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Magia da linguagem Infantil - Alessandra Del Re, Notas de estudo de Pedagogia

linguagem Infantil

Tipologia: Notas de estudo

2014
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Compartilhado em 02/03/2014

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Baixe Magia da linguagem Infantil - Alessandra Del Re e outras Notas de estudo em PDF para Pedagogia, somente na Docsity! A CRIANÇA E A MAGIA DA BIAS yo UM ESTUDO SOBRE O DISCURSO HUMORISTICO ALESSANDRA DEL RÉ A CRIANÇA E A MAGIA DA LINGUAGEM O 2011 Editora UNESP Cultura Acadêmica Praça da Sé, 108 01001-900 - São Paulo — SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0x 1) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br feuBeditoraunesp.br CIP — Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ D375c Del Ré, Alessandra, 1972- A criança e a magia da linguagem : um estudo sobre o discurso humorístico / Alessandra Del Ré. - São Paulo : Cultura Acadêmica, 2011. 310p. il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-7983-221-5 1. Aquisição de linguagem. 2. Crianças — Linguagem. 3. Crianças — Humor, sátira, etc. |. Título. 11-8070. CDD: 401.9 CDU: 81.42 Este livro é publicado pelo Programa de Publicações Digitais da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) esseD 15 Asociaciôn de Eitoriales Universitarias ey “de América Laltna y l Caribe Editoras Universitárias G(4; 1 anos) - Uma abelha entra em seu quarto: G — Entrou uma abelha no nosso quarto... um monte de abelha... e ela tem ferrão... tem ferros... tem ferro de passar roupa. (risos) E(3;2 anos) - Enquanto seu pailia: P (lendo) - Mas não é que um dia escutou outro barulhinho! Era uma lagarta preta e cabeluda, que parecia tão preguiçosa... E-Olha, Tetê (irmã), toda pretuda, toda cabe- luda. (risos) SUMÁRIO Prefácio 11 Introdução 17 1 O humor e suas variações 29 2 Revisitando algumas teorias sobre o estatuto linguístico e discursivo do humor infantil 71 3 As diversas manifestações do humor na criança 111 4 Por uma metodologia discursiva no estudo sobre o humor na linguagem infantil 179 5 Análise e interpretação do efeito humorístico nafaladacriança 207 6 Conclusão: Que direção tomar? 281 Referências bibliográficas 291 PREFÁCIO Este livro é resultado da minha tese de doutorado, defendida em 2003, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, com o auxílio dos órgãos de fomento CNPq e Capes. De lá para cá, deixei o tema em suspenso por um tempo e só o retomei recentemente, em 2008, graças ao incentivo da minha co- lega e amiga, Aliyah Morgenstern, professora da Université Paris 3. De fato, trata-se de um tema pouco explorado na área de Aqui- sição da Linguagem, sobretudo no Brasil, e concordei com ela que seria importante divulgá-lo, de forma integral. Este trabalho, apesar de o tema sugerir algo leve, prazeroso, enfrentou muitas dificuldades no momento de sua elaboração, justamente porque um trabalho sério deveria ser empreendido a partir de um tema que se supõe divertido. Nesse sentido, agradeço imensamente aos professores /pesquisadores Christian Hudelot, Frédéric François, Marie-Thérêse Vasseur e Anne Salazar-Orvig pelas discussões teóricas que contribuíram para o meu amadure- cimento e possibilitaram o delineamento metodológico-analítico deste trabalho. Sobre o título do livro, alguém poderia se perguntar o porquê da palavra “magia” num estudo que pretende ser científico e que vai 14 ALESSANDRA DEL RÉ tâncias ou dos contextos espaçotemporais). Além disso, o simples fato de desejar provocar uma ação através da palavra não lhe ga- rante um caráter mágico: tudo depende do agente dessa ação. Na magia praticada pelas “feiticeiras”, como no humor, o gesto tem um papel importante. Quer se trate de um ritual mágico ou lú- dico, as fórmulas utilizadas em sua composição são ricas em uma sig- nificação — o sentido referencial não parece ter muita importância nelas — que se perderia caso dependesse de uma simples análise dos elementos do enunciado. É o que acontece com as rimas, os troca- dilhos, as brincadeiras com a sonoridade da língua, entre outros, que acompanham os jogos infantis, pois se trata de jogos que “associam o gesto à palavra num cenário imutável” (Yaguello, 1997, p.107). Todo gesto ritual contém uma frase porque há sempre um mí- nimo de representação expressa ao menos na linguagem interior. Por essa razão, nenhum ritual é mudo de verdade, porque, embora haja um silêncio aparente, permanece o encantamento subenten- dido — no pensar —, que é a consciência do desejo. Nesse sentido, o gesto ritual é apenas a tradução desse encantamento mudo, é um sinal (signo) e uma linguagem. Além dos gestos, é possível identificar no discurso mágico — pro- ferido no momento em que um encantamento é realizado como no discurso humorístico, um objetivo comum: a adesão do in- terlocutor. Na medida em que ambos os tipos de discurso “embele- zam” o objeto do qual falam, eles dissimulam e escondem a natureza mágica em vez de proclamá-la, na tentativa de convencer seu desti- natário e de ganhar sua adesão (conivência). Os destinatários desses discursos, por sua vez, são anônimos, muitos dizem que não se dei- xam impressionar, mas não sabem que, no fundo, são vítimas — ou beneficiários — dessa magia. Mas essa predisposição à magia não é algo que pertence apenas a um grupo particular (às bruxas ou às feiticeiras, por exemplo); ela está em todas as pessoas — e sobretudo nas crianças! —, mesmo que de maneiras ou estilos diferentes, visto que cada uma tenta, exercendo uma atividade simbólica (falando, por exemplo), adaptar seu dis- , assim ACRIANÇA E A MAGIA DA LINGUAGEM 15 curso do modo que lhe convém, dependendo da situação de diálogo da qual participa e da interação com as pessoas nele envolvidas. E é essa magia “poética”, tão visível e, ao mesmo tempo, tão inapreensível, presente de modo tão peculiar na criança e em sua linguagem, ainda que se trate de apenas um momento dessa aqui- sição, que eu gostaria de compartilhar com meus leitores... ACRIANÇA E A MAGIA DA LINGUAGEM 19 inclusive porque ele é concebido como é, através da própria língua” (Possenti, 1991). Diante disso, cabe perguntar: e a criança, será que ela produz humor? Ou, ainda, existe uma linguagem humorística típica da criança pequena? Alguns resultados obtidos em trabalho anterior (Del Ré, 1998) e as conversas informais que tivemos com algumas mães que relataram produções de seus filhos com tom de humor, nos levaram a crer que sim. No que concerne ao humor da (ou na) criança, pode-se dizer que o primeiro estudo digno de registro nessa linha foi desenvol- vido por Freud, em 1905 (1.ed.), com sua obra Der Witz und seine Beziehung zum unbewussten.' Nela, o autor manifesta algumas no- ções que são preciosas para o estudo em questão — embora se trate de uma abordagem psicológica — tais como a relação entre o chiste e a linguagem (ver item 1.4). Para Freud, o chiste — definido no Au- rélio? como dito gracioso, pilhéria ou gracejo — se constituía basica- mente dos mesmos traços da linguagem dos sonhos (linguagem do inconsciente), e é nesses chistes que Possenti (1991) acredita que os linguistas poderiam ver também as propriedades essenciais da lín- gua, tanto no que se refere à sua estrutura quanto no que diz res- peito ao seu funcionamento. Bergson igualmente escreveu sobre o humor e o riso e, embora sua obra — anterior à de Freud — não tivesse tido a mesma reper- cussão, seu trabalho também trouxe contribuições para esse es- tudo. Além de ter escrito uma espécie de tratado sobre o riso (Le rire, 1900), ele discorre igualmente sobre a questão do nonsense como um tipo de encadeamento discursivo que, como veremos nos dados desta pesquisa, podem desencadear o cômico nos enunciados (ver item 3.2). 1. Trad. port. O chiste e sua relação com o inconsciente, 1.ed. In: Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (Rio de Janeiro: Imago, 1905/1969) 2, Aurélio B, H. Ferreira, Dicionário da língua portuguesa (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977). 20 ALESSANDRA DEL RÉ Mas, segundo Raskin (1987), foi somente a partir dos anos 1970, mais especificamente a partir da Primeira Conferência Internacional sobre o Humor, em 1976, que o humor foi individualizado como ob- jeto de estudo e que as pesquisas sobre o humor propriamente ditas começaram a se desenvolver. Esses estudos, que levam em conta o humor na linguagem, têm também seus precursores no Brasil. Ressaltamos aqui os vários tra- balhos publicados pelo professor Sírio Possenti (1989, 1991, 1994, 1998) etambém os artigos de Luís Carlos Travaglia (1989, 1990). No que se refere ao humor na infância, as principais referências — além de Freud — encontram-se nos trabalhos de Françoise Bariaud (1983) e Paule Aimard (1988). Bariaud, apesar de intitular seu tra- balho de La genêse de "humour chez V'enfant, realiza um estudo com crianças entre 7 e 11 anos, pois afirma que a criança menor de 4 anos, em geral, não pode explicitar o sentimento do “engraçado”. Já Ai- mard acredita que o início do humor pode ser encontrado bem cedo na vida da criança. Desde o nascimento, o bebê possui competências, tais como o reconhecimento da voz de pessoas de sua família, seus rostos, coisas que, há dezenas de anos, jamais alguém supôs que ele tivesse. Tudo isso cria um contexto familiar no qual a criança pro- gridea partir de imitações recíprocas, hábitos comuns, sequências de atividades que se organizam e se enriquecem continuamente. Mas ainda não é humor, é apenas um avanço em direção a ele. E se é ver- dade que o humor é também um jogo, convém então precisar sua especificidade a fim de trazer contribuições a um debate teórico mais geral. Vale atentar também para o fato de que, quando se trata de es- tudar a criança (bebê), deve-se tomar cuidado para não dizer que humor é sinônimo de criança feliz (e vice-versa). Do mesmo modo, a anedota humorística não se aproxima do “sorriso malicioso” que um texto poético pode provocar. Mas, embora agradável e divertido, o caminho do humor in- fantil não é um caminho tranquilo a ser percorrido e, assim sendo, estudá-lo e delimitá-lo não é tão simples quanto pode parecer. Isto porque são muitas as categorias ligadas a ele: o riso, o cômico, a ACRIANÇA E A MAGIA DA LINGUAGEM 21 piada, os jogos, etc. Além disso, tudo se torna ainda mais compli- cado quando se trata de verificar esse humor em crianças pequenas (3-5 anos): ele se mostra e se oculta ao mesmo tempo. Ele não apa- rece de repente, mas aos poucos, isso porque, na maioria das vezes, as ocorrências são espontâneas. Parece existir um pré-humor que está no centro de cada sujeito e, nesse caso, os testemunhos dos pais ou ainda a confecção de diário pela mãe constituem valiosos depo- sitários para estudar esses momentos que antecedem o humor que identificamos na linguagem da criança e que parece ser resultado de jogos, trocadilhos. Na medida em que a linguagem está sujeita a mudanças, aberta a possibilidades e a diferentes significações, não se pode enquadrá- -la em uma ordem, uma estrutura social ou em convenções linguís- ticas. Nesse sentido, não há definições — e, portanto, teorias — de humor, riso, etc. que sejam certas ou erradas porque, como não possuem um lugar definido em relação à norma, não constituem transgressão ou subversão. E é por essa razão que o presente estudo transcorrerá como se fizesse referência indistintamente ao universo do humor. Humor, aqui, é aquilo que é risível — aquilo de que se ri, no âmbito discur- sivo —, o que é cômico para a criança e/ou adulto, ou seja, a brin- cadeira, a piada, os jogos de palavras, os chistes, etc., e o que é desencadeado por diferentes condutas de linguagem, dependendo do(s) interlocutor(es) e do contexto (sócio-histórico e político) no qual eles se inserem. Diante disso, e baseando-nos no humor na e da criança, preten- demos, entre outras coisas, trazer mais elementos para a pesquisa linguística, contribuindo, como dissemos antes, para a confecção de uma linguística do humor. Seu desenvolvimento implica a ne- cessidade de abordar com mais profundidade os ingredientes lín- guísticos que são acionados na produção do humor em crianças pequenas. Desse modo, nossas intenções neste trabalho poderiam ser assim sintetizadas: 24 ALESSANDRA DEL RÉ alguns monstrinhos que apareciam em outro livro (atividade indi- vidual); e, finalmente, (d) definissem