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Guias e Dicas
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Manual da linguistica, Manuais, Projetos, Pesquisas de Linguística

Formação de Professores

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2014

Compartilhado em 13/09/2014

tinido-caputo-5
tinido-caputo-5 🇧🇷

4.7

(26)

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Baixe Manual da linguistica e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Linguística, somente na Docsity! ELES [Oie Mon caga [Rusia Série Vias dos Saberes nº 4 E = A Coleção Educação para Texkes, lan- ada pelo MEG e pela UNESCO em 2004, é um espaço para divulgação de textos — documentos, relatórios de pesquisas & eventos — & estudos de pesquisadores, acadêmicos e educadores, nacionais e in- termacionais, no sentido de aprotundar o debate em tomo da busca da educação para todos, Representando espaço de interkocu- «ção, informação e formação para o pú- blico interessado no campo da educação cominuada, reatinma o ideal de incluir s0- cialmente o grande número de jovens € adultos excluídos dos processos de apren- dizagem formal no Brasil é no mundo. Para a Secretaria de Educação Con- tinuada, Aliabetização e Diversidade do Ministério da Educação. a educação para todos não pode sopas de questões como qualiicação profissional e mundo do trabalho, direitos humanos, etnia, gênero e diversidade de orientação sexual; justiça e democracia: tolerância e paz mundial; bem como desenvolvimento ecobogica- mente sustentável, Além disso, a compre- ensão e o respeito pelo diferente e pela diversidade são dimensões fundamentais do processo educativo. Manual de Lingüística: subsídios para a formação de professores indígenas na área de linguagem ED UCAÇÃO PARA TO DO S • C • O • L • E •Ç •Ã •O • Marcus Maia Brasília, novembro de 2006 © 2006. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e Projeto Trilhas de Conhecimentos – LACED/Museu Nacional Conselho Editorial da Coleção Educação para Todos Adama Ouane Alberto Melo Célio da Cunha Dalila Shepard Osmar Fávero Ricardo Henriques Coordenação Editorial Antonio Carlos de Souza Lima Projeto Gráfico e Diagramação: Andréia Resende Assistentes: Jorge Tadeu Martins e Luciana Ribeiro Ilustrações: Chang Whan Apoio: Rodrigo Cipoli Cajueiro e Francisco das Chagas de Souza / LACED Tiragem: 5000 exemplares Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Manual de Lingüística: subsídios para a formação de professores indígenas na área de linguagem / Marcus Maia – Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006. ISBN 85-98171-60-3 268 p. (Coleção Educação para Todos; 15) 1. Línguas Indígenas. 2. Lingüística. 3. Bilingüismo. 4. Índios do Brasil. I. Maia, Marcus. CDU 81:371.13(=1.81-82) Os autores são responsáveis pela escolha e apresentação dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opiniões nele expressas, que não são necessariamente as da Unesco e do Ministério da Educação, nem comprometem a Organização e o Ministério. As indicações de nomes e a apresentação do material ao longo deste livro não implicam a manifestação de qualquer opinião por parte da Unesco e do Ministério da Educação a respeito da condição jurídica de qualquer país, território, cidade, região ou de suas autoridades, nem tampouco a delimitação de suas fronteiras ou limites. Parceiros Este livro integra a série Vias dos Saberes, desenvolvida pelo Projeto Trilhas de Conhecimentos: o Ensino Superior de Indígenas no Brasil / LACED – Labora- tório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento / Museu Nacional – UFRJ, em parceria com a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), e contou com o financiamento do fundo Pathways to Higher Education Initiative da Fundação Ford e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). A iniciativa Pathways to Higher Education (PHE) foi concebida para comple- mentar o International Fellowships Program – IFP da Fundação Ford, e tem como proposta investir recursos em vários países até o ano de 2010 para promover pro- jetos que aumentem as possibilidades de acesso, permanência e sucesso no En- sino Superior de integrantes de segmentos educacionalmente sub-representados em países nos quais a Fundação Ford mantém programas de doações. Enquanto o IFP apóia diretamente indivíduos cursando a pós-graduação por meio da con- cessão de bolsas de estudo, a PHE tem por objetivo fortalecer instituições educa- cionais interessadas em oferecer formação de qualidade em nível de graduação a estudantes selecionados para o programa, revendo suas estruturas, metas e rotinas de atuação. Na América Latina, a PHE financia projetos para estudantes indígenas do Brasil, do Chile, do México e do Peru. 3.4 Variação diacrônica ............................................................................ 167 3.4.1 A lingüística histórico-comparativa ..................................................... 169 Atividades sugeridas .......................................................................... 172 Leituras adicionais.............................................................................. 175 Capítulo 4 I A Tipologia Lingüística 4.1 A abordagem tipológica ...................................................................... 178 4.2 A tipologia lingüística ......................................................................... 179 4.3 A tipologia de ordem vocabular .......................................................... 182 4.3.1 Os universais de Greenberg .............................................................. 185 4.3.2 As generalizações de Lehmann ......................................................... 187 4.4 A tipologia de marcação de casos ..................................................... 200 Atividades sugeridas .......................................................................... 204 Leituras adicionais.............................................................................. 209 Capítulo 5 I Oficina do Período 5.1 Perspectiva ......................................................................................... 212 5.2 O período ........................................................................................... 214 5.3 Articulação das orações no período ................................................... 215 Atividades sugeridas .......................................................................... 217 Leituras adicionais.............................................................................. 225 Capítulo 6 I A Ecologia da Linguagem 6.1 Uma agenda ecolingüística ................................................................ 228 6.1.1 A natureza das línguas ..................................................................... 231 6.1.2 As estruturas das línguas ................................................................... 232 6.1.3 A classificação das línguas ................................................................ 232 6.1.4 O uso das línguas .............................................................................. 233 6.1.5 A tradição de escrita das línguas ....................................................... 233 6.1.6 A política lingüística ........................................................................... 234 6.2 Uma mente, duas línguas .................................................................. 235 6.2.1 A compreensão de orações adjetivas ambíguas ................................ 236 6.2.2 A transferência de padrões de ordem vocabular ................................ 240 Atividades Sugeridas .......................................................................... 248 Leituras Adicionais ............................................................................. 255 Referências ................................................................................................. 256 9 Apresentação A Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (SECAD/MEC) tem enorme satisfação em publicar, em parceria como o Laboratório de Pesquisas em Etnicida- de, Cultura e Desenvolvimento (LACED), ligado ao Departamento de Antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o presente livro, parte da série Vias dos Saberes. Uma de nossas mais importantes missões é propor uma agenda pú- blica para o Sistema Nacional de Ensino, que promova a diversidade sociocultural, extrapolando o seu mero reconhecimento, patamar já afirmado em diversos estudos sobre nossa sociedade, os quais derivam, em sua grande maioria, de celebrações reificantes da produção cultural de diferentes grupos sociais, que folclorizam manifestações produzidas e reproduzidas no dia-a-dia das dinâmicas sociais e reduzem os valores simbólicos que dão coesão e sentido aos projetos e às práticas sociais de inúmeras comunidades. Queremos interferir nessa realidade transformando-a, propondo questões para reflexão que tangenciem a educação, tais como: de que modo reverteremos a histórica subordinação da diversidade cultural ao projeto de homogeneização que imperou – ou impera – nas políticas pú- blicas, o qual teve na escola o espaço para consolidação e disseminação de explicações encobridoras da complexidade de que se constitui nossa sociedade? Como convencer os atores sociais de que a invisibilidade dessa diversidade é geradora de desigualdades sociais? Como promover cidadanias afirmadoras de suas identidades, compatíveis com a atual construção da cidadania brasileira, em um mundo tensionado entre plu- 10 ralidade e universalidade, entre o local e o global? Como transformar a pluralidade social presente no microespaço da sala de aula em estímulo para rearranjos pedagógicos, curriculares e organizacionais que com- preendam a tensão gerada na sua positividade, a fim de ampliar e tornar mais complexo o diálogo entre realidades, perspectivas, concepções e projetos originados da produção da diversidade sociocultural? Como superar a invisibilidade institucionalizada das diferenças culturais que valida avaliações sobre desempenho escolar de crianças, jovens e adul- tos sem considerar as suas realidades e pertencimentos sociais? O impulso pela democratização e afirmação dos direitos humanos na sociedade brasileira atinge fortemente muitas das nossas instituições es- tatais, atreladas a projetos de estado-nação comprometidos com a anu- lação das diferenças culturais de grupos subordinados. Neste contexto, as diferenças culturais dos povos indígenas, dos afro-descendentes e de outros povos portadores de identidades específicas foram sistema- ticamente negadas, compreendidas pelo crivo da inferioridade e, desse modo, fadadas à assimilação pela matriz dominante. A proposta é articular os atores sociais e os gestores para que os de- safios que foram postos estabeleçam novos campos conceituais e práti- cas de planejamento e gestão, renovados pela valorização da diversidade sociocultural, que transformem radicalmente posições preconceituosas e discriminatórias. Esperamos contribuir não só para difundir as bases conceituais para um renovado conhecimento da sociodiversidade dos povos indígenas no Brasil contemporâneo, como também para fornecer subsídios para o fortalecimento dos estudantes indígenas no espaço acadêmico, e tornar mais complexo o conhecimento dos formadores sobre essa realidade e sobre as relações que se estabelecem no convívio com as diferenças culturais. Finalmente, esperamos que a sociedade aprofunde sua busca pela democracia com superação das desigualdades sociais. Ricardo Henriques Secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (Secad/MEC) 13 Estados contemporâneos é a das diferenças socioculturais – ainda que estas se dêem em planos cognitivos muito distintos e em escalas tam- bém variadas de lugar para lugar – e que é preciso fazer do conflito de posições a matéria de um outro dia-a-dia, tenso e instável mas rico em vida e em possibilidades para um novo fazer escolar, na prática, esta- mos muito longe de “amar as divergências” e de construir as aproxi- mações provisórias possíveis entre mundos simbólicos apartados. Que fique claro: não é apenas uma espécie de mea culpa bem-intencionada e posturas simpáticas e pueris que porão termo a práticas