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Guias e Dicas
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Dialogos em Psicologia Social - Ana Maria Jaco-Vilela, Notas de estudo de Psicopedagogia

Psicologia Social

Tipologia: Notas de estudo

2014

Compartilhado em 02/03/2014

gabriela-de-amorim-10
gabriela-de-amorim-10 🇧🇷

4.7

(28)

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Baixe Dialogos em Psicologia Social - Ana Maria Jaco-Vilela e outras Notas de estudo em PDF para Psicopedagogia, somente na Docsity! BIBLIOTECA VIRTUAL DE CIÊNCIAS HUMANAS DIÁLOGOS EM PSICOLOGIA SOCIAL Ana Maria Jacó-Vilela Leny Sato Organizadoras Ana Maria Jacó-Vilela Leny Sato Organizadoras Diálogos em Psicologia Social Rio de Janeiro 2012 Esta publicação é parte da Biblioteca Virtual de Ciências Humanas do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais – www.bvce.org Copyright © 2012, Ana Maria Jacó-Vilela e Leny Sato Copyright © 2012 desta edição on-line: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais Ano da última edição: 2007, Editora Evangraf Ltda. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer meio de comunicação para uso comercial sem a permissão escrita dos proprietários dos direitos autorais. A publicação ou partes dela podem ser reproduzidas para propósito não comercial na medida em que a origem da publicação, assim como seus autores, seja reconhecida. ISBN: 978-85-7982-060-1 Centro Edelstein de Pesquisas Sociais www.centroedelstein.org.br Rua Visconde de Pirajá, 330/1205 Ipanema – Rio de Janeiro – RJ CEP: 22410-000. Brasil Contato: bvce@centroedelstein.org.br V CAPÍTULO 27............................................................................................ 462 O trabalho na perspectiva das políticas públicas Odair Furtado VI APRESENTAÇÃO O título desse livro expressa tanto o produto como o processo que culminou em sua elaboração. Diálogos em Psicologia Social é o tema do XIV Encontro Nacional da ABRAPSO. A definição do tema bem como os tipos de diálogos que se queriam presentes foram construídos paulatinamente, num processo dialógico. Desde que essa diretoria da ABRAPSO iniciou o trabalho de organização do XIV Encontro Nacional, desencadeamos um processo de consulta, discussão e definição de detalhes do próprio Encontro. Com intensa participação das diretorias regionais e das coordenações dos núcleos criaram-se as Comissões Científica e Organizadora. Embora esta, por suas próprias funções, tenha sido composta por sócios da ABRAPSO de universidades do Rio de Janeiro, a Comissão Científica foi composta por sócios da ABRAPSO indicados pela Diretoria, pelos Vice-Presidentes Regionais e pelos Coordenadores de Núcleo. Construímos, assim, uma Comissão composta por 16 membros, oriundos de diferentes universidades de todo o país. Esta Comissão funciona como Conselho Editorial deste livro. A Diretoria da ABRAPSO sugeriu que o tema do Encontro fosse “Diálogos em Psicologia Social”. Com a Comissão Científica já funcionando, evidenciou-se serem diversos os objetos dos diálogos que se entendiam importantes: epistemológicos, metodológicos, éticos, políticos, estéticos e com as políticas públicas. Com essa primeira definição, continuamos o intenso processo de troca e reflexão entre os membros da Comissão Científica para a composição do elenco dos eixos temáticos que vieram a aglutinar as contribuições da psicologia social na atualidade. Foram definidos dez eixos que cumpriram o papel de aglutinar as contribuições na forma de pôsteres, sessões temáticas e mesas-redondas. Os eixos temáticos e o escopo de sua continência são: VII 1. Educação: abriga contribuições que se situem na interface da Psicologia Social e Educação, abrangendo tanto a educação escolar quanto a educação no sentido lato que se dá nas demais esferas da vida social, envolvendo o atual debate sobre educação como direito, dispositivo de cidadania e, fundamentalmente, condição de aprofundamento da democracia; 2. Ética, violências e direitos humanos: acolhe trabalhos que focalizem três eixos de reflexão que norteiam a convivência entre pessoas em diversas esferas da vida social: os valores éticos, as distintas formas de violência material e simbólica e os