alguns elementos presentes em duas imagens que lhes foram mostradas (atividade individual). A partir das informações recolhidas nessas atividades pro- postas, foi possível constatar, entre outras coisas, que, no momento em que criança prestava atenção ao material linguístico, ela o fazia explicando a razão pela qual determinado aspecto da língua cha- mava sua atenção — daí o interesse pela relação entre a explicação e a metalinguística. Mas será que a definição tradicional (Gombert — ver item 3.4) que se tem do termo se aplica à criança pequena? Como identificar a explicação quando a criança fala da própria língua e joga com ela? Afinal, todo uso metalinguístico é explicação e vice-versa? Além dessas novas questões que surgiam, ainda restava decidir o tipo de tratamento que seria dado aos dois tipos de pesquisa e apare- ceu o interesse por outros temas como a conivência e a explicação. Assim, além das mudanças operadas na metodologia (ver capítulo 4, sobre material e método), esses dois temas, embora ainda pouco explorados no Brasil no âmbito da psicolinguística, mas de significa- tiva relevância, atestada em pesquisas recentes, realizadas sobretudo na França, passaram também a integrar as categorias de análise. Optamos, assim, finalmente, por utilizar os dados coletados pelas mães como ponto de partida para nossas indagações, guiando, de forma ilustrativa, nossa investigação teórica, e os dados da creche, no momento da análise e discussão dos resultados. No que se refere à conivência, em primeiro lugar, é preciso en- tendê-la enquanto um conjunto de elementos verbais e não verbais (como os risos, os sorrisos, etc.) dos locutores e dos receptores que coexistem e marcam o implícito, a partilha de saberes, a conver- gência, o consenso, o alinhamento, a proximidade e o humor. Mas qual a relação dessa conivência com o humor aqui em questão? Pode-se dizer que existe conivência num caso em que o adulto ou a criança ri — sem achar graça — daquilo que a criança ou o adulto falou simplesmente para conseguir a adesão (conivência) do outro? É possível dizer que sempre que há riso há conivência? Esses indi- ACRIANÇA E A MAGIA DA LINGUAGEM 25 cadores associados ao humor, por sua vez, fornecerão algumas pistas para a análise. O interesse pela questão da explicação, observada nas trocas/ interação adulto-criança e criança-criança, apareceu durante o exa- me dos corpora recolhido para esta pesquisa, no qual pudemos constatar que, na maioria das vezes, a explicação aparecia (solici- tada ou espontaneamente) desencadeando o riso na própria criança e/ou em seu interlocutor. Partimos do princípio de que as condutas explicativas — assim como a conivência, os jogos de palavras, o non- sense, etc. — estão de alguma forma ligadas à produção de humor. Pelas razões expostas, parece-nos pertinente verificar, nesse processo de coconstrução dialógica, a maneira pela qual a criança é levada a produzir os enunciados que provocam o seu próprio riso ou o de seu interlocutor, considerando também a dinâmica da ex- plicação, seja através dos pedidos de explicação, seja por meio das respostas explicativas que produzem o riso (o humor) na própria criança (locutor) e/ou no outro (interlocutor). Por isso, no item 2.5 dedicado à explicação, procuraremos tecer alguns comentários a respeito não só da explicação, mas também de temas que estão intimamente ligados ao discurso explicativo, tais como a argumentação, a justificação e a definição. É importante ressaltar que não se pretende apresentar, aqui, um tratado sobre o humor ou o riso infantil — aliás, o próprio fato de uma nova teoria e novos critérios poderem ser criados a cada novo trabalho desfaz a ilusão da existência de um trabalho definitivo, como pretende um trabalho de tal natureza —, nem realizar uma es- pécie “compilação” dos estudos realizados nessa perspectiva, tam- pouco repetir as teorias existentes, mesmo porque elas não tratam especificamente do assunto. Partilhamos várias das concepções já destacadas em pesquisas anteriores, mas o que pretendemos mostrar, sobretudo na parte que corresponde à fundamentação teórica, é o caminho que percor- remos, quais foram os autores — e concepções e ideias — que con- tribuíram para a realização deste estudo — e discutir o que acontece, com base nos dados coletados. São justamente esses dados que nos 26 ALESSANDRA DEL RÉ ajudarão a encontrar uma “teoria” que dê conta de responder a nossas indagações, e a resolver os impasses que, porventura, surjam nesse percurso. Na verdade, este trabalho busca um caminho original para cercar o humor na linguagem da criança, humor esse que tenta- remos trazer à tona através de um passeio pela magia, pelos efeitos e pelos acontecimentos curiosos que podem se produzir na inte- ração criança-criança, criança-adulto. Assim, o capítulo 1 tem como ponto de referência o humor, objeto do presente estudo. Num primeiro momento, apresenta- remos algumas noções (o riso, a ironia...) que muitas vezes se con- fundem com o humor, mas que, de certo modo, estão associados a ele. O humor na linguagem da criança aparece, num segundo mo- mento, numa tentativa de percorrermos alguns estudos que já foram realizados sobre o assunto e que serviram de base para a pre- sente pesquisa. O capítulo termina com uma tentativa de con- frontar o humor aos termos que lhe são aparentados com vistas a uma problematização da relação existente entre eles. No capítulo 2, a intenção é apresentar algumas teorias que, apesar de não se aplicarem apenas ao estudo do humor, servem de base para tratar dos aspectos linguístico e discursivo do mesmo. Dessa maneira, após fazermos menção às noções de interação, dia- logismo, polifonia e tutela, tratamos dos modos de encadeamento discursivo: a conivência (convergência, continuidade) e a expli- cação, a irrupção, a incongruência e a anomalia (divergência, des- continuidade). A seguir, no capítulo 3, o propósito é mostrar algumas noções que estão intrinsecamente relacionadas à questão do humor, e sem as quais seria impossível detectá-lo nos dados coletados. Serão, assim, tratadas as questões da linguagem não verbal, do nonsense, dos jogos, das brincadeiras e da questão metalinguística no dis- curso infantil. No fim do capítulo, retomamos essas e outras noções de modo a relacioná-las com o presente estudo. No capítulo 4 são descritos os procedimentos metodológicos adotados, no que diz respeito à escolha dos sujeitos e ao material 1 O HUMOR E SUAS VARIAÇÕES Humour: pudeur, jeu d'esprit. C'est la propreté morale et quotidienne de V'esprit." Jules Renard Como demonstrava a primeira edição da Encyclopaedia Britan- nica, de 1771, ou ainda, como dizia Louis Cazamien, em seu artigo Pourquoi nous ne pouvons pas définir "humour, de 1906, e poste- riormente em sua obra The development of English humor, de 1950, definir o humor parece ser uma tarefa difícil de ser executada (Es- carpit, 1967). Mais do que isso, poderíamos dizer que é vã a busca de uma definição e uma delimitação do humor, visto que o termo está intimamente ligado às noções de ironia, cômico, riso, etc., e cada pessoa o associa à sua maneira, sem haver um consenso ou uma fórmula que possam ser aplicados em todas as circunstâncias (Aimard, 1988). Diante desse fato, não é nossa pretensão encontrar uma “defi- nição geral”, por assim dizer, para o humor, nem estabelecer fron- 1. Humor: pudor, dito espirituoso. / É a propriedade moral/ e cotidiana da alma. 30 ALESSANDRA DEL RÉ teiras que o separem dessas noções, mesmo porque, na maioria das vezes, Os próprios autores que elegem tais temas como objeto não destacam expressamente suas diferenças. Do mesmo modo, em vista de alguns estudos realizados anteriormente já terem tratado, isoladamente ou em conjunto, do que convencionamos chamar de “variações” do humor, tampouco temos a pretensão de nos apro- fundar nesses conceitos — porque, além de alguns deles já terem sido tratados por especialistas, não faz parte dos objetivos deste trabalho. Trata-se, antes, de tecer alguns comentários sobre cada um dos termos mencionados (a ironia, o cômico, o riso, etc.) na tentativa de buscar explicações para compreender as inevitáveis confusões que se estabelecem entre eles, mostrando a dificuldade e mesmo a im- possibilidade de separá-los, e de observar alguns índices como os risos, OS sorrisos, as imitações, os jogos e a graça que começam a ganhar forma de condutas de linguagem e que vão compor o humor infantil. Existem várias teorias que podem ajudar a delimitar e entender o caráter múltiplo do humor (nos seus mecanismos, nos seus meios de expressão, nas suas cores, nos seus limites territoriais), já que fornecem diversos caminhos — por isso elas serão citadas neste item —, mas, como dissemos e veremos, nenhuma delas parece conseguir apreendê-lo. 1.1 O humor e seu percurso histórico A palavra latina humor, termo científico que possuía tradução em quase todas as línguas no século XVI, pertencia à língua cor- rente dos ingleses e seu emprego correspondia a um traço de psico- logia divulgado na Inglaterra. Aliás, a cada geração, durante muitos séculos, o termo humor carregou novas nuances. No século XVIII, por exemplo, seu conteúdo ocasionou a ruptura semântica que se manifestou na indecisão da enciclopédia (1771), há pouco referida. Começa a ser construída, a partir daquele momento, uma estética ACRIANÇA E A MAGIA DA LINGUAGEM 31 do humor inglês, com teorias sedutoras que acabam por influenciar toda a Europa e fazendo surgir um novo conceito que progressiva- mente vai se desligando de sua origem, em termos de conteúdo, mas que mantém sua forma — inglesa — humour, adotada até os dias de hoje pela maioria das línguas latinas. No momento em que esse termo é recuperado pelos vários países da Europa, ele toma rumos diferentes em cada um deles e adquire novas nuances, de onde surge o principal dos problemas: como diferenciar humour (humor) de bonne humeur (bom humor), se ambos têm algo a ver com o riso e ao mesmo tempo referem-se a coisas diferentes? No caso da língua portuguesa e da espanhola, por exemplo, estabelecer uma oposição é ainda mais difícil, já que o mesmo termo “humor” refere-se às duas ideias.? No francês, a dis- tinção é transparente porque a evolução fonética fez surgir um novo termo (humeur) e com ele uma tomada de consciência da “coisa” humor enquanto mecanismo racional. Ateoria dos humeurs — renovada pelos gregos, transmitida pelos árabes, recolhida por médicos e alquimistas —, no fim da Idade Média, mantinha próximos os Quatro Elementos, que tinham sido distinguidos por Hipócrates e que correspondiam aos humeurs existentes no corpo humano, a saber: (1) a bile amarela ao Fogo (quente); (2) a atrabilis* ou bile negra à Terra (frio); (3) o sangue ao Ar (seco) e (4) a pituíta” ou o fleuma à Água (úmido). A predomi- nância de cada um desses humores seria responsável, respectiva- mente, pelo homem de temperamento colérico exteriorizando a careta; o melancólico, a lágrima; o sanguíneo, a apoplexia, e o fleu- mático, o sorriso amarelo. 2, Humor: 1. Fisiol. Qualquer líquido contido num corpo organizado. 2. Umidade. 3. Disposição de espírito. 4. Veia cômica; espírito, graça. 