostaria de que estes últimos, se tiverem acesso a este livro, e se o ensino os entedia, desanima, deprime ou aborrece, pudessem utilizar meus capítulos para assumir sua própria educação " Edgar Morin.

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 28/05/2010

danilo-silva-50
danilo-silva-50 🇧🇷

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Pré-visualização parcial do texto

Baixe A Cabeça Bem Feita! e outras Notas de estudo em PDF para Química, somente na Docsity! ANIS OP VI NDA reforma | pensamento EDGAR MORIN A CABEÇA BEM-FEITA Repensar a reforma Reformar o pensamento 8a EDIÇÃO Tradução ELOÁ JACOBINA SUMÁRIO PREFÁCIO ....................................................................................... 9 1. OS DESAFIOS ............................................................................ 13 2. A CABEÇA BEM-FEITA ............................................................. 21 3. A CONDIÇÃO HUMANA ............................................................. 35 4. APRENDER A VIVER ................................................................. 47 5. ENFRENTAR A INCERTEZA ........................................................ 55 6. A APRENDIZAGEM CIDADÃ ...................................................... 65 7. OS TRÊS GRAUS....................................................................... 75 8. A REFORMA DE PENSAMENTO ................................................. 87 9. PARA ALÉM DAS CONTRADIÇÕES ............................................ 99 ANEXOS 1. Inter-poli-transdisciplinaridade ............................................ 105 2. A noção de sujeito ................................................................. 117 7 PREFÁCIO “Gostaria tanto de perseverar em minha educação puramente humana, mas o saber não nos torna melhores nem mais felizes. Sim! Se fôssemos capazes de compreender a coerência de todas as coisas! Mas o início e o fim de toda ciência não estão envoltos em obscuridade? Ou devo empregar todas estas faculdades, estas forças, esta vida inteira, para conhecer tal espécie de inseto, para saber classificar uma determinada planta na série dos reinos?” KLEIST, Lettre à une amie (Carta a uma amiga) DURANTE OS ÚLTIMOS dez anos, desenvolvi uma linha de idéias que me conduziria a este livro. Cada vez mais convencido da necessidade de uma reforma do pensamento, portanto de uma reforma do ensino, aproveitava diversas oportunidades para refletir sobre o assunto. Por sugestão de Jack Lang, então ministro da Educação na França, enunciei “algumas anotações para um Emílio* contemporâneo”. Imaginara um “manual para alunos, professores e cidadãos”, projeto que não abandonei. Depois, por ocasião de várias palestras e vários honoris causa em faculdades estrangeiras, inseria em meus discursos minhas idéias em formação. Comecei a formular meu ponto de vista em meados 1997, quando fui chamado por Le Monde de l’éducation para ser o “correspondente- chefe convidado” do número sobre a Universidade. _____________________ * Referência a Emílio, ou da educação, de Jean-Jacques Rousseau, Bertrand Brasil. (N.daT.) 9 No dezembro seguinte, o ministro Claude Allègre pediu-me para presidir um “Conselho Científico” destinado a refletir sobre a reforma dos saberes nos ginásios. Graças ao apoio de Didier Dacunha-Castelle, organizei algumas jornadas temáticas1, que me permitiram demonstrar a viabilidade de minhas idéias. Mas elas levantaram tantas resistências, que o relato referente a minhas proposições ficou prejudicado de ponta a ponta. Entretanto, meu pensamento entrara irrevogavelmente em ação, e com ele prossegui neste trabalho, que é o seu resultado2. Tencionei começar pelos problemas que acreditava serem, ao mesmo tempo, os mais urgentes e os mais importantes, e indicar o caminho para analisá-los. Tencionei começar pelas finalidades e mostrar como o ensino – primário, secundário, superior – podia servir a essas finalidades. Tencionei demonstrar como a solução dos problemas e sua submissão às finalidades deveriam levar, necessariamente, à reforma do pensamento e das instituições. Os que não me leram e julgam-me segundo o “disse-me-disse” do microcosmo atribuem-me a idéia bizarra de uma poção mágica, chamada complexidade, como remédio para todos os males do espírito. Ao contrário, a complexidade, para mim, é um desafio que sempre me propus a vencer. Este livro é dedicado, de fato, à educação e ao ensino, a um só tempo. Esses dois termos, que se confundem, distanciam-se igualmente. “Educação” é uma palavra forte: “Utilização de meios que permitem assegurar a formação e o desenvolvimento de um ser humano; esses próprios meios”. (Robert) O termo “formação”, com suas conotações de moldagem e conformação, tem o defeito de ignorar _____________________ 1 O relato dessas jornadas foi publicado sob o título Relier les connaissances; Seuil, 1999. 2 Agradeço a Jean-Louis Le Moigne e Chtistiane Peyron-Bonjan, que contribuíram com suas observações críticas na releitura de meu manuscrito. 10 os problemas essenciais nunca são parceláveis, e os problemas globais são cada vez mais essenciais. Além disso, todos os problemas particulares só podem ser posicionados e pensados corretamente em seus contextos; e o próprio contexto desses problemas deve ser posicionado, cada vez mais, no contexto planetário. Ao mesmo tempo, o retalhamento das disciplinas torna impossível apreender “o que é tecido junto”, isto é, o complexo, segundo o sentido original do termo. Portanto, o desafio da globaliaade é também um desafio de complexidade. Existe complexidade, de fato, quando os componentes que constituem um todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico) são inseparáveis e existe um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre as partes e o todo, o todo e as partes. Ora, os desenvolvimentos próprios de nosso século e de nossa era planetária nos confrontam, inevitavelmente e com mais e mais freqüência, com os desafios da complexidade. Como disseram Aurélio Peccei e Daisaku Ikeda: “O approach reducionista, que consiste em recorrer a uma série de fatores para regular a totalidade dos problemas levantados pela crise multiforme, que atravessamos atualmente, é menos uma solução que o próprio problema.”2 Efetivamente, a inteligência que só sabe separar fragmenta o complexo do mundo em pedaços separados, fraciona os problemas, unidimensionaliza o multidimensional. Atrofia as possibilidades de compreensão e de reflexão, eliminando assim as oportunidades de um julgamento corretivo ou de uma visão a longo prazo. Sua insuficiência para tratar nossos problemas mais graves constitui um dos mais graves problemas que enfrentamos. De modo que, quanto mais os problemas se tornam multidimensionais, maior a incapacidade de _____________________ 2 Cri d’alarme pour le 21e siècle. Dialogue entre Daisaku Ikeda et Aurélio Peccei, PUF, 1986. 14 pensar sua multidimensionalidade; quanto mais a crise progride, mais progride a incapacidade de pensar a crise; quanto mais planetários tornam-se os problemas, mais impensáveis eles se tornam. Uma inteligência incapaz de perceber o contexto e o complexo planetário fica cega, inconsciente e irresponsável. Assim, os desenvolvimentos disciplinares das ciências não só trouxeram as vantagens da divisão do trabalho, mas também os inconvenientes da superespecialização, do confinamento e do despedaçamento do saber. Não só produziram o conhecimento e a elucidação, mas também a ignorância e a cegueira. Em vez de corrigir esses desenvolvimentos, nosso sistema de ensino obedece a eles. Na escola primária nos ensinam a isolar os objetos (de seu meio ambiente), a separar as disciplinas (em vez de reconhecer suas correlações), a dissociar os problemas, em vez de reunir e integrar. Obrigam-nos a reduzir o complexo ao simples, isto é, a separar o que está ligado; a decompor, e não a recompor; e a eliminar tudo que causa desordens ou contradições em nosso entendimento3. Em tais condições, as mentes jovens perdem suas aptidões naturais para contextualizar os saberes e integrá-los em seus conjuntos. Ora, o conhecimento pertinente é o que é capaz de situar qualquer informação em seu contexto e, se possível, no conjunto em que está inscrita. Podemos dizer até que o conhecimento progride não tanto por sofisticação, formalização e abstração, mas, principalmente, pela capacidade de contextualizar e englobar. Assim, a ciência econômica é a ciência humana mais sofisticada e a mais formalizada. Contudo, os economistas são incapazes de estar de acordo sobre suas _____________________ 3 O pensamento que recorta, isola, permite que especialistas e experts tenham ótimo desempenho em seus compartimentos, e cooperem eficazmente nos setores não complexos de conhecimento, notadamente os que concernem ao funcionamento das máquinas artificiais; mas a lógica a que eles obedecem estende à sociedade e as relações humanas os constrangimentos e os mecanismos inumanos da máquina artificial e sua visão determinista, mecanicista, quantitativa, formalista; e ignora, oculta ou dilui tudo que é subjetivo, afetivo, livre, criador. 15 predições, geralmente errôneas. Por quê? Porque a ciência econômica está isolada das outras dimensões humanas e sociais que lhe são inseparáveis. Como diz Jean-Paul Fitoussi, “muitos desfuncionamentos procedem, hoje, de uma mesma fraqueza da política econômica: a recusa a enfrentar a complexidade...”4. A política econômica é a mais incapaz de perceber o que não é quantificável, ou seja, as paixões e as necessidades humanas. De modo que a economia é, ao mesmo tempo, a ciência mais avançada matematicamente e a mais atrasada humanamente. Hayek dizia: “Ninguém pode ser um grande economista se for somente um economista.” Chegava até a acrescentar que “um economista que só é economista torna-se prejudicial e pode constituir um verdadeiro perigo”. Devemos, pois, pensar o problema do ensino, considerando, por um lado, os efeitos cada vez mais graves da compartimentação dos saberes e da incapacidade de articulá-los, uns aos outros; por outro lado, considerando que a aptidão para contextualizar e integrar é uma qualidade fundamental da mente humana, que precisa ser desenvolvida, e não atrofiada. Por detrás do desafio do global e do complexo, esconde-se um outro desafio: o da expansão descontrolada do saber. O crescimento ininterrupto dos conhecimentos constrói uma gigantesca torre de Babel, que murmura linguagens discordantes. A torre nos domina porque não podemos dominar nossos conhecimentos. T. S. Eliot dizia: “Onde está o conhecimento que perdemos na informação?” O conhecimento só é conhecimento enquanto organização, relacionado com as informações e inserido no contexto destas. As informações constituem parcelas dispersas de saber. Em toda parte, nas ciências como nas mídias, estamos afogados em informações. O especialista da disciplina mais restrita não chega sequer a tomar conheci- _____________________ 4 Le Débat interdit: monnaie, Europe, pauvreté, Arléa, 1995. 16 Existe um déficit demográfico crescente, devido à apropriação de um número crescente de problemas vitais pelos experts, especialistas e técnicos. O saber tornou-se cada vez mais esotérico (acessível somente aos especialistas) e anônimo (quantitativo e formalizado). O conhecimento técnico está igualmente reservado aos experts, cuja competência em um campo restrito é acompanhada de incompetência quando este campo é perturbado por influências externas ou modificado por um novo acontecimento. Em tais condições, o cidadão perde o direito ao conhecimento. Tem o direito de adquirir um saber especializado com estudos ad hoc, mas é despojado, enquanto cidadão, de qualquer ponto de vista globalizante ou pertinente. Se ainda é possível discutir num bar a conduta da chefia do Estado, já não é possível compreender o que deflagra o crash asiático, assim como o que impede esse crash de provocar uma crise maior; de resto, os próprios experts estão profundamente divididos sobre o diagnóstico e a política econômica a seguir. Se era possível acompanhar a Segunda Guerra Mundial pelas bandeirinhas fincadas no mapa, não é possível conceber os cálculos e as simulações dos computadores que executam os planos da guerra futura. A arma atômica deixou o cidadão inteiramente desprovido da possibilidade de pensá-la e controlá-la. Sua utilização está entregue unicamente à decisão do chefe de Estado, sem qualquer consulta a alguma instância democrática regulamentar. Quanto mais técnica torna-se a política, mais regride a competência democrática. A continuação do processo técnico-científico atual – processo cego, aliás, que escapa à consciência e à vontade dos próprios cientistas – leva a uma grande regressão da democracia. Assim, enquanto o expert perde a aptidão de conceber o global e o fundamental, o cidadão perde o direito ao conhecimento. A partir daí, a perda do saber, muito mal compensada pela vulgarização da mídia, levanta o problema histórico, agora capital, da necessidade de uma democracia cognitiva. 