geradas por estruturas de dominação colonial de longo prazo, de produção da de- sigualdade a partir das diferenças socioculturais, estas consideradas como signo de inferioridade. Tal enunciação prescritiva da busca de “novas posturas” mal disfarça o exercício da violência (adocicada que seja), única caução de uma “verdade” também única e totalitária. É preciso ir bem mais adiante. Estes livros – sobre a situação contemporânea dos povos indígenas no Brasil, seus direitos, suas línguas e a história de seus relacionamentos com o invasor europeu e a colonização brasileira – não se pretendem pioneiros em seus temas, já que são tributários de iniciativas impor- tantes que os precedem. Mas por algumas razões marcam, sim, uma ruptura. Em primeiro lugar, dentre seus autores figuram indígenas com- prometidos com as lutas de seus povos, pesquisadores nas áreas de co- nhecimento sobre as quais escrevem, caminhando nessas encruzilhadas de saberes em que se vão inventando os projetos de futuro dos povos autóctones das Américas. Em segundo lugar, inovam por referencia- rem-se às lutas indígenas pelo reconhecimento cotidiano de suas his- tórias diferenciadas e dos direitos próprios, bem como à luta contra o preconceito, as quais têm agora na arena universitária seu principal campo de batalhas. Em terceiro lugar, porque estes livros desejam abrir caminho para muitos outros textos que, portadores de intenções seme- lhantes, venham a discordar do que neles está escrito, e a retificar, a ampliar, a gerar reflexões acerca de cada situação específica, de cada povo específico, de modo que, se surgirem semelhanças nesse processo, sejam elas resultantes da comparação entre os diferentes modos de vida 14 e histórias específicas dos povos indígenas, e não do seu aniquilamento pela submissão dessa diversidade a uma idéia geral do que é ser um ge- nérico “cidadão brasileiro”. Finalmente, em quarto lugar e, sobretudo, por serem publicados pelo Governo Federal e distribuídos amplamente no país, espera-se ainda que esses livros abram novas trilhas a conhecimentos essenciais – hoje enclausurados nos “cofres” das universidades – a um importante e cres- cente número de estudantes indígenas, de modo que eles possam re- combiná-los em soluções próprias, singulares, inovadoras, fruto de suas próprias pesquisas e ideologias. Assim, talvez pela preservação da dife- rença em meio à universalidade e pela busca da ruptura com os efeitos de poder totalitário de saberes dominantes e segregadores, vivique-se a idéia da universidade, em seu sentido mais original e denso, livre das constrições amesquinhadoras com as quais a sua apropriação tem sido brindada por projetos de Estado. Quem sabe aí a tão atual e propalada “inclusão dos menos favorecidos” venha a perder o risco de ser, para os povos indígenas, mais um projeto massificante e etnocida, e se possa reconhecer e purgar que muitas desigualdades se instauram na história a partir da invasão e das conquistas dos diferentes. * Manual de Lingüística: subsídios à formação de professores indí- genas na área de linguagem, de Marcus Maia, dirige-se de modo mais decisivo à formação universitária e ao exercício profissional dos mais de 9.000 professores indígenas em atuação nas escolas do país. Servir à luta contra o preconceito, que tem presidido o tratamento dos alu- nos indígenas nas escolas não-indígenas no país, e servir a uma outra prática no contexto das escolas indígenas, a começar pela revisão de conceitos errôneos que se reproduzem como “verdade científica”, são algumas de suas muitas metas. Mas espera-se que além de conhecimen- tos sobre o funcionamento da linguagem e acerca da especificidade das línguas indígenas, o livro suscite também reflexões, sobretudo acerca do aprendizado do português em contextos de bilingüismo, quer nos 15 aspectos didáticos propriamente ditos, quer nas suas dimensões mais estritamente políticas. O livro faz-se ainda acompanhar de sugestões de exercícios e de leituras adicionais, no espírito próprio a essa série: o de abrir novos caminhos, e não de lhes dar o seu ponto final. Antonio Carlos de Souza Lima LACED / Departamento de Antropologia Museu Nacional / UFRJ 19 não índios, atuando em cidades próximas a aldeias Karajá. Preconceitos decorrentes – em última análise – de distorções conceituais profundas que, se não foram elaboradas na própria escola tradicional, deixaram, no mínimo, de ser corrigidas por ela. O exercício de reflexões como as esboçadas acima, em conjunto com professores indígenas, tem sido extremamente produtivo e, por vezes, surpreendente, ao se constatar como muitas dessas questões são, na verdade, conhecidas pelos professores. Por exemplo, a noção cognitivis- ta de que a mente é rica em estrutura e que o processo de aquisição da linguagem é “de dentro para fora”, os conceitos de competência grama- tical e desempenho, a concepção de princípios universais e parâmetros particulares, a distinção entre gramática descritiva e gramática norma- tiva, o estudo das variações diacrônicas, diastráticas, diatópicas e diafá- sicas, entre vários outros, são todos tópicos que – na minha experiência – encontraram entre os professores índios vozes entusiasmadas, prontas a dar novos exemplos, a propor detalhamentos extremamente criativos, que tornam o momento do encontro entre lingüista e professor indígena experiência verdadeiramente fascinante. Por essa razão, confiamos que a proposta de estudo dos conceitos lingüisticos, desenvolvida no presen- te livro poderá ser útil em disciplinas de lingüística, línguas indígenas e de língua portuguesa, em programas de formação de professores. O livro é destinado a formadores de professores indígenas e a pro- fessores indígenas, podendo ser utilizado em nível médio e em cursos superiores de formação de professores. Sua publicação justifica-se pela escassez de material acessível, escrito em linguagem simples e objetiva, cobrindo diferentes aspectos do conhecimento lingüístico em geral e da língua portuguesa, em particular, especificamente destinado à educa- ção indígena em nível médio e superior. Partindo dos fundamentos con- ceituais e metodológicos da lingüística contemporânea, o livro pretende contribuir para a formação teórica do professor indígena na área da linguagem, sugerindo-lhe, também, procedimentos práticos para o de- senvolvimento da capacidade de redação em língua portuguesa dos seus alunos nas escolas indígenas. O livro pretende ainda chamar a atenção do professor indígena para a relação entre o português e as línguas 20 indígenas nas situações de bilingüismo, além de sensibilizá-lo para a questão das línguas em perigo de desaparecimento. Ao longo de todo o livro, fornecem-se exemplos de análises sobre fe- nômenos do português e de algumas outras línguas, especialmente da língua indígena brasileira Karajá (Macro-Jê), procurando-se incentivar os leitores a também tentar análises sobre esses e outros fenômenos em outras línguas. Encontram-se, em cada capítulo, seções destaca- das graficamente do texto principal, geralmente apresentando textos complementares e exemplificação adicional, além de várias ilustrações, com vistas a contribuir para a melhor compreensão das questões es- tudadas. Em todos os capítulos foram, também, incluídas sugestões de atividades a serem realizadas nas escolas indígenas e indicações de leituras complementares em português, permitindo aos interessados aprofundarem o seu conhecimento sobre os assuntos ali tratados. O livro se divide em seis capítulos. O primeiro capítulo apresen- ta conceitos fundamentais da área da linguagem, que é caracterizada como capacidade cognitiva, enquanto língua é conceituada como pro- duto dessa capacidade. Discutem-se, ainda, nesse capítulo introdutório, temas como a aquisição da linguagem, a diferença entre a competência e o desempenho lingüísticos, a gramática universal e as gramáticas das línguas particulares, as diferenças entre a língua oral e a língua escrita. O capítulo introduz também noções importantes a respeito da pedago- gia do ensino de línguas, contrastando o ensino descritivo e produtivo com o ensino prescritivo da gramática, com vistas a levar o professor a desenvolver uma percepção crítica de concepções populares arrai- gadas, mas equivocadas, sobre a linguagem, tais como a existência de línguas primitivas, de uma única norma gramatical “certa”, etc. No final do capítulo, apresentam-se as funções da linguagem e os subsis- temas constituintes do conhecimento lingüístico, introduzindo noções que serão detalhadas no capítulo 2. O segundo capítulo apresenta, fundamentalmente, os sub-compo- nentes da gramática, a saber, a fonética, a fonologia, a morfologia, a sintaxe e a semântica, além de resenhar, também, algumas noções cen- trais da pragmática. O capítulo tem o objetivo de desenvolver o conhe- 21 cimento integrado dos subsistemas lingüísticos, sem a adoção de um viés teórico complexo, mas indicando fontes bibliográficas de referência para o aprofundamento das questões estudadas. O capítulo 3 aborda a variação da linguagem, que é explorada em seus aspectos diatópicos, diastráticos, diafásicos e diacrônicos. O capí- tulo 4 é dedicado à tipologia sintática, especialmente ao estudo dos pa- drões de ordem vocabular e de marcação de casos. O capítulo 5 discute a noção de perspectiva e propõe práticas de redação e interpretação de períodos compostos por coordenação e subordinação, com vistas a aju- dar a desenvolver a capacidade de redação em língua portuguesa. Final- mente, o capítulo 6 apresenta a ecolingüística, procurando sensibilizar o professor para o fenômeno da transferência de padrões entre as lín- guas na mente dos bilíngües e para a questão das línguas em perigo de desaparecimento, fornecendo-lhe informações e sugerindo meios para o desenvolvimento de micro-políticas de preservação lingüística. * Agradeço aos alunos indígenas e aos docentes da área de Línguas, Artes e Literatura do Projeto do 3º Grau Indígena (UNEMAT), com- panheiros da primeira experiência de educação superior indígena dife- renciada e de qualidade no Brasil. Ao meu amigo, Ijeseberi Karaja, em memória. 24 1.2 Infinitude discreta Esse conhecimento tão complexo é parte da nossa biologia. Se já não nascêssemos com ele, não haveria meio de aprendê-lo só através da observação das coisas. Se a linguagem fosse aprendida como em um jogo de repetição, só seríamos capazes de falar o que ouvimos, mas – de fato – quando falamos uma língua demonstramos saber muito mais do que aquilo que ouvimos. Essa propriedade da nossa capacidade de linguagem é conhecida pelos lingüistas como infinitude discreta, ou seja, somos capazes de produzir um número infinito de expressões gramaticais a partir de um conjunto finito de elementos e princípios lingüísticos. Essa propriedade se manifesta também no nosso conhecimento de matemática: quantos números podemos for- mar? Qual é o fim dos números? Essas perguntas são até cômicas de tão óbvias, não é? Todos sabemos que podemos formar um sem fim de números, com apenas dez algarismos. É assim também com os sons das línguas: com vinte ou trinta sons podemos produzir quan- tas palavras? Não dá nem para contar porque não tem fim. Será que alguém nos ensinou essa capacidade? Nossos pais certamente nunca nos disseram algo como: “olha, meu filho, você pode formar tantas palavras quantas quiser, combinando esses sons, tá?” Fica realmente engraçado falar assim, porque esse conhecimento já veio com a gente, é uma das propriedades fundamentais do nosso órgão da linguagem. Na imagem abaixo, destacam-se duas áreas do cérebro relacionadas à linguagem: à esquerda, a chamada área de Broca, ligada à produ- ção da linguagem e, mais à direita, a área de Wernicke, associada à compreensão da linguagem. Áreas da linguagem no cérebro 25 1.3 Comportamentalismo e cognitivismo A criança quando chega na escola já sabe tudo isso. E muito mais. Mas já houve quem achasse que a cabecinha da criança é como uma caixa vazia, uma folha de papel em branco, no qual se escreve o saber, de fora para dentro. Essa teoria, conhecida como “comporta- mentalismo”, defendida por um psicólogo norte-americano de nome B.F. Skinner, foi contestada por