5. Capacidade de per- ceber ou expressar o que é cômico ou divertido. In: Aurélio B. H, Ferreira, Dicio- nário da lingua portuguesa (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977) Do lat, med.: bilis, bile, e atra, negra. In: A. Rey & ]. Rey-Debove, Le Petit Robert 1 - Dictionnaire de la langue française, 1990 4, Med.: Humor branco e viscoso, segregado pelo nariz e brônquios. In: Aurélio B w H. Ferreira, Dicionário da língua portuguesa (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977) 34 ALESSANDRA DEL RÉ gente e superior intuído por Shakespeare e desaparecem a extra- vagância e a excentricidade gratuita do humor original. No século XIX, ele é encontrado na literatura inglesa através do nonsense e, depois de cinquenta anos, a lei fundamental do humor — o verdadeiro humor tem um ar sério e todos riem dele; o falso humor ri o tempo todo enquanto todos têm um ar sério — recebe a consagração em algum tipo oficial de estética empirista. A partir de 1880, a palavra humour é incorporada à língua fran- cesa, mas a Academia só a admitirá em 1932. Atualmente, ela se refere ao conjunto do gênero, mas foi preciso um certo tempo para sechegar a isso. O século XX descobre em seu auge o humor “comprometido” (engagé), o humor funcional da mecânica de rir, mas a alma dos povos se reflete nela também. A crítica positivista consagra a esse humor muitos estudos, entre eles o de Bergson (Le rire, 1900). Devido a um excesso de conforto intelectual (século de oti- mismo), o humor inglês entra em decadência entre 1900 e 1940 e só desperta como gênero literário universal após a Segunda Guerra Mundial. Desde então, as recentes concepções de humor ou dos fatos hu- morísticos combinam aquilo que é engraçado, o charme, a cum- plicidade, e também o que não se pode dizer claramente. O humor só se exprime e encontra seu verdadeiro sentido na relação com o outro. Ele intervém nas situações sociais de modo a produzir sobre o outro efeitos (divertir ou fazer o outro rir) que podem refletir motivações pessoais (descarregar sua agressividade, ser popular, etc.) e interindividuais (favorecer a manutenção da interação). Assim, através do humor, o indivíduo revela sua capacidade de se adaptar a um ambiente social, seja produzindo o humor, seja reco- nhecendo-o como tal (Garitte & Legrand, 2001, p.231-2). Ele torna os indivíduos capazes de produzir os efeitos desejados sobre outros indivíduos. O humor é tão ambíguo quanto qualquer outra criação cultural (Saliba, 2002); é “o incógnito do religioso” (Vincognito du religieux — Chabrier, 1997), ao mesmo tempo, protegido do acesso fácil e di- ACRIANÇA E A MAGIA DA LINGUAGEM 35 reto e protetor do que é da ordem do invisível, tanto para o orador quanto para o auditor. Ele manifesta indiretamente a luta interior e o sofrimento, mas diretamente nada pode ser decodificado. Do mesmo modo, o humorista admite com o outro uma comu- nicação sobre o vivido que escapa do mal-entendido, * justamente porque ela não pode depender de um esclarecimento explícito; sua explicação est en arriêre, absolutamente indireta (op.cit.). Assim, se levarmos em conta que a linguagem pode ser fonte de mal-enten- didos ou de não coincidências — para usar o termo de Authier- -Revuzº (1995), o humor pode auxiliar na elucidação dos mesmos, uma vez que um traço de humor distingue, no seio de um enun- ciado, uma significação patente, explícita, e uma significação la- tente, implícita (Guillot, 1997). 1.2 O riso em Rabelais e Bergson Embora talvez se encontre em Platão!" a mais antiga formulação teórica, é de Aristóteles a influência mais marcante na história do pensamento sobre o riso, na medida em que trata do cômico en- quanto uma deformidade que não implica dor nem destruição!! e de- fine o riso como sendo uma especificidade humana: “O homem é o único animal que ri”? - embora o diga sob um ponto de vista fisioló- gico de explicação do riso. Para ele, um dos traços característicos do efeito cômico é o uso desmedido e desnecessário de metáforas e ou- 8. O mal-entendido aqui é sinônimo de incompreensão e, em geral, é responsável pelo desinteresse da criança em um assunto. A autora chama de não coincidência tudo o que marca de não um (non-un) à comunicação, i.e, a incompreensão, o mal-entendido, a ambiguidade 10. Platão, Philêbe, Cuvres complêtes, v.9, 2: parte. Trad. Auguste Dies (Paris: Belles Lettres, 1959), Aristóteles, La poétique. Trad. Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot (Paris: Seuil, 1980). A parte II desse livro em que Aristóteles trata da comédia se perdeu não sendo possível, assim, saber de que forma ele tratou o cômico. 12. Aristóteles, Les parties des animaux. Trad. Pierre Louis (Paris: Les Belles Let- tres, 1956). o 1 36 ALESSANDRA DEL RÉ tros nomes não habituais. Em De la génération des animaux," a refe- rência ao riso se encontra mais para mostrar a distinção entre o riso da criança pequena e do adulto. Segundo ele, o adulto ri acordado, mas a criança pequena, por ainda ser imperfeita — ela permanece cega por um certo tempo e não pode andar dormindo. No que se refere ao pensamento ocidental, Quintiliano e Cícero são os primeiros a sistematizar o riso e o risível, dedicando um capí- tulo de suas obras ao ridiculum. É, assim, através da retórica ro- mana que se tem acesso a um conhecimento maior sobre o riso. O ridiculum ocupa em De oratore, de Cícero, a parte do inventio (ideias, argumentos ou provas que fundamentam o discurso). A , só ri (e chora) quando está brincadeira e os ditos espirituosos são apresentados como recursos cujos efeitos são agradáveis e úteis nas defesas. Ele também distin- gue o riso das palavras e das coisas (Quintiliano fala em discursos e atos enquanto objetos do riso): no primeiro se enquadrariam cate- gorias tais como a alegoria, a metáfora, a antífrase, a antítese, as pa- lavras com duplo sentido, pequenas alterações em palavras ou versos, as palavras tomadas ao pé da letra. Ri-se menos das palavras que das coisas, mas elas podem se tornar mais engraçadas caso se surpreenda a expectativa do outro, ele esperando que você diga uma coisa e você diz outra. Ao segundo pertenceria tudo aquilo que não constitui figura de estilo, mas o que diz respeito à prova, à demonstração e à ação. É a narrativa cômica, a imitação cômica (gesto, voz) e tudo aquilo que não envolve palavras. No prefácio de seu livro As palavras e as coisas, Foucault (1987) cita uma experiência que teve ao ler uma classificação dos animais de uma enciclopédia chinesa. As enumerações dessa classificação só eram passíveis de justaposição em um espaço impensável, indi- zível, que não se podia nomear, e o mal-estar causado pela impossi- bilidade de encontrar um lugar-comum e essa ausência de sintaxe 13. Aristóteles, De la génération des animaux. Trad. Pierre Louis (Paris: Les Belles Lettres, 1961). ACRIANÇA E A MAGIA DA LINGUAGEM 39 um novo encadeamento absurdo, mas continua a ser julgado pelo encadeamento anterior. É essa lógica do absurdo a responsável pela comicidade de um enunciado. Dentro dessa nova perspectiva renascentista, o riso passou a ser visto como uma das formas que melhor expressavam a verdade sobre o mundo e sobre o homem, como um ponto de vista que per- cebia as coisas de um outro modo e que, portanto, era igual ou mais importante que o sério, e ainda como o único que podia ter acesso a certos aspectos do mundo, embora a sociedade da época se manti- vesse irredutível diante desses novos argumentos. Esse caráter teórico — e não apenas prático — atribuído ao riso e que se baseava em fontes antigas também contribuiu para que, aos poucos, ele passasse a ser aceito como uma forma universal do mundo. Aliás, Rabelais foi um dos autores que buscou em Hipó- crates, mais especificamente no antigo e novo Prólogo ao quarto livro, fundamentos para essa teoria. Assim, passaram a ser valo- rizados em sua obra não apenas a virtude curativa do riso e a im- portância da alegria (do médico e do paciente) em tratamentos de doenças, mas também sua filosofia (Romance de Hipócrates), dentro da qual se considerava, entre outras coisas, o riso como o maior privilégio espiritual do homem, um dom de Deus. Aristó- teles dizia a esse respeito que a criança só começa a rir quarenta dias depois que nasce, e é só então que ela se torna ser humano. Relegado para fora de todas as formas oficiais da ideologia, da vida, da religião e do comércio humano da Idade Média, o riso e a alegria deram origem a formas cômicas (cultos, ritos e festas) como uma forma de legalizar o que havia sido excluído. As “festas dos loucos”, por exemplo, caracterizavam-se por degradações grotescas dos ritos e símbolos religiosos, tanto no plano material quanto no corporal: embriaguez, obscenidades, grosserias, desnudamento... e mantiveram-se durante muito tempo na França. Essa festa é a que melhor representa o riso festivo (ou o chamado riso carnavalesco). Diferentemente do riso satírico da época moderna, esse riso é po- pular — se opõe à reação individual diante de um fato isolado —, uni- 40 ALESSANDRA DEL RÉ versal, visto que tudo é cômico e percebido por todos enquanto tal, e ambivalente, i.e., alegre e cheio de alvoroço, burlador e sarcástico, e, assim, “expressa uma opinião sobre um mundo em plena evolu- ção no qual estão todos incluídos os que riem” (op.cit., p.11). Aos poucos, o riso da festa popular foi se decompondo, per- dendo seu universalismo e em nenhum outro momento da história Rabelais foi tão pouco compreendido como no século XVII, quando se cultivava a concepção mecanicista da matéria, o uto- pismo abstrato e racionalista e as generalizações das Luzes. E ao mesmo tempo em que se dava essa decomposição, formavam-se novos gêneros da literatura cômica, recreativa e satírica que carac- terizarão o século XIX, como o riso retórico, sério e sentencioso. É só a partir da segunda metade do século XIX que a obra e a vida de Rabelais transformam-se em objeto de estudos, inclu- sive de monografias que analisam o aspecto histórico e filoló- gico de seus textos, e no século XX se realizam estudos mais amplos. Bergson, em seu tratado Le rire (1900), fala no riso como algo que tem uma significação social. Para Bergson, o riso e o cômico (aquilo de que se ri) são um desvio negativo em relação ao que é dado por natureza, um desvio do vivo, e têm uma função social — eles devem ser corrigidos para que se estabeleça a ordem. O homem ri para corrigir a rigidez e a resposta está na sociedade. O efeito cô- mico é, na verdade, resultado de uma desarmonia nessa vida social, algo ligado ao aspecto físico do corpo, diferente da “comicidade das palavras”, que estaria mais próxima do chiste no que diz respeito ao aspecto físico da língua. Para ele, o humor é a transposição da moral (norma de compor- tamento ligada à emoção) para o mecânico (comportamento dos homens e animais que visa satisfazer seus instintos básicos); ele analisa seu objeto pela intuição, isolado de qualquer sentimento, porque a moral está comprometida. Aliás, tanto a desarmonia quanto o aspecto social foram res- gatados por Bakhtin (1999) em seu estudo sobre o riso. Segundo esse autor, em Rabelais, a visão da tradição da cultura popular da ACRIANÇA E A MAGIA DA LINGUAGEM 41 Idade Média e do Renascimento é marcada pelo riso impiedoso que afronta o poder instituído, a cultura oficial, o tom sério, religioso e feudal. Em um estudo recente publicado no artigo “Polyfonctionnalité du rire dans une interaction finalisée entre deux apprenantes”, De- jean (in Colletta, 2001) propõe alguns tipos de riso que servem para: a) marcar uma avaliação positiva: o riso daquele que propõe algo “engraçado” é um riso de autossatisfação (ligado à sua produção humorística), e o do seu interlocutor — que com frequência concorda com o locutor — assumiria o valor de avaliação positiva, pois, na medida em que o papel deleé ava- liar a proposição do emissor, quando eleri simultaneamente com o locutor pode-se considerar que concorda, gosta do que foi dito. Esses risos são, assim, a expressão de uma emoção positiva e vão em busca de uma conivência pelo lo- cutor; eles contaminam — positivamente — a relação entre os interlocutores e reforçam a ligação entre eles; b) ser um modalizador: às vezes, o interlocutor pode não compartilhar do riso do locutor e para atenuar uma pos- sível situação de “mal-estar”, ele (interlocutor) sorri; ou- tras vezes, o próprio locutor pode rir para “livrar” seu interlocutor de se sentir pressionado a avaliar — positiva- mente — seu enunciado; c) ser um riso reparador e de descontração: eles surgem para relaxar, atenuar um momento de tensão da interação; d) ser um riso ameaçador: um riso que zomba e ameaça a face do outr e) ser um riso estruturante: ele manifesta uma sincronia (co- nivência) na interação, sincronia esta conseguida pelos interlocutores que adaptam reciprocamente condutas con- juntas. Segundo C. Kerbrat-Orecchioni (1980, p.23-4), esse tom na interação é, ao mesmo tempo, efeito, sintoma e causa do bom nível de relacionamento entre eles; 44 ALESSANDRA DEL RÉ ironia social. Mas explorar o lado humorístico desse mecanismo é difícil se considerarmos que o público não rirá tão facilmente de seu próprio engano ou da superioridade do personagem. A esse res- peito, vale a pena citar uma passagem de Escarpit (1967, p.106): Um homem escorrega em uma casca de banana diante de dez pessoas: se ele ri, é humor. Dez pessoas escorregam em dez cascas de bananas diante de um homem: se ele ri, é imprudente. Diante disso, é fácil compreender que a ironia resulta numa ma- nifestação de crueldade coletiva e que todos esperam que um dia o domador seja devorado