19 Atualmente, é impossível democratizar um saber fechado e esotérico por natureza. Mas, a partir daí, não seria possível conceber uma reforma do pensamento que permita enfrentar o extraordinário desafio que nos encerra na seguinte alternativa: ou sofrer o bombardeamento de incontáveis informações que chovem sobre nós, quotidianamente, pelos jornais, rádios, televisões; ou, então, entregarmo-nos a doutrinas que só retêm das informações o que as confirma ou o que lhes é inteligível, e refugam como erro ou ilusão tudo o que as desmente ou lhes é incompreensível. É um problema que se coloca não somente ao conhecimento do mundo no dia-a-dia, mas também ao conhecimento de tudo o que é humano e ao próprio conhecimento científico. O desafio dos desafios Um problema crucial de nossa época é o da necessidade de destacar todos os desafios interdependentes que acabamos de levantar. A reforma do pensamento é que permitiria o pleno emprego da inteligência para responder a esses desafios e permitiria a ligação de duas culturas dissociadas. Trata-se de uma reforma não programática, mas paradigmática, concernente a nossa aptidão para organizar o conhecimento. Todas as reformas concebidas até o presente giraram em torno desse buraco negro em que se encontra a profunda carência de nossas mentes, de nossa sociedade, de nosso tempo e, em decorrência, de nosso ensino. Elas não perceberam a existência desse buraco negro, porque provêm de um tipo de inteligência que precisa ser reformada. A reforma do ensino deve levar à reforma do pensamento, e a reforma do pensamento deve levar à reforma do ensino. 20 CAPÍTULO 2 A CABEÇA BEM-FEITA “Não se ensinam os homens a serem homens honestos, mas ensina-se tudo o mais.” PASCAL “A finalidade de nossa escola é ensinar a repensar o pensamento, a ‘des- saber’ o sabido e a duvidar de sua própria dúvida; esta é a única maneira de começar a acreditar em alguma coisa.” JUAN DE MAIRENA A PRIMEIRA FINALIDADE do ensino foi formulada por Montaigne: mais vale uma cabeça bem-feita que bem cheia. O significado de “uma cabeça bem cheia” é óbvio: é uma cabeça onde o saber é acumulado, empilhado, e não dispõe de um princípio de seleção e organização que lhe dê sentido. “Uma cabeça bem-feita” significa que, em vez de acumular o saber, é mais importante dispor ao mesmo tempo de: – uma aptidão geral para colocar e tratar os problemas; – princípios organizadores que permitam ligar os saberes e lhes dar sentido. A aptidão geral Lembremos que o espírito humano, como dizia H. Simon, é um GPS, general problems setting and solving. Contrariamente à opinião hoje difundida, o desenvolvimento 21 A organização dos conhecimentos Uma cabeça bem-feita é uma cabeça apta a organizar os conhecimentos e, com isso, evitar sua acumulação estéril. Todo conhecimento constitui, ao mesmo tempo, uma tradução e uma reconstrução, a partir de sinais, signos, símbolos, sob a forma de representações, idéias, teorias, discursos. A organização dos conhecimentos é realizada em função de princípios e regras que não cabe analisar aqui5; comporta operações de ligação (conjunção, inclusão, implicação) e de separação (diferenciação, oposição, seleção, exclusão). O processo é circular, passando da separação à ligação, da ligação à separação, e, além disso, da análise à síntese, da síntese à análise. Ou seja: o conhecimento comporta, ao mesmo tempo, separação e ligação, análise e síntese. Nossa civilização e, por conseguinte, nosso ensino privilegiaram a separação em detrimento da ligação, e a análise em detrimento da síntese. Ligação e síntese continuam subdesenvolvidas. E isso, porque a separação e a acumulação sem ligar os conhecimentos são privilegiadas em detrimento da organização que liga os conhecimentos. Como nosso modo de conhecimento desune os objetos entre si, precisamos conceber o que os une. Como ele isola os objetos de seu contexto natural e do conjunto do qual fazem parte, é uma necessidade cognitiva inserir um conhecimento particular em seu contexto e situá-lo em seu conjunto. De fato, a psicologia cognitiva demonstra que o conhecimento progride menos pela sofisticação, formalização e abstração dos conhecimentos particulares do que, sobretudo, pela aptidão a integrar esses conhecimentos em seu contexto global. A partir daí, o desenvolvimento da aptidão para contextualizar e globalizar os saberes torna-se um imperativo da educação. O desenvolvimento da aptidão para contextualizar tende a produzir a emergência de um pensamento “ecologizante”, no sentido em _____________________ 5 Cf. E. Morin, La Méthode, t. 3: La Connaissance de la connaissance e t. 4: Les Idées, Éd. du Seuil, “Points Essais” nº 236 e 303. 24 que situa todo acontecimento, informação ou conhecimento em relação de inseparabilidade com seu meio ambiente – cultural, social, econômico, político e, é claro, natural. Não só leva a situar um acontecimento em seu contexto, mas também incita a perceber como este o modifica ou explica de outra maneira. Um tal pensamento torna-se, inevitavelmente, um pensamento do complexo, pois não basta inscrever todas as coisas ou acontecimentos em um “quadro” ou uma “perspectiva”. Trata-se de procurar sempre as relações e inter-retro-ações entre cada fenômeno e seu contexto, as relações de reciprocidade todo/partes: como uma modificação local repercute sobre o todo e como uma modificação do todo repercute sobre as partes. Trata-se, ao mesmo tempo, de reconhecer a unidade dentro do diverso, o diverso dentro da unidade; de reconhecer, por exemplo, a unidade humana em meio às diversidades individuais e culturais, as diversidades individuais e culturais em meio à unidade humana. Enfim, um pensamento unificador abre-se de si mesmo para o contexto dos contextos: o contexto planetário. Para seguir por esse caminho, o problema não é bem abrir as fronteiras entre as disciplinas, mas transformar o que gera essas fronteiras: os princípios organizadores do conhecimento. Pascal já formulara a necessidade de ligação, que hoje é o caso de introduzir em nosso ensino, a começar pelo primário: “Sendo todas as coisas causadas e causadoras, ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas, e todas elas mantidas por um elo natural e insensível, que interliga as mais distantes e as mais diferentes, considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, assim como conhecer o todo sem conhecer, particularmente, as partes...” (Pensamentos, Éd. Brunschvicg, II, 72). Para pensar localizadamente, é preciso pensar globalmente, como para pensar globalmente é preciso pensar localizadamente. O problema chave permanece: quais são os princípios que poderiam elucidar as relações de reciprocidade entre partes e todo, bem como reconhecer o elo natural e insensível que liga as coisas mais distantes e as mais diferentes? Quais são as maneiras de pensar que per- 25 mitiriam conceber que uma mesma coisa possa ser causada e causadora, ajudada e ajudante, mediata e imediata? No capítulo 8, “A reforma do pensamento”, vamos indicá-las, sucintamente. Um novo espírito científico A segunda revolução científica do século XX6 pode contribuir, atualmente, para formar uma cabeça bem-feita. Essa revolução, iniciada em várias frentes dos anos 60, gera grandes desdobramentos que levam a ligar, contextualizar e globalizar os saberes até então fragmentados e compartimentados, e que, daí em diante, permitem articular as disciplinas, umas às outras, de modo mais fecundo. O desenvolvimento anterior das disciplinas científicas, tendo fragmentado e compartimentado mais e mais o campo do saber, demoliu as entidades naturais sobre as quais sempre incidiram as grandes interrogações humanas: o cosmo, a natureza, a vida e, a rigor, o ser humano. As novas ciências, Ecologia, ciências da Terra, Cosmologia, são poli ou transdisciplinares: têm por objeto não um setor ou uma parcela, mas um sistema7 complexo, que forma um _____________________ 6 ... a primeira teria irrompido na microfiísica, no início do século (cf. cap. 5, p. 56). 7 A idéia sistêmica começou, na segunda metade de nosso século, a minar progressivamente a validade de um conhecimento reducionista. Formulada por Bertalanffy, ao longo dos anos 50, a teoria geral dos sistemas, que parte do fato de que a maior parte dos objetos da física, da astronomia, da biologia, da sociologia, átomos, moléculas, células, organismos, sociedades, astros, galáxias formam sistemas, ou seja, conjuntos de partes diversas que constituem um todo organizado, retomou a idéia, freqüentemente formulada no passado, de que um todo é mais que o conjunto das partes que o compõem. Na mesma época, a cibernética estabelecia os primeiros princípios concernentes à organização das máquinas que dispunham de programas informatizados e de dispositivos reguladores, cujo conhecimento não podia ser reduzido ao de suas partes constitutivas. Como destacamos (La Méthode, t. h La Nature de la nature, Éd. du Seuil, “Points Essais”, n? 123, particularmente, pp. 101-116), a organização em sistema produz qualidades ou propriedades desconhecidas das partes concebidas isoladamente: as emergências. Assim, as propriedades do ser vivo são desconhecidas na medida de seus constituintes moleculares isolados; elas 26 abrange a física terrestre, a biosfera e as implantações humanas. Marginalizada pelas disciplinas vitoriosas, privada do pensamento organizador – que vai além do possibilismo de Vidal de La Blache, ou do determinismo de Ratzell –, a Geografia, que, de resto, forneceu profissionais à Ecologia, reencontra suas perspectivas multidimensionais, complexas e globalizantes10. Desenvolve seus pseudopodes geopolíticos11 e reassume sua vocação originária: como diz Jean-Pierre Allix, “somos necessariamente generalizadores”12. A Geografia amplia-se em Ciência da Terra dos homens. COSMOLOGIA O cosmo fora liquidado no início do século XX pelo conceito einsteiniano de espaço-tempo. Sua ressurreição tem início com a descoberta de Hubble da dispersão das galáxias, a hipótese do átomo primitivo de Lemaître, e é concluída nos anos 60, notadamente depois da descoberta da radiação isótropa que vem de todos os pontos do Universo e pode ser interpretada como o resíduo fóssil de um acontecimento térmico inicial. A partir daí, impõe-se o conceito de um cosmo único, em evolução. Para conhecer esse cosmo e conceber, sobretudo, a formação dos nódulos, dos átomos, e as inter-retroações no interior dos astros, a observação astrofísica é associada aos resultados das experiências microfísicas, isto é, a disciplina do infinitamente grande à disciplina do infinitamente pequeno; a exemplo de Pascal, alguns cosmólogos, meditando sobre a situação humana entre esses dois infinitos, tentam introduzir a possibilidade da vida e da consciência em sua idéia de cosmo (princípio antrópico). _____________________ 10 Cf. Jacques Levy, Le Monde pour cité, debate com Alfred Valladao, Hachette, 1996. Michel Roux, Géographie et complexité, L’Harmattan, 1999. 11 Cf. Yves Lacoste, Dictionnaire de géopolitique, Flammarion, 1995. 12 L’Espace humain, Une invitation à la géographie, Éd. du Seuil, 1996. 29 Assim, a partir daí, disciplinas distintas (astronomia de observação, física, micro física, matemática), além de uma reflexão quase filosófica, são utilizadas de maneira reflexiva para permitir, tanto quanto possível, uma inteligibilidade de nosso Universo. Os atrasos Infelizmente, a revolução das recomposições multidisciplinares está longe de ser generalizada e, em muitos setores, sequer teve início, notadamente no que concerne ao ser humano, vítima da grande disjunção natureza/cultura, animalidade/humanidade, sempre desmembrado entre sua natureza de ser vivo, estudada pela biologia, e sua natureza física e social, estudada pelas ciências humanas. Contudo, a nova Pré-história, desde as descobertas feitas por Louis e Mary Leakey na garganta do Olduvai, em 1959, permite efetuar a primeira ligação, que forma um nó górdio entre o biológico e o humano: como ciência polidisciplinar e poliscópica, ela procura compreender a hominização, aventura de alguns milhões de anos, que realiza a passagem do animal ao humano e a da natureza à cultura. Precisa recorrer à Ecologia (mudanças climáticas que estimularam a hominização), à Genética (mutações sucessivas do australopteco ao Homo sapiens), à Anatomia (o elo entre a bipedização e a manualização, a postura ereta do corpo, a modificação do crânio); às ciências neurológicas (crescimento e reorganização do cérebro); à Sociologia (transformação de uma sociedade de primatas em sociedade humana), às teorias de Bolk (o adulto conserva os caracteres não especializados do embrião e os caracteres fisiológicos da juventude)13. Ata-se, então, o primeiro elo indissolúvel entre ciências da vida e ciências humanas. _____________________ 13 Cf. as indicações in Le Paradigme perdu, “Points Essais”, n°. 