um lingüista, também norte-ame- ricano, chamado Noam Chomsky, na metade do século XX, com argumentos como esses que estamos considerando aqui. Skinner achava que o fenômeno da linguagem humana podia ser explica- do “de fora para dentro”, isto é, a criança receberia os estímulos lingüísticos do ambiente e, então, produziria suas respostas verbais. Chomsky demonstrou que os estímulos ambientais são “pobres” quando comparados à complexidade do comportamento verbal exi- bido pelas crianças. Tome, por exemplo, uma frase com apenas dez palavras: “Tente recombinar qualquer período simples formado por umas dez palavras”. Você tem idéia de quantas combinações seriam matematicamente possíveis com essas dez palavras? Pois são exa- tamente 3.628.800 combinações possíveis, das quais apenas uma combinação é gramatical! Como se pode haver aprendido tamanha restrição combinatória? Certamente, não por meio de instruções ou correções de pais e professores. Possuímos estrutura inata poderosa que nos permite eliminar milhões de possibilidades combinatórias. Assim, sabemos que uma frase como (1) é bem formada, enquanto que (2) não é: (1) √ Tente recombinar qualquer período simples formado por umas dez palavras. (2) * Palavras dez umas por formado simples período qualquer recombinar tente. Mesmo alguém que nunca pisou em uma escola sabe muito bem que a frase (2) não é uma frase bem formada em português, sem que ninguém tenha ensinado isso a ele. E ele tem esse conhecimento 26 implícito em sua mente. Um analfabeto também não formaria uma frase composta apenas por substantivos lado a lado, como “lápis mesa sala professor escola”. Ele, certamente, usaria esses substan- tivos junto com palavras de outras classes gramaticais, como, arti- gos, preposições, verbos, etc.: “O lápis está sobre a mesa da sala do professor na escola”. Mas, como ele faz isso, se nem mesmo foi à escola para aprender o que é substantivo, artigo, preposição, verbo, etc.? Novamente, a resposta é que ele tem o conhecimento implícito dessas classes, não é a escola que vai lhe ensinar isso. A escola vai apenas explicitar esse conhecimento, ajudá-lo a se tornar consciente de quanta coisa ele já sabe, mas nem sabia que sabia! Ao chamar a atenção das pessoas para esses fatos, Chomsky pro- voca uma verdadeira revolução no pensamento científico dominante nas universidades na época. Skinner nem teve resposta a dar em de- fesa do comportamentalismo. Esse período, em meados da década de 1950, veio a ser conhecido como o início da revolução cognitivista nas ciências humanas. O cognitivismo propõe que a mente humana não seja vista como uma caixa vazia, como queriam os comporta- mentalistas, mas seja rica em estrutura, composta por diferentes ór- gãos, cada um com uma função. Um desses órgãos é exatamente a faculdade da linguagem que, se bem estudada, pode nos dar a chave para entender a gramática de todas as línguas faladas no mundo e pode ser um espelho para a própria mente humana. 1.4 O problema de Platão e o problema de Orwell Chomsky diz que as duas grandes questões filosóficas sobre a cog- nição humana são o Problema de Platão e o Problema de Orwell. O Proble- ma de Platão é exatamente o problema da pobreza de estímulos, que temos estado considerando. Este problema pode ser expresso pela pergunta: “Como podemos saber tanto, se temos tão poucas evidên- cias?”. Ou seja, se ninguém nos ensina sistematicamente noções im- portantíssimas e essenciais para o manejo da linguagem, como as 29 Embora se trate da reportagem do mesmo fato: um jogo no está- dio de Moça Bonita, no Rio de Janeiro, em que o Flamengo venceu o Vasco por 3 gols a 1, tendo havido problemas na arbitragem, cada jornal organiza o período de modo a minimizar ou dar destaque a al- gum desses aspectos. De tal forma que quem lê um dos jornais pode ter a sua atenção chamada principalmente para os erros do juiz , sen- do a vitória do Flamengo minimizada (A Folha). Já o leitor do outro jornal vê os fatos da perspectiva da vitória do Flamengo, sendo os erros do juiz colocados em segundo plano (O Jornal). Tomar consci- ência da manipulação da informação através da linguagem contribui para desenvolvermos a capacidade de pensar criticamente. No capí- tulo 5, retornaremos a essa questão de maneira mais sistemática. 30 1.5 Aquisição e aprendizagem da linguagem Como vimos acima, o inatismo fornece a resposta ao Problema de Platão: sabemos tanto, embora tenhamos tão poucas evidências por que já nascemos com princípios da linguagem universais que nos indicam as propriedades centrais que qualquer língua huma- na pode ter. Assim, embora os dados que recebemos do ambiente sejam pobres, isto é, assistemáticos e fragmentados, conseguimos adquirir uma língua porque nascemos com princípios gerais que nos ajudam a organizar os estímulos verbais deficientes em estrutu- ras complexas. Vimos também que esse processo se dá de maneira bastante homogênea para todas as crianças, independentemente do meio em que sejam criadas. Esse processo natural e espontâneo é que se chama de aquisição da linguagem, devendo ser diferenciado do termo “aprendizagem”. A aquisição é o que ocorre à criança exposta a estímulos lingüísticos: o órgão da linguagem ativamente opera sobre esses estímulos produzindo a aquisição de uma língua específica. Esses princípios universais, que os lingüistas propõem que constituam o órgão da linguagem, são também chamados de gramática universal (GU). Observe que a gramática universal só é aces- sada de maneira natural e espontânea até um certo período da vida, conhecido como período crítico da aquisição. Esse período, que se situa em torno da puberdade, atua como verdadeiro divisor de águas para a aquisição. Note que, após a puberdade, pode-se aprender, mas não adquirir uma língua. O processo de aprendizagem de uma língua, ao contrário da aquisição, depende de esforço, exer- cício, prática, e, geralmente, não se obtém resultados tão bons. É o que ocorre no aprendizado de uma língua estrangeira, após a ado- lescência: submetemo-nos a um processo qualitativamente diverso daquele levado a efeito na aquisição, um processo muito menos na- tural, que depende de nossas habilidades individuais e exige empe- nho sistemático durante longo período, ao fim do qual, o resultado jamais é equivalente ao do falante nativo que adquiriu a língua na infância. 31 Como vimos acima, outra evidência de que a aquisição da lin- guagem é, de fato, um processo universal é a sua homogeneidade na espécie humana. Isto é, independentemente da sociedade em que nasçam e sejam criadas, as crianças passam pelos mesmos estágios na aquisição da linguagem: há, inicialmente, o estágio dos balbucios, caracterizado por uma variedade de sons que, muitas vezes, são usa- dos em algumas das línguas do mundo, embora nem sempre ocorram na língua que a criança irá, posteriormente, falar. Em alguns meses, os bebês passam a fixar-se dominantemente nos sons falados nas línguas ao seu redor. Por volta de 8 a 10 meses de idade, geralmente, as crianças passam a pronunciar palavras isoladas de sua língua – é o período conhecido como holofrástico, em que uma palavra vale por uma frase inteira. Mais alguns meses e as crianças passam a formar frases de duas palavras – é o início da sintaxe, a capacidade de com- binar palavras para formar frases. Após o estágio de duas palavras, as crianças aumentam seu vo- cabulário e seu conhecimento das regras de construção presentes na língua, adquirindo seu sistema fonológico e morfológico, corrigindo sua pronúncia, e, geralmente, alcançando a gramática adulta de ma- neira bem rápida, mesmo que ainda não dominem inteiramente as estruturas mais complexas permitidas por sua língua. 1.6 Competência e desempenho Dois outros conceitos que convém distinguir para evitar, desde logo, ambigüidades na compreensão das questões lingüísticas são os conceitos de competência gramatical e desempenho lingüístico. A competência gramatical é o saber lingüístico abstrato que temos em nossa mente. Esse saber ou competência lingüística é acessado toda vez que precisamos produzir ou compreender frases. O uso desse saber em uma situação de fala específica é que constitui o desempenho lingüístico. Assim, pode-se dizer que, se a competência é um saber, o desempenho é um fazer. 34 1.7 Princípios da gramática universal e parâmetros das gramáticas particulares A linguagem é uma faculdade mental inata, um tipo específico de conhecimento com o qual nascemos. Assim, como todas as línguas são produtos da mesma capacidade mental, há profundas semelhan- ças entre elas. Por exemplo, vejamos um princípio da Gramática Universal, comum, portanto, a todas as línguas humanas, conhecido como Princípio do En- caixe ou da Recursividade. Tomemos uma oração como (1): (1) João escreveu um livro. (2) Pedro disse que João escreveu um livro. (3) Maria perguntou se Pedro disse que João escreveu um livro. (4) Luiz não sabe se Maria perguntou se Pedro disse que João escreveu um livro. Podemos ir encaixando esta oração em outra, sucessivamente, como exemplificado nos períodos compostos (2), (3) e (4). E poderíamos pros- seguir fazendo esses encaixes, construindo períodos cada vez maiores, ilimitadamente, formando sempre orações gramaticais. Temos compe- tência para tal. O limite será dado pela nossa memória: embora tenha- mos competência para formar um período com número ilimitado de orações, nosso desempenho tornará difícil ou mesmo impossível passar de pouco mais de uma meia dúzia de orações. Note que essa não é uma propriedade exclusiva do português. Se você conhece outras línguas, faça o teste agora e confirme! O princípio do encaixe ou da recursivi- dade é uma propriedade da Gramática Universal (GU) e está, portanto, presente em todas as línguas humanas. O princípio do encaixe é um princípio universal, parte da GU, que é o sistema de todos os princípios e regras que são comuns a todas as línguas humanas. Os seres humanos nascem equipados com tais prin- cípios, que lhes são disponíveis anteriormente a qualquer experiência. 35 Assim como nascemos com a capacidade de andar, mas não de voar, temos um órgão da linguagem. Se assumimos que há uma tal capa- citação genética, a tarefa de se atingir o conhecimento lingüístico é facilitada. A GU é, assim, a base para a aquisição da linguagem. Entretanto, cabe perguntar: se nascemos com um órgão da lingua- gem que nos confere uma competência gramatical inata, isto é, um conhecimento implícito que todos trazemos conosco ao nascer, por que há diferenças entre as línguas? A resposta: ao adquirirmos uma língua específica, os princípios da gramática universal inatos interagem com os dados da língua particular a que somos expostos e o resultado é um complexo de parâmetros, isto é, especificações particulares dos princípios gerais. Em todas as línguas há verbos. Em todas as línguas, há também verbos que precisam de complementos, tal como o verbo pegar. Quem pega, sempre pega alguma coisa. Por isso, uma frase como o homem pegou, assim fora de contexto, seria agramatical, isto é, não poderia ser ge- rada. Já, o homem pegou tucunaré é uma frase bem formada pois o núcleo verbal pegou é complementado pelo nome tucunaré. Entretanto, em algumas línguas, o verbo ocorre geralmente antes do complemento, enquanto em outras, o verbo ocorre depois do complemento. Compare, por exemplo, a frase equivalente na língua indígena brasileira Karajá: (1) habu benora rimyra homem tucunaré pegou “o homem pegou o tucunaré” Note que o verbo karajá rimyra “pegou” ocorre após o complemento benora “tucunaré”, diferentemente do português em que, como vimos, a ordem básica do verbo é antes do complemento. Isto ocorre porque o Karajá segue o parâmetro do núcleo final, enquanto que o português segue o parâmetro do núcleo inicial. No capítulo IV, nos deteremos com maior detalhe nessas diferenças de ordem vocabular entre as línguas. 