pelo leão. De acordo com Held (1980), a ironia opõe dois elementos dis- tintos e distantes e é mais dura, implacável e frequentemente defi- nida como modo de narração que faz ouvir uma verdade fingindo dizer o contrário. Já o humor denuncia o absurdo do que parece normal (hábito), é mais sutil que a ironia, visto que supõe uma con- tradição de natureza interna; é uma distância e às vezes se tinge de sarcasmo, o que faz com que tanto ele quanto a ironia estejam inti- mamente ligados. É essa ligação existente entre eles, somada ao fato de ambos serem jogos (exemplo: quando se diz que uma porta joga), não dogmáticos, abertos e disponíveis, que torna a distinção entre eles mais difícil. Diante disso, podemos identificar a ligação existente entre a ironia e o humor, em concordância com Escarpit (1967), se pen- sarmos na inocência: segundo o autor, a inocência é uma das ati- tudes de base do humorista, e, assim sendo, ele fará uso dela para criar seus personagens. É através dos olhos de um turista estran- geiro que o humorista criará a ironia (Escarpit, 1967, p.95). Para Schopenhauer, a ironia é a brincadeira escondida atrás do sério, e o humor, o sério que se esconde atrás da brincadeira. Bergson, por sua vez, diz que a ironia consiste em enunciar o ideal fingindo que é real, dissimulando o sério por trás da brincadeira. Áo contrário do que acontece com a ironia, no humor, o real não é objeto do riso por não se adequar à ideia, mas a ideia mesma se ACRIANÇA E A MAGIA DA LINGUAGEM 45 transforma em objeto de riso ao não se adequar ao objeto. Por isso, Schopenhauer diz que enquanto a ironia é objetiva, se dirige aos demais, o humor é subjetivo, se refere a nós próprios. Não encontramos humor no riso corretivo de Bergson; o riso é o irrisório da ideia, a fragilidade da ideia no seu encontro com a coisa. O humor examina quase anatomicamente seu objeto, desce até o mais fundo da vulgaridade, da estupidez, do mal, com a fria e apli- cada indiferença com que se executa uma autópsia, como se fosse certificar-se de que falta a ideia. O sério é exatamente essa fragi- lidade — da ideia na coisa —, e não a possível conformidade entre ambas que a brincadeira momentaneamente ocultaria. Por isso po- demos dizer que, se a ironia começa seriamente e acaba rindo, o humor começa rindo e termina com seriedade. O humor é a extra- vagância, a loucura ou palhaçada. A humilhação é em sua essência humor. Por fim, na visão de Ducrot (1984b), para que a ironia exista, é preciso fazer “como se” o discurso realmente fosse verdadeiro na própria enunciação. O locutor faz com que o outro “escute” um dis- curso absurdo, que não pertence a ele, como um discurso distan- ciado. Falar ironicamente é apresentar a enunciação como algo que expressa a posição de um enunciador, !* posição esta da qual o locutor não só não assume a responsabilidade como a sustenta enquanto um absurdo. É com base nisso que o autor define o humor como uma forma de ironia que não assume nada nem ninguém, e é por esse mo- tivo que o enunciador ridículo não tem identidade específica. 1.4 O chiste em Freud Ainda na tentativa de perseguir o humor (discursivo), bus- camos nos chistes — aos quais, aliás, Freud (1905) dedicou toda uma obra — pistas para cercá-lo. 14, De acordo com Ducrot (1984b), o enunciador é para o locutor o que o perso- nagem é para seu autor. 46 ALESSANDRA DEL RÉ O chiste é uma forma de comunicação que necessita, em geral, de três “atores”: o criador, o ouvinte e a pessoa visada pela anedota. Tanto o criador do chiste quanto aquele que ouve a história en- graçada se colocam na posição de “filhos” que se tornaram cúm- plices diante do “pai todo-poderoso”. Tem-se assim uma situação edipiana na qual se inserem o criador, o ouvinte e a pessoa visada (dimensão imaginária) e fora da qual o humor é inconcebível. Em geral, esse chiste proporciona, àquele que ouve, prazer e o faz rir. Tal sentimento decorre, segundo Freud, da técnica e do propósito do chiste. Nesse sentido, ele pode ser definido enquanto uma ati- vidade que tem como objetivo derivar prazer dos processos mentais (intelectuais ou de outra natureza). A produção de prazer corres- ponde, aqui, a uma economia da despesa psíquica. No caso dos chis- tes verbais, esse princípio de economia se encontra no uso de um número reduzido de palavras ou de palavras parecidas. Nos jogos de palavras — considerado por Freud como um grupo desses chistes —, a técnica consiste em focalizar a atitude psíquica no que se refere ao som da palavra, assim, a apresentação acústica da palavra ocupa o lugar da significação. Isso garante um alívio para o trabalho psíquico na medida em que não é mais necessário o esforço requerido no uso sério das palavras. Quando são as crianças que fa- zem uso desses jogos, elas esperam que palavras parecidas ou idên- ticas tenham o mesmo sentido — porque para elas as palavras são coisas. É desses jogos e dos equívocos que deles surgem que os adul- tos riem. O prazer que emerge desse jogo, ou ainda desse “curto-cir- cuito” operado entre as ideias, será maior quanto mais distantes forem os dois círculos de ideias ligados pela mesma palavra. Observando o comportamento da criança durante a aquisição do vocabulário de sua língua materna, é possível notar seu prazer em brincar com as palavras, em reuni-las sem a preocupação de que elas façam sentido, apenas para exercitar sua capacidade — instin- tiva-ea partir delas conseguir efeitos gratificantes, como o ritmo ou a rima (repetição do que é similar, similaridade de som, etc.). São esses efeitos que encorajam a criança a continuar com os jogos, não importa, nesse momento, se as palavras têm sentido ou se as ACRIANÇA E A MAGIA DA LINGUAGEM 49 paranomásia, o calembur, a palavra-valise,'º a onomatopeia, os po- lissíndetos, isso sem mencionar os anacolutos e as elipses, que se, por um lado, causam uma ruptura no texto, por outro constroem sua estrutura. Por isso, ele precisa de um interlocutor, não pode ser feito ape- nas para si. À própria pessoa que elabora o chiste não pode rir dele, como acontece com um fato cômico, por exemplo. Assim, pode-se dizer que o cômico depende da existência de duas pessoas: a que conta (primeira) e a em quem se constata o cômico, e a fonte de prazer está nas pessoas — e às vezes nas coisas; o chiste enquanto Jogo (estágio inicial) não necessita dessa pessoa-objeto, mas, quan- do se encontra no estágio do gracejo — considerando que se teve su- cesso em protegê-lo da razão —, necessita de uma terceira pessoa a quem se possa comunicar o resultado, e sua fonte de prazer está no próprio sujeito, não em pessoas externas. O chiste se dá, assim, en- tre a primeira e a terceira pessoa e o cômico entre a primeira e o objeto, mas ambos têm como objetivo conseguir prazer de fontes intelectuais. A realização de um chiste depende, assim, de um reconhecimento implicitamente partilhado pelos interlocutores — a que chamaríamos de conivência, nos termos em que ele será descrito no item 2.2 de- dicado ao tema — de que a nova significação produzida pode ser in- serida como mensagem no código da língua. A esse respeito, Todorov (1978), ao estudar os chistes, traz à tona a necessidade de dois tipos de trabalho: um de figuração, que chame a atenção do ouvinte e o leve a procurar uma nova interpre- tação, e outro de simbolização, que consiste em induzir um se- gundo sentido com base num primeiro. O primeiro sentido está no 16. Nela, dois significados se misturam numa só palavra: GA, aos 3; 3 anos voltava da escola com a mãe e com o irmão: M - Vocês querem macarronada com molho de salsicha ou cachorro-quente no jantar? GA - Eu quero “cacharronada”. M — “Cacharronada”? GA - É, eu adoro os dois. 50 ALESSANDRA DEL RÉ contexto sintagmático, aquele que está contido nas frases vizinhas e na situação enunciativa, é o primeiro que vem à mente; o segundo sentido, o novo sentido que se impõe, está no contexto paradigmá- tico, i.e., no saber compartilhado entre os interlocutores e a socie- dade à qual eles pertencem. Essa ação simultânea dos dois contextos parece estar presente também nos trocadilhos (calembur) em que um só significante pre- sente evoca dois significados, o seu e o de um parônimo (op.cit., p-292). Mas, de qualquer modo, seja o primeiro sentido (exposto) que aparece, seja o segundo (imposto ou surpresa), ambos contri- buem para a construção do chiste. Ainda para a realização desse chiste, Freud acrescenta a neces- sidade da existência de uma pessoa convincente na sua performan- ce (voz e corpo), que não possua uma predisposição ao sério; ao contrário, ela deve estar eufórica, embora deva se mostrar séria à terceira pessoa. Por outro lado, a terceira pessoa deve estar em co- munhão com o emissor, deve ser benevolente ou ao menos neutra para colaborar com o sucesso do chiste e evidenciar seu prazer com uma explosão de riso. Esse riso que se origina do chiste é sinal de prazer e, nesse sentido, pode-se dizer que ele é um presente ao ou- vinte. É claro que a pessoa que conta um chiste também está provo- cando seu próprio riso — e prazer — porque quando ela o conta, de modo sério, causando o riso no outro, acaba também por se juntar ao ouvinte com um riso (embora moderado). No caso do humor, a atitude humorística é um dom raro, muitos nem têm a capacidade de usufruir desse prazer que lhes é presenteado. Entre os métodos técnicos levantados pelo autor — que nem mesmo ele pôde enumerar — estaria aquele que permite livre trân- sito aos pensamentos, que são usuais no inconsciente e que, fre- quentemente, são tomados por “raciocínios falhos” no consciente ou, como ele próprio chama, pelo nonsense. Um chiste que se vale da técnica do raciocínio falho, que se mostra como absurdo, pode produzir um efeito cômico. Embora Freud tenha uma visão fisiológica do riso que não inte- ressa ao nosso trabalho, algumas de suas observações são perti- ACRIANÇA E A MAGIA DA LINGUAGEM 51 nentes aqui. Por exemplo, o fato de que o riso é resultado de uma distração da atenção (consciente) do ouvinte e de que só se realiza se o chiste se colocar como um elemento-surpresa, ou seja, se for uma novidade para o ouvinte. Desse modo, um chiste, para ser bem-sucedido, necessita sempre de um novo ouvinte. Um outro recurso que colabora para intensificar o efeito do chiste — embora não seja condição necessária — é o uso do nonsense. Vale dizer sobre o nonsense ou sobre os chistes nonsense!” ou concep- tuais, como Freud assim os denomina, que se trata de um jogo com pensamentos — e não de um jogo com palavras como os chistes ver- bais. Eles proporcionam prazer a quem os conta, mas irritam o ou- vinte, que, apesar de enganado, não se sente tão aborrecido devido à possibilidade de (re )Jcontá-los em outra ocasião. Para Freud, o humor não se resigna, desafia. Implica o triunfo do eu e do princípio do prazer que consegue se afirmar diante da realidade desfavorável. Para ele, não existe o senso de humor, mas, independentemente da razão, o humor é o alvo ideal das pessoas que riem. Para as que não entendem esse humor, que são privadas dos prazeres raros, ao contrário, pode ser ofensivo, mas sem dúvida revela uma inadequação à sua categoria social ou à sua faixa etária. Ingenuidade, superioridade e zombaria A ingenuidade introduzida pela representação infantil evoca o tempo em que o adulto, ainda criança, vivia essa causalidade má- gica. Muitas vezes, rimos de algumas coisas que as crianças falam e em alguns casos elas parecem ignorar o valor cômico de seus ditos. Trata-se, em geral, de descobertas e confusões involuntárias das crianças que agradam mais os adultos e que podem se manifestar através de jogos de linguagem, criações lexicais, confusões foné- ticas (homofonias) e semânticas (polissemias). E a graça que acha- mos de suas produções pode ser reforçada pela persistência da 17. Exemplo: “A vida é uma ponte suspensa”, disse o homem. “Por quê?”, per- guntou o outro. “Como posso saber?”, diz o primeiro (p.133). 