109. 30 Nas ciências cognitivas, um outro elo é pesquisado entre o cérebro, órgão biológico, a mente, entidade antropológica, e o computador, inteligência artificial. Mas, até o presente, há mais justaposição que ligação, e menos busca de uma linguagem comum que conflitos entre disciplinas de pretensão hegemônica: ciências neurológicas, ciências físicas, teorias oriundas da informação, cibernética, conceitos de auto- organização a partir de redes de conexão etc. O mais grave é que as ciências cognitivas, que aglutinam disciplinas “normais”, próprias da ciência clássica, ignoram seu problema crucial: o objeto de seu conhecimento é da mesma natureza que seu instrumento de conhecimento. De modo que as ciências cognitivas constituem uma primeira etapa de agregação, à espera da grande virada. No que diz respeito às ciências da vida e às ciências do homem, a situação é bem diferente. Os prodigiosos progressos da Biologia Molecular e da Genética permitem conceber o elo entre Física, Química e Biologia, pois é pela organização, e não pela matéria, que a vida se diferencia do mundo físico-químico. Mas essa organização é concebida de maneira reducionista, quando simplificada em um único movimento ADN → ARN → proteínas. De fato, existem hiatos, até agora não preenchidos, entre Biologia Molecular, de um lado, e Etologia ou Parasitologia, do outro. Enquanto a Biologia Molecular esforça-se para reduzir todo comportamento vivo a movimentos genético-químicos, em uma outra perspectiva das ciências biológicas desenvolveu-se uma visão etológica que põe a descoberto a complexidade das estratégias, não apenas animais, mas também vegetais, a inteligência e a complexidade das relações entre macacos superiores, sobretudo os chimpanzés, a existência não de hordas, mas de verdadeiras sociedades, entre mamíferos; quanto à Parasitologia, ela descobre estratagemas surpreendentes nos parasitas, que se infiltram de uma espécie a outra, sem que esse comportamento tão complicado possa ser reduzido a um acaso genético. 31 CAPÍTULO 3 A CONDIÇÃO HUMANA “Nosso verdadeiro estudo é o da condição humana.” ROUSSEAU, Emílio A contribuição da cultura científica O ESTUDO DA CONDIÇÃO humana não depende apenas do ponto de vista das ciências humanas. Não depende apenas da reflexão filosófica e das descrições literárias. Depende também das ciências naturais renovadas e reunidas, que são: a Cosmologia, as ciências da Terra e a Ecologia. O que essas ciências fazem é apresentar um tipo de conhecimento que organiza um saber anteriormente disperso e compartimentado. Ressuscitam o mundo, a Terra, a natureza – noções que nunca deixaram de provocar o questionamento e a reflexão na história de nossa cultura – e, de uma nova maneira, despertam questões fundamentais: o que é o mundo, o que é nossa Terra, de onde viemos? Elas nos permitem inserir e situar a condição humana no cosmo, na Terra, na vida. Estamos em um planeta minúsculo, satélite de um Sol de subúrbio, astro pigmeu perdido entre milhares de estrelas da Via-láctea, ela mesma galáxia periférica em um cosmo em expansão, privado de centro. Somos filhos marginais do cosmo, formados de partículas, átomos, moléculas do mundo físico. E estamos não apenas marginalizados, como também perdidos no cosmo, quase estrangeiros, justamente porque nosso pensamento e nossa consciência permitem que consideremos isto... 35 Assim como a vida terrestre é extremamente marginal no cosmo, somos marginais na vida. O homem surgiu marginalmente no mundo animal, e seu desenvolvimento marginalizou-o ainda mais. Somos (aparentemente) os únicos seres vivos, na terra, que dispõem de um aparelho neurocerebral hipercomplexo, e os únicos que dispõem de uma linguagem de dupla articulação para comunicar-se, de indivíduo a indivíduo. Os únicos que dispõem da consciência... Abrir-se ao cosmo é entrar na aventura desconhecida, onde talvez sejamos, ao mesmo tempo, desbravadores e desviantes; abrir-se à physis é ligar-se ao problema da organização das partículas, átomos, moléculas, macromoléculas, que se encontram no interior das células de cada um de nós; abrir-se para a vida é abrir-se também para as nossas vidas. As ciências do homem retiraram toda significação biológica a estes termos: ser jovem, velho, mulher, homem, nascer, existir, ter pai e mãe, morrer – essas palavras remetem apenas a categorias socioculturais. Só readquirem sentido vivo quando as conceituamos em nossa vida privada. A Antropologia que exclui a vida de nossa vida privada é uma Antropologia privada de vida. A vida é um fungo que se formou nas águas e na superfície da Terra. Nosso planeta gerou a vida que se desenvolveu de forma líquida no mundo vegetal e animal; nós somos uma ramificação da ramificação dessa evolução dos vertebrados, dos mamíferos, dos primatas, portadores em nós das herdeiras, filhas, irmãs das primeiras células vivas. Pelo nascimento, participamos da aventura biológica; pela morte, participamos da tragédia cósmica. O ser mais corriqueiro, o destino mais banal participa dessa tragédia e dessa aventura. Michel Cassé, em um banquete no Castelo de Beychevelle, quando um enólogo lhe perguntou o que um astrônomo via em seu copo de vinho bordeaux, respondeu assim: “Vejo o nascimento do Universo, pois vejo as partículas que se formaram nele nos primeiros segundos. Vejo um Sol anterior ao nosso, pois nossos átomos de carbono foram gerados no seio desse grande astro que explodiu. De- 36 pois, esse carbono ligou-se a outros átomos nessa espécie de lixeira cósmica em que os detritos, ao se agregarem, vão formar a Terra. Vejo a composição das macromoléculas que se uniram para dar nascimento à vida. Vejo as primeiras células vivas, o desenvolvimento do mundo vegetal, a domesticação da vinha nos países mediterrâneos. Vejo as bacanais e os festins. Vejo a seleção das castas, um cuidado milenar em torno dos vinhedos. Vejo, enfim, o desenvolvimento da técnica moderna que hoje permite controlar eletronicamente a temperatura de fermentação nas tinas. Vejo toda a história cósmica e humana nesse copo de vinho, e também, é claro, toda a história específica do bordelês.” Trazemos, dentro de nós, o mundo físico, o mundo químico, o mundo vivo, e, ao mesmo tempo, deles estamos separados por nosso pensamento, nossa consciência, nossa cultura. Assim, Cosmologia, ciências da Terra, Biologia, Ecologia permitem situar a dupla condição humana: natural e metanatural. Conhecer o humano não é separá-lo do Universo, mas situá-lo nele. Como vimos no capítulo anterior, todo conhecimento, para ser pertinente, deve contextualizar seu objeto. “Quem somos nós?” é inseparável de “Onde estamos, de onde viemos, para onde vamos?”. Pascal já nos havia situado, corretamente, entre dois infinitos, o que foi amplamente confirmado no século XX pela dupla evolução da Microfísica e da Astrofísica. Conhecemos hoje nosso duplo enraizamento: no cosmo físico e na esfera viva. Claro, novas descobertas ainda vão modificar nosso conhecimento, mas, pela primeira vez na história, o ser humano pode reconhecer a condição humana de seu enraizamento e de seu desenraizamento. Em meio à aventura cósmica, no extremo do prodigioso desenvolvimento de um ramo singular da auto-organização viva, prosseguimos, à nossa maneira, na aventura da organização. Essa época cósmica da organização, incessantemente sujeita às forças da desorganização e da dispersão, é, também, a época da reunião, e só ela impediu que o cosmo se dispersasse e desaparecesse, tão logo acabara de nas- 37 pátria dos humanos, não têm sentido algum enquanto isolados uns dos outros. A Terra não é a soma de um planeta físico, de uma biosfera e da humanidade. A Terra é a totalidade complexa físico-biológica- antropológica, onde a vida é uma emergência da história da Terra, e o homem, uma emergência da história da vida terrestre. A relação do homem com a natureza não pode ser concebida de forma reducionista, nem de forma disjuntiva. A humanidade é uma entidade planetária e biosférica. O ser humano, ao mesmo tempo natural e supranatural, deve ser pesquisado na natureza viva e física, mas emerge e distingue-se dela pela cultura, pensamento e consciência. Tudo isso nos coloca diante do caráter duplo e complexo do que é humano: a humanidade não se reduz absolutamente à animalidade, mas, sem animalidade, não há humanidade. Ao longo dessa aventura, a condição humana foi autoproduzida pelo desenvolvimento do utensílio, pela domesticação do fogo, pela emergência da linguagem de dupla articulação e, finalmente, pelo surgimento do mito e do imaginário... Assim, a nova Pré-história tornou- se a ciência que permite a ressurreição do humano que fora eliminado pelas fragmentações disciplinares. O ser humano nos é revelado em sua complexidade: ser, ao mesmo tempo, totalmente biológico e totalmente cultural. O cérebro, por meio do qual pensamos, a boca, pela qual falamos, a mão, com a qual escrevemos, são órgãos totalmente biológicos e, ao mesmo tempo, totalmente culturais. O que há de mais biológico – o sexo, o nascimento, a morte – é, também, o que há de mais impregnado de cultura. Nossas atividades biológicas mais elementares – comer, beber, defecar – estão estreitamente ligadas a normas, proibições, valores, símbolos, mitos, ritos, ou seja, ao que há de mais especificamente cultural; nossas atividades mais culturais – falar, cantar, dançar, amar, meditar – põem em movimento nossos corpos, nossos órgãos; portanto, o cérebro. 40 A partir daí, o conceito de homem tem dupla entrada: uma entrada biofísica, uma entrada psicossociocultural; duas entradas que remetem uma à outra. À maneira de um ponto de holograma, trazemos, no âmago de nossa singularidade, não apenas toda a humanidade, toda a vida, mas também quase todo o cosmo, incluso seu mistério, que, sem dúvida, jaz no fundo da natureza humana. Eis, pois, o que uma nova cultura científica pode oferecer à cultura humanística: a situação do ser humano no mundo, minúscula parte do todo, mas que contém a presença do todo nessa minúscula parte. Ela o revela, simultaneamente, em sua participação e em sua estranheza ao mundo. Assim, a iniciação às novas ciências torna-se, ao mesmo tempo, iniciação a nossa condição humana, por intermédio dessas ciências. A contribuição das ciências humanas Paradoxalmente, são as ciências humanas que, no momento atual, oferecem a mais fraca contribuição ao estudo da condição humana, precisamente porque estão desligadas, fragmentadas e compartimentadas. Essa situação esconde inteiramente a relação indivíduo/espécie/sociedade, e esconde o próprio ser humano. Tal como a fragmentação das ciências biológicas anula a noção de vida, a fragmentação das ciências humanas anula a noção de homem. Assim, Lévi-Strauss acreditava que o fim das ciências humanas não é revelar o homem, mas dissolvê-lo em estruturas. Seria preciso conceber uma ciência antropossocial religada, que concebesse a humanidade em sua unidade antropológica e em suas diversidades individuais e culturais. À espera dessa religação – desejada pelas ciências, mas ainda fora de seu alcance –, seria importante que o ensino de cada uma delas fosse orientado para a condição humana. Assim, a Psicologia, 41 tendo como diretriz o destino individual e subjetivo do ser humano, deveria mostrar que Homo sapiens também é, indissoluvelmente, Homo démens, que Homo faber é, ao mesmo tempo, Homo ludens, que Homo economicus é, ao mesmo tempo, Homo mythologicus, que Homo prosaicus é, ao mesmo tempo, Homo poeticus. A Sociologia seria orientada para nosso destino social, a Economia para nosso destino econômico; um ensino sobre os mitos e as religiões seria orientado para o destino mítico-religioso do ser humano. De fato, as religiões, mitos, ideologias devem ser considerados em seu poder e ascendência sobre as mentes humanas, e não mais como “superestruturas”. Quanto à contribuição da História para o conhecimento da condição humana, ela deve incluir o destino, a um só tempo, determinado e aleatório da humanidade. Todas as conseqüências sairiam da conscientização de que a História não obedece a processos deterministas, não está sujeita a uma inevitável lógica técnico-econômica, ou orientada para um progresso imprescindível. A História está sujeita a acidentes, perturbações e, às vezes, terríveis destruições de populações ou civilizações em massa. Não existem “leis” da História, mas um diálogo caótico, aleatório e incerto, entre