36 1.8 descritivismo e prescritivismo Observe que a noção de gramaticalidade sobre a qual estamos falan- do é muito diferente da noção de norma gramatical que, geralmente, a maior parte das pessoas tem em mente quando ouve falar em gramá- tica. Infelizmente, existe uma noção de gramática muito difundida, que precisa ser adequadamente caracterizada, se queremos organizar as nossas reflexões sobre a linguagem de modo mais científico, isto é, evitando confusões e preconceitos. Até aqui estamos usando o termo gramática para significar um tipo específico de conhecimento, distinguindo os seus princípios uni- versais e os seus parâmetros particulares. Provavelmente, no entanto, este uso difere daquele que você aprendeu na escola, que apresenta a gramática como o conjunto de regras lingüísticas que devem ser observadas por todos aqueles que queiram falar ou escrever “certo”. Note que este uso do termo subentende que uma língua seja constru- ída de fora para dentro, ou seja, a partir da opinião de gramáticos, professores, academias ou outras autoridades que propõem ou im- põem regras a serem seguidas pelos falantes. Do ponto de vista científico, o adequado é que os gramáticos apenas registrem as formas lingüísticas que observam em uma co- munidade, sem ditar regras e sem escolher as formas que acham mais “certas” ou mais “bonitas”. Na verdade, essa perspectiva va- lorativa, conhecida como normativismo ou prescritivismo, não deixa de ser mais uma faceta do problema de Orwell, que discutimos acima. Impõem-se regras com a finalidade de controle social. De fato, muitas vezes, também os professores de língua perdem-se nes- ta confusão: priorizam o ensino de regras, ao invés de buscar de- senvolver mais plenamente o saber lingüístico, a criatividade verbal dos falantes. A gramática normativa afasta-se, portanto, do saber interior intuitivo do falante que, adestrado em regras que não reco- nhece como parte de sua competência natural, afasta-se do estudo das línguas, deixando de ampliar a sua capacidade de compreender e expressar a sua experiência do mundo, nos múltiplos aspectos 39 Típico do ensino prescritivo são as atividades de memorização, repetição e cópia. O professor Eurico Back conta a seguinte estória real: “Uma professora tentava ensinar aos seus alunos o passado (pretérito perfeito) dos verbos de segunda conjugação: Professora: – Vender? Ele... Alunos: – Vendeu. Professora: – Viver? Ele... Alunos: – Viveu. Professora: – Caber. Alunos: – Cabeu. Professora: – Errado! O certo é “coube”. Alunos: – !!?? Um menino, no entanto, insistia em usar a forma “cabeu”, ao invés de “coube”. A professora, então, mandou que ele copiasse 100 vezes: “Não é cabeu, e sim coube”. O menino trabalhou durante quase uma hora no exercício. Enfim, entregou a folha à professora: – Terminei, mas só copiei a frase 99 vezes, porque a última não cabeu...” Como podemos interpretar essa história? Será que não seria mais útil que a professora explicasse que, embora o aluno tenha demonstrado o conhecimento da regra, há nesse caso, uma exceção? eNsINO desCrItIvO “Existe isso e existe aquilo” É o lema do ensino descritivo, que mostra diferentes aspectos (variantes) do uso lingüístico, sem procurar impor um desses aspectos como o único válido, ou como o melhor, mas buscando relacionar cada variante a uma situação específica. O Professor Gama Kury compara este tipo de ensino de língua à aprendizagem do uso do vestuário. “Ninguém vai de terno e gravata 40 à praia, tomar banho de mar, assim como não é adequado vestir ape- nas um calção de banho em um dia muito frio. Não há uma única roupa “certa” para se usar, da mesma forma que não há apenas uma forma certa de falar e de escrever”. O ideal seria, então, que as pessoas conhecessem muitas possibi- lidades de expressão e que desenvolvessem a sua sensibilidade para avaliar qual delas seria a mais adequada em cada situação da vida. O ensino descritivo tem natureza científica, isto é, procura despertar nos alunos a capacidade de fazer observações, generalizações, sobre os fatos lingüísticos, sem aceitar passivamente regras que não entende. Esta perspectiva parece óbvia, mas infelizmente a atitude prescri- tivista ainda é muito freqüente e precisa ser superada. De fato, ha- vendo refletido sobre esse problema, é importante que todos nós nos empenhemos para questioná-lo, contribuindo para o esclarecimento e a correção de atitudes preconceituosas em relação às línguas. 1.9 O preconceito lingüístico A percepção de que há uma variante lingüística “certa” é tão equi- vocada em termos estritamente lingüísticos como a idéia muito di- fundida de que há línguas superiores e línguas primitivas. Embora, obviamente, haja diferenças estruturais entre as línguas, não exis- te base científica para se afirmar que uma língua é intrinsecamente mais desenvolvida ou mais completa do que qualquer outra. Todas as línguas têm uma gramática complexa que permite que seus falantes as utilizem com diferentes finalidades, satisfazendo suas necessidades psicológicas e sociais eficientemente. Se uma língua ou uma variante de uma mesma língua se torna mais “prestigiada” por uma comuni- dade do que outra, isso não decorre de diferenças entre suas proprie- dades gramaticais, mas de fatores políticos, econômicos ou sociais. Assim, a afirmação de que uma língua é uma “gíria”, ou um “dialeto primitivo” menos desenvolvido do que outra, é equivocada e revela, apenas, a ignorância e o preconceito de quem a faz. 41 1.10 Língua oral e língua escrita A escola pode ter um papel importante na correção do preconceito lingüístico. O ensino de língua na escola deve, para tanto, contribuir para superar dois equívocos muito generalizados: (1) Existe uma única forma de falar (2) Escreve-se como se fala Como já dissemos acima e veremos ainda de forma mais detalhada nos capítulos III e IV, há no mundo uma grande diversidade lingüísti- ca e, para cada língua, há também muitas variantes, isto é, diferentes usos a serem adequados a diferentes situações. Portanto, acreditar que uma dessas variantes é a única “certa”, sendo as demais “erra- das” é que é, em si, um equívoco. Outro equívoco comum é o que apontamos em (2), ou seja, o de que a escrita é apenas a transcrição gráfica da fala. Vamos, então, pensar sobre a relação entre o oral e o escrito para tentar compreender melhor essa importante diferença. Uma primeira consideração diz respeito a saber o que apareceu primeiro, a fala ou a escrita. Embora haja controvérsias sobre como se deu o surgimento da linguagem na espécie humana, se foi resulta- do de um desenvolvimento adaptativo gradual ou de uma mega-mu- tação repentina, há um consenso entre os lingüistas de que a língua oral precedeu em muito a língua escrita. Tem-se dito que a fala é um fato biológico, enquanto que a escrita é um fato cultural. Como vi- mos, como parte da nossa dotação genética, somos pré-programados para falar, assim como o somos para andar, por exemplo. Entretan- to, não temos uma pré-disposição biológica para a escrita. Tanto é assim que, em grande parte das sociedades humanas, tal como as sociedades indígenas brasileiras, não apareceram sistemas de escrita, mas não se conhecem sociedades humanas em que não se tenham desenvolvido sistemas lingüísticos orais. Obviamente, não se conse- gue estabelecer com precisão quando os sistemas orais teriam surgi- do. Muitos estudiosos afirmam que o aparecimento da sintaxe, ou seja, da importante capacidade de combinar itens lingüísticos, teria 44 1.11 A forma da gramática Como já deve estar claro, a perspectiva de ensino de língua em que se situa este livro é de natureza descritiva e produtiva. De um lado, preocupamo-nos em estudar e descrever os fenômenos lin- güísticos sem estabelecer julgamentos de valor, prescrevendo nor- mas. Neste sentido, exercitamos uma reflexão analítica que procu- ra compreender os fenômenos de modo objetivo, buscando encon- trar os componentes universais e particulares das línguas, que são produtos da mesma capacidade universal da linguagem. Por outro lado, interessamo-nos pelo processo de produção lingüística, a ca- pacidade que nos permite gerar um número infinito de frases que nunca ouvimos antes. Como visto acima, a linguagem é uma faculdade mental, um co- nhecimento que nos permite produzir e compreender frases gramati- cais. Nosso conhecimento da gramática, no entanto, envolve diferen- tes conhecimentos. Por exemplo, um falante de português sabe que seqüências de sons como mave ou sale são possíveis nesta língua, embora não sejam usadas como palavras. Por outro lado, o falan- te avaliaria seqüências como mbae ou at como sendo ilegítimas em português. Da mesma forma, um falante de Karajá saberia dizer que palavras como rori ou lie poderiam existir em sua língua, enquanto que formas como bnik ou nga não poderiam ser Karajá. Ao adqui- rirmos ou aprendermos uma língua, portanto, desenvolvemos o co- nhecimento de seus sons específicos, podendo reconhecer e produzir seqüências de sons próprias daquela língua. Esse conhecimento dos sons lingüísticos, por si só, não é, no en- tanto, suficiente para explicar o conhecimento da língua, como um todo. É preciso associar o conhecimento dos sons com os conceitos e idéias que serão expressos pelos sons. A gramática de uma língua é, portanto, um mecanismo mental que permite juntar o conhecimento dos sons com os conceitos e idéias, construindo palavras e frases. O conhecimento lingüístico é constituído, assim, por diferentes conhe- cimentos: o conhecimento dos sons (fonética) e fonemas (fonologia), 45 o conhecimento dos significados (semântica), o conhecimento dos princípios que permitem combinar sons e significados (sintaxe), for- mando as palavras e frases que usamos nas diversas situações da vida social (pragmática). De maneira mais ampla, podemos pensar esses componentes do conhecimento lingüístico com base no esque- ma abaixo: LÍNGUA SENTIDO ( SEMÂNTICA) FONÉtICA FONOLOGIA MOrFOLOGIA sINtAXe LÉXICO dIsCUrsO ESTRUTURA PRAGMÁTICA USO MEIO DE TRANSMISSÃO GRAMÁTICA 46 No capítulo 2, estudaremos mais detalhadamente a natureza de cada um desses componentes do conhecimento da linguagem. Por ora, podemos ensaiar uma definição preliminar de cada subárea dos estudos lingüísticos: Fonética – é o estudo dos sons da linguagem, do ponto de vista de sua pronúncia pelo aparelho fonador (Fonética Articulatória), de suas pro- priedades físicas (Fonética Acústica) e de suas propriedades perceptuais (Fonética Auditiva). Fonologia – é o estudo dos sistemas de fonemas das línguas, isto é, dos elementos fônicos capazes de distinguir formas em uma língua. Morfologia – é o estudo dos morfemas, isto é, as menores unidades fun- cionais na estrutura das palavras. sintaxe – é o estudo de como as palavras se combinam para formar sin- tagmas e orações. semântica – é o estudo da significação lingüística. Análise do discurso – é o estudo dos discursos, isto é, das condições de produção dos enunciados lingüísticos constitutivos dos eventos de fala. Pragmática – é o estudo dos atos de fala, ou seja, dos enunciados lingüísti- cos em sua relação com os usuários e com o contexto extra-lingüístico. 1.12 As funções da linguagem O lingüista Roman Jakobson propôs o esquema a seguir, que sis- tematiza os elementos constitutivos de todo ato de comunicação ver- bal, argumentando que a ênfase em cada um desses elementos carac- teriza uma função lingüística específica. Um destinador, remetente ou emissor envia uma mensagem a um destinatário. A mensagem deve referir-se a um contexto ou referente para ser recebida pelo des- tinatário ou receptor. Estes devem, também, conhecer, ao menos par- cialmente, o código usado para cifrar a mensagem, que precisa ainda trafegar por um canal físico, estabelecendo uma conexão psicológica entre o remetente e o destinatário, facultando a ambos entrar e per- manecer em comunicação. 49 1 Vá à biblioteca, escolha um livro, abra-o em uma página qual- quer, escolha uma frase simples. Agora, procure uma repetição exata desta frase. Talvez você não consiga encontrar, embora procure em todos os demais livros da biblioteca. Que conclu- sões você pode tirar desse fato? 2 Em inglês, reporta-se, por exemplo, que alguém que queria fa- lar take the bike “leva a bicicleta”, disse bake the bike “assa a bicicleta”. Você conhece exemplos de “deslizes da língua” como esses em outras línguas, além do Português e do Inglês? Sua ocorrência indica falha de competência ou de desempenho lin- güístico? Por quê? 3 Reveja os conceitos de gramaticalidade e aceitabilidade estu- dados na seção 1.6 e, em seguida, avalie cada uma das frases abaixo, procurando decidir quais são agramaticais e quais são gramaticais, mas inaceitáveis. ( ) Quem um livro sobre te impressionou? ( ) O cachorro que o gato que o rato assustou arranhou latiu. ( ) Esta frase não verbo. ( ) Esta frase tem contém dois verbos principais. 