54 ALESSANDRA DEL RÉ cessário tecer alguns comentários sobre algumas outras pesquisas que também se preocuparam com o humor na/da criança. Entre- tanto, devemos ressaltar que não se trata de fazer neste item uma apresentação completa dessas pesquisas, em primeiro lugar porque a maioria delas foi realizada por psicólogos cujas preocupações gi- ravam em torno dos aspectos cognitivo, desenvolvimentista e emo- cional. Não que elas não sejam importantes, mas não são prioridades — nem desprezadas — neste trabalho, cujo foco é essencialmente o enunciado humorístico. Em segundo lugar, vale dizer que não te- mos a pretensão de desvendar a origem do humor na criança como a maioria dos trabalhos até então realizados - mesmo porque não acreditamos que seja possível apontar, pontuar esse momento —, mas de colocar em evidência, através dos dados que coletamos, um humor infantil precoce desacreditado. Por fim, devemos dizer que outras pesquisas aparecerão ao longo do trabalho a fim de atender à nossa necessidade de evocar o que existe sobre determinado ele- mento humorístico. A referência que usamos como ponto de partida para nossa pes- quisa foi o livro escrito por Françoise Bariaud (1983) intitulado La genêse de "humour chez V'enfant. Como o próprio título sugere, trata- -se de desvendar o humor no momento em que ele emerge. Para tanto, a autora parte de dois princípios que lhe são essenciais: o de que deve haver um domínio por parte da criança sobre o humor e o de que existe um sentido subjacente ao que ela chama de incon- gruência (ver item 2.3) que é componente determinante para a iden- tificação das origens desse humor. Seu estudo baseia-se nas respostas de crianças entre 7 e 11 anos que explicitaram a(s) razão(ões) pela(s) qual(is) achavam ou não determinado desenho engraçado.'* Apesar das inúmeras contribuições que essa obra pode trazer, sobretudo quanto às categorias de análise — temos nela referências sobre a realidade e a ficção, sobre aquilo que não é normal para as crianças, etc. —, ela tem algumas limitações. A primeira refere-se ao 19, A respeito do porquê do riso, Bariaud diz que esse tipo de questionamento é típico de um psicólogo. ACRIANÇA E A MAGIA DA LINGUAGEM 55 fato de se tratar de um estudo das reações das crianças diante de desenhos. Como diz a própria autora, seus dados não permi- tiram desvendar o que desencadeou o riso das crianças, mas a razão pela qual elas não riem. Assim, não apenas não foram levadas em consideração as criações humorísticas das crianças (e isto exclui também os mecanismos que elas usaram, o contexto de produção, etc.), como também, devido à natureza dos desenhos escolhidos, a idade mínima das crianças teve de ser 7 anos. Segundo ela, a criança menor de 4 anos, em geral, não pode explicitar o sentimento da- quilo que é “engraçado”, e sua preocupação era justamente a de analisar as respostas de sujeitos capazes de julgamento e de explici- tações sobre uma situação humorística. Mas será que um estudo realizado com crianças dessa idade — embora eventualmente ela faça algumas referências a crianças mais novas — dá realmente conta deregistrar a gênese do humor na criança, como pretende a obra? A própria autora diz na introdução de seu trabalho que ela “gostaria de ter podido desvendar em que momento o humor aparece no curso do desenvolvimento do indivíduo...”.ºº Um outro problema que poderíamos apontar é o fato de os risos e sorrisos terem sido desencadeados por desenhos — e não enunciados — e que, portanto, não podemos ter certeza se a criança riu ou sorriu de algo estranho ligado à parte gráfica desses desenhos. Para Bariaud (1983), o humor é desencadeado pela incon- gruência, ou seja, uma discordância na ordem habitual das palavras ou das coisas, associada ao que ela chama de adesão afetiva. No que se refere a essa incongruência (não normal), o que diferencia as crianças dos adultos é que as primeiras respondem a ela de maneira não realista, i.e., diante de um palhaço com dois narizes, por exemplo, elas não vão dizer algo do tipo “isso não é possível”, “um palhaço não tem dois narizes” (na realidade), por isso não é engra- çado; ao contrário, ele é justamente engraçado por essa razão, 20. “[..] Paurais voulu pouvoir déceler à quel moment "humour apparait dans le cours du développement de Pindividu” (Bariaud, 1983, p.19) 56 ALESSANDRA DEL RÉ porque joga com algo que não é possível num mundo real, mas num mundo imaginário. No que se refere à adesão afetiva, René Zazzo — que escreveu o prefácio do referido livro — se pergunta se essa cumplicidade entre os interlocutores está realmente ligada ao humor, zombaria gentil, humildade, uma forma mais sutil pois se sustenta em si próprio, ou à ironia, maldade hostil. Para ele, Bariaud tratou da ironia em seu estudo com as crianças, e não do humor, considerando que “o humor reside mais nas palavras que nos traços gráficos [...]. Como imaginar, aliás, que um desenho possa expressar a humildade, a distância de si mesmo? Seu alvo é exterior ao desenhista e ao desti- natário. Para ele, a ironia precede e prepara o humor, forma tardia de inteligência à qual, portanto, não se teria acesso antes da ado- lescência” (Bariaud, 1983, p.11-2). Nós nos perguntamos se essa última afirmação seria realmente verdadeira e procuraremos res- pondê-la com base em nossos dados, no momento da análise. Ao contrário de Bariaud, Paule Aimard (1988) acreditava — e nós também — na precocidade do aparecimento do humor. Para ela, desde que nasce, o bebê é capaz de reconhecer a voz, o rosto de pes- soas de sua família, reconhecimentos estes que criam um contexto familiar no qual a criança vai progredir, imitando, adquirindo há- bitos e exercendo atividades que vão compor o seu savoir-faire. É o que ela denomina de pré-humor, i.e., algo que está no centro de cada sujeito, um caminho em direção ao humor — mas que ainda não é humor — e que, portanto, só poderia ser identificado a partir de testemunhos dos pais que confeccionariam uma espécie de diário de registro desses momentos que o antecedem. A fim de demonstrar esse caminho, Aimard recorre à obra de Freud (1905) — à qual nos referimos no item anterior — e associa al- gumas noções tratadas por ele à sua pesquisa sobre o humor. Na primeira noção, o humor estaria ligado à ideia de liberdade, de triunfo do narcisismo e da afirmação e vitória do “eu”. A partir dela, é possível identificar os primeiros traços de humor na criança quando esta se encontra diante dos “espinhos da realidade” e deve obedecer ao adulto, aquele que sempre tem razão e que é o mais ACRIANÇA E A MAGIA DA LINGUAGEM 59 Embora a criança entenda a regra e aceite o que o adulto impõe, ela se esmera para conservar sua integridade, não se submete. Os dados coletados mostram que o bebê (menor que 1 ano) encontra muitas maneiras astutas de “escapar” das exigências dos adultos, de ceder, sem ofender e sem entrar em conflito: Laure encontra um modo de comer com os dedos sem que sua mãe fique brava, Etienne não se abaixa para pegar seu biscoito que caiu na areia... Encontrar uma solução humorística para uma confrontação autoridade/obe- diência é um jogo psíquico. O cotidiano oferece muitas ocasiões para se ter sucesso ou fra- cassar em suas brincadeiras (chistes) e o humor pode ser uma boa arma para escapar das situações difíceis. Trata-se de um dos meca- nismos de defesa do ego (Aimard, 1988, p.36): [...] ele ocupa lugar em uma grande série de métodos que a vida psíquica do homem edificou a fim de subtrair a pressão da dor, série que se abre pela neurose e pela loucura, e abraça igualmente a euforia, a dedicação a si mesmo, o êxtase. terceira noção associa humor e inibição. Segundo Freud, ao produzir humor é inevitável a sensação, seja ela duradoura ou tran- sitória, de inibição. É nesse momento que se pode pensar no humor aproximando-se do efeito do álcool, do vício. A fim de ampliar essas considerações de Freud sobre o humor, Sami-Ali vai estudar pequenos grupos de jovens egípcios que fu- mavam haxixe. A partir dessa pesquisa e das condutas? que dela resultaram, foi possível constatar que o chiste é um processo social “Jui ne peut se passer d'un tiers auquel il est destiné” (Aimard, op.cit., p.36). Isso quer dizer que aquele que produz o chiste, o humor, não aproveita diretamente dele; ele ri do riso que seu chiste provoca no outro, ele ri “por osmose”, porque o riso do outro mostra que seu chiste encontrou no outro as mesmas tensões e os 22. Os jovens se defenderam de modo inocente dos que estavam numa posição de poder, partilhando um repertório comum de histórias humorística 60 ALESSANDRA DEL RÉ mesmos recalques. O riso teria aqui, então, a função de aliviar as tensões, suprimindo os recalques. A quarta noção relaciona humor e agressividade. A ideia de- fendida aqui é a de que o humor, de alguma maneira, ameniza os elementos agressivos que não seriam suportados em estado bruto. É claro que parte dessa agressividade acaba se manifestando até mesmo nas produções humorísticas mais inocentes, mas, graças ao misterioso charme do humor, esse pequeno ponto de agressividade não é percebido (ou quase!). Na verdade, prazer e riso caminham com a angústia e a agressi- vidade e é dessa ambiguidade de afetos que nasce o humor. Na quinta e última noção, Freud e seus seguidores propõem que uma parte do prazer humorístico venha da atividade intelec- tual que o receptor deve exibir para compreender e partilhar (Ai- mard, 1988, p.38). Além dessas noções, podemos dizer que o estudo desenvolvido por Aimard vem também de certa forma suprir uma lacuna no que se refere à língua da criança. Com frequência, os teóricos tentam definir o humor (na criança) com base no humor adulto, i.e., a partir de uma variedade de formas e conteúdos. Nesse sentido, seu estudo permite compreender melhor o fenômeno, privilegiando o início de seu desenvolvimento. Ao longo do livro, a autora descreve as observações recolhidas pelos pais do bebê de todos os momentos em que a criança brinca: cócegas, jogos de linguagem (ver item 3.3), etc. Sua pretensão não é a de levantar questões para defender uma tese, mas de apresentar fatos, observações variadas suscetíveis de provocar interrogações e mesmo de estimular debates e de in- citar novas pesquisas. Mas, apesar dos avanços alcançados com esse estudo, devemos fazer algumas ressalvas. Além do fato de ser mais descritivo que explicativo, ele também não dá conta de distinguir, em suas obser- vações, aquilo que inicia o humor. É óbvio que a relação — de coni- vência — que a criança estabelece com os pais faz com que todos riam, numa espécie de riso contagiante — como veremos nos dados (capítulo 5). Os pais riem, em geral, dos erros e dos “tropeços” ACRIANÇA E A MAGIA DA LINGUAGEM 61 (ingênuos) da criança em relação à linguagem; trata-se de um riso afetuoso que chama a atenção da criança para suas condutas lin- guageiras, para suas produções e permite que ela tome “cons- ciência” de seu erro numa atmosfera agradável, sem cobranças. Ao mesmo tempo, a criança pode se dar conta de que existe nesse “re- curso” uma maneira de fazer o outro rir, maneira esta que em se- guida ela poderá utilizar intencionalmente. Uma outra restrição a ser feita com relação aos critérios de ob- servação, é que eles exigem, por outro lado, maior precisão, já que as instruções dadas aos pais são por vezes muito “abertas”: afinal, o que faz os pais rirem é o mesmo que faz as crianças rirem? A esse respeito, o estudo realizado por Figueira (1997b) com uma criança a partir dos 2 anos revela que, em um trocadilho ou em um jogo de palavras bem-sucedido, estão presentes o riso do ouvin- te, o espanto ou o estranhamento diante da possibilidade de fazer outros sentidos percorrerem a matéria linguística. Mas não se sabe ao certo que caminho a fala das crianças segue na produção de sen- tido; ela parece seguir rotas diferentes das previstas dentro do sis- tema linguístico adulto e das normas de uso nas situações de interação verbal. Há ditos que: a) segmentam de maneira divergente uma sequência linguís- tica; b) parecem ignorar o valor ilocucionário de uma fala, atri- buindo outro; trata-se do caso da “piada involuntária”: aqui o dado é potencialmente capaz de fazer os outros rirem, tem o efeito de piada ou ao menos torna-os curiosos do que se passa no universo infantil... Exemplo: A criança (3; 0, 20) está na sala picando papel com a te- soura, fazendo grande desarrumação; a mãe entra e, aborrecida, dirige-se a ela, em tom recriminador: M - Pra que cortar papel, A? A — Pra ficar pequenininho, né? Senão fica grande. (Fi- gueira, 19976, p.16) 64 ALESSANDRA DEL RÉ biguidade; atenua um estilo autoritário que é comum nas crianças; e, por fim, d) pessoais: ele mantém relações com a personalidade — as crianças consideradas por seus colegas como pouco engra- çadas são crianças que se isolam e com frequência rotu- ladas como tímidas e silenciosas. Tal estudo, além de ressaltar a importância da interação no es- tudo do humor, traz à tona, sobretudo nesses dois últimos fatores, aspectos que poderiam ser mais explorados no âmbito educacional, se considerarmos as relações que se estabelecem entre as crianças na escola e entre elas e o professor (ver item 3.3). Finalizando este item — sem, no entanto, termos falado a res- peito de todas as pesquisas realizadas nesse âmbito —, voltaremos à discussão proposta no início dele, a saber, a estreita ligação exis- tente entre o “humor” e os termos que lhe são aparentados. 