determinações e forças de desordem, e um movimento, às vezes rotativo, entre o econômico, o sociológico, o técnico, o mitológico, o imaginário. Não há mais progresso prometido; em contrapartida, podem advir progressos, mas devem ser incessantemente reconstruídos. Nenhum progresso é conquistado para todo o sempre. A História, ainda que esvaziada por algum tempo da noção de acontecimento, de acaso e de “grandes homens”, enriqueceu-se em profundidade. Assim, a tendência ilustrada, cujo exemplo, na França, é a École des Annales*, teve a virtude não de se livrar do acontecimento e do eventual, como pensava, mas de se tornar multidimensional, integrando o substrato econômico e técnico, a vida quotidiana, as crenças e ritos, os comportamentos diante da vida e da morte. Mal começa a _____________________ * Escola dos Anais. (N. da T.) 42 A poesia, que faz parte da literatura e, ao mesmo tempo, é mais que a literatura, leva-nos à dimensão poética da existência humana. Revela que habitamos a Terra, não só prosaicamente – sujeitos à utilidade e à funcionalidade –, mas também poeticamente, destinados ao deslumbramento, ao amor, ao êxtase. Pelo poder da linguagem, a poesia nos põe em comunicação com o mistério, que está além do dizível. As artes levam-nos à dimensão estética da existência e – conforme o adágio que diz que a natureza imita a obra de arte – elas nos ensinam a ver o mundo esteticamente. Trata-se, enfim, de demonstrar que, em toda grande obra, de literatura, de cinema, de poesia, de música, de pintura, de escultura, há um pensamento profundo sobre a condição humana. Acrescentemos que todo ensino, particularmente de literatura, poesia, música, deveria tomar consciência do fato de que, a partir do século XIX, ocorre uma separação cultural na história européia. Enquanto o mundo masculino adulto, das classes burguesas, é destinado à eficiência, à dominação, à técnica, ao lucro, e o proletariado está sujeito ao trabalho, uma parte do mundo adolescente e do mundo feminino assume a sensibilidade, o amor, a tristeza; e vai expressar, como em nenhuma outra civilização ou época da História, as aspirações e os tormentos da alma humana: é justamente o que enunciam Shelley, Keats, Hovalis, Hölderlin, Nerval, Rimbaud. Enquanto o poderio do Ocidente europeu expande-se sobre o mundo cantando vitórias em todas as batalhas, esses poetas cantam os sofrimentos dos humanos submetidos à crueldade do mundo e da vida. Beethoven, em seu último quatuor, une, indissoluvelmente, a revolta incoercível do muss es sein? a resignação inelutável do es muss sein!. O quinteto de Schubert oferece uma dor que, no entanto, sem deixar de ser dor, transfigura-se no sublime7. _____________________ 7 Cf. a máxima beethoveniana durch leiden freude (por meio do sofrimento, a alegria). 45 Enfim, a Filosofia, se retomar sua vocação reflexiva sobre todos os aspectos do saber e dos conhecimentos, poderia, deveria fazer convergir a pluralidade de seus pontos de vista sobre a condição humana. A despeito da ausência de uma ciência do homem que coordene e ligue as ciências do homem (ou antes, a despeito da ignorância dos trabalhos realizados neste sentido8), o ensino pode tentar, eficientemente, promover a convergência das ciências naturais, das ciências humanas, da cultura das humanidades e da Filosofia para a condição humana. Seria possível, daí em diante, chegar a uma tomada de consciência da coletividade do destino próprio de nossa era planetária, onde todos os humanos são confrontados com os mesmos problemas vitais e mortais. _____________________ 8 ... em meus livros L’Homme et la mon (Éd. du Seuil, “Points Essais”, n? 77) e Le Paradigme perdu. La nature humaine (Éd. du Seuil, “Points Essais”, n? 109), assim como a obra coletiva, dirigida por E. Morin e M. Piattelli, L’Unité de l’homme, 3 vol. (Éd. du Seuil, “Points Essais”, n°.’ 91, 92 e 93). 46 CAPÍTULO 4 APRENDER A VIVER “Quero ensinar-lhe a viver.” ROUSSEAU, Emílio “Queremos ser os poetas de nossa própria vida, e, primeiro, nas menores coisas.” NIETZSCHE COMO DIZIA magnificamente Durkheim, o objetivo da educação não é o de transmitir conhecimentos sempre mais numerosos ao aluno, mas o “de criar nele um estado interior e profundo, uma espécie de polaridade de espírito que o oriente em um sentido definido, não apenas durante a infância, mas por toda a vida”1. É, justamente, mostrar que ensinar a viver necessita não só dos conhecimentos, mas também da transformação, em seu próprio ser mental, do conhecimento adquirido em sapiência2, e da incorporação dessa sapiência para toda a vida. Eliot dizia: “Qual o conhecimento que perdemos na informação, qual a sapiência (wisdom) que perdemos no conhecimento?” Na educação, trata-se de transformar as informações em conhecimento, de transformar o conhecimento em sapiência, isso se orientando segundo as finalidades aqui definidas. _____________________ 1 L’Évolution pédagogique en France, PUF, 1890, p. 38. 2 Palavra antiga que engloba “sabedoria” e “ciência”. 47 juventude”; como clisse Yves Bonnefoy, “esses jovens seres esperam que grandes sinais, carregados de mistério e gravidade, sejam erguidos diante deles, pois bem sabem que, breve, terão de enfrentar o mistério e a gravidade da vida”5. Aqui, o filósofo e o psicólogo deveriam confirmar que todo indivíduo, mesmo o mais confinado na mais banal das vidas, constitui, em si mesmo, um cosmo, como acusamos no capítulo 3, pp. 36-37. – Escolas de compreensão humana. No âmago da leitura ou do espetáculo cinematográfico, a magia do livro ou do filme faz-nos compreender o que não compreendemos na vida comum. Nessa vida comum, percebemos os outros apenas de forma exterior, ao passo que na tela e nas páginas do livro eles nos surgem em todas as suas dimensões, subjetivas e objetivas. A literatura “é a única que sabe representar e elucidar as situações de incomunicabilidade, de fechamento em si, quiproquos cômicos ou trágicos. O leitor descobre também as causas dos mal-entendidos e aprende a compreender os incompreendidos” (Geneviève Mathis6). Podemos compreender daí que não se deve reduzir um ser à mínima parcela de si mesmo, nem à parcela ruim de seu passado. Enquanto na vida comum apressamo-nos em qualificar de criminoso aquele que cometeu um crime, reduzindo todos os outros aspectos de sua vida e de sua pessoa a esse único traço, descobrimos, em seus múltiplos aspectos, os reis gangsters de Shakespeare e os gangsters reis dos films noirs. Podemos ver como um criminoso pode transformar-se, redimir-se, como Jean Valgean e Raskolnikov. O que sente repugnância pelo vagabundo que encontra na rua simpatiza de todo o coração com o vagabundo Carlitos, no cinema. Enquanto, na vida quotidiana, somos quase indiferentes às misérias físicas e morais, _____________________ 5 “L’enseignement de la poésie”, in Quels savoirs enseigner dans les lycées, ministère de l’Éducation nationale, CNDP, Paris, 1998. 6 Op. cit. 50 sentimos a comiseração, a piedade e a bondade, ao 1er um romance ou ver um filme. Enfim, podemos aprender as maiores lições da vida: a compaixão pelo sofrimento de todos os humilhados e a verdadeira compreensão. Literatura, poesia, cinema, psicologia, filosofia deveriam convergir para tornar-se escolas da compreensão. A ética da compreensão humana constitui, sem dúvida, uma exigência chave de nossos tempos de incompreensão generalizada: vivemos em um mundo de incompreensão entre estranhos, mas também entre membros de uma mesma sociedade, de uma mesma família, entre parceiros de um casal, entre filhos e pais. É o caso de se perguntar se as chaves psicopsicanalíticas, difundidas de forma dogmática e reducionista em nossa cultura (complexo de inferioridade, de Édipo, paranóia, esquizofrenia, sadomasoquismo etc), não agravam a incompreensão, criando a ininteligibilidade reducionista. Explicar não basta para compreender. Explicar é utilizar todos os meios objetivos de conhecimento, que são, porém, insuficientes para compreender o ser subjetivo. A compreensão humana nos chega quando sentimos e concebemos os humanos como sujeitos; ela nos torna abertos a seus sofrimentos e suas alegrias. Permite-nos reconhecer no outro os mecanismos egocêntricos de autojustificação, que estão em nós, bem como as retroações positivas (no sentido cibernético do termo) que fazem degenerar em conflitos inexplicáveis as menores querelas. É a partir da compreensão que se pode lutar contra o ódio e a exclusão. Enfrentar a dificuldade da compreensão humana exigiria o recurso não a ensinamentos separados, mas a uma pedagogia conjunta que agrupasse filósofo, psicólogo, sociólogo, historiador, escritor, que seria conjugada a uma iniciação à lucidez. 51 A iniciação à lucidez A iniciação à lucidez é inseparável, ela própria, de uma iniciação à onipresença do problema do erro. É necessário, e isso desde a escola primária, que toda percepção seja uma tradução reconstrutora realizada pelo cérebro, a partir de terminais sensoriais, e que nenhum conhecimento possa dispensar interpretação. Assim, a partir de testemunhos contraditórios do mesmo acontecimento, podemos mostrar que, à vista de um acidente de carro, por exemplo, pode haver falsas percepções que comportam, em geral, racionalizações alucinatórias. Podemos ilustrar casos de percepção imperfeita, por hábito ou por atenção maldefinida, desatenção a um detalhe insignificante, interpretação precipitada de elemento inusitado e, sobretudo, deficiência de visão de conjunto, ou ausência de reflexão. É preciso ilustrar os casos de memorização demasiado segura, que se autoconfirma na repetição de uma lembrança deformada. Da mesma maneira, é preciso observar que uma preocupação de inteligibilidade, demasiado fraca, leva a ignorar a significação de um fato ou de um acontecimento, ao passo que uma preocupação excessivamente forte de inteligibilidade leva a um erro racionalizador que altera essa significação. Serão dados exemplos de decisões desastrosas, tomadas não apenas por irreflexão, cinismo ou irresponsabilidade, mas também por processos psíquicos de racionalização absurda ou ocultação inconsciente, destinados a preservar a nossa paz de espírito. Progressivamente, é no ensino secundário que se dará destaque à oposição entre a racionalização, sistema lógico de explicação, mas privado de fundamento empírico, e a racionalidade, que procura unir a coerência à experiência; e, no ensino superior, tratar-se-á dos limites da lógica e das necessidades de uma racionalidade não somente crítica, mas também autocrítica. Assim, da psicologia do conhecimento e da permanente aplicação dessa psicologia em si mesmo, passar-se-á à epistemologia e ao conhecimento crítico do conhecimento, que recorrerá às ciências cognitivas, ainda que tão mal interligadas. 52 CAPÍTULO 5 ENFRENTAR A INCERTEZA (Aprender a viver, continuação) “Os deuses nos inventam muitas surpresas: o esperado não acontece, e um deus abre caminho ao inesperado.” EURÍPIDES, final de Medita “O corpo de ensino tem de chegar aos postos avançados do mais extremo perigo, que é constituído pela permanente incerteza do mundo.” MARTIN HEIDEGGER “Se não esperas o inesperado, não o encontrarás.” HERÁCLITO “A era que virá há de nos mostrar o caos por detrás da lei.” J. A. WHEELER A MAIOR CONTRIBUIÇÃO de conhecimento do século XX foi o conhecimento dos limites do conhecimento. A maior certeza que nos foi dada é a da indestrutibilidade das incertezas, não somente na ação, mas também no conhecimento. “Um único ponto quase certo no naufrágio (das antigas certezas absolutas): o ponto de interrogação”, diz o poeta Salah Stétié. Uma das maiores conseqüências desses dois aparentes defeitos – de fato, verdadeiras conquistas do espírito humano – é a de nos 55 pôr em condição de enfrentar as incertezas e, mais globalmente, o destino incerto de cada indivíduo e de toda a humanidade. Aqui, convém fazer a convergência de diversos ensinamentos, mobilizar diversas ciências e disciplinas, para ensinar a enfrentar a incerteza. A incerteza física e biológica A primeira revolução científica de nosso século, iniciada pela termodinâmica de Boltzmann, deflagrada pela descoberta dos quanta, seguida pela desintegração do Universo de Laplace, mudou profundamente nossa concepção do mundo. Minou a validade absoluta do princípio determinista1. Subverteu a Ordem do mundo, grandioso resquício da divina Perfeição, para substituí-la por uma relação de diálogo (ao mesmo tempo complementar e antagônica) entre ordem e desordem. Revelou os limites dos axiomas identificativos da lógica clássica. Restringiu o calculável e o mensurável a uma dependência do incalculável e do imensurável. Provocou um questionamento da racionalidade científica, exemplificada pelas obras de Bachelard, Piaget, Popper, Lakatos, Kuhn, Holton, Feyerabend, notadamente. Aprendemos que tudo aquilo que é só pode ter nascido do caos e da turbulência, e precisa resistir a enormes forças de destruição. O cosmo se organizou ao se desintegrar. A história do Universo é uma gigantesca aventura criativa e destrutiva, marcada, desde o início, pelo quase aniquilamento da antimatéria pela matéria, acentuada pela queima seguida da autodestruição de numerosos astros, da coli- _____________________ 1 No meio dos fenômenos deterministas, que obedecem a uma dinâmica não linear, há de fato uma incerteza para predizer, devido à ausência de informação completa sobre os estados iniciais ou sobre a emaranhada multiplicidade das interações. É o caos determinista. 