direitos humanos; 3. Gênero, sexualidade, etnia e geração: acolhe experiências, estudos e/ou pesquisas que focalizam o poder, em sua dimensão relacional, que se organiza em posições identitárias e práticas interpessoais, institucionais e culturais, marcadas por categorias e sistemas sociais tais como: idade– geração, orientação sexual, raça–etnia, sexo–gênero; 4. Histórias, teorias e metodologias: recebe trabalhos sobre as diferentes histórias da psicologia social, suas teorias e metodologias. Acolhe contribuições que as tratem de forma singularizada ou em estreito dialogo. Diferentes perspectivas epistemológicas são bem-vindas; 5. Infâncias, adolescências e famílias: visa a abordagem da construção social dos conceitos de infância, adolescência e família, bem como novas formas de relações familiares, juventude e identidades; 6. Mídia, comunicação e linguagem: trata das contribuições sobre os processos que envolvem a produção discursiva em contextos midiáticos e os processos de subjetivação mediados pela comunicação globalizada na sociedade contemporânea; 7. Política: recepciona contribuições que focalizem fenômenos políticos como comportamento eleitoral, movimentos sociais e ações coletivas, discursos políticos e participação social/esfera pública, desde a articulação entre psicologia social e política; VIII 8. Processos organizativos, comunidades e práticas sociais: visa fortalecer o dialogo entre três linhas importantes de estudo e intervenção em psicologia social: as comunidades, os grupos sociais formais e informais e os diferentes tipos e práticas organizativas. Acolhe trabalhos que se insiram em qualquer uma dessas linhas ou busquem articulá-las; 9. Saúde: abriga contribuições que se situem na interface da psicologia social e saúde, abrangendo tanto saúde coletiva, saúde pública, quanto saúde mental, envolvendo o atual debate sobre saúde como direito e dispositivo de cidadania; 10. Trabalho: congrega contribuições que focalizem as diversas configurações do trabalho, do emprego e do desemprego na sociedade contemporânea. O processo de definição desses eixos foi momento propício para que se explicitassem os grandes temas que imantam as linhas de pesquisa na psicologia social brasileira. Posteriormente, a Comissão Científica procedeu à indicação de nomes de pesquisadores que pudessem compor os simpósios e proferir a conferência de abertura. Novamente, aqui, a potencialidade de estabelecimento de diálogo expressando as diferenças teórico–metodológicas, as diversas construções de objetos, a sua consequente diversidade de encaminhamentos no trabalho de pesquisa e de intervenção foram também contempladas. Acrescentamos um simpósio, sobre “Psicologia Social”. Finalmente, com a conferência de abertura pretendeu-se que os diversos diálogos pudessem ser acolhidos. Esse livro apresenta textos integrais de todos os simpósios e da conferencia de abertura, totalizando vinte e sete artigos. A partir da leitura dos títulos das contribuições, no sumário, já é possível vislumbrar os caminhos tomados nas diversas apresentações. IX Consideramos que esse livro apresenta, além da contribuição singular e importante de cada autor, uma mostra do atual debate da psicologia social entre nós. Os Diálogos em Psicologia Social não se tornariam públicos sem o apoio e o esforço de Pedrinho Guareschi, a quem agradecemos. Ana Maria Jacó-Vilela Leny Sato X PREFÁCIO Transfiguro a realidade e então outra realidade, sonhadora e sonâmbula, me cria. Clarice Lispector Os Encontros Nacionais da ABRAPSO estão inscritos no calendário da psicologia brasileira e latino-americana. Nesses quase trinta anos de história, consolidaram um determinado modo de produzir conhecimentos/de intervir comprometido com a crítica às condições de possibilidades que instituem realidades díspares e, ao mesmo tempo, com a invenção de possibilidades outras a serem criadas no diálogo com as pessoas com as quais se trabalha. Diálogos nos encontros, Encontros que buscam renovar diálogos. Reflexões históricas e conceituais em pauta, assim como discussões sobre temáticas e campos consolidados no universo psi estão propostos para este XIV Encontro Nacional da ABRAPSO. Somam-se a estes o debate sobre temáticas atuais que