1.6 Um fecho e uma abertura Mas, afinal, é possível dissociar o humor dessas noções que apresentamos até o momento (riso, chiste...)? Para responder a essa pergunta, partiremos de uma distinção proposta por Almeida (1998): Localização psíqui a) Chist b) Humor: superego. : inconsciente. c) Cômico: do pré-consciente para o consciente. Pessoas envolvidas: a) Chiste: três. b) Humor: uma. c) Cômico: duas. ACRIANÇA E A MAGIA DA LINGUAGEM 65 Registros: a) Chiste: relação com o real. b) Humor: simbólico. c) Cômico: imaginário. Ainda que concordemos com essa diferenciação, ela não dá conta de explicar os enunciados humorísticos infantis, principal- mente quando se trata de analisar diálogos que envolvem duas ou três pessoas, como é o caso desta pesquisa. Na verdade, essa, como outras tentativas de “separação”, parecem mais evidenciar a difi- culdade de se distinguir esses termos. Aliás, um primeiro obstáculo aparece logo no momento de defini-los - problema este que já apontamos no item 1.1 deste capítulo. No livro de Emelina (1996), ele se transformou até em título de um dos capítulos “O irritante problema do humor...”. Já se sabe que o humor é uma das mais altas manifestações psí- quicas e que já foi objeto de pensadores. Freud fala do humor como um modo de conseguir prazer (risos) apesar dos afetos dolorosos da infância, no caso do adulto, e dos dias atuais, no caso do humorista. O prazer humorístico seria, assim, uma maneira de distanciar aquilo que causa sofrimento — e consequentemente provoca estra- nhamento — para o homem. É através de uma palavra ou de um fato inesperado que a dúvida aparece criando o distanciamento. Esse distanciamento também é mencionado por Emelina (1996, p.84)” em sua definição sobre o cômico: “a condição necessária e suficiente do cômico é uma posição de distância em relação a todo fenômeno considerado como normal e em relação a suas eventuais consequências”. No que se refere especificamente ao cômico verbal, à fantasia verbal, ao trocadilho, ao chiste, ao humor, o riso aparecerá se se tratar de um jogo por si só, fora do real, e se se referirem a persona- gens com os quais não vislumbramos nenhum tipo de vínculo. 25. Minha tradução. 66 ALESSANDRA DEL RÉ Mas essa sutil fronteira que parece existir entre o cômico e o humor — e que contribuiu para a confusão que se estabelece entre eles - também é encontrada em relação a outros termos. Entre o cômico e oriso, temos dois grandes exemplos de autores que associavam essas noções: Bergson e Freud. Bergson (1900, p.51-2) fala em mécanisation de la vie no que se refere ao aspecto cômico. Para ele, o inanimado que se opõe ao “animado” (pessoa viva) faz rir, tem um efeito cômico. Sua ideia inicial a respeito do cômico é que se trata de um efeito que acontece depois das alegrias da infância. “Com frequência, temos dificul- dade em reconhecer o que ainda há de infantil na maior parte de nossas emoções felizes.” Em sua teoria, o absurdo tem um papel importante porque diz respeito à estranha lógica do personagem cômico. Mas só é cômico o absurdo que é uma inversão do bom senso: aquele que molda as coisas com uma ideia — e não o contrário. Freud diz dar um passo além de Bergson: o cômico não é um prazer recordado, ele surge da comparação: entre mim e uma pessoa (nesse caso, a pessoa pareceria uma criança); no interior da outra pessoa (aqui, ela se reduziria a uma criança); no interior do eu (eu descubro a criança em mim). Uma das condições enumeradas por Freud para a produção do prazer cômico é a disposição ou a inclinação da pessoa para o riso. Para quem possui essa disposição, tudo parece cômico. Para ele, as crianças não têm esse sentimento. Os enunciados que em outras pessoas poderiam ser considerados chistes ou obs- cenidades, nas crianças não passam de ingenuidade cômica, na medida em que permanecem fiéis à sua natureza — seu prazer é puro. Esse sentimento do cômico só começa a partir de um deter- minado momento do desenvolvimento mental. Ela não diz “ele faz assim, eu tenho que fazer assim, assim eu faço”, porque ela 26. “Trop souvent surtout nous méconnaissons ce qu'il y a d'encore enfantin, pour ainsi dire, dans la plupart de nos émotions joyeuses.” ACRIANÇA E A MAGIA DA LINGUAGEM 69 Nesse sentido, essas distinções — ou a falta delas - não parecem colaborar muito com as pesquisas de um modo geral, nem com esta em particular, uma vez que se trata apenas de uma visão — como outras que vimos no item anterior — dentro da qual daremos ao humor uma definição que sintetizará o conjunto de seus consti- tuintes neste trabalho. É por essa razão que falaremos, a priori, indistintamente do humor, do cômico, do rísível e, quando necessário, estabelece- remos algumas oposições ou falaremos mais especificamente de cada um deles. No próximo capítulo, trataremos de questões linguísticas e dis- cursivas — que podem ser utilizadas em outros domínios, além do humor — com vistas ao estudo do humor infantil. 2 REVISITANDO ALGUMAS TEORIAS SOBRE O ESTATUTO LINGUÍSTICO E DISCURSIVO DO HUMOR INFANTIL O homem é o único ser vivente que ri. Aristóteles Na tentativa de cercar o humor numa perspectiva linguística e discursiva, teceremos alguns comentários — sem a pretensão de tratar exaustivamente deles — a respeito de alguns autores e teorias que não foram mencionados até o presente momento, mas que são imprescindíveis ao nosso estudo, já que permeiam as situações dia- lógicas. Assim, num primeiro momento, trataremos das noções de inte- ração, dialogismo, polifonia e tutela. Em seguida, a fim de verificar de que modo as interações se desenvolvem no diálogo, atentaremos para os modos de encadeamento discursivo que se constroem no discurso. Assim, falaremos, num primeiro momento, da conivência como um dos modos de convergência dialógica, da explicação — ar- gumentação, definição, etc. — enquanto continuidade, e das irrup- ções, incongruências e anomalias no âmbito da descontinuidade discursiva, todas elas contribuindo para a composição de um ce- nário em que o humor discursivo é construído. 74 ALESSANDRA DEL RÉ alguém mais experiente (mãe, professor, outros adultos, colegas mais velhos). A ZDP define, assim, as funções que existem em forma de embrião, em processo de maturação. É a interação com outras pessoas, a aprendizagem que dela surge, a responsável pela criação dessa zona. Diante disso, podemos dizer que o sociointeracionismo caracte- riza-se pelo estudo do processo dialógico instaurado entre a mãee a criança, no qual a primeira, sujeito constitutivo da fala da criança, desempenharia o papel de mediadora entre a criança e os objetos. Aliás, o que a criança exercita nesse processo dialógico, nas pri- meiras fases, são os procedimentos comunicativos e cognitivos jus- tapostos, que podem vir a ser coordenados somente, segundo De Lemos (1982), à medida que eles se tornam mais eficazes na ação sobre seu interlocutor, o que permite à criança relacioná-los e cons- truir subsistemas. Bakhtin (1988) também ressalta a importância do aspecto social no estudo da linguagem, mas associado a uma realidade dialógica; a linguagem é, para ele, o resultado da interação social do locutor, do interlocutor e do tópico do discurso. Essa interação só pode ser compreendida levando-se em consi- deração que o sujeito, antes concebido como centro da interlocu- ção, torna-se histórico e ideológico, uma vez que é substituído por diferentes vozes sociais. No que se refere ao compromisso com o social, para Bakhtin é impossível conceber o indivíduo fora da sociedade, por isso consi- dera a interação socioverbal como sendo a realidade da linguagem. Entenda-se por socioverbal a interação segundo a qual o indivíduo deve ser apreendido no concreto das relações sociais. Nesse sentido, o discurso é sempre social, pois discursa com ou- tros discursos ou, como afirma Bakhtin, o discurso se encontra na fala do dia a dia, uma vez que a todo momento faz-se menção à fala do outro, na tentativa de dar credibilidade à própria fala. Para Bakhtin, a língua é um fenômeno socioideológico e, sendo assim, sua essência reside na interação verbal, que se manifesta através de uma ou mais enunciações. A partir dessa preocupação ACRIANÇA E A MAGIA DA LINGUAGEM 75 com a dimensão ideológica,? deixada de lado por Vygotsky, que aludia mais aos aspectos psicológicos e pedagógicos, é que se torna possível discutir, não só a diversidade cultural, mas também a va- riedade linguística, as lutas de poder dentro da sala de aula, colo- cando a questão do psiquismo (a atividade mental do “eu” e do “nós”) dentro desse ideologismo. Segundo o autor russo, através de uma perspectiva histórica e social, na qual o homem é concebido no conjunto dessas relações sociais, é possível apreender a linguagem e a criação ideológica, e, uma vez que essa apreensão se baseia no critério social, é possível identificar na voz de cada indivíduo a voz do outro e, portanto, falar em vozes, na voz do outro em cada indivíduo. Pode-se dizer, assim, que seu objeto de estudo será o discurso do outro (discurso citado ou enunciação da enunciação) represen- tado no discurso. Esse discurso representado garante o caráter dia- lógico à comunicação verbal, isto é, a comunicação passa a ser uma confrontação de diversas opiniões, intenções, comentários implí- citos, etc. Esse caráter dialógico, ao qual se fez menção, pode ser encon- trado em toda sua cosmovisão, na medida em que a ele interessam as vozes do discurso com as quais interage buscando uma síntese dialética de vozes contrárias. Essa noção de dialogismo instaurada por Bakhtin aponta ainda para o diálogo entre vários textos da cul- tura, que se instala no interior de cada texto e o define. No que diz respeito à palavra, ela se forma a partir da união e da relação entre o “eu” eo “outro” e pode ser considerada como sendo o território comum do locutor e do interlocutor (Bakhtin, 1988). As nossas palavras, de acordo com Bakhtin, se baseiam na “palavra do outro”, palavra essa que tem uma perspectiva ideológica própria. Assim sendo, possui vida e é sempre uma opinião concreta, uma visão de mundo que se contrapõe a outras. 