56 são de estrelas e galáxias; aventura em que uma das metamorfoses marginais constituiu-se pelo surgimento da vida no terceiro planeta de um pequeno sol de subúrbio. A Biologia, por seu turno, desembocou na incerteza. Se o aparecimento da vida corresponde à transformação de um turbilhão de macromoléculas e a uma organização de novo tipo, capaz de se auto- organizar, autoconsertar, auto-reproduzir, apta a retirar de seu meio ambiente a organização, a energia e a informação, sua origem não parece obedecer a nenhuma necessidade inevitável. Continua sendo um mistério sobre o qual não deixam de ser elaborados roteiros2. Seja como for, a vida só pode ter nascido de uma mistura de acaso e de necessidade, cuja composição não sabemos dosar3. Ainda estamos profundamente inseguros quanto ao caráter inevitável ou fortuito, necessário ou miraculoso, do aparecimento da vida; e essa incerteza se reflete evidentemente no sentido de nossas vidas humanas4. _____________________ 2 Cf. M. Eigen, “Self-Organization of the Matter and the Evolution of Biological Macromolecules”, in Naturwissenschaft, vol. 58, n°. 465, a que se deve acrescentar o roteiro da origem extraterrestre da vida, proposto por Crick. 3 Para essas noções, cf. E. Morin, La Méthode, t. 2: La Vie de la vie, Éd. du Seuil, “Points Essais”, n° 175, pp. 177-92. 4 O aparecimento da vida será um acontecimento único, devido a um acúmulo de acasos altamente improváveis, ou, pelo contrário, fruto de um processo evolutivo, se não necessário, pelo menos provável? No sentido da probabilidade: – a formação espontânea de macromoléculas adequadas à vida em certas condições, que podem ser reproduzidas em laboratório; – a descoberta de aminoácidos nos meteoros precursores dos da vida; – a demonstração da termodinâmica prigoginiana de que, em condições de instabilidade, há formação espontânea de organização, donde a probabilidade de uniões organizadas cada vez mais complexas de macromoléculas, em condições termodinâmicas apropriadas (turbilhões); – a possibilidade, em condições de encontro e durante um longo período, de que seja realizado um processo seletivo a favor de uniões moleculares ARN/proteínas, que se tornam aptas a se autocontestar e a metabolizar; – a enorme probabilidade de que exista, em um Universo de milhares de mi- 57 tadoras regressões de civilizações e economias seguiram-se a progressões temporárias. A História está sujeita aos acidentes, às perturbações e, por vezes, às terríveis destruições maciças de populações e civilizações5. Sem dúvida, a história humana sofre determinações sociais e econômicas muito fortes, mas pode ser desviada ou contornada pelos acontecimentos ou acidentes. Não há leis da História. Pelo contrário, há o fracasso de todos os esforços para cristalizar a história humana, eliminar dela acontecimentos e acidentes, submetê-la ao jugo de um determinismo econômico-social e/ou levá-la a obedecer a um progresso telecomandado. E chegamos à grande revelação do fim do século XX: nosso futuro não é teleguiado pelo progresso histórico. Os erros da predição futurológica, os inúmeros fracassos da predição econômica (apesar e por causa de sua sofisticação matemática), a derrota do progresso garantido, a crise do futuro, a crise do presente introduziram o vírus da incerteza em toda parte. Estamos destinados à incerteza do futuro que as religiões da salvação – inclusive a salvação terrestre – acreditavam ter dominado: “Os bolcheviques não queriam ou não podiam compreender que o homem é um ser frágil e inseguro, que realiza uma obra insegura, em um mundo inseguro”6. Já estávamos na aventura desconhecida, desde a aurora da humanidade, desde a aurora dos tempos históricos; estamos mais que nunca e devemos estar conscientes. O curso seguido pela história da era planetária desgarrou-se da órbita do tempo reiterativo das civilizações tradicionais, para entrar, não na via garantida do Progresso, mas em uma incerteza insondável. _____________________ 5 Cf. o belo texto de Gruzinski, “Événements dans l’histoire: accidents, catastrophes, bifurcations”, in Relier les connaissances, Éd. du Seuil, 1999. 6 D. Cosic, Le Temps du mal, Éd. L’Âge d’Homme, 1990, t. 1, p. 186 60 Todos os grandes acontecimentos do século – a deflagração da Primeira Guerra Mundial, a Revolução Soviética no império czarista, as vitórias do comunismo e do nazismo, o golpe teatral do pacto germânico- soviético, de 1939, a derrota da França, as resistências de Moscou e Stalingrado – foram inesperados; até o inesperado de 1989: a queda do muro de Berlim, o colapso do império soviético, a guerra da Iugoslávia. Hoje estamos em Escuridão e bruma, e ninguém pode predizer o amanhã. De modo que a consciência da História deve servir não só para reconhecermos os caracteres, ao mesmo tempo determinados e aleatórios do destino humano, mas também para nos abrirmos à incerteza do futuro. É preciso, portanto, prepararmo-nos para o nosso mundo incerto e aguardar o inesperado. Os três viáticos Preparar-se para nosso mundo incerto é o contrário de se resignar a um ceticismo generalizado. É esforçar-se para pensar bem, é exercitar um pensamento aplicado constantemente na luta contra falsear e mentir para si mesmo, o que nos leva, uma vez mais, ao problema da “cabeça bem-feita”. É também estar consciente da ecologia da ação. A ecologia da ação tem, como primeiro princípio, o fato de que toda ação, uma vez iniciada, entra num jogo de interações e retroações no meio em que é efetuada, que podem desviá-la de seus fins e até levar a um resultado contrário ao esperado; assim, a reação aristocrática do final do século XVIII, na França, desencadeou uma revolução democrática; um movimento revolucionário na Espanha, em 1935-1936, desencadeou um golpe reacionário. O segundo princípio da ecologia da ação diz que as conseqüências últimas da ação são imprevisíveis; de modo que, em 1789, ninguém poderia predizer o Terror, o Termidor, o Império, a Restau- 61 ração. A Revolução Soviética do século XX foi uma conseqüência indireta da Revolução Francesa, que ainda não esgotou todas as suas conseqüências... O que nos leva ao segundo viático: a estratégia. A estratégia opõe-se ao programa, ainda que possa comportar elementos programados. O programa é a determinação a priori de uma seqüência de ações tendo em vista um objetivo. O programa é eficaz, em condições externas estáveis, que possam ser determinadas com segurança. Mas as menores perturbações nessas condições desregulam a execução do programa e o obrigam a parar. A estratégia, como o programa, é estabelecida tendo em vista um objetivo; vai determinar os desenvolvimentos da ação e escolher um deles em função do que ela conhece sobre um ambiente incerto. A estratégia procura incessantemente reunir as informações colhidas e os acasos encontrados durante o percurso. Todo o nosso ensino tende para o programa, ao passo que a vida exige estratégia e, se possível, serendipididade e arte. É justamente uma reversão de conceito que deveria ser efetuada a fim de preparar para os tempos de incerteza. O terceiro viático é o desafio. Uma estratégia traz em si a consciência da incerteza que vai enfrentar e, por isso mesmo, encerra uma aposta. Deve estar plenamente consciente da aposta, de modo a não cair em uma falsa certeza. Foi a falsa certeza que sempre cegou os generais, os políticos, os empresários, e os levou ao desastre. A aposta é a integração da incerteza à fé ou à esperança. A aposta não está limitada aos jogos de azar ou aos empreendimentos perigosos. Ela diz respeito aos envolvimentos fundamentais de nossas vidas. Assim, Pascal, consciente de ser impossível dar uma prova absolutamente segura de seu Deus, reconheceu a inevitabilidade da aposta. É o que fez o marxista Lucien Goldmann sobre o advento de 62 marxismo minimizou a realidade da nação, quando enfatizou o que a divide (conflitos de classe), e não o que a unifica1. Uma das maiores dificuldades em pensar o Estado-Nação reside em seu caráter complexo. De fato, o Estado-Nação completo é um serão mesmo tempo territorial, político, cultural, histórico, místico, religioso. O Estado é um “aparelho” que dispõe de aparelhos adicionais (forças armadas, polícia, justiça, eventualmente, a Igreja), o que exigiria um esclarecimento de conceito de aparelho2. COMUNIDADE/SOCIEDADE O Estado-Nação é uma sociedade territorialmente organizada. Este tipo de sociedade é complexa em sua dupla natureza, em que é preciso não só opor, mas também associar, fundamentalmente, a noção de gemeineschaft ou “comunidade” e a noção de gesellschaft ou “sociedade”. A nação é uma sociedade, em suas relações e interesses, competições, rivalidades, ambições, conflitos sociais e políticos. Mas é, igualmente, uma comunidade de identidade, uma comunidade de atitudes e uma comunidade de reações ante o estrangeiro e, sobretudo, ante o inimigo. A história do início do século XX revela o terrível conflito interno nas grandes nações ocidentais, que chega, às vezes, à guerra civil, e, ao mesmo tempo, sua extraordinária solidariedade, ante o inimigo externo. _____________________ 1 Houve, entretanto, a tentativa de Otto Bauer de conceber o fenômeno nacional como comunidade de destino, após o ensaio de Stalin, O marxismo e a questão nacional. 2 Aqui, remeto à minha análise sobre a noção de aparelho (pp. 239-47) e Estado- aparelho (pp. 239-49), em La Méthode, t. 1: La Nature de la nature. Éd. du Seuil, “Points Essais”, n? 123. 66 COMUNIDADE DE DESTINO A comunidade tem caráter cultural/histórico. É cultural por seus valores, usos e costumes, normas e crenças comuns; é histórica pelas transformações e provações sofridas ao longo do tempo. Segundo a expressão de Otto Bauer, é uma comunidade de destino. Esse destino comum, memorizado, transmitido, de geração a geração, pela família, por cânticos, músicas, danças, poesias e livros; depois pela escola, que integra o passado nacional às mentes infantis, onde são ressuscitados os sofrimentos, as mortes, as vitórias, as glórias da história nacional, os martírios e proezas de seus heróis. Assim, a própria identificação com o passado torna presente a comunidade de destino. A ENTIDADE MITOLÓGICA A comunidade de destino é tanto mais profunda quando selada por uma fraternidade mitológica. De fato, o Estado-Nação é uma pátria, uma entidade consubstancialmente maternal/paternal, que contém, em seu feminino, o masculino da paternidade. Transfere, para a ampla escala de populações de milhões de indivíduos, muitas vezes oriundos de etnias bem diversas, as calorosas virtudes das relações familiares entre pessoas pertencentes a um mesmo lar. Assim, a Nação, de substância feminina, comporta em si as qualidades da Terra-Mãe (Pátria-Mãe), do Lar (foyer, home, Heimai), e ela desperta, nos momentos comunitários, os sentimentos de amor que são, naturalmente, despertados pela mãe. Já o Estado é de substância paternal. Dispõe da autoridade absoluta e incondicional do pai-patriarca, a quem se deve obediência. A relação matripatriótica com o Estado-Nação desperta o sentimento de fraternidade mística dos “filhos da pátria”, perante o inimigo. 67 O mito nacional é bipolarizado. No primeiro pólo, há o caráter espiritual da fraternidade entre “filhos da pátria”. No segundo pólo, a fraternidade mitológica surge como uma fraternidade biológica, que une, entre si, seres do mesmo sangue; o que tende a despertar o mito secundário (e biologicamente equivocado) da “raça” comum. Assim, a idéia de nação contém um racismo virtual, que se torna presente quando o segundo pólo prepondera. A “RELIGIÃO” NACIONAL A mitologia matripatriótica suscita uma verdadeira religião do Estado-Nação, que inclui cerimônias de exaltação, objetos sagrados (bandeira, monumento aos mortos), o culto de adoração à Mãe-Pátria, os cultos personalizados aos heróis e mártires. Como toda religião, ela se alimenta do amor, que é capaz de inspirar fanatismo e ódio. O Estado-Nação tem raízes na concreção material da terra, que sustenta e constitui seu território e, ao mesmo tempo, encontra nele sua concreção mitológica, a da Terra-Mãe, da Mãe-Pátria. Há como que uma rotação ininterrupta do geofísico ao mitológico e, ao mesmo tempo, do político ao cultural e religioso. O mito não é a superestrutura da nação: é o que gera a solidariedade e a comunidade; é o cimento necessário a toda sociedade e, numa sociedade complexa, é o único antídoto contra a pulverização individual e a destruidora deflagração de conflitos. E assim, em uma rotação autogeradora do todo, por seus elementos constitutivos, e dos elementos constitutivos pelo todo, o mito gera aquilo que o gera, isto é, o próprio Estado-Nação. 