ocupam o espaço da mídia cotidianamente e se apresentam a cada um de nós com a arrogância que lhes é própria. Violências várias, direitos anunciados e a muitos negados, políticas plurais a serem reivindicadas e produzidas. O caos urbano, as (in)visibilidades, os discursos recorrentes, as práticas mesmas a reiterar naturalizações forçadas, os abandonos, as promessas, as reincidências, as histórias não contadas, as memórias falseadas... Lista infindável do que se apresenta como provocação a clamar a responsividade que nos conota, demandando a transfiguração que Clarice Lispector anuncia na epígrafe. Transfiguração a provocar, por sua vez, ainda que sonhada e sonambulamente, a criação de novas Marias e Clarices, eticamente comprometidas com o choro que irriga e fertiliza o solo necessário à germinação de realidades outras. Que esse XIV Encontro nos provoque 4 quase canônica de “aplicar a ciência contra a ciência” emergiu dos science studies, definidos como se segue por um de seus principais autores: “Há cerca de vinte anos, eu e meus amigos estudamos estas situações estranhas que a cultura em que vivemos não sabe como classificar. Por falta de opções, nos denominamos sociólogos, historiadores, economistas, cientistas políticos, filósofos, antropólogos. Mas, a estas disciplinas veneráveis, acrescentamos sempre o genitivo: das ciências e das técnicas. Science studies é a palavra inglesa; ou ainda vocábulo por demasiado pesado: ‘Ciências, técnicas, sociedades’. Qualquer que seja a etiqueta, a questão é sempre de reatar o nó górdio atravessando, tantas vezes quanto forem necessárias, o corte que separa os conhecimentos exatos e o exercício do poder, digamos a natureza e a cultura” (LATOUR, 1994:8–9). Há várias narrativas disponíveis sobre a história das ciências, mesmo descartando-se as que são simplesmente ruins, variantes da “história dos vencedores” ou Whig history dos anglófonos. Desde a apresentação de uma grande revolução que introduz a ciência moderna, como propõe Hall (1988) até a versão que questiona a própria ideia de revolução científica (SHAPIN, 1996). Quer tratem de múltiplos começos ou uma origem singular, de pequenas modificações ou drástica ruptura a partir de um movimento inaugural, ainda assim parece ser possível apontar para um acordo em torno da ideia de que o longo período que vai do fim da Idade Média ao início da Modernidade, surgiu e desenvolveu-se na Europa uma nova forma de produzir conhecimento, a Ciência Moderna, que definiu não apenas um conjunto de técnicas e métodos como também uma nova visão de mundo. Essa visão progressivamente “coloniza” a cultura geral, tornando-se hegemônica nas sociedades ocidentais. As evidências desse processo de colonização estendem-se por toda parte, inclusive nos usos correntes de determinadas palavras e expressões. Como já mencionei anteriormente, os adjetivos “científico”, “verdadeiro”, “real” e “objetivo” e seus cognatos são considerados na linguagem comum como parte de uma mesma família semântica, usados de forma intercambiável, senão mesmo como sinônimos. Não é difícil entender a razão disto: a concepção que chamarei 5 provisoriamente de “popular” da ciência (alimentada pelos próprios cientistas, diga-se de passagem) a toma como a atividade de retratar fielmente um real que é pré-existente e externo, numa forma simplista de realismo. Sendo assim, as formas de validação de conhecimentos operadas pela produção científica definiriam o padrão de excelência para tais processos de validação. Ciência e determinismo De modo resumido, esta concepção pode ser descrita como generalista (só se ocupa de leis e descrições universais), mecanicista (o universo pode ser descrito, compreendido —e eventualmente assimilado— a um gigantesco mecanismo) e analítica (o todo é expresso pela soma das partes e, portanto, para estudá-lo deve-se isolar partes progressivamente menores para estudo) (CAMARGO JR., 2003:107). Como consequência, o processo de conhecer a conduta da pesquisa implica necessariamente numa operação de redução —a criação de um modelo esquemático dos aspectos que se deseja estudar, deixando de fora detalhes e relações que, supostamente, não estão diretamente relacionados ao mecanismo em estudo (HARRÉ, 