4 Um exame dos períodos a seguir revela a dificuldade de organi- zar os enunciados em um conjunto minimamente coeso e coe- rente. Em (a), há uma enumeração de fatos, justapostos sem pa- ralelismo ou nexo lógico entre eles, caracterizando uma estrutu- ra de “arrastão”, onde orações independentes e dependentes são atadas entre si por conectivos inadequados. Em (b), o primeiro sintagma (a metodologia didática) parece ser um tópico, com o qual o comentário seguinte (eu acho muito bom) não concorda, resultando em um anacoluto. A terceira oração (que o professor usou para nós) é ambígua entre uma leitura como subordinada substantiva (eu acho muito bom que o professor usou para nós) e uma leitura como adjetiva extraposta (a metodologia didática que o professor usou para nós). Em (c), não se consegue esta- belecer a oração principal, a menos que se interprete a oração Atividades sugeridas 50 * * * iniciada por “que alegria” como exclamativa e, caso decidamos assim, não temos como integrar o material subseqüente no mes- mo período. Pode-se concluir que estamos diante de tentativas de transposição de discursos orais para a escrita. Na situação dialógica oral, a enumeração enfadonha de (a) talvez possa fun- cionar em virtude de recursos gestuais, do jogo de inflexões da voz. Em (b), a pronúncia provavelmente também contribuiria para esclarecer se o locutor acha muito bom que o professor tenha usado certa metodologia (valor substantivo) ou se a me- todologia é que é boa (valor adjetivo). Mesmo em (c), a situação face a face poderia permitir que se identificasse com facilidade o tipo da segunda oração. Na escrita, entretanto, sem os recursos do som, do gesto e da situação, esses períodos resultam caóticos e mesmo impossíveis de ser interpretados. Com base na análise acima, reescreva cada período, adequan- do-o às características do discurso escrito: (a) “Durante da semana os trabalhos foram mais clara os sons das palavras que se usa de maneira falar e de interessar os conhecimentos do professor dar o exemplo e os estudos lin- guísticos como surgiu as idéias com sugestões de expressar e utilização do uso os sons que se diz, através do conheci- mento.” (b) “A metodologia didática, eu acho muito bom, que o profes- sor usou para nós, além disso, nos vão levar o nosso conhe- cimento.” (c) “Quando eu o vi que alegria que senti foi muito grande porque como um amigo igual a este que nunca mais vou encontrar.” 5 Comente a figura na página 29. 51 Back, Eurico. “Ensino de Língua e Integração Social”. In: LoBato, Lúcia (org.). Lingüística e Ensino do Vernáculo. Revista Tempo Brasileiro, 53/54, p.112-144, 1978. chomsky, Noam. “Chomsky no Brasil”. Revista Delta, v.13, 1997. cury, Adriano da Gama. Novas Lições de Análise Sintática. 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Leituras Adicionais 54 léxico sintaxe semântica pragmática morfologia fonologia fonética Na próxima seção, introduziremos a noção de signo lingüístico, mostrando como ela integra em si os diferentes conhecimentos que constituem a linguagem. Vamos apresentar, em seguida, cada uma das disciplinas que têm por objeto o estudo desses conhecimentos específicos, iniciando pela Fonética, que estuda os sons, a manifesta- ção mais concreta do conhecimento lingüístico. Em seguida, explo- raremos a Fonologia, a Morfologia, a Sintaxe, a Semântica, o Léxico e a Pragmática. 2.1.1 O signo lingüístico Quando uma pessoa tem uma idéia que deseja transmitir para outra, não pode fazê-lo diretamente, pois seu receptor não conse- guirá observar o conteúdo da idéia, a menos que esta encontre uma expressão material. Essa expressão material pode ser, por exemplo, um texto escrito, em que as palavras estão grafadas em um papel, re- presentando os sons. Pode também ser constituída por gestos, como no caso das línguas de sinais usadas pelos deficientes auditivos. Mais freqüentemente, a pessoa executa certas atividades físicas com os chamados órgãos articulatórios (por exemplo, lábios, língua, e cor- das vocais). Estes movimentos criam ondas sonoras que são trans- mitidas pelo ar. O destinatário ouve os sons e, correndo tudo bem, decodifica e recebe a mensagem. Nos três exemplos acima, uma lín- 55 gua foi usada para a comunicação, mas observe que a língua não é, propriamente, nem os diferentes tipos de expressão material (as letras no papel, os sinais gestuais, os sons transmitidos pelo ar) e nem os pensamentos por eles representados. A língua é o mecanismo que permite ao emissor da mensagem a associação de um conteúdo mental (a idéia) a uma expressão material (letras, sinais, sons). O des- tinatário da mensagem, falante da mesma língua, recebe a expressão material e reconstrói a idéia do emissor a partir desses sinais físicos. Uma língua é, portanto, uma forma de estabelecer correlações entre um plano de expressão e um plano de conteúdo, associando sinais materiais a significados mentais. Ela contribui para a organização do pensamento, fornece a ele uma direção, dá-lhe uma forma. Além dis- so, ela possibilita a sua transmissão concreta através da substância física dos gestos, letras ou sons. Podemos, então, conceber as unidades lingüísticas como entida- des de dupla face ou signos, que têm como propriedade fundamental o estabelecimento de uma relação entre um plano de expressão e um plano de conteúdo. O plano de expressão do signo lingüístico costuma também ser denominado, segundo a tradição da lingüística estruturalista de Ferdinand de Saussure, de significante. O plano de conteúdo do signo, segundo esta mesma tradição, é também denomi- nado de significado. / gato / conteúdo expressão 56 Há três observações importantes a serem feitas aqui. Primeiro, deve ficar claro que o signo lingüístico é arbitrário ou convencional. Isto é, não há nada, por exemplo, no significante /gato/ que esteja intrinsecamente relacionado ao conceito de gato. Tanto é assim, que as línguas variam essa codificação. haloeni gato chat cat mao (karajá) (português) (francês) (inglês) (chinês) referente significante significado Como ilustrado na figura acima, o conceito de gato pode ser ex- presso por diferentes conjuntos de sons, dependendo da língua. As- sim, em Karajá, chama-se ao felino haloeni; em francês, diz-se chat; em inglês cat; em chinês mao. Além disso, a figura também ilustra o fato de que o significado é uma imagem mental do referente, isto é, do objeto ou ser representado e não o referente em si mesmo. Natu- ralmente, pois o signo lingüístico é um objeto mental e o referente do signo é um objeto do mundo material. O animal gato não está, obviamente, dentro de nossa cabeça. O que está em nossa mente é a imagem mental do animal. Finalmente, é preciso ficar claro que o signo lingüístico é uma entidade da língua, esse produto social da faculdade da linguagem, que se encontra na mente de todos os seus falantes. É por isso que os falantes de uma dada língua podem se entender entre si. Entretanto, 59 2.2 A fonética Há, portanto, no plano de expressão da língua, dois subníveis: o nível das formas de expressão e o nível das substâncias de expres- são. Por isso, há duas disciplinas estudando o plano de expressão: a Fonética, que é o estudo da expressão lingüística, quanto à sua substância e a Fonologia ou Fonêmica, que é o estudo da expressão lingüística do ponto de vista de sua forma. Podemos, agora, delimitar as áreas de interesse da Fonética: 1 Fonética Articulatória ou Fisiológica – Estuda como o chamado aparelho fonador coloca o ar em movimento e como os movimentos articula- tórios se coordenam para produzir os sons e cadeias de sons. 2 Fonética Acústica – Estuda como o ar vibra entre a boca do falante e o ouvido do receptor, buscando analisar os movimentos do ar em termos físicos. O movimento vibratório do ar é convertido em ativi- dade elétrica, analisando-se o resultado em termos de freqüência, de amplitude de vibrações e de timbre. 3 Fonética Auditiva, Psicológica ou Perceptual – Estuda como o ouvido re- gistra os sons, analisando como o ouvinte reage aos estímulos físicos que o atingem. Nesta seção, vamos nos restringir a apresentar algumas noções fundamentais de Fonética Articulatória, para que possamos classi- ficar e transcrever os sons produzidos na fala. É importante que o professor de língua, principalmente o professor indígena que, geral- mente, lida em sala de aula com uma ou mais línguas, além do por- tuguês, seja capaz de reconhecer e executar os sons, sabendo identi- ficar como e onde eles são produzidos. É importante também saber registrar graficamente os sons usando o alfabeto fonético internacio- nal criado pela Associação Internacional de Fonética (International Phonetic Association – IPA), que permite grafar cada som com um símbolo inequívoco. Enquanto as ortografias, de modo geral, apre- sentam correspondências ambíguas entre as letras e os sons que es- 60 tas representam, os símbolos fonéticos permitem registrar os sons de forma precisa. Por exemplo, na ortografia do português, há letras que podem expressar sons diversos, tais como a letra x, que pode representar o som [], como em xícara, o som [z], como em exame, o som [s], como em sintaxe, e mesmo os sons [ks], como em maxilar. Por outro lado, há sons que podem ser grafados por mais de uma letra, tal como o som [s], que pode ser grafado com a letra s, como em sala; com a letra c, como em cera; com a letra ç, como em moço; com o dígrafo ss, como em massa. Como é padrão em fonética, os vocábulos transcritos usando os símbolos fonéticos serão apresenta- dos entre colchetes. Cabe lembrar ainda que o estudo da Fonética e da Fonologia é fundamental para subsidiar o importante debate sobre as ortografias das línguas. 2.2.1 Fisiologia da fala 61 O aparelho fonador humano é constituído por diferentes partes, algumas das quais pertencem ao aparelho digestivo, outras ao apa- relho respiratório. A boca e a faringe, órgãos do aparelho digestivo, desempenham papel essencial na formação das vogais e consoantes. As dimensões dessas cavidades podem ser modificadas pela ação dos músculos da língua, do palato mole e da faringe. O aparelho respiratório participa integralmente da produção do som da fala. Os pulmões produzem a corrente de ar comprimido utilizada para a geração do som. A laringe, que destina-se originaria- mente à passagem de ar, e a glote, cuja função original é, de fato, a prevenção da queda de corpos estranhos no interior do aparelho res- piratório, também participam ativamente da produção da fala. Não há, pois, uma predisposição fisiológica para a fala que, como afirma o lingüista brasileiro Mattoso Câmara Jr., parece ter resultado de um esforço criador do homem. O aparelho fonador compreende três partes: 1 Aparelho respiratório 2 Laringe 3 Cavidades supra-glotais (caixas de ressonância) 1 O aparelho respiratório ’ Os pulmões A respiração compreende duas fases: a inspiração e a expiração. Na inspiração, as cavidades pulmonares vão aumentando à medida que a caixa toráxica se desdobra, em virtude do abaixamento do diafragma e elevação das costelas. Esse aumento de volume dos pulmões produz uma chamada de ar externo, o qual entra pelas fossas nasais ou pela boca, passando pela faringe e pela traquéia. A expiração resulta da ele- vação do diafragma e concomitante abaixamento das costelas, o que ocasiona a expulsão de grande parte do ar contido nos pulmões. É este ar, expulso na expiração, o utilizado para a fonação. É também pos- sível, em principio, produzir sons durante a inspiração, mas trata-se 64 mento das aritenóides, que são movidas pela ação muscular, as cordas vocais juntam-se ou abrem-se. Uma série de tossidos muito breves pode nos dar a sensação das cordas vocais. As cordas vocais podem desem- penhar aberturas e fechamentos muito mais rápidos do que os lábios. Os lábios podem abrir e fechar cerca de 10 vezes por segundo, mas as cordas vocais podem chegar a vibrar até 1000 vezes por segundo. Podemos sentir a vibração das cordas vocais pronunciando “ssss”, “zzzz”, “ssss” e “zzzz”, alternadamente, com as mãos na garganta. As cordas vocais são mais espessas e longas no homem do que na mulher, por isso o homem tem voz mais grave, já que as cordas vocais não vibram tantas vezes como nas mulheres. A musculatura das cordas vocais permite que elas sejam alongadas e encurtadas tornando-as mais ou menos espessas. Se dermos uma série de tossidos curtos, podemos também sentir as cordas vocais fechando e abrindo sucessivamente, produzindo o som conhecido como oclusivo glotal, utilizado em diversas línguas, como por exemplo na língua indígena brasileira Xavante (exemplo: a’wẽ [awẽ] “Xavante”). Outra função das cordas vocais diz respeito ao tom. Se dizemos “Não!”, o número de vibrações é menor do que em “Não?”, provocando diferenças de entonação, capazes de distinguir tipos de frases (declarativa, exclamativa, interrogativa). Em algumas línguas tonais, como o chinês, ou algumas línguas indígenas brasileiras como, por exemplo, a língua Nambikwara ou a língua Tikuna, esta diferença de tom pode diferenciar não só tipos de frases, mas também itens vocabulares. 