68 ser humano, em contradição, aliás, com a terrível opressão dominadora que a Europa impõe ao resto do mundo. Deverá ser apontado o caráter transeuropeu das grandes correntes culturais modernas iniciadas com o Renascimento, que parte da Toscana e atinge São Petersburgo, do Iluminismo, que parte de Paris, do romantismo, que parte de Iena, cm suma, com as grandes correntes literárias, artísticas, filosóficas que atravessam a Europa até, e incluso, o surrealismo. Os grandes temas europeus são propagados de Oeste a Leste: o Estado nacional, a abolição da escravatura, o humanismo, a democracia, o desenvolvimento técnico-científico. O leste europeu, entretanto, não foi apenas receptor mas, também, criador de civilização. No século XIX, a grande Rússia faz nascer a mais rica cultura, tanto poética e literária, como musical. O Império Otomano, que ameaçou Viena em duas oportunidades – nos séculos XVI e XVII –, é, como todo império, ao mesmo tempo opressor e civilizador. Permite a coexistência de etnias e de religiões, o que nenhum império ou reino ocidental foi capaz de tolerar. A Europa, em toda a sua riqueza, engloba, necessariamente, o Leste, o Norte e o Sul mediterrâneo. Até meados do século XX, a Europa vivera inconscientemente uma comunidade de destino, mesmo durante as guerras que opunham e fortaleciam os Estados nacionais e que, por meio das reversões das alianças, impediam a preponderância de um Estado sobre os outros. Hoje, ela tenta reconstruir-se a partir de uma consciência e de uma vontade de destino comum. De modo que a consciência de pertencer à identidade européia poderia favorecer o desenvolvimento de uma cidadania européia. A identidade terrena Enfim, precisamos conceber uma história geral da humanidade que comece não em 1492, mas há muitos milhares e milhares de anos, com a dispersão do Homo sapiens em todo o planeta, inclusive 71 nas ilhas do Pacífico. Após essa diaspora é que se operaram as grandes disjunções entre fragmentos de humanidade. A Ásia e a Europa ficaram praticamente isoladas uma da outra; o centro da África, a Oceania, as Américas viviam de modo fechado. Mas, em toda parte, formaram-se grandes civilizações. Uma nova história planetária tem início com Cristóvão Colombo e Vasco da Gama. Seria preciso assinalar que, desde o século XVI, duas globalizações, ao mesmo tempo interligadas e antagônicas, estão em curso: a globalização de dominação, colonização e exploração, e a das idéias humanistas, emancipadoras, internacionalistas, portadoras de uma consciência de humanidade comum. É na segunda metade do século XX, depois da Segunda Guerra Mundial e da destruição nuclear de Hiroshima e Nagasaki, que surge uma consciência de comunidade de destino. Como diz Mireille Delmas-Marty: “Começamos a nos conceber como humanidade há cinqüenta anos.” Hoje, podemos conceber, ao mesmo tempo: 1. Uma comunidade de destino, no sentido em que todos os humanos estão sujeitos às mesmas ameaças mortais da arma nuclear (que continua a ser disseminada) e ao mesmo perigo ecológico da biosfera, que se agrava com o “efeito estufa” provocado pelo aumento do CO2 na atmosfera, os desmatamentos em larga escala das grandes florestas tropicais produtoras de nosso oxigênio comum, a esterilização dos oceanos, mares e rios fornecedores de alimentos, as poluições sem conta, as catástrofes sem limites. A tudo isso, acrescente-se ainda a explosão mundial de novos vírus e antigos micróbios fortalecidos, a incontrolável transformação da economia mundial; finalmente, e sobretudo, a ameaça mundial polimorfa que retoma e produz a aliança entre duas barbáries: a barbárie de destruição e morte, que vem do fundo das eras, e a barbárie anônima e fria do mundo técnico-econômico. 2. Uma identidade humana comum: por mais diferentes que sejam seus genes, solos, comunidades, ritos, mitos e idéias, o Homo sapiens tem uma identidade comum a todos os seus representantes: 72 pertence a uma unidade genética de espécie, que torna possível a interfecundação entre todos os homens e mulheres, não importando a “raça”; essa unidade genética prolonga-se em unidade morfológica, anatômica, psicológica; a unidade cerebral do Homo sapiens manifesta-se na organização singular de seu cérebro, em relação ao dos outros primatas; enfim, existe uma unidade psicológica e afetiva: risos, lágrimas, sorrisos são diversamente modulados, é claro, inibidos ou desinibidos, segundo as culturas; mas, a despeito da extrema diversidade dessas culturas e dos modelos de personalidade que elas impõem, risos, lágrimas, sorrisos são universais, e seu caráter inato manifesta-se nos surdos- mudos-cegos de nascença, que sorriem, choram, riem sem que tenham podido imitar quem quer que seja. 3. Uma comunidade de origem terrestre, a partir de nossa ascendência e identidade antropóide, mamífera, vertebrada, que nos torna filhos da vida e filhos da Terra. A consciência e o sentimento de pertencermos à Terra e de nossa identidade terrena são vitais atualmente. A progressão e o enraizamento desta consciência de pertencer a nossa pátria terrena é que permitirão o desenvolvimento, por múltiplos canais e em diversas regiões do globo, de um sentimento de religação e intersolidariedade, imprescindível para civilizar as relações humanas (ONGs, Sobrevivência Internacional, Anistia Internacional, Greenpeace etc. são pioneiros da cidadania terrena). Serão a alma e o coração da segunda globalização, produto antagônico da primeira, que permitirão humanizar essa globalização. Existe uma correlação entre o desenvolvimento de nossa consciência de humanidade e a consciência de nossa pátria terrena. A pátria terrena comporta a salvaguarda das diversas pátrias, que podem, muito bem, enraizar-se em uma concepção mais profunda e mais vasta de “a pátria”, desde que sejam abertas; e a condição necessária a essa abertura é a consciência de pertencer à Terra-Pátria. * * * 73 Para compreender o que insere o homem no mundo físico e vivo, e o que o diferencia dele, seria contada a aventura cósmica, tal como podemos discerni-la atualmente (com indicações do que é hipotético, do que é desconhecido, do que é misterioso): a formação das partículas, a aglomeração da matéria em protogaláxias; depois, a formação das galáxias e estrelas, a formação dos átomos de carbono entre os céus anteriores ao nosso; depois, a constituição de macro-moléculas na terra, provavelmente com o concurso de materiais vindos de meteoritos. O problema do nascimento da vida seria exposto (com seus enigmas apontados no capítulo 5, p. 57), seguido das ramificações de seus desenvolvimentos evolutivos. A partir da aventura da hominização (com indicação de todos os enigmas que ainda encerra), seria colocado o problema do surgimento do Homo sapiens, da cultura, da linguagem, do pensamento, o que permitiria introduzir a Psicologia e a Sociologia. As aulas de conexão bioantropológicas deverão ser dadas com a indicação de que o homem é, ao mesmo tempo, totalmente biológico e totalmente cultural, e que o cérebro estudado em Biologia e a mente estudada em Psicologia são duas faces de uma mesma realidade, destacando-se o fato de que o surgimento da mente supõe a linguagem e a cultura. Assim, desde a escola primária, dar-se-ia início a um percurso que ligaria a indagação sobre a condição humana à indagação sobre o mundo. À medida que as matérias são distinguidas e ganham autonomia, é preciso aprender a conhecer, ou seja, a separar e unir, analisar e sintetizar, ao mesmo tempo. Daí em diante, seria possível aprender a considerar as coisas e as causas. O que é uma coisa? É preciso ensinar que as coisas não são ape- 76 nas coisas1, mas também sistemas que constituem uma unidade, a qual engloba diferentes partes2. Não mais objetos fechados, mas entidades inseparavelmente ligadas a seu meio ambiente, que só podem ser realmente conhecidas quando inseridas em seu contexto. No que diz respeito aos seres vivos, eles se comunicam, entre si e com o meio ambiente—comunicações que fazem parte de sua organização e de sua própria natureza. O que é uma causa? preciso aprender a ultrapassar a causalidade linear causa → efeito. Compreender a causalidade mútua inter- relacionada, a causalidade circular (retroativa, recursiva), as incertezas da causalidade (por que as mesmas causas não produzem sempre os mesmos efeitos, quando os sistemas que elas afetam têm reações diferentes, e por que causas diferentes podem provocar os mesmos efeitos). Assim, será formada uma consciência capaz de enfrentar complexidades. A aprendizagem da vida será realizada por duas vias, a interna e a externa. A via interna passa pelo exame de si, a auto-analise, a autocrítica. O auto-exame deve ser ensinado desde o primário e durante todo ele. Seriam mostrados, particularmente, os erros ou deformações que ocorrem nos testemunhos mais sinceros e convictos; seria estudada a maneira com que a mente oculta os fatos que contrariam sua visão das coisas: mostrar-se-ia como as coisas dependem menos de informações do que da forma em que está estruturado o modo de pensar. A via externa seria a introdução ao conhecimento das mídias. Como as crianças são imersas, desde muito cedo, na cultura de mídia, televisão, videogames, anúncios publicitários etc; o papel do _____________________ 1 As coisas não são coisas, dizia Robert Pages. 2 ... e aprender o que nos ensina a noção de sistema (cf. Edgar Monn, La Méthode, t 1 op. cit., pp. 94-151). 77 professor, em vez de denunciar, é tornar conhecidos os modos de produção dessa cultura. Seria preciso mostrar como o tratamento dado às imagens filmadas ou televisionadas, notadamente pela montagem, pode, arbitrariamente, dar a impressão de realidade (uma sucessão de planos, por exemplo, em que vemos correr, separadamente, o predador e sua presa, dá a impressão de que vemos, simultaneamente, o percurso do perseguidor e do perseguido). O mestre poderia situar e comentar os programas assistidos e os jogos praticados pelos alunos fora da classe. Naturalmente, o ensino da língua, da ortografia, da História, do cálculo seria integralmente mantido ao longo do primeiro grau. Secundário O ensino secundário seria o momento da aprendizagem do que deve ser a verdadeira cultura – a que estabelece o diálogo entre cultura das humanidades e cultura científica –, não apenas levando a uma reflexão sobre as conquistas e o futuro das ciências, mas também considerando a Literatura como escola e experiência de vida. A História deveria desempenhar um papel chave na escola secundária, permitindo ao aluno internalizar a história de sua nação, situar-se no futuro histórico da Europa e, mais amplamente, da humanidade, desenvolvendo, em si mesmo, um modo de conhecimento que apreenda as características multidimensionais ou complexas das realidades humanas. Os programas deveriam ser substituídos por guias de orientação que permitissem aos professores situar as disciplinas em seus novos contextos: o Universo, a Terra, a vida, o humano. As reciclagens que permitissem essas integrações poderiam ser efetuadas no quadro dos cursos de mestrado renovados, ou durante os períodos de formação em uma escola superior ad hoc. 78 Universidade A Universidade conserva, memoriza, integra, ritualiza uma herança cultural de saberes, idéias, valores; regenera essa herança ao reexaminá- la, atualizá-la, transmiti-la; gera saberes, idéias e valores que passam, então, a fazer parte da herança. Assim, ela é conservadora, regeneradora, geradora. A esse título, a Universidade tem uma missão e uma função transeculares, que vão do passado ao futuro, passando pelo presente; conservou uma missão transnacional, apesar da tendência ao fechamento nacionalista das nações modernas. Dispõe de uma autonomia que lhe permite executar essa missão. Segundo os dois sentidos do termo “conservação”, o caráter conservador da Universidade pode ser vital ou estéril. A conservação é vital quando significa salvaguarda e preservação, pois só se pode preparar um futuro salvando um passado, e estamos em um século onde múltiplas e poderosas forças de desintegração cultural estão em atividade. Mas a conservação é estéril quando é dogmática, cristalizada, rígida. Assim, a