1988; SANTOS, 1988). Contudo, com frequência desliza-se da redução para o reducionismo a projeção do modelo esquemático sobre a situação estudada, assumindo o primeiro como a verdade essencial do segundo (HARRÉ, 1988; SANTOS, 1988). Vê-se, portanto, que as operações metodológicas do conhecer têm como ponto de articulação uma representação de mundo e uma epistemologia que partilham um traço comum: o determinismo; o triunfo e a ambição desse modo de produção encontraram expressão definitiva nas palavras de Laplace (1749–1827) em 1886: Uma inteligência que, por um dado instante, conhecesse todas as forças pelas quais a natureza é animada e a situação respectiva dos seres que a compõem e que, além disso, fosse vasta o suficiente para submeter estes dados à análise, abraçaria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e aqueles do menor átomo: nada seria incerto para ela, e o futuro, como o passado, seriam presente a seus olhos (1886:vi–vii). 6 O determinismo, ao menos na forma colocada por Laplace, foi considerado impossível pela própria Física em função de desenvolvimentos posteriores (termodinâmica, mecânica quântica, dinâmica não linear), mas seu apelo enquanto visão de mundo persiste. No que nos interessa em particular, podemos perceber a força das concepções deterministas examinando mais atentamente a epistemologia associada ao realismo simples anteriormente descrito. De forma sumária, poderíamos dizer que para esta epistemologia, a confiabilidade do conhecimento científico estaria dada por um lado por uma descrição exata dos objetos e relações da realidade externa, e por outro pelo exame racional rigoroso dos dados da experiência (TAYLOR, 1998:114). Ora, cada um destes termos está centrado em concepções deterministas; por um lado, a percepção do real é determinada por este de forma unidirecional; por outro, o critério de racionalidade está condicionado à aplicação inflexível, automática e mesmo mecânica (BATES, 2001) de regras lógicas imutáveis —um algoritmo. Isto é, a concepção de “racionalidade” neste caso implica na exclusão de qualquer atributo humano — agência, vontade, valor —de sua operação. E, por fim, a própria epistemologia associada também é algorítmica, ou seja, determinista na sua operação, assumindo a possibilidade de um critério de demarcação único que separe, de modo inexorável e automático, ciência e pseudociência, ciência e metafísica ou qualquer outra oposição que se queira enfatizar. Esta visão esquemática da ciência foi sendo progressivamente criticada e mesmo erodida ao longo das últimas quatro décadas, ao menos. Mais e mais autores colocam em questão esta imagem mecânica da ciência propondo em lugar de um processo de descoberta de “coisas” desde sempre existentes, a ideia de contínua construção de objetos e conhecimentos (para um sumário histórico das várias posições e tendências, ver Latour e Callon, 1991). Este “construcionismo” (ainda que seja também passível de críticas, v. p. ex. HACKING, 1999) coloca em questão a perspectiva da ciência clássica (objetividade–realismo–verdade por aproximação do “real”), e por consequência a perspectiva de validação do conhecimento passa a ser um 7 problema. Com efeito, Rorty, por exemplo, chega a propor o fim da epistemologia como consequência da virada pragmática (RORTY, 1988). Kuhn, em entrevista publicada postumamente, ilustra este dilema com o seguinte comentário acerca de um convite que recebera para participar de um julgamento envolvendo o criacionismo, no Arizona: “Olha, esse eu recusei por uma razão que eu acho excelente. [As pessoas que me procuraram estavam resistindo aos criacionistas, eu era simpático à causa deles, mas] eu acho que não tinha a menor chance... Quer dizer, eu estava sendo usado pelos criacionistas, pelo amor de Deus! Pelo menos em algum grau. Eu não acho que havia qualquer jeito de alguém que não acredita numa Verdade, e em se aproximar cada vez mais dela, e que pensa que a essência da demarcação da ciência é a solução de enigmas, conseguir dar o recado. Eu pensei que ia fazer mais mal do que bem, e foi isso que eu disse a eles” (BALTAS, GAVROGLU e KINDI, 2000: 321–322). Está posto, portanto, para nós, que adotamos em algum grau visões de mundo