3 As cavidades supra-glotais ’ A faringe Logo acima da laringe encontra-se a faringe, que é uma cavidade tubu- lar que se ramifica nas cavidades oral e nasal. A faringe se estende desde a parte superior da laringe até a parte posterior da cavidade nasal. Fun- ciona como a primeira caixa de ressonância. A voz produzida na laringe teria uma ressonância muito pequena se não ressoasse nestas caixas. Assim como as cordas de um violão produziriam sons com menor res- sonância se não houvesse a caixa do instrumento. Esta caixa funciona, então, como o primeiro amplificador da voz. 65 ’ A cavidade oral A cavidade oral forma, junto com a cavidade nasal, a saída do aparelho fonador. A cavidade oral ou bucal pode mudar de forma e de volume quase infinitamente não só pelos diferentes graus de abertura que pode assumir, mas também devido aos movimentos da língua que a ocupa em grande parte e assenta em sua parte inferior. A língua é o órgão da fala por excelência. Em português e também em muitos outros idiomas, o vocábulo língua indica tanto o órgão da boca quanto o sistema lingüís- tico-órgão em si. Apresenta grande flexibilidade e precisão de movimen- tos. A cavidade oral é limitada superiormente pelo palato duro, na parte anterior, e pelo palato mole, na parte posterior. O palato duro é fixo, enquanto que o palato mole é móvel. Acima das gengivas, encontram-se os alvéolos. No fundo da boca, a úvula, que é uma pequena porção de tecido na ponta do palato mole ou véu palatino, pode ser facilmente visualizada ao espelho. O véu pala- tino determina se o som é oral ou nasal. Abaixado, fecha o canal oral. Levantado, fecha o canal nasal. Pode-se visualizar o véu palatino, pronunciando-se frente ao espelho, alternadamente, [a] e [ã], enquanto se mantém a boca bem aberta. O véu palatino é o tecido adiposo, no fundo da boca, que se eleva ao pronunciarmos a vogal oral [a], forçando que o ar escape inteiramente pela boca. Ao pronunciarmos a vogal nasal [ã], o véu se abaixa, permitindo que a corrente de ar pulmonar prossiga para a caixa de ressonância nasal. Na boca, encontram-se também os dentes e os alvéolos. Acima dos al- véolos, está a região pré-palatal. Há ainda os lábios, cuja grande mobi- lidade permite que se fale de uma quarta caixa de ressonância, modifi- cando, assim, o efeito da cavidade bucal (labialização). ’ A cavidade nasal Tem dimensões fixas. Distinguem-se aí sons: Nasais – Como [m] e [n] em que a maior parte do ar escapa pelo nariz. Teste a diferença entre [m] e [b], por exemplo, pondo a mão em frente à boca. Em [b], pode-se sentir maior pressão de ar na palma da mão do que em [m], que permite que parte do ar escape pelo nariz. 66 Nasalizados – O ar escapa igualmente pela boca e nariz, como em [ã]. Note-se que o abaixamento do véu palatino abre caminho para que o som escape pelo nariz, mas não evita totalmente que o som chegue à boca. O ar só sai totalmente nasalizado se a boca estiver fechada como em [hummmm]. Não é importante que o ar saia pelo nariz, o que realmente importa é que o véu palatino esteja abaixado, permitindo que o ar vibre na caixa de ressonância nasal. Ao se fazer um som como [ã], pode-se verificar que, mesmo ao se fechar a saída de ar pelo nariz com os dedos, o som continua o mesmo. Ao se falar um som como [hummmm], o ar escapa totalmente pelo nariz, pois a boca está fechada. Se fecharmos o nariz com os dedos, o som parará, pois a corrente expiratória é interrompida. ’ A cavidade labial Os lábios também podem funcionar como outra cavidade de ressonân- cia. São altamente flexíveis. Esta flexibilidade tem grande influência na qualidade do som. Por exemplo, diga continuamente iiiiiiiiii [i:] e, sem mover a língua, arredonde gradualmente os lábios e verá que o som muda de [i:] para [ü], produzindo uma vogal arredondada, comum em francês e alemão e também presente em algumas línguas indígenas brasileiras. 2.2.2 tipos articulatórios Conforme proposto pelo foneticista norte-americano J. Catford, a partir da divisão do aparelho fonador estabelecida acima, pode-se classificar as diversas possibilidades articulatórias postas à nossa dis- posição por este aparelho. O aparelho vocal humano, como vimos, é um aparelho que con- verte energia muscular em energia acústica. Este processo é realizado através de dois tipos básicos de atividades produtoras de som: 1 Movimento do ar (iniciação) 2 Modulação do ar (regulação) 69 2 Comprimida / detida – A passagem de ar pode ser impedida por uma oclusão ou por uma constrição. A corrente de ar pode ser momen- taneamente parada, forçada por um estreitamento entre dois articu- ladores, canalizada pelo centro da língua, ou dividida pelos lados da língua. Os sons produzidos com a passagem impedida são sons consonânticos, chamados contóides. Os termos vocóide e contóide estão sendo usados em lugar dos termos mais conhecidos de vogal e consoante para distinguir entre sons fonéti- cos e sons fonêmicos. Isto é, um vocóide fonético pode funcionar numa determinada língua como uma vogal, e um contóide como uma conso- ante, mas acontece, às vezes, que um vocóide fonético funcione numa determinada língua como uma consoante e vice-versa. 2.2.3 A Classificação dos contóides Os contóides classificam-se pelo modo de articulação, pelo ponto de articulação, pela sonoridade, pelas articulações secundárias. ’ Modo de articulação 1 Oclusivas – São as que resultam de uma oclusão momentânea da pas- sagem de ar, seguida de uma abertura brusca (explosão). Esta oclusão é realizada em português, nos seguintes pontos: Oclusão Bilabial – Um lábio contra o outro - [p] e [b] (pá e boi) Oclusão Ápico-dental – A ponta da língua contra os dentes ou gengivas – [t] e [d] (teu e deu) Oclusão dorso – palatal – O dorso da língua contra o palato duro [k] e [g] (quilo e guia diante de vogal anterior) Oclusão dorso – velar – O dorso da língua contra o palato mole (culpa e gula diante de vogal posterior) Finalmente pode-se também realizar uma oclusiva na glote, onde é possível fechar momentaneamente a passagem do ar, encostando as cordas vocais uma contra a outra. É o que se chama de oclusiva glotal []. 70 2 Fricativas – São as caracterizadas por um estreitamento da passagem do ar, que produz um ruído de fricção ao passar entre dois articula- dores. Em principio a produção de fricativas é possível em qualquer lugar da boca, incluindo ainda a glote (fricativa glotal) [h], como em have do inglês ou habu “homem”, em Karajá. Muitas vezes o [ s ] e o [ z ] recebem o nome de sibilantes e o [  ] e o [  ] de chiantes. As fricativas portuguesas são as seguintes: Fricativas labiodentais [f] e [v] (faca e vaca) Fricativas alveolares [s] e [z] (sela e zela) Fricativas álveo-palatais [  ] e [  ] (chato e jato) Fricativa velar [x] (carro) 3 Nasais – É um tipo de oclusiva pronunciada com o palato mole em posição baixada, permitindo o escape do ar pelo nariz. Embora haja uma oclusão na boca, o ar não sai como uma explosão, como no caso das oclusivas, porque a passagem nasal fica aberta. Uma nasal, por conseguinte, é uma oclusão no que diz respeito à articulação bucal, mas um fonema livre, se considerarmos a cavidade nasal. Se, ao pronunciarmos um [ b ], abrimos a entrada das fossas nasais, obteremos a nasal [ m ]. Em português, temos a possibilidade de produzir nasais: Bilabial [ m ] (mala) Ápico-dental [ n ] (nada) Palatal [  ] (manha) velar [  ] (manga) As nasais são normalmente sonoras, mas podem ser surdas em algumas línguas. 4 Laterais – As consoantes laterais são produzidas por um contato da língua com o centro do canal bucal, deixando sair o ar pelos lados. Em português pode-se produzir laterais: Ápico-dental [ l ] (leite) 71 Palatal [  ] (palha) Em português de Portugal existe o [  ] retroflexo como o do inglês (sail e mal, caldo). 5 vibrantes – As consoantes vibrantes são articuladas de modo que o órgão ativo da articulação (a ponta da língua ou a úvula) forma uma ou mais oclusões rápidas. Em português, existem as vibrantes: Anterior ou Apical [ r ] (caro) pronunciado de maneira que a ponta da língua ao tocar os alvéolos empurra para fora a corrente de ar. Pode haver uma batida única (flap – vibrante simples) ou uma multiplici- dade de batidas (trill - vibrante múltipla) rolado ou Múltiplo [ r ] carro [karo] (Rio Grande do Sul) simples ou Flap [  ] caro [kao] Uvular [ R ] carro [kaRo] onde não é mais a ponta da língua e sim a úvula que vibra. 6 Africadas – Combinação entre oclusivo e fricativo. Por exemplo, [ t ] como em tia e [ d ] como em dia, na pronúncia do Rio de Janeiro. 7 Aproximantes – Não há um impedimento da corrente de ar tão gran- de quanto as fricativas. Posição intermediária entre fricativa e vogal [ w, y ]. Exemplos: pau [paw], pai [pay] ’ Ponto de Articulação A pronúncia de um contóide precisa de dois articuladores, na maioria dos casos um inferior e outro superior. Os superiores dão nome aos pontos de articulação: 1 Bilabial – O lábio inferior articula com o lábio superior 2 Lábio-dental – O lábio inferior articula com os dentes superiores. 3 dental – A ponta da língua articula com os dentes 4 Alveolar – A ponta da língua articula com a arcada alveolar 5 Palatal – A lâmina da língua articula com o palato duro. 6 velar – O dorso da língua articula com o palato mole 74 e outro vertical, correspondente à posição da língua, que se move da parte mais frontal (anterior) para o fundo da boca (posterior), com posições intermediarias entre os extremos. Estas posições não são fixas, mas como graus numa escala. O eixo vertical refere-se à abertura da boca e o eixo horizontal, à parte da língua que é mais elevada. Para observar os movimentos dos eixos: eixo horizontal ’ o movimento da língua pode ser observado, reprodu- zindo-se os sons [i] [u] [i] [u] [i] [u], sem mover os lábios. eixo vertical ’ o grau de abertura da boca pode ser observado, reprodu- zindo-se os ons [a] [i] [a] [i] [a] [i]. vOGAIS fechada (alta) meio-fechada (média-alta) meio-aberta (média-baixa) aberta (baixa) anterior central posterior Tabela de sons vocálicos da AIf 75 2.2.5 A prosódia Além da análise fonética no nível da cadeia dos segmentos, analisa- se também o nível prosódico ou supra-segmental, que não se realiza como segmento específico na cadeia de sons, mas perpassa vários seg- mentos ao longo da cadeia. Destacam-se três fenômenos prosódicos: 1 Quantidade ou duração – É o tempo de pronúncia de um segmento, que pode ser longo ou breve. Registram-se os segmentos longos através do sinal diacrítico [:] colocado logo após o som alongado. Assim, pode-se registrar a maior duração da vogal [o], por exemplo, na pa- lavra gol, como pronunciada pelos locutores de futebol, da seguinte forma: [go:w]. 2 Intensidade – resulta da maior ou menor força expiratória, ao longo da cadeia da fala, determinando segmentos tônicos e átonos. Cos- tuma-se indicar a sílaba tônica por um apóstrofo anterior a ela: [‘sapo], [ka ‘f] 3 Altura – resulta da freqüência de vibrações das cordas vocais em uma dada unidade de tempo, determinando diferentes tons e entonações. 