2. Isto é, uma realidade material que reflete uma outra realidade que lhe é exte- rior; é a função representativa do signo 76 ALESSANDRA DEL RÉ Um enunciado é parte integrante de um diálogo ininterrupto, como uma voz que traz em si a perspectiva da voz do outro, a in- tenção e a opinião alheias. Nesses termos, pode-se inferir que a voz do ser humano é híbrida por natureza e, por isso, o ato de com- preender pode ser comparado a uma viagem a um país estrangeiro, adentrando esse novo país e vendo como o outro (estrangeiro) vê, passeando pelas nuances intencionais daquele que fala, aproprian- do-se de suas palavras em suas intenções e opiniões. Toda palavra viva pode ser considerada, assim, impura, dupla, dialógica, ou ain- da, como diz Bakhtin, somente o Adão mítico, emitindo sua pri- meira palavra em um mundo ainda virgem, poderia evitar essa orientação dialógica sobre o objeto com a palavra do outro. À consciência e o pensamento de cada um são formados não apenas a partir das palavras, mas das ideias dos outros, relati- vizando, assim, a natureza da autoria. Há, segundo o autor, um processo de esquecimento progressivo dos autores (depositários da pa- lavra do outro), o qual seria ocasionado por uma transformação das ideias originais dos autores em opinião. Mesmo no caso do discurso interior, a fala do outro também aparece, mesmo que seja através de um locutor que detenha a fala (palavra) como algo particular e individual. O discurso do outro pode ser assumido por esse locutor como uma fala autoritária ou como uma fala interiormente persuasiva. No primeiro caso, é possível identificar tal fala como sendo a do cientista, do pai, do professor e outras, disseminadas sob diversas formas de citação. O dialógico, aqui, é uma garantia da autoridade do locutor. No discurso autoritário abafam-se as vozes dos per- cursos em conflito e a voz que aparece se instaura como verdade única, incontestável. No segundo, ao contrário do primeiro caso, a fala está privada da autoridade; há um conflito entre a fala do locutor e as outras falas que ele incorporou. A estrutura semântica da fala persuasiva interna, por não estar apoiada no conhecido, não acaba nunca, está sempre aberta a novas possibilidades semânticas, no que se refere à fala cotidiana. ACRIANÇA E A MAGIA DA LINGUAGEM 79 condutas linguísticas da mesma. Obviamente, o que se espera obter por parte dos interlocutores não são respostas /ações condicionadas, e sim uma dinâmica dialógica que se manifeste através dos gêneros discursivos. François (1996) faz menção a outros aspectos que devem ser considerados quando se trata da tutela em situação de discurso como: (a) a capacidade da criança para fazer certos usos da lin- guagem; (b) a interação dinâmica, em que se oferece ajuda naquilo que a criança estava tentando fazer/dizer e na qual é possível haver uma inversão de papéis entre criança e adulto; e (c) os atos que po- deriam resultar em contratutela, tais como a correção formal, a in- compreensão de um erro cometido pela criança e os insistentes pedidos de repetição. Pode-se entender esse último aspecto, segundo François, se considerarmos a ZDP proposta por Vygotsky, ou seja, se a tutela ocorrer nas extremidades dessa zona, onde a criança é capaz de fazer alguma coisa sozinha ou onde a tarefa é muito difícil para ela, pode-se ter como resultado uma contratutela. Para evitar tal resul- tado e auxiliar a criança, em se tratando de uma tarefa sensório- -motora, podemos recorrer não só às verbalizações, mas também aos gestos. É importante dizer, contudo, que, quando se trata de ajudar a criança a criar seu discurso, isto é, a realizar uma tarefa linguística e não prática, outros aspectos, além desses, devem ser levados em consideração (Melo, 1999). No que se refere às interações em que predominam as relações de tutela, na qual o mais experiente orienta o menos experiente, podemos observar que há, concomitantemente ao desenvolvimento da linguagem da criança, um desenvolvimento de recursos retó- ricos em seu discurso. Trata-se de recursos retóricos articulados para a produção de efeitos de sentido no discurso, como o uso da persuasão (discurso persuasivo) com o objetivo de agir sobre o outro através da palavra e da razão (Mosca, 1999). Mas devemos ressaltar que a tutela não se dá apenas entre adultos ou entre adultos e crianças, podendo também ser encon- trada entre as próprias crianças, e ela nem sempre é responsável 80 ALESSANDRA DEL RÉ pela aprendizagem da criança, uma vez que a criança pode ser capaz de aprender sozinha. É no momento dessas produções que o adulto também pode adotar uma postura de tutor antecipador, apresentando a palavra; pode permitir as condições de generaliza: drando-as na norma da língua. É também diante dessa multipli- cidade de jogos com os signos linguísticos, das possibilidades humorísticas que eles oferecem, que o adulto, numa situação de tutela, ou fornece o modelo — se é que ele existe — do humor à criança ou simplesmente ele a deixa produzi-lo. Vale dizer também, com relação à função do adulto, que cabe a ele, mais do que explicitar as intenções comunicativas da criança — como propôs Bruner —, atribuir significado, interpretar de modo constante aquilo que a criança produz para que os fragmentos ga- nhem eficácia cognitiva e comunicativa (De Lemos, 1986, p.245). Diante disso, o papel do linguista é verificar como funcionam esses diálogos, em que um adulto (ou uma criança) ajuda uma ou maiscrianças a desenvolver uma tarefa que elanão poderia conseguir sozinha. Mas, para observar o funcionamento desses diálogos, é preciso atentar para a dinâmica que os constrói através dos encadeamentos, isto é, das relações entre dois ou mais enunciados diferentes sepa- rados por intervalos de tempo. Esses encadeamentos ressaltam não apenas a ligação explícita que existe entre os discursos (conver- gência, continuidade), mas também o implícito compartilhado, a diferença entre eles, e, sobretudo, aquilo que é objeto de diver- gência, descontinuidade, desacordo e conflito. o ou corrigi-las, engua- 2.2 Convergência, conivência e humor no diálogo* Partindo do pressuposto de que os modos de encadeamento dis- cursivos só se constroem nas trocas verbais, nas situações de in- 4. Este item retoma, com alguns acréscimos e correções, um artigo publicado no livro Afinal, já sabemos para que serve a Linguística?, IV Encontro de Alunos ACRIANÇA E A MAGIA DA LINGUAGEM 81 teração, consideramos a convergência dialógica como sendo o “engajamento” entre os interlocutores que partilham do mesmo objetivo: a construção — em conjunto — do discurso. Trata-se de sujeitos que, com suas diferenças, estão presentes no diálogo, al- ternam turnos, encadeiam enunciados e constroem referências, produzindo algo que é comum a eles. Para tanto, há um ajuste das perspectivas, a construção de um objeto do discurso, a concor- dância com relação ao tema, coincidência quanto à finalidade da atividade que está sendo desenvolvida. Já o fenômeno da conivência, embora possa ser identificado com uma certa facilidade na relação entre interlocutores, não parece ter recebido especial atenção nos estudos sobre o diálogo e, por mais simples que possa parecer, abordá-lo não é uma tarefa muito fácil. Comparando algumas definições de conivência existentes nos dicio- nários de língua portuguesa (Michaelis* e Aurélio”), é possível notar que a maioria deles se restringe a tratá-la como uma espécie de cum- plicidade baseada na abstenção — propositada ou dissimulada — de prevenir ou denunciar o ato delituoso. A ideia que se tem daquele que é conivente é de alguém que finge não ver o mal que o outro pra- tica, ou seja, ela traz, de um modo geral, uma conotação pejorativa que parece ter se perdido ao longo do tempo na língua francesa. De acordo com o Dictionnaire historique de la langue française (Robert), a partir de 1796, o sentido do termo parece ter ido em di- reção a um acordo tácito (subentendido), ainda de cumplicidade, da Pós-Graduação em Linguística (Enapol) da Universidade de São Paulo, 2002, artigo este que começou a ser desenvolvido, num primeiro momento, para uma comunicação apresentada durante o seminário Convergences et Di- vergences dans le Dialogue, na Université René Descartes-Paris V, junho de 2001 Michaelis, Moderno dicionário de língua portuguesa (São Paulo: Melhora- mentos, 1998). 6. Aurélio B. H. Ferreira, Novo dicionário de lingua portuguesa (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986). 7. Já o subentendido se caracteriza pela maneira segundo a qual um elemento se- mântico é introduzido no sentido, refere-se à maneira pela qual o sentido deve ser decifrado pelo destinatário (Ducrot, 1984b) 84 ALESSANDRA DEL RÉ senso, de conivência ou cumplicidade, o riso que denigre a própria imagem e convida o interlocutor a compartilhar a avaliação, e o riso acompanhado de um enunciado alusivo, que incita o outro a evocar acontecimentos esquecidos. No que se refere ao receptor, a manifestação de conivência de- pende da confirmação do acordo tácito e, assim, por ser implícita, depende da recepção dos pressupostos!! e enunciados alusivos. Desse modo, as marcas de adesão podem ser recuperadas através das aprovações (reações de apoio como “ah, sim, é verdade”, “ah, é claro”, que se encadeiam e até se sobrepõem (chevauchement) aos enunciados que respondem) e dos risos que seguem as brincadeiras ou as avaliações. Os risos em conjunto respondem a uma alusão e a algo implícito e manifestam a partilha de um estado de espírito, de um acordo emocional: G2 (4 anos e 1 mês) O cenário é a cama, à noite, antes de dormir. Ao lado de seu filho, a mãe começa a falar e o agradável ambiente faz com que os dois riam o tempo todo: M — Quem te deu esse narizinho tão lindo? G2 - Ninguém. M - Ninguém? Você roubou? G2 - Não, eu comprei. M - Comprou aonde? G2 - No narizeiro. (ri) M - Então o narizeiro vende nariz? G2 — É... tem nariz branquinho... pretinho... M— Ah, cada um compra o nariz da cor da sua pele, é isso? G2- É. 11. Segundo Ducrot (1984b), o que é pressuposto diz respeito à natureza de um elemento semântico veiculado pelo enunciado, é parte integrante do sentido dos enunciados. 12. Esta descrição foi feita pela mãe. ACRIANÇA E A MAGIA DA LINGUAGEM 85 M - E por que você não comprou um nariz pretinho? G2 - Porque aí eu ia ficar colorido. (ri) Visto que se trata de uma relação entre mãe e filho, podemos dizer que existe uma intimidade que pode ser identificada pela at- mosfera descrita pela mãe quando ela fornece o contexto da si- tuação (“mais uma vez, o cenário é a cama...”) e que pode também sugerir a ideia da existência de uma “pré-conivência”, se conside- rarmos o clima que frequentemente se cria numa interação desse tipo. A mãe pergunta-lhe onde ele comprou o nariz e quando o me- nino responde no narizeiro e ri (ri do próprio discurso e/ou da pró- pria esperteza), !* isso pode ser um indício da sintonia que existe entre os dois e também a confirmação da conivência procurada pela mãe. Pode-se dizer que, em geral, o motor do diálogo varia muito e que o jogo se apresenta de diferentes maneiras, mas, após esse enunciado em que a criança utiliza as cores como argumento (“É... tem nariz branquinho... pretinho”), o diálogo continua nesse tom de euforia, de concordância, de retomada (cada um copia a moda- lidade e a verbalização do outro), de jogo, de brincadeira, enfim, de zombaria, até o fim em que a graça se apresenta através da asso- ciação de que aquilo que é diferente, de outra cor (“pretinho”) não é bonito e é isso que faz a criança rir: “M — E por que você não comprou um nariz pretinho?/G — Porque aí eu ia ficar colorido. (ri)”. E mesmo que inicialmente o discurso da criança seja de re- cusa (“ninguém”, “não”), no decorrer do diálogo a conivência entre eles parece se estabelecer no que se refere à construção em conjunto de um mundo imaginário, fazendo emergir o humor. Na verdade, tudo faz parte de um processo de repercussão emo- cional: o acordo no dinamismo interlocutor-receptor, que se mani- 13. Ainda que a criança esteja rindo do que ela própria disse ou de sua esperteza em dizê-lo, permanece o fato de que a criança só se sentiu à vontade para rir de si mesma porque o clima e a sintonia entre ela e a mãe permitiram isso. 86 ALESSANDRA DEL RÉ festa por movimentos de avaliação compartilhada e retomadas (a função das retomadas — cópia da modalidade e/ou da verbalização do outro — é garantir a intersubjetividade enquanto constituição da díade como unidade: duas pessoas falam de uma mesma opinião e marcam, assim, sua proximidade), e a empatia (se aproxima da ideia de intersubjetividade, de partilha de representações de afetos e de ações). É nesse sentido que a conivência é frequentemente evocada para caracterizar a natureza das relações entre os interlocutores e uma certa qualidade do diálogo. Ela não deve ser entendida a partir de uma única categoria de índices, e, sim, ser abordada, na diná- mica da troca (que se constrói no decorrer do diálogo e só existe se for provocada, atualizada e confirmada), a partir de um feixe con- vergente de movimentos e de traços linguageiros e não verbais. É nesse sentido que ela pode ser considerada um acontecimento dia- lógico. Trata-se, portanto, mais especificamente, de supor instru- mentos de análise que permitam dar conta dessas configurações dinâmicas e colocar a conivência no conjunto das formas de con- vergência dos interlocutores no diálogo. Assim, não se pode falar em traços específicos da conivência, mas em um conjunto de índices (significações atmosféricas [François, 1996]) que marcam o implícito, a partilha de saberes, a convergência, o consenso, o alinhamento, a proximidade e o humor. São esses índi- ces verbais e não verbais (os risos, os sorrisos) — os olhares, a ento- nação ou a qualidade da voz não serão considerados neste estudo — dos locutores e dos receptores que serão estudados aqui a fim de fornecer algumas pistas desse humor no discurso infantil. Esses índices coexistem com uma orientação argumentativa di- vergente, o que mostra que conivência