que põem em questão as visões essencialistas da ciência e da epistemologia, um problema: como recusar os absolutos e ainda assim pensar em validação de conhecimentos? Espero sinalizar com um caminho possível para responder essa questão; inicialmente, invoco a contribuição de um autor considerado por muitos um pioneiro, avant la lettre, dos science studies contemporâneos. A atualidade das contribuições de Ludwik Fleck Falo de Ludwik Fleck (1896–1961), médico polonês, herdeiro da escola polonesa de filosofia médica que floresceu ao final do século XIX (LÖWY, 1994). Pesquisador na área de imunologia, Fleck elaborou uma reflexão original sobre a produção de conhecimentos em seu próprio domínio de pesquisa, tomando como estudo de caso a definição moderna da sífilis como doença e a elaboração de um teste laboratorial então tido como altamente específico para a mesma. Fleck denominou sua abordagem de epistemologia comparativa, e o próprio título de sua opus magna é 8 altamente revelador: A gênese e o desenvolvimento de um fato científico (FLECK, 1979; ver também COHEN & SCHNELLE, 1986; sobre a atualidade e importância de Fleck, ver ainda HACKING, 1999 e KUHN, 1979 e 1996:viii– ix). Fleck era polonês, e judeu; a publicação de seu livro em alemão, na Suíça, em 1935 (um ano depois da publicação da Logik de Popper) passou praticamente despercebida, e embora Fleck tenha sobrevivido ao horror dos campos de concentração (Auschwitz e Buchenwald), e fosse reconhecido como pesquisador relevante na Polônia do pós-guerra e posteriormente em Israel, sua contribuição ao estudo das ciências só ressurge nos anos 60, por uma breve citação de Kuhn, que o declara seu precursor e estimula mais tarde a publicação, já em fins da década de 70, de uma tradução em inglês do “Gênese”. Dois conceitos são centrais em Fleck: o coletivo de pensamento (Denkkollektiv) e o estilo de pensamento (Denkstil). O primeiro é definido como “(...) uma comunidade de pessoas intercambiando ideias mutuamente ou mantendo interação intelectual; também veremos por implicação que esta também provê o “suporte” especial para o desenvolvimento histórico de qualquer campo do pensamento, bem como do nível de cultura e conhecimento dados” (FLECK, 1979:39) e o segundo como “(...) uma constrição definida do pensamento, e até mais; (...) a totalidade da preparação ou disponibilidade intelectual para uma forma particular de ver e agir ao invés de qualquer outra” (FLECK, 1979:64). Note-se que o estilo de pensamento não é uma característica opcional que pode ser voluntariamente adotada, mas antes uma imposição feita pelo processo de socialização representado pela inclusão em um coletivo de pensamento —cabe aqui lembrar que uma das referências citadas por Fleck é Durkheim, ainda que criticando-o juntamente com outros antropólogos e sociólogos seus contemporâneos pelo seu “respeito excessivo, beirando a reverência piedosa, pelos fatos científicos” (FLECK, 1979:47). Fleck distingue duas áreas de importância no interior de um coletivo de pensamento na ciência moderna (FLECK, 1979:111–2), uma compreendendo os experts que efetivamente produzem conhecimento, por ele chamada de 9 círculo esotérico (ele ainda detalha mais esta região, descrevendo o círculo mais interno de experts especializados e o círculo externo de experts generalistas), e a outra constituída pelos “leigos educados”, o círculo exotérico. Esta topografia permite a distinção entre formas diferentes de comunicação (FLECK, 1979:112); a ciência dos experts é caracterizada pelo periódico técnico/científico e pelo livro de referência, o primeiro representando o diálogo intenso, fragmentado, pessoal e crítico dentro de um campo dado do conhecimento, e o segundo a organização sinóptica deste (FLECK, 1979:118); o círculo exotérico é alimentado pelos periódicos de ciência popular ou de divulgação, que são uma “(...) exposição artisticamente atraente, vívida e legível (...) com uma atribuição de valores apodíctica para simplesmente aceitar ou rejeitar um dado ponto de vista” (FLECK, 1979:112). Finalmente, a introdução ao círculo esotérico —comparada por Fleck a um ritual de iniciação (FLECK, 1979:54)— é baseada num quarto tipo de meio textual científico, o manual