2.2.6 A sílaba A sílaba é a unidade mais espontânea da série fônica. Pode ser analisada em três fases: abertura (onset), ápice e cerramento (coda). O esquema de prolação da sílaba, indicado abaixo, permite visuali- zar essas fases. u i e a [ u - ni - veh -‘saw] n v h s w 76 2.2.7 O vocábulo fonético Não há coincidência entre o vocábulo fonético e o vocábulo signi- ficativo. Os vocábulos incluídos na série fônica perdem a sua acentu- ação típica nos grupos de força. Em português, a pauta acentual dos vocábulos fonéticos pode ser marcada usando-se o sistema sugerido pelo professor Mattoso Câmara Jr: 0 sílaba átona pós-tônica 1 sílaba átona pré-tônica 2 sílaba subtônica 3 sílaba tônica Assim, um vocábulo como café, teria sua pauta acentual assim deter- minada: [ ka ‘f ] 1 3 Já no vocábulo cafezinho, a sílaba tônica é -zi -, passando a sílaba tô- nica -f - do vocábulo primitivo, à condição de subtônica, resultando na seguinte pauta acentual: [ ka f ‘zi o ] 1 2 3 0 2.3 A fonologia Ao contrário da Fonética, que se preocupa com a ampla gama de sons possíveis na fala, a Fonologia se ocupa das unidades fonêmicas, aquelas que têm valor distintivo, ou seja, capazes de funcionar em uma língua para diferenciar vocábulos. O conceito de fonema é muito importante em lingüística e em outras disciplinas, pois permite es- tabelecer as unidades invariantes de um sistema. Como já dissemos acima, o fonema pode ser comparado à partitura musical, pois é executado concretamente de formas infinitamente diferentes pelos falantes, assim como uma mesma música pode ser executada diferen- temente pelos músicos. 79 Nossos exemplos se restringirão ao português brasileiro e à língua Karajá, mas no final do capítulo, sugerimos atividades a serem desen- volvidas em diferentes línguas. 2.3.1 A análise fonêmica Como vimos acima, quando fazemos a transcrição fonética dos da- dos de uma língua, representamos os itens transcritos entre colchetes. A transcrição fonética nos permite representar os sons em termos de suas propriedades articulatórias, mas nada nos diz sobre o valor que o som tem no sistema lingüístico de que faz parte. Por exemplo, um falante de inglês, sem treinamento lingüístico, que viaje pelo Brasil e ouça alguém pronunciar o vocábulo tio, por exemplo, no Rio de Janeiro, onde se usa um som africado antes da vogal anterior alta [i], [tiw], poderia imagi- nar, ao ouvir o mesmo vocábulo falado por um nordestino, com a pro- núncia dental firme [tiw], que se tratam de dois vocábulos diferentes e não duas variantes de pronúncia. Esta “análise fonêmica” intuitiva seria ainda mais justificável no caso do exemplo em tela, pois, em inglês, esses dois sons são de fato dois fonemas, distinguindo vocábulos, como, por exemplo, tin “latão” [tin] e chin “queixo” [tin]. Ao se analisar o sistema de sons de uma língua, procura-se estabelecer que unidades estão em oposição e quais estão em distribuição complementar. Dois sons estão em oposição quando têm certos ambientes comuns, ou seja, os dois podem ocorrer na mesma posição na palavra. Por exemplo, em português, [  ] fraco e [  ] forte ocorrem ambos entre vogais; este é um ambiente comum, portanto, são fonemas, pois podem distinguir palavras como caro [kao] e carro [kao]. Podemos, então, afirmar que são dois fonemas do português, pois distingüem formas nes- sa língua. Podemos, também, transcrevê-los entre barras oblíquas, indi- cando que são fonemas, usando dois pontos entre eles para indicar que estão em oposição distintiva: /  / : /  /. Note que, em outros ambientes, eles não se opõem, porque só um ou outro ocorre. Em principio de pa- lavra ou fim de silaba, só [ ] forte ocorre; em grupo consonantal, só [ ] 80 fraco ocorre. Outro exemplo, este da língua Karajá: wadò [wad] “mi- nha comida”, difere de watò [wa] “tosse”. Note que a única diferença entre os dois vocábulos é a consoante que ocupa a posição intervocálica. A simples troca da oclusiva dental pronunciada com corrente de ar egres- siva [d] pela oclusiva dental ingressiva [] é capaz de diferenciar significa- tivamente os dois vocábulos. Trata-se de um par mínimo, isto é, um par de vocábulos que só diferem por um único segmento. Os pares mínimos permitem descobrir fonemas. Podemos, assim, transcrever os dois sons como fonemas distintos em Karajá: /d/ : //. Dois sons que estejam em distribuição complementar não têm am- biente comum, isto é , não aparecem no mesmo ambiente: onde um ocorre, o outro não aparece. Por exemplo, no português do sudeste do Brasil, os sons [t] e [t] estão em distribuição complementar, pois [t] não ocorre antes de vogal anterior alta, e [t] só ocorre antes de vogal anterior alta. Em Karajá, os sons [] e [] estão em distribuição complementar, pois a fricativa palatal [] ocorre depois de [i] e [u] enquanto que a fricativa in- terdental [] ocorre após outros sons: [iã] “porcão” e [aã] “guariba”. Os sons relacionados por oposição pertencem a unidades fonê- micas separadas (são fonemas separados). Os sons relacionados por distribuição complementar são alofones ou variantes de um mesmo fonema. De acordo com o lingüista Kenneth Pike, há algumas premissas principais a serem observadas em uma análise fonêmica. Vejamos duas delas: 1 Os sons tendem a ser modificados pelo ambiente Como a fala é um continuo, um elemento sonoro influencia outro na cadeia de sons, modificando-se os dois mutuamente. Os tipos de am- bientes que mais freqüentemente modificam os sons são: 1 Os sons vizinhos (tanto os que precedem, como os que seguem) 2 As fronteiras das sílabas, dos vocábulos ou da frase 3 A posição do som na palavra em relação ao acento 81 Observe, por exemplo, o caso de assimilação que acontece em português decorrente da influência de um som sobre o precedente. Focalize o som fricativo [s] ou [z] no final da primeira sílaba dos vocábulos abaixo. Que ambiente determina a pronúncia da fricativa alveolar como vozeada ou desvozeada? (a) [‘mosk] (c) [roz’bife] (b) [‘razgo] (d) [os’pisio] Descobriu? Pois é, trata-se de um caso de assimilação, ou seja a sono- ridade da consoante oclusiva que se segue à fricativa é assimilada por esta, determinando a sua pronúncia vozeada ou desvozeada. No final do capítulo, teremos mais alguns exercícios como esse para você obser- var dados e tentar descobrir generalizações. 2 Os sons têm tendência à flutuação Como já vimos acima, não é possível pronunciarmos mais de uma vez uma palavra de modo exatamente igual. Algumas vezes a variação entre os sons é tal que pode ser percebida por um estrangeiro e até levar a casos de dificuldade de comunicação, principalmente, se a diferença é a mesma que existe entre dois segmentos contrastantes na língua do es- trangeiro, como vimos no caso dos sons [t] e [t], que em português são variantes ou alofones, mas que, em inglês, são dois fonemas distintos. Há dois tipos de variação livre: 1 Entre segmentos não contrastantes, ou seja, entre sons que geral- mente não se opõem fonemicamente naquela língua. Seria o caso, por exemplo, de um falante de português que pronunciasse em por- tuguês a palavra rato ora com a fricativa velar [‘xatu] ora com a fri- cativa glotal [‘hatu]. Os sons [x] e [h] não se opõem em português. 2 Entre segmentos contrastantes, ou seja, entre sons que em outras posições na palavra são fonemas. É o caso das pronúncias [me’ninU] e [mi’ninU] ou [xe’sifI] e [xi’sifI] em português. Observe que [e] e [i] são fonemas em português, pois podemos encontrar pares mínimos: selo e silo, vê e vi, etc. Entretanto, em posição átona, diz-se que a oposição distintiva é neutralizada. 84 gos foram, até onde se sabe, os primeiros a classificar as palavras em partes do discurso e a descrever suas variações em função de flexões de tempo, gênero, número, caso, voz, modo, etc. Por exemplo, atri- bui-se ao filósofo grego Platão, que viveu no século IV ac, a distinção entre nomes e verbos, havendo seu discípulo Aristóteles acrescentado a estas duas classes a categoria das conjunções. Embora de origem tão antiga, a descrição das categorias gramati- cais apresentadas nas nossas gramáticas tradicionais é muitas vezes imprecisa. Por exemplo, a categoria substantivo é freqüentemente de- finida como “a palavra com que designamos os seres em geral” ou “a palavra que denota pessoas, lugares ou coisas”. Essas definições são imprecisas e vagas, pois se referem ao conteúdo nocional do termo, mas não nos fornece nenhuma informação gramatical sobre a classe. Além disso, tais definições deixam de fora substantivos como, por exemplo, saudade, beleza, eletricidade, etc., que não são “seres” e nem pessoas, lugares ou coisas. Do mesmo modo, definir “verbo” apenas através do seu significado, como fazem muitas gramáticas, também pode induzir a erro: “verbo é a palavra que indica estado ou ação”. Esta definição, embora possa caracterizar vocábulos como estar ou andar, poderia também ser aplicada a vocábulos como do- ente ou corrida, que também indicam estado e ação, respectivamen- te. Assim, podemos concluir que o critério nocional ou semântico, tomado isoladamente, não parece o melhor para definirmos as classes gra- maticais. Outro critério que tem sido adotado na caracterização das clas- ses de palavras é o critério formal ou morfológico. Algumas gramáticas, ao invés de procurar definir as categorias pelo seu conteúdo, prefe- rem defini-las pela sua forma. Assim, verbo pode ser definido como a palavra que se flexiona em número, pessoa, tempo e voz. Note-se que esta definição focaliza propriedades da forma do vocábulo e não o seu conteúdo semântico. Também este critério, tomado iso- ladamente, pode levar a enganos. Por exemplo, uma definição que caracterizasse a classe dos substantivos em português em termos de sua capacidade de flexionar-se em número, seria inadequada, pois, 85 palavras como Portugal ou Cuiabá não costumam ser empregadas no plural. Um terceiro critério que se costuma utilizar para explicitar as clas- ses gramaticais é o critério funcional ou distribucional. Este critério toma por base a função do vocábulo em relação a outros. Por exemplo, define-se funcionalmente a classe dos adjetivos como modificadora dos substantivos, estabelecendo-se, assim, que os adjetivos tem por função modificar os substantivos. Mesmo esse critério, tomado iso- ladamente, pode não ser suficiente para caracterizar-se um vocábulo como pertencendo a uma classe gramatical. Por exemplo, o lingüista Mattoso Câmara Jr. exemplifica com a expressão marinheiro brasi- leiro. Adotando-se o critério funcional, poderíamos dizer que brasi- leiro é um adjetivo, pois modifica o substantivo marinheiro. Entre- tanto, na expressão brasileiro marinheiro, marinheiro é que seria o termo modificador e brasileiro o modificado. Esses três critérios, a saber, semântico, morfológico e funcional têm sido utilizados pelas gramáticas tradicionais da língua portugue- sa para definir dez classes de palavras: substantivo, artigo, adjetivo, pronome, numeral, verbo, advérbio, preposição, conjunção, interjei- ção. Nem sempre, no entanto, essas classes podem ser identificadas em outras línguas. Por exemplo, em muitas línguas indígenas brasi- leiras não há artigos; em outras, não é simples distinguir-se a classe dos verbos e dos adjetivos. Assim, podemos concluir que a questão da conceituação de classes de palavras é bastante complexa, não só em função dos critérios definidores, como também pelo fato de que tais classes podem variar de língua para língua. Antes de prosseguirmos, vejamos se conseguimos identificar os três cri- térios mencionados acima nas definições de substantivo encontradas em algumas gramáticas do português. Revisemos primeiro os critérios: 1 Critério semântico – Define a categoria pelo conteúdo ou natureza dos itens que a compõe, em termos de substância (coisa), qualidade (atri- buto) ou fenômeno (ação, estado). O significado é o principal fator para se decidir que uma palavra pertence a uma classe. 86 2 Critério funcional – Define a categoria em termos da função que de- sempenha na oração, verificando suas possibilidades distribucionais ou combinatórias. A posição da palavra na frase e/ou o seu papel em relação a outras palavras é o principal fator para se decidir que uma palavra pertence a uma classe. 