Sorbonne do século XVII condenou todos os avanços científicos de sua época, e, até o século seguinte, grande parte da ciência moderna foi formada fora das universidades. No século XIX, a Universidade soube responder ao desafio do desenvolvimento das ciências, ao realizar sua grande transformação, a partir da reforma que Humboldt introduziu em Berlim, em 1809. Tornou- se laica, quando instituiu sua liberdade interna frente à religião e ao poder; abriu-se à grande problematização, surgida com o Renascimento, que interroga o mundo, a natureza, a vida, o homem, Deus. A Universidade tornou-se, de fato, o espaço da problematização característica da cultura européia moderna; está mais profundamente inserida em sua missão transecular e transnacional, e aberta às culturas extra-européias. A reforma criou departamentos onde introduziu as ciências modernas. A partir daí, a Universidade faz com que coexistam — 81 mas não com que se comuniquem – as duas culturas: a das humanidades e a cultura científica. Ao criar os departamentos, Humboldt percebera bem o caráter transecular da integração das ciências na Universidade. Para ele, a formação profissional (conveniente às escolas técnicas) não deveria ser tomada como a vocação direta da Universidade, mas apenas como vocação indireta, pela formação de uma postura de pesquisa. Daí a paradoxal dupla função da Universidade: adaptar-se à modernidade científica e integrá-la; responder às necessidades fundamentais de formação, mas também, e sobretudo, fornecer um ensino metaprofissional, metatécnico, isto é, uma cultura. A Universidade deve adaptar-se à sociedade ou a sociedade é que deve adaptar-se à Universidade? Há complementaridade e antagonismo entre as duas missões: adaptar-se à sociedade e adaptar a sociedade à Universidade; uma remete à outra em um círculo que deve ser produtivo. Não se trata apenas de modernizar a cultura: trata-se também de “culturalizar” a modernidade. Aqui, reencontramos a missão transecular, em que a Universidade convoca a sociedade a adotar sua mensagem e suas normas: ela inocula na sociedade uma cultura que não foi feita para as formas provisórias ou efêmeras do hic et nunc, mas para ajudar os cidadãos a viverem seu destino hic et nunc, ela defende, ilustra e promove, no mundo social e político, valores intrínsecos à cultura universitária – a autonomia da consciência, a problematização (com a conseqüência de que a pesquisa deve ser sempre aberta e plural), o primado da verdade sobre a utilidade, a ética do conhecimento; donde essa vocação expressa pela dedicatória no frontispício da Universidade de Heidelberg: “À mente viva.” A Universidade deve, ao mesmo tempo, adaptar-se às necessidades da sociedade contemporânea e realizar sua missão transecular de conservação, transmissão e enriquecimento de um patrimônio cultural, sem o que não passaríamos de máquinas de produção e consumo. * * * 82 Ora, como apontamos no capítulo 1, o século XX lançou vários desafios a essa dupla missão. Antes de tudo, existe uma pressão superadaptativa, que leva a adequar o ensino e a pesquisa às demandas econômicas, técnicas e administrativas do momento; a conformar-se aos últimos métodos, às últimas estimativas do mercado, a reduzir o ensino geral, a marginalizar a cultura humanista. Ora, na vida como na história, a superadaptação a condições dadas nunca foi um indício de vitalidade, mas prenuncio de senilidade e morte pela perda da substância inventiva e criadora. Há, ao mesmo tempo, a disjunção radical dos saberes entre disciplinas e a enorme dificuldade em se estabelecer um ponto institucional entre essas disciplinas (cf. capítulo 1, pp. 14-16). Há, da mesma maneira, a disjunção entre cultura humanista e cultura científica, a qual comporta a compartimentação entre as ciências e as disciplinas. A falta de comunicação entre as duas culturas provoca graves conseqüências para uma e outra (cf. capítulo 1, p. 17). A reforma da Universidade não poderia contentar-se com uma democratização do ensino universitário e com a generalização do status de estudante. Falo de uma reforma que leve em conta nossa aptidão para organizar o conhecimento – ou seja, pensar. A reforma de pensamento exige a reforma da Universidade. Essa reforma incluiria uma reorganização geral para a instauração de faculdades, departamentos ou institutos destinados às ciências que já realizaram uma união multidisciplinar em torno de um núcleo organizador sistêmico (Ecologia, ciências da Terra, Cosmologia). A Ecologia científica, as ciências da Terra, a Cosmologia, insistimos, são efetivamente ciências que têm por objeto não uma área ou um setor, mas um sistema complexo: o ecossistema e, mais amplamente, a biosfera, para a Ecologia; o sistema Terra, para as ciências da Terra; e a estranha propensão do Universo a formar e destruir sistemas galáxicos e solares, para a Cosmologia. Assim, seria 83 CAPÍTULO 8 A REFORMA DE PENSAMENTO “O Iluminismo depende da educação, e a educação depende do Iluminismo.” KANT “Sei tudo, mas não compreendo nada.” RENE DAUMAL RECORDEMOS o segundo e o terceiro princípios do Discurso sobre o Método1: – “Divisar cada uma das dificuldades, que examinarei em tantas parcelas quanto seja possível e requerido para melhor resolvê-las...” – “Conduzir meus pensamentos por ordem, começando pelos assuntos mais simples e mais fáceis de conhecer, para atingir, pouco a pouco, como que degrau por degrau, o conhecimento dos assuntos mais complexos...” No segundo princípio encontra-se, potencialmente, o princípio de separação, e no terceiro, o princípio de redução; esses princípios vão reger a consciência científica. O princípio de redução comporta duas ramificações. A primeira é a da redução do conhecimento do todo ao conhecimento adicio- _____________________ 1 “O primeiro é nunca aceitar coisa alguma como verdadeira, se não a souber comprovadamente como tal; isto é, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção... O último é fazer, em tudo, um levantamento tão completo e um exame tão amplo, que eu esteja certo de não ter omitido nada.” 87 nal de seus elementos. Hoje em dia, admite-se cada vez mais que, como indica a já citada frase de Pascal, o conhecimento das partes depende do conhecimento do todo, como o conhecimento do todo depende do conhecimento das partes. Por isso, em várias frentes do conhecimento, nasce uma concepção sistêmica, onde o todo não é redutível às partes. A segunda ramificação do princípio de redução tende a limitar o conhecimento ao que é mensurável, quantificável, formulável, segundo o axioma de Galileu: os fenômenos só devem ser descritos com a ajuda de quantidades mensuráveis. Desde então, a redução ao quantificável condena todo conceito que não seja traduzido por uma medida. Ora, nem o ser, nem a existência, nem o sujeito podem ser expressos matematicamente ou por meio de fórmulas. O que Heidegger chama de “a essência devoradora do cálculo” pulveriza os seres, as qualidades e as complexidades, e, ao mesmo tempo, leva à “quantofrenia” (Sorokin) e à “aritmomania”(Georgescu-Roegen). Esse princípio ainda se impõe na tecnociência; mas torna-se questionado, em profundidade, na medida em que a própria tecnociência é questionada em profundidade. Hoje, esses princípios revelaram suas limitações, e é preciso recorrer ao princípio de Pascal, que citamos uma vez mais: “Como todas as coisas são causadas e causadoras, ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas, e todas são sustentadas por um elo natural e imperceptível, que liga as mais distantes e as mais diferentes, considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tanto quanto conhecer o todo sem conhecer, particularmente, as partes.” Há, efetivamente, necessidade de um pensamento: – que compreenda que o conhecimento das partes depende do conhecimento do todo e que o conhecimento do todo depende do conhecimento das partes; – que reconheça e examine os fenômenos multidimensionais, em vez de isolar; de maneira mutiladora, cada uma de suas dimensões; 88 – que reconheça e trate as realidades, que são, concomitante-mente solidárias e conflituosas (como a própria democracia, sistema que se alimenta de antagonismos e ao mesmo tempo os regula); – que respeite a diferença, enquanto reconhece a unicidade. É preciso substituir um pensamento que isola e separa por um pensamento que distingue e une. É preciso substituir um pensamento disjuntivo e redutor por um pensamento do complexo, no sentido originário do termo complexus : o que é tecido junto. De fato, a reforma do pensamento não partiria de zero. Tem seus antecedentes na cultura das humanidades, na literatura e na filosofia, e é preparada nas ciências. Ciências As duas revoluções científicas do século preparam a reforma do pensamento. A primeira começou com a física quântica e, como já mencionamos, desencadeia o colapso do Universo de Laplace; a queda do dogma determinista; o esboroamento de toda idéia de que haveria uma unidade simples na base do universo; e a introdução da incerteza no conhecimento científico. Suscitou, notadamente em Bachelard e Popper, tomadas epistemológicas de consciência em relação aos pressupostos do saber científico. A segunda revolução, realizada com a constituição de grandes ligações científicas, faz com que se levem em consideração os conjuntos organizados, ou sistemas, em detrimento do dogma reducionista que imperara durante o século XIX. Como vimos no capítulo 2, há uma ressurreição das entidades globais, como o cosmo, a natureza, o homem, que foram picadas como salsichas, finalmente desintegradas, supostamente porque provêm do senso primitivo pré- 89 que permite dar intensidade afetiva à inteligibilidade que ela apresenta. Ao levantar ondas analógicas, a metáfora supera a descontinuidade e o isolamento das coisas. Fornece, freqüentemente, précisées que a língua puramente objetiva ou denotativa não pode fornecer. Assim, quando falamos da roupa, do corpo, do buquê, da perna de um vinho, compreendemos melhor sua qualidade do que por meio de referências físico-químicas. Acrescentemos que, mesmo nas ciências, há fecundos transportes de noções de uma disciplina para outra (cf. anexo 1, p. 108). Antonio Machado dizia: “Uma idéia não tem mais valor que uma metáfora; em geral, tem menos.” E Descartes, que não era essencialmente cartesiano, observava: “Poderia surpreender que os pensamentos profundos sejam encontrados nos escritos dos poetas, e não nos dos filósofos. O motivo é que os poetas se servem do entusiasmo e exploram a força da imagem.” (Descartes, Cogitationes privatae) Enfim, dizíamos que a complexidade não é um problema novo. O pensamento humano sempre enfrentou a complexidade e tentou, ou bem reduzi-la, ou bem traduzi-la. Os grandes pensadores sempre fizeram uma descoberta de complexidade. Até uma simples lei, como a da gravidade, permite ligar, sem reduzi-los, fenômenos diversos como a queda dos corpos, o fato de a Lua não cair na Terra, o movimento das marés. Toda grande filosofia é uma descoberta de complexidade; depois, ao formar um sistema em torno da complexidade que revelou, ela encerra outras complexidades. A reforma em todos os níveis A exigida reforma do pensamento vai gerar um pensamento do contexto e do complexo. Vai gerar um pensamento que liga e enfrenta a incerteza. O pensamento que une substituirá a causalidade linear e unidirecional por uma causalidade em círculo e multirreferencial; corrigi- 92 rá a rigidez da lógica clássica pelo diálogo capaz de conceber noções ao mesmo tempo complementares e antagonistas, e completará o conhecimento da integração das partes em um todo, pelo reconhecimento da integração do todo no interior das partes. Ligará a explicação à compreensão, em todos os fenômenos humanos. Vamos repetir aqui a diferença entre explicação e compreensão. Explicar é considerar o objeto de conhecimento apenas como um objeto e aplicar-lhe todos os meios objetivos de elucidação. De modo que há um conhecimento explicativo que é objetivo, isto é, que considera os objetos dos quais é preciso determinar as formas, as qualidades, as quantidades, e cujo comportamento conhecemos pela causalidade mecânica e determinista. A explicação, claro, é necessária à compreensão intelectual ou objetiva. Mas é insuficiente para a compreensão humana. Há um conhecimento que é compreensível e está fundado sobre a comunicação e a empatia – simpatia, mesmo – intersubjetivas. Assim, compreendo as lágrimas, o sorriso, o riso, o medo, a cólera, ao ver o ego alter como alter ego, por minha capacidade de experimentar os mesmos sentimentos que ele. A partir daí, compreender comporta um processo de identificação e de projeção de sujeito a sujeito. Se vejo uma criança em prantos, vou compreendê-la não pela medição do grau de salinidade de suas lágrimas, mas por identificá-la comigo e identificar-me com ela. A compreensão, sempre intersubjetiva, necessita de abertura e generosidade. Os sete princípios Podemos adiantar sete diretivas para um pensamento que une; são princípios complementares e interdependentes. 