básico (FLECK, 1979:112). Fleck apresenta ainda uma contribuição importante para a história das ciências, ao mostrar como concepções iniciais, supostamente “não científicas”, que ele denomina protoideias, são instrumentais para o desenvolvimento da pesquisa, e como as mesmas persistem como parte do acervo de conhecimentos das disciplinas, colocando em questão a ideia de uma ciência em permanente superação e ruptura com o passado (FLECK, 1979:23–5). Ainda neste sentido, Fleck descreve o que chama de tenacidade dos sistemas de pensamento, que resistem ativamente à mudança, resistência traduzida na expressão poética harmonia das ilusões (FLECK, 1979:27–8). Ele prossegue listando operações em graus progressivos adotadas por um coletivo de pensamento para proteger seu estilo de pensamento de mudanças, indo da impossibilidade da percepção de observações que violem o estilo de pensamento a criativas tentativas de adaptar a contradição (FLECK, 1979:28–33). Outra observação relevante é quanto àquilo que outros autores denominaram de carga teórica das observações (theory-ladenness of observations), caracterizada por Fleck em observações que faz quanto à 14 outra característica importante para consideração: nas sociedades complexas há um grande número de tais comunidades, e mesmo no caso postulado de uma “comunidade científica” global que partilha grandes porções de um UBK amplo e abrangente, há zonas heterogêneas, como a supracitada Knorr- Cetina, por exemplo, aponta (KNORR-CETINA, 1999). Isto significa que a substituição de uma cadeia de asserções no UBK local de um dado grupo pode não ter efeito imediato em outro, mesmo um intimamente relacionado. Finalmente, esta redefinição não é um mero exercício intelectual; ela tem implicações bastante concretas para o estudo das interações complexas que continuamente expandem e remodelam o UBK, ou a coleção e UBKs, da ciência contemporânea. No mínimo, esta definição aumenta tanto o escopo quanto os requerimentos desta tarefa. Preliminarmente, a perspectiva histórica é fundamental. Adicionalmente, a análise de conceitos isolados, em si, não é suficiente; uma abordagem mais abrangente é claramente necessária. Não se trata simplesmente de elaborar um dicionário, onde para cada termo da ciência do passado ou do saber exótico produz-se um correspondente na ciência do presente; é fundamental apreender um outro modo de pensar, num trabalho semelhante ao do antropólogo que se aventura em culturas que não a sua, como propôs Kuhn: “eu já sugeri que o passado de uma ciência deveria ser abordado como uma cultura estranha, que o historiador primeiro luta para entrar, e posteriormente para tornar acessível a outros” (KUHN, 1978:368). Esta última citação, por fim, abre a possibilidade de uma epistemologia não normativa, que esteja focalizada em entender e descrever como grupos específicos operam a validação do conhecimento, ao invés de começar sua tarefa pela prescrição de como isto deveria ser feito em geral. O senso comum sobre a ciência Um elemento importante do estilo de pensamento ou UBK partilhado por importantes segmentos da chamada “sociedade ocidental” (importantes numericamente e pelo poder que detém) é fundado na protoideia de causalidade determinista originalmente formulada pela ciência moderna. Deve-se ter em 15 mente que, embora este seja um elemento do senso comum, sua característica de protoideia faz com que seja possível encontrá-lo em ação mesmo dentro dos domínios esotéricos de uma disciplina —e mesmo quando conflita com a sua abordagem metodológica predominante; retorno à consideração anterior sobre a heterogeneidade interna das comunidades epistêmicas. A lógica causal determinista tem implicações epistemológicas. Por um lado, ela fornece um modelo de mundo dividido em eventos atômicos que se seguem uns aos outros de forma linear. Por outro, por implicação, ela sanciona um modelo específico de validar conhecimentos, baseado em dados empíricos analisados por uma lógica impessoal, levando à formulação de leis gerais, sendo as matematicamente expressáveis consideradas como mais relevantes, desde Galileu. Esse modelo, por fim, pressupõe uma ciência unificada pelo seu modelo de validação, supostamente aplicável a qualquer