e acordo não devem ser con- fundidos, pois pode haver negociação de desacordo numa relação de proximidade e convergência afetiva: G (3; 4) mostra seus desenhos à sua mãe, que pede a ele que conte piadas. A irmã mais velha (C) também participa do diá- logo: ACRIANÇA E A MAGIA DA LINGUAGEM 89 que constatamos o humor infantil desencadeando-as. Mas essas con- dutas explicativas podem se manifestar de diferentes maneiras e é isso que mostraremos a seguir. A explicação, enquanto objeto de estudo da Linguística, tem sido eleita nos últimos tempos, sobretudo a partir dos anos 1980, por alguns autores como Borel (1980) e Grize (1980), entre outros. Os estudos que sucederam essas primeiras pesquisas também pas- saram a dar enfoque à linguagem da criança, mais especificamente às variadas condutas explicativas produzidas pelas crianças pe- quenas. É o que se vê, por exemplo, nos trabalhos de Bonnet & Tamine-Gardes (1984), Halté (1988), Hudelot et al. (1990), Vene- ziano (1999), etc. Autores como Grize (1982, p.57), Mollo et al. (1990) e Jisa & Mariotte (1990) discutiram em seus trabalhos a dificuldade em se definir a noção de explicação, alegando que (a) alguns conectores como “porque” ou “então” podem indicar uma explicação de causa ou conseguência e que, (b) para alguns, tudo pode ser entendido/ interpretado como explicação: as paráfrases, as definições, etc. Uma das razões que também justificam a dificuldade em se de- finir o termo diz respeito ao limite existente entre ele, o comentário, a argumentação e a justificação. Poder-se-ia dizer que, no comen- tário, a verbalização ocorre longe da ação, ao passo que, na expli- cação, tem-se a verbalização na ação. No que se refere à argumentação, por sua vez, a distinção não é tão simples. Na argumentação, o enunciado conduz o interlocutor em direção a uma ou mais conclusões possíveis; isto quer dizer que, se o enunciado não leva a uma conclusão, então, não se trata de um argumento. De acordo com Brandt (1988), os argumentos são as razões ex- plícitas, uma espécie de prova dada pelas pessoas (inclusive pelas crianças) para convencer e justificar as decisões tomadas, a escolha efetuada, explicitando aquilo que as impulsionou a optar por uma coisa em detrimento de outra. Essa necessidade de justificar está ligada ao fato de que a decisão é tomada diante de outras pessoas que precisam ser convencidas, como um amigo e/ou o pesquisador. 90 ALESSANDRA DEL RÉ Essa ideia retoma, de certo modo, a proposta de Perelman (1987), segundo a qual se está no campo da argumentação quando se indicam razões em favor da aceitação ou da recusa de uma prova demonstrativa (tese). Para o autor, trata-se de falar (bem) com o objetivo de persuadir e convencer — obter a adesão — um auditório que esteja disposto a escutar. Partindo dessa noção, Borel et al. (1983) dizem que existem si- tuações nas quais o interlocutor se vê “coagido” a entrar no jogo proposto pelo orador, a argumentar, a se explicar, pois, mesmo sa- bendo que ele está certo e que o outro está sendo injusto, é o que lhe resta a fazer. Mas essa intervenção, que uma pessoa é pressionada a fazer, é só uma etapa de uma interação que não tem necessaria- mente como objetivo a concordância ou a adesão do outro. A esse respeito, entretanto, concordamos com Salazar-Orvig (2003), cuja noção de conivência propõe, não a concordância do outro, mas um certo tipo de adesão do mesmo, seja por meio de ex- pressões que impliquem esse outro no discurso, seja por meio de indicações implícitas, brincadeiras, risos, etc. De qualquer modo, são os argumentos em favor de uma escolha o que Brandt (1988) chama de justificação. Na verdade, tanto a Justificação quanto a argumentação podem ser consideradas proce- dimentos semelhantes, entendendo-se que a primeira se apresenta como um enunciado que se destina a fazer admitir uma outra coisa, um outro enunciado, e a segunda pressupõe a competência do lo- cutor para fornecer um argumento em favor de uma posição (Gau- thier, 1998). No que se refere à oposição justificação/explicação, por sua vez, Adam (1992, p.130) diz que justificar é responder à questão “por que afirmar isso?” — justificam-se então as palavras — e explicar é responder a “por que ser/tornar-se isso ou fazer aquilo?” — ex- plicam-se os fatos. Para Borel (1980), a dificuldade em se delimitar aquilo que per- tence ao campo da explicação ou da argumentação reside no fato de que, para validar posições, sustentar julgamentos, precisa-se da ACRIANÇA E A MAGIA DA LINGUAGEM 91 razão, enquanto o desenvolvimento de um procedimento explica- tivo requer provas, debate de princípios. Por esse motivo, o dis- curso explicativo, sobretudo, não pode existir isoladamente, fora de seu contexto, de suas relações com outros discursos, da situação que o determina e onde ele tem efeitos. Do mesmo modo, visto que é possível explicar um signo — dar o seu significado — definindo-o, por meio de palavras, mais uma vez não conseguimos visualizar a tênue linha que separa, dessa vez, os termos “definir” e “explicar”, que são inclusive interpretados como sinônimos no âmbito da significação. Na verdade, a defi- nição “é um tipo particular de explicação, onde a linguagem deixa de ser apenas um instrumento de comunicação e passa a ser um objeto do pensamento” (Mariano, 2002, p.37). Mas o ato de definir não consiste apenas em dar o significado de uma palavra. É necessário precisar seu uso na língua (pragmática), adaptar a forma (sintaxe, semântica, léxico) ao contexto e ao inter- locutor (Wittgenstein, 1984). No que se refere especificamente à criança, sua definição tem como base sua experiência subjetiva, no seu dia a dia, totalmente ligada à situação de produção, diferentemente das definições dadas pelo adulto, que privilegiam as relações intralinguísticas, como as que aparecem nos verbetes dos dicionários. A ela interessa co- nhecer seu interlocutor, saber se se trata de outra criança, de um adulto, etc., e que tipo de interação se estabelece entre eles (uma conversa informal, o número de interlocutores, etc.). Por essa razão, a criança se vale de atributos dos objetos, da livre associação de sentidos entre as palavras, e em geral ela se deixa in- fluenciar pelo que deve definir; por exemplo, existem palavras que favorecem a definição pelo gênero (“banana é uma fruta”), pela exemplificação (“dirigir, é dirigir um carro”), pela função (“faca é para cortar”), pela forma (“dado é quadrado”)... Vejamos o epi- sódio a seguir: No caminho da escola G A (4; 5 anos) pergunta para sua mãe: GA - Mamãe, o que é infinito? 94 ALESSANDRA DEL RÉ A explicação na criança Quanto mais a criança conhece, mais ela se encontra diante de problemas que necessitam de explicação. Explicar um novo fenô- meno a alguém é remetê-lo a outros fenômenos já conhecidos — levá-lo à dedução — e colocar à sua disposição uma nova informação (Grize, 1982, 1980). Assim, a explicação acontece quando um dos interlocutores fornece uma nova informação (explanans) que se re- fere a um objeto de atenção conjunta (explanandum). Essa nova informação esclarece o que não estava claro, algo que perturbava a compreensão, ou o desenrolar esperado da atividade. A necessi- dade de uma explicação pode aparecer de forma explícita no diá- logo (verbal ou não verbal) ou pode ser pressuposta pelo locutor (Jisa & Mariotte, 1990). Intuitivamente, podemos supor que algumas sequências expli- quem alguma coisa, embora elas não contenham os termos “ex- plicar” ou “por que...”, e é nesse momento que se faz necessário recorrer à situação na qual o discurso foi produzido (Grize, 1980). Pode-se explicar pelo puro prazer de fazê-lo, mas na maioria das vezes explica-se com a finalidade de intervir ou ainda para se apropriar de um discurso (op.cit.). A explicação pode também ser usada com o objetivo de causar algum efeito (componente perlo- cutório), sem que isso seja declarado explicitamente pelo locutor; é o caso, por exemplo, dos discursos cujo objetivo é fazer rir e di- minuir a tensão, relaxar o ambiente. Um discurso explicativo pode ser uma resposta a uma questão do tipo “por que...” e, ao mesmo tempo, pode servir de esclarecimento, de oposição e de valorização do interlocutor, ou ainda como um modo de deixá-lo desconcertado. O fato de explicar pode conduzir à generalidade, mas pode, ao contrário, significar um passeio por mundos diferentes e catego- rias diferentes, se apoiando mais ou menos no discurso do outro. De acordo com François (1988), o sentido da palavra “explicar” pode variar em função: ACRIANÇA E A MAGIA DA LINGUAGEM 95 a) do tipo de questão (pode haver várias respostas para as perguntas do tipo “por que...”, “como...”, etc.); b) do tipo de objeto (pode-se responder a uma pergunta do tipo “o que quer dizer tal palavra?” com exemplos, um si- nônimo, etc.); c) dotipo de interlocutor (é diferente explicar a um professor ou a alguém que não sabe); d) do lugar da explicação no discurso (explicar pode ser o ob- Jetivo principal ou pode aparecer durante a narração de um fato, por exemplo); e, e) finalmente, da pessoa que explica (ela pode escolher o modo de explicar em função da situação, de suas preferên- cias, etc.). É justamente com base nessas funções que a criança deveria ser introduzida — pedagogicamente — na explicação, dada pelos profes- sores na escola e pelos pais em casa: em vez de explicar o que é ex- plicação, deve-se mostrar a variedade de fatores para que ela possa conhecer e, assim, se valer dos mais diferentes modos de explicação em função dos seus interesses contingentes e circunstanciais. Isso vale para nós, para as crianças e talvez para a maneira pela qual se pode explicar à criança o que é a explicação. No que se refere à explicação na linguagem da criança, pode-se dizer que as primeiras questões do tipo “por que...”, assim como as primeiras explicações (“porque”) aparecem a partir dos 3 anos — embora ela dê explicações antes mesmo de deixar marcas no seu discurso (Bonnet & Tamine-Gardes, 1984). Mas esses termos ex- plicativos têm realmente um valor causal? De acordo com Piaget (1947), isso não é possível antes dos 6-7 anos. Segundo ele, existe na criança uma tendência à justificação — já que, para ela, nada acontece por acaso —, uma crença espontânea de que tudo está li- gado a alguma coisa e que é possível explicar tudo, daí o uso dos “por que...” e “porque” (mera coincidência). À criança não procura o porquê dos fenômenos no seu modo de realização física (causalidade física), mas na intenção (intencionali- 96 ALESSANDRA DEL RÉ dade psicológica) que está no seu ponto de partida. Isso porque seu pensamento, de início, está ligado às coisas, isto é, totalmente pro- jetado nas coisas e confundido com elas: as coisas não têm ainda uma ordem independente, mas podem ser penetradas por inten- ções e finalidade (Piaget, 1947, p.122). A criança é realista, o que a impede de considerar as coisas em si mesmas, de analisar suas rela- ções internas e de entender e identificar as relações existentes entre elas. Ou a criança as amalgama ou as analisa de maneira fragmen- tária, sem se preocupar com a síntese ou com a coerência. Segundo Piaget (op.cit.), o “porquê” que a criança entre 3-7 anos de idade utiliza tem o seu sentido esvaziado, uma vez que ele serve para perguntar a razão de qualquer coisa, até onde não existe razão. Diante disso, o autor estabeleceu uma tipologia (crianças en- tre 3-9 anos) para distinguir quatro tipos de “por que...” /“porque”: 1) de explicação causal: quando se trata de fenômenos ma- teriais (“por que a janela está quebrada?”), as crianças respondem com o “porquê” que marca ligações de causa- -efeito (“porque um aluno jogou uma pedra”) ou ligações consecutivas (“o homem quebrou o braço porque ele caiu da bicicleta porque”); 2) de intenção psicológica: a criança procura aqui o motivo que desencadeou a ação (“por que você aprende a contar?”) e explica o motivo/intenção da ação (“eu bati nele porque ele estava tirando sarro da minha cara”); 3) de justificação de regras: aqui a criança pergunta sobre re- gras — o motivo delas — e costumes de linguagem, escrita, etc.; 4) de justificação lógica: são raros antes dos 7 anos; a criança procura a razão de um julgamento (“por que você afirma que...”) e a resposta marca uma ligação de uma razão à consequência (“este animal não está morto porque ele ainda se mexe.”).
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