3 Critério morfológico – Define a categoria com base em propriedades da forma dos vocábulos que a compõem, tais como suas flexões. As variações de forma da palavra é o principal fator para se decidir que uma palavra pertence a uma classe. ’ substantivo 1 É o nome com que designamos os seres em geral. [ Evanildo bechara ] 2 É a palavra com que nomeamos os seres em geral e as qualidades, ações ou estados, considerados em si mesmos, independentemente dos seres com que se relacionam. [ Rocha Lima ] 3 É todo o nome com que designamos os seres. [ Manuel Said Ali ] 4 É a palavra - nome ou pronome - que designa um ser, e na frase pode funcionar como núcleo do sujeito ou do objeto direto. [ Celso Pedro Luft ] 5 É a palavra com que designamos ou nomeamos os seres em geral. [ Celso Cunha ] Quais o(s) critério(s) utilizados para a formulação das definições de classes de palavras e funções sintáticas nas diferentes gramáticas tradi- cionais do português? Em (1), (2), (3) e (5) o único critério utilizado nas definições parece ser o semântico: a designação como ser é o fundamen- to da definição. Já em (4), podemos identificar os três critérios. Além da designação como ser (critério semântico), Luft indica em sua definição características morfológicas (nome ou pronome) dos componentes da classe, bem como suas propriedades distribucionais (funciona como nú- cleo). É, sem dúvida, uma definição mais completa. Conhecendo esses critérios lingüísticos, podemos até mesmo avaliar o limite e o alcance das gramáticas, ao invés de sermos usuários passivos. No final do capítulo, propomos algumas sugestões de atividades adicio- nais sobre essa questão. 89 ’ Comutação de sufixos modo-temporais do Português Observando o quadro acima, descobrimos diversos dos morfemas que indicam modo e tempo em português. Note que essa descoberta foi possível, pois mantivemos constantes os demais segmentos, variando apenas o paradigma modo–temporal e verificando que obtínhamos signi- ficados gramaticais distintos. Duas perguntas: Qual a desinência modo- temporal de Presente do Indicativo em Português? Qual a desinência número-pessoal do gerúndio? 2.4.4 tipos de morfemas 1 Morfema aditivo – São os radicais e os afixos. A raiz ou radical primá- rio é a forma mínima de significado lexical, é irredutível. Os afixos são elementos que se distinguem pela posição que tomam em relação à raiz. Os afixos dividem-se em: Prefixos – elementos que antecedem a raiz des+encontro, re+escrever sufixos – elementos que se seguem à raiz arroz+al (sufixo derivacional), rei+s (sufixo flexional) Infixos – elementos que se inserem no interior de uma raiz, tornando- a descontínua: Árabe: katab “ele escreveu”; katib “escrevendo”; kitab “livro”; k_t_b “raiz escrever” Circunfixo – são elementos de afixação descontínuos, podendo circun- dar simultaneamente uma raiz: a+ manh+ecer; en+terr+ar. Note que não se poderia dizer “manhe- cer” ou “terrar” 2 Morfema reduplicativo – Trata-se de uma modificação na raiz que con- siste na sua repetição total ou parcial: Manao “quer’ / mananao “querem” [ Samoano – Gleason, 1955 ] Ni “nome” / teninimyhyte “nomear” [ Karajá – Maia, 1986 ] 90 3 Morfema alternativo – Consiste na mudança da estrutura fônica da raiz: Digo/dizes; fez/fiz 4 Morfema zero – Uma marca gramatical que se define pela ausência significativa; um morfema no qual não haja um alomorfe eviden- te (Gleason). Mattoso Câmara Jr postula um morfema zero para o Masculino em português: Leitor+ø – leitor+a; freguês+ø – fregues+a 5 Morfema subtrativo – Uma categoria gramatical é representada pela perda de fonema Réu – ré 6 Alomorfia – Refere-se às variantes de forma que um mesmo morfema apresenta em função, por exemplo, de ambientes fonéticos condicio- nadores. Por exemplo, o prefixo negativo i- pode assumir as formas in- ou im-: i+legal; im+possível; in+disciplina. 7 Categorias morfossintáticas – Categorias que podem realizar-se flexio- nalmente em diversas línguas, tendo conseqüências para a sintaxe: número, gênero, grau, definitude, caso, posse, tempo, aspecto, modo, negação, transitividade, voz, pessoa. 2.5 A sintaxe A sintaxe é o componente central da linguagem. Como vimos na seção sobre o signo lingüístico, acima, a essência da linguagem é a relação entre elementos de expressão (por exemplo, sons) e elementos de conteúdo (conceitos, idéias). Sintaxe é relação, concatenação de categorias. A origem da palavra é o grego. Syn significa, em grego, reunir, juntar e taxe indica categoria. Daí, sintaxe, etimologicamen- te, significa reunir categorias. Não falamos (ou pensamos) utilizando vocábulos isolados, mas estruturas em que juntamos itens lexicais pertencentes a categorias morfológicas, como estudamos na seção an- 91 terior, ou seja, nomes, verbos, adjetivos, etc. Pela sua importância na organização lingüística, o componente sintático é bastante complexo, admitindo vários enfoques. Na próxima seção, procuraremos moti- var o estudo da análise sintática do ponto de vista estrutural para, em seguida, avaliarmos alguns conceitos fundamentais da chamada sintaxe tradicional. A tipologia sintática será tratada no capítulo 4. 2.5.1 As estruturas sintáticas Quando pensamos em análise sintática, vem-nos à mente encon- trar os componentes, os constituintes das frases. Assim, uma fra- se como Aquele aluno deu o livro para seu professor é constituída por oito palavras. As palavras, no entanto, são os constituintes últimos (não os constituintes imediatos) das frases. Agrupam-se em blocos ou sintagmas, que são os constituintes imediatos das frases. Os sintagmas podem ser definidos como estruturas formadas por um núcleo isola- damente ou com outros elementos dependentes que funcionam como uma unidade. As palavras são concatenadas binariamente para for- mar os sintagmas, isto é, juntam-se duas palavras de cada vez, pois a junção binária é a operação sintática mais simples. Por exemplo, para formar a frase acima, temos que juntar vocábulos pertencentes a diferentes classes gramaticais: Pronome Nome verbo Artigo Nome Preposição Pronome Nome Aquele aluno deu o livro para seu professor SN SN SN Aquele aluno o livro seu professor Ao juntarmos Aquele + aluno, formamos o sintagma nominal (SN) aquele aluno; ao juntarmos o + livro, formamos o sintagma nominal 94 relação ao número de participantes ou argumentos que podem se jun- tar à estrutura nucleada por eles. Há verbos mono-valentes, que admi- tem juntar-se a um único participante. Por exemplo, o verbo morrer admite um único participante em sua ação. Assim, por exemplo, po- demos dizer o peixe morreu , mas não podemos dizer *a tartaruga morreu o peixe. Esta última frase seria agramatical, não poderia ser gerada, por isso a assinalamos com um asterisco, que, em sin- taxe, indica uma construção que não é bem formada na língua. Já um verbo como matar admite dois participantes (ou argumentos): a tartaruga matou o peixe é uma frase bem formada, pois o verbo matar é bi-valente, admite dois SNs em sua estrutura, um agente e um paciente. E, no caso do verbo dar, do exemplo acima, que estamos analisando? Aí, temos uma estrutura tri-valente: alguém que dá, algo que é dado e alguém para quem algo é dado. O verbo dar concatena- se, inicialmente, ao SN complemento o livro; em seguida, o sintagma nucleado por ele, junta-se ao Sintagma Preposicional para o profes- sor e, finalmente, ao SN agente o aluno. 2.5.3 A delimitação dos sintagmas Uma questão que pode ser colocada neste ponto: como podemos saber quais são os constituintes? Quer dizer: por que, por exemplo, na estrutura acima, seu professor é um sintagma e, digamos, livro para seu não é um constituinte sintático? Há três critérios que nos ajudam a identificar os constituintes sintáticos ou sintagmas: 1 Existência relativamente independente 2 Substituição por uma forma pronominal 3 Movimento Pelo primeiro critério, note-se que, podemos dizer isoladamente para seu professor, por exemplo, em resposta a uma pergunta como para quem o aluno deu o livro? Entretanto, não temos como isolar 95 livro para seu. Essa cadeia de palavras não pode ter existência in- dependente. Também pelo segundo critério há diferenças entre as duas cadeias: podemos substituir o sintagma nominal seu professor pelo pronome ele e formar o sintagma preposicional para ele, por exemplo. Entretanto, não há um pronome que valha pela cadeia li- vro para seu. Finalmente, podemos mover para o início da oração o sintagma preposicional para seu professor, formando uma frase gramatical como Para seu professor, aquele aluno deu o livro. En- tretanto, novamente, realizar uma operação de movimento com a cadeia livro para seu resultaria em uma construção agramatical: * Livro para seu, aquele aluno deu o professor. Conclusão: para seu professor é um sintagma preposicional, enquanto que livro para seu não é um constituinte sintático, um sintagma, tratando-se apenas de um conjunto de palavras adjacentes, mas não pertencentes à mesma unidade sintagmática. Na parte final deste capítulo, apresentamos alguns exercícios de segmentação de sintagmas. Os sintagmas são compostos por uma ou mais palavras dependentes de um núcleo. Vamos observar alguns sintagmas para deixar ainda mais clara esta importante noção: 1 peixes muito gostosos 2 pescava bem pertinho 3 muito frio 4 sem dinheiro Vamos verificar se os critérios que usamos na seção sobre a morfologia poderiam ser usados aqui para se descobrir os núcleos. O critério formal não nos levaria a lugar nenhum, visto que os núcleos não têm proprie- dades formais características e podem pertencer a diferentes classes gra- maticais (nome, verbo, adjetivo, advérbio, etc). O critério semântico pode ter algum valor para determinar o núcleo pois, freqüentemente, o núcleo do sintagma é o vocábulo que contém a principal informação semânti- ca, determinando o significado do sintagma inteiro. Em (1) o sintagma inclui três palavras: um nome (peixes), um advérbio (muito) e um adje- 96 tivo (gostosos), das quais, peixes é, sem dúvida, o núcleo pois contém a principal informação para a compreensão do sintagma. Digamos que, por alguma razão, não conseguíssemos ouvir todas as palavras deste sintagma, em uma ligação telefônica ruim, por exemplo. Estaríamos melhor se ouvíssemos o nome peixes do que as demais palavras, pois, afinal, o sintagma é “ sobre” peixes. O exemplo (1) é, portanto, um sintagma nominal (SN). O mesmo critério pode se aplicar aos demais sintagmas exemplificados acima. Em (2) a informação crucial é dada pelo verbo pescava; então, este é o núcleo, determinando um sintagma verbal (SV). Em (3), o adjetivo frio determina a natureza do sintagma como adjetival (SAdj). Mesmo em (4), é fundamental saber se alguém está sem ou com dinheiro, assim o sintagma é preposicional (SP). O critério distribucional também pode ser relevante para determinar o núcleo do sintagma, se considerarmos que o núcleo é a única palavra que pode ter a mesma distribuição que o sintagma completo, poden- do funcionar como ele e, portanto, representá-lo. Vejamos. Em (1), se supormos que o SN possa funcionar como objeto do verbo preparou, podemos dizer a moça preparou peixes muito gostosos ou, simples- mente, a moça preparou peixes, mas não faria sentido dizer *a moça preparou gostosos ou *A moça preparou muito. Em (2), da mesma forma, em uma frase como meu amigo pescava bem pertinho, apenas o verbo pescava poderia representar o sintagma inteiro, pois tem a mes- ma distribuição que ele. Assim, meu amigo pescava é bem formada, mas *meu amigo bem seria agramatical, bem como *meu amigo perti- nho. Em (3), o sintagma muito frio pode ser representado apenas pelo adjetivo frio, por exemplo, na frase Está frio, mas o advérbio muito não seria um bom representante do sintagma, como vemos em *Está muito. Em (4), embora o português não admita muito facilmente isolar as preposições, ainda seria melhor dizer fiquei sem do que *fiquei di- nheiro, por isso podemos concluir que a preposição representa melhor este sintagma do que o nome.
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