1. O princípio sistêmico ou organizacional, que liga o conhecimento das partes ao conhecimento do todo, segundo o elo indicado por 93 Pascal: “Considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tanto quanto conhecer o todo sem conhecer, particularmente, as partes.” A idéia sistêmica, oposta à idéia reducionista, é que “o todo é mais do que a soma das partes”. Do átomo à estrela, da bactéria ao homem e à sociedade, a organização de um todo produz qualidades ou propriedades novas, em relação às partes consideradas isoladamente: as emergências. Assim também, a organização do ser vivo produz qualidades desconhecidas no que se refere a seus constituintes físico-químicos. Acrescentemos que o todo é, igualmente, menos que a soma das partes, cujas qualidades são inibidas pela organização do conjunto. 2. O princípio “hologrâmico”4 põe em evidência este aparente paradoxo das organizações complexas, em que não apenas a parte está no todo, como o todo está inscrito na parte. Assim, cada célula é uma parte de um todo – o organismo global –, mas também o todo está na parte: a totalidade do patrimônio genético está presente em cada célula individual; a sociedade está presente em cada indivíduo, enquanto todo, através de sua linguagem, sua cultura, suas normas. 3. O princípio do circuito retroativo, introduzido por Norbert Wiener, permite o conhecimento dos processos auto-reguladores. Ele rompe com o princípio da causalidade linear: a causa age sobre o efeito, e o efeito age sobre a causa, como no sistema de aquecimento, em que o termostato regula o andamento do aquecedor. Esse mecanismo de regulação permite, aqui, a autonomia térmica de um apartamento em relação ao frio externo. De modo mais complexo, “a homoestasia” de um organismo vivo é um conjunto de processos reguladores baseados em múltiplas retroações. Em sua forma negativa, o círculo de retroação (ou feedback) permite reduzir o desvio e, assim, estabilizar um sistema. Em sua forma positiva, o feedback é um mecanismo amplificador; por exemplo: a violência de um protagonista provoca _____________________ 4 Inspirado no holograma, em que cada ponto contém a quase totalidade da informação do objeto que ele representa. 94 capitais nascidas à margem de uma e de outra: no mundo dos matemáticos-engenheiros-pensadores, a partir de Wiener, von Neumann, von Foerster5. Desse modo, ela poria em comunicação essas duas culturas que acabariam por constituir os dois pólos da cultura. Novas humanidades emergiriam, assim, do intercâmbio entre dois pólos culturais. Essas humanidades revitalizariam a problematização, o que permitiria a plena emergência dos problemas globais e fundamentais. E, assim, cada futuro cidadão, para chegar à especialização, terá de passar, então, pela cultura. O humanismo seria regenerado. Lembremos que o humanismo europeu atual não tem, como únicas fontes, a herança ateniense (a soberania dos cidadãos sobre sua cidade) e a herança judaico-cristã (o homem à imagem de Deus, Deus que adquire a carne e a forma humanas). Recebeu a contribuição de quatro descobertas oriundas das ciências, que situam o ser humano no mundo destruindo qualquer antropocentrismo. É Copérnico quem retira do homem o privilégio de ser o centro do Universo. É Darwin quem o torna descendente do antropóide, e não criatura à imagem de seu Criador. É Freud quem dessacraliza o espírito humano, e, finalmente, é Hubble quem nos exila nas periferias mais afastadas do cosmo. O humanismo já não poderia ser o portador da orgulhosa vontade de dominar o Universo. Torna-se, essencialmente, o da solidariedade entre humanos, a qual envolve uma relação umbilical com a natureza e o cosmo. Isso indica que um modo de pensar, capaz de unir e solidarizar conhecimentos separados, é capaz de se desdobrar em uma ética da união e da solidariedade entre humanos. Um pensamento capaz de não se fechar no local e no particular, mas de conceber os conjuntos, estaria apto a favorecer o senso da responsabilidade e o da cidadania. A reforma de pensamento teria, pois, conseqüências existenciais, éticas e cívicas. _____________________ 5 Cf. anexo l.pp 111 e 112. 97 CAPÍTULO 9 PARA ALÉM DAS CONTRADIÇÕES ATUALMENTE, os problemas da educação tendem a ser reduzidos a termos quantitativos: “mais créditos”, “mais ensinamentos”, “menos rigidez”, “menos matérias programadas”, “menos carga horária”. Tudo isso, claro, é necessário. É preciso haver mais créditos, mais ensinamentos. É preciso respeitar o optimum demográfico da classe para que o professor possa conhecer cada aluno individualmente e ajudá-lo em sua singularidade. É preciso haver reformas de flexibilidade, de diminuição da carga horária, de organização, mas essas modificações sozinhas não passam de reformazinhas que camuflam ainda mais a necessidade da reforma de pensamento. De fato, os atuais projetos de reforma giram em torno desse buraco negro que lhes é invisível. Só seria visível se as mentes fossem reformadas. E aqui chegamos a um impasse: não se pode reformar a instituição sem uma prévia reforma das mentes, mas não se podem reformar as mentes sem uma prévia reforma das instituições. Essa é uma impossibilidade lógica que produz um duplo bloqueio. Há resistências inacreditáveis a essa reforma, a um tempo, una e dupla. A imensa máquina da educação é rígida, inflexível, fechada, burocratizada. Muitos professores estão instalados em seus hábitos e autonomias disciplinares. Estes, como dizia Curien, são como os lobos que urinam para marcar seu território e mordem os que nele penetram. Há uma resistência obtusa, inclusive entre os espíritos refinados. Para eles, o desafio é invisível. 99 A cada tentativa de reforma, mínima que seja, a resistência aumenta! Como dizia Edgar Faure, depois de ter experimentado uma de suas reformazinhas, “o imobilismo se pôs em marcha, e não sei como detê-lo”. Quanto a mim, fui alvo dos sarcasmos dos Diafoirus e Trissotin (cujo número cresceu consideravelmente desde Molière), quando sugeri as “cinco finalidades”. Como as mentes, em sua maioria, são formadas segundo o modelo da especialização fechada, a possibilidade de um conhecimento para além de uma especialização parece-lhes insensata. E, no entanto, o mais limitado especialista tem idéias gerais, das quais não tem dúvidas, sobre a vida, o mundo, Deus, a sociedade, os homens, as mulheres. E, de fato, esses especialistas, experts, vivem de idéias gerais e globais, mas arbitrárias, nunca criticadas, nunca refletidas. O reino dos especialistas é o reino das mais ocas idéias gerais, sendo que a mais oca de todas é a de que não há necessidade de idéia geral. O bloqueio levantado pela necessidade de reformar as mentes para reformar as instituições é acrescido de um bloqueio mais amplo, que diz respeito à relação entre a sociedade e a escola. Uma relação que não é tanto de reflexo, mas de holograma e de recorrência. Holograma: assim como um ponto único de um holograma contém em si a totalidade da figura representada, também a escola, em sua singularidade, contém em si a presença da sociedade como um todo. Recorrência: a sociedade produz a escola, que produz a sociedade. Diante disso, como reformar a escola sem reformar a sociedade, mas como reformar a sociedade sem reformar a escola? Há a impossibilidade lógica de superar essas duas contradições que acabamos de enunciar; mas este é o tipo de impossibilidade que a vida sempre desdenhou. Quanto à relação escola-sociedade, já nos referimos a ela no capítulo 7. Como existe um circuito entre a escola e a sociedade — 100 bem como em sua comunidade de destino, própria à era planetária, em que todos os animais enfrentam os mesmos problemas vitais e mortais. Reencontrar as missões As cinco finalidades educativas estão ligadas entre si e devem alimentar umas às outras (a cabeça bem-feita, que nos dá aptidão para organizar o conhecimento, o ensino da condição humana, a aprendizagem do viver, a aprendizagem da incerteza, a educação cidadã). Devem despertar, igualmente, a ressurreição da cultura pela conexão entre as duas culturas e, como veremos agora, contribuir para a regeneração da laicidade e o nascimento de uma democracia cognitiva. Na França, a reforma assim concebida, necessariamente inseparável de uma regeneração cultural, seria, ela mesma, inseparável de uma regeneração da laicidade francesa. Na origem da laicidade, fruto do Renascimento, está a problematização que interroga o mundo, a natureza, a vida, o homem, Deus; e que dá vida à cultura européia moderna. A laicidade do início do século chegou a acreditar que a ciência, a razão, o progresso trariam soluções a todas essas questões. Hoje, já não basta problematizar o homem, a natureza, o mundo, Deus; é preciso problematizar o progresso, a ciência, a técnica, a razão. A nova laicidade deve problematizar a ciência revelando suas profundas ambivalências. Deve problematizar a razão, opondo a racionalidade aberta à racionalização fechada; deve problematizar o progresso, que depende não de uma necessidade histórica, mas de uma vontade consciente dos humanos. A laicidade, assim regenerada, talvez criasse as condições para um novo Renascimento. A reforma de pensamento é uma necessidade democrática fundamental: formar cidadãos capazes de enfrentar os problemas de sua época é frear o enfraquecimento democrático que suscita, em todas 103 as áreas da política, a expansão da autoridade dos experts, especialistas de toda ordem, que restringe progressivamente a competência dos cidadãos. Estes são condenados à aceitação ignorante das decisões daqueles que se presumem sabedores, mas cuja inteligência é míope, porque fracionária e abstrata. O desenvolvimento de uma democracia cognitiva só é possível com uma reorganização do saber; e esta pede uma reforma do pensamento que permita não apenas isolar para conhecer, mas também ligar o que está isolado, e nela renasceriam, de uma nova maneira, as noções pulverizadas pelo esmagamento disciplinar, o ser humano, a natureza, o cosmo, a realidade. A reforma de pensamento é uma necessidade histórica fundamental. Hoje somos vítimas de dois tipos de pensamento fechado: primeiro, o pensamento fracionário da tecnociência burocratizada, que corta, como fatias de salame, o complexo tecido do real; segundo, o pensamento cada vez mais fechado, voltado para a etnia ou a nação, que recorta, como um puzzle, o tecido da Terra-Pátria. Precisamos, pois, estar intelectualmente rearmados, começar a pensar a complexidade, enfrentar os desafios da agonia/nascimento de nosso entre-dois-milênios e tentar pensar os problemas da humanidade na era planetária. Essa é uma reforma vital para os cidadãos do novo milênio, que permitiria o pleno uso de suas aptidões mentais e constituiria não, certamente, a única condição, mas uma condição sine qua non para sairmos de nossa barbárie. 104 ANEXO 1 Inter-poli-transdisciplinaridade1 A DISCIPLINA é uma categoria organizadora dentro do conhecimento científico; ela institui a divisão e a especialização do trabalho e responde à diversidade das áreas que as ciências abrangem. Embora inserida em um conjunto mais amplo, uma disciplina tende naturalmente à autonomia pela delimitação das fronteiras, da linguagem em que ela se constitui, das técnicas que é levada a elaborar e a utilizar e, eventualmente, pelas teorias que lhe são próprias. A organização disciplinar foi instituída no século XIX, notadamente com a formação das universidades modernas; desenvolveu-se depois, no século XX, com o impulso dado à pesquisa científica; isto significa que as disciplinas têm uma história: nascimento, institucionalização, evolução, esgotamento etc; essa história está inscrita na da Universidade, que, por sua vez, está inscrita na história da sociedade; daí resulta que as disciplinas nascem da sociologia das ciências e da sociologia do conhecimento. Portanto, a disciplina nasce não apenas de um conhecimento e de uma reflexão interna sobre si mesma, mas também de um conhecimento externo. Não basta, pois, estar por dentro de uma disciplina para conhecer todos os problemas aferentes a ela. Virtude da especialização e risco de hiperespecialização A fecundidade da disciplina na história da ciência já foi demonstrada; por um lado, ela realiza a circunscrição de uma área de com- _____________________ 1 Uma primeira versão deste texto foi publicada em Carrefour des sciences, Actes du colloque du CNRS “Interdisciplinarité”, CNRS, Paris, 1990. 105
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