objeto, de partículas infinitamente pequenas aos objetos astronômicos extremamente grandes, passando pelos seres humanos em escala individual ou coletiva. Esta lógica causal tem implicações pragmáticas. O modelo da ciência unificada leva ao estabelecimento de hierarquias entre diferentes formas de saber. Aquilo que é passível de expressão numérica é tido como intrinsecamente mais “científico” do que o que não o é; designar algo como “subjetivo” deixa de ser uma descrição e passa a ser uma atribuição de menor valor — naturalmente, frente ao que é “objetivo”. As ciências sociais e humanas, que pelas características intrínsecas de seus objetos de estudo produzem conhecimentos necessariamente a partir de modelos hermenêuticos (TAYLOR, 1998), passam a ser vistas como “menores” frente aos modelos explicativos das ciências da natureza. Na área de saúde, por exemplo, a hierarquização de saberes significa a desqualificação relativa de profissionais e práticas que atentam para o “subjetivo”. Esta lógica causal tem, por fim, implicações políticas. A epistemologia realista pressupõe uma realidade única da qual é porta-voz exclusiva. O conhecimento correto das causas dos problemas definirá inevitavelmente a 16 sua solução correta. O portador desse conhecimento possui, portanto a autoridade epistêmica para determinar que soluções devam ser implementadas. Essa é a tentação tecnocrática que se manifesta, por exemplo, no atual debate —na verdade, na sua ausência— sobre essa misteriosa entidade sociopolítica, a Economia (tomada aqui não como disciplina homônima, mas o seu objeto). A acreditar no que dizem sábios acadêmicos e colunistas especializados, o mercado triunfou, não há mais o que discutir sobre a gestão das trocas econômicas. Roma locuta, causa finita. O debate político —como garantir melhor vida para os povos, seja lá como se defina isso— foi substituído pela reafirmação de princípios disciplinares da economia. E esses princípios nem ao menos refletem a riqueza interna das ciências econômicas; somos levados a acreditar que a economia neoclássica mostrou-se mais “científica” do que teorias concorrentes, tornando-se hegemônica por conta disso (FULLBROOK, 2004). Fica claro, portanto, que a reflexão crítica sobre esta concepção do senso comum tem uma função também política, seguindo a ideia do construcionismo reformista tal como enunciada por Hacking (1999). É preciso apontar que o imperador está nu. Trazendo, contudo, uma nota de cautela, vinda de ninguém menos que Bruno Latour. Em texto recente, ao discutir como as estratégias da abordagem crítica da ciência vêm sendo cooptadas pela coalizão conservadora–religiosa–fundamentalista que chegou ao poder com Bush Segundo, Latour sinaliza que o perigo neste caso provém não de argumentos ideológicos apresentados como fatos, mas de excessiva desconfiança de matérias de fato razoáveis disfarçadas como vieses ideológicos condenáveis — em suas palavras, “porque minha língua queima para dizer que o aquecimento global é um fato caso se goste ou não?” (LATOUR, 2005). Como pesquisador e professor, defendo a ideia de que há um valor intrínseco no conhecimento. E como profissional de saúde, defendo também a ideia de que há efetivamente saberes e práticas cuja aplicação judiciosa contribui para uma vida melhor. Em suma, critiquemos a Razão, sem esquecer que seu sono, como disse Goya, produz monstros... 17 Consequências da visão do senso comum —o “genocentrismo” Para melhor ilustrar a discussão anterior, proponho que consideremos um exemplo concreto das repercussões do modelo de causalidade deterministas num debate contemporâneo. Tomemos o caso da genética. Apenas a título de ilustração da pervasividade dessa temática, abro o jornal de hoje na seção de ciência, e lá está a manchete que fala da “descoberta do gene que torna as pessoas canhotas(...)” Como marcos dessa “virada genética” do debate público eu apontaria para dois eventos com intensa cobertura midiática: o anúncio da clonagem de um mamífero (a ovelha “Dolly”) em julho de 1996 e o sequenciamento completo do genoma humano em junho de 1999, ambos acompanhados de uma sobrecarga informacional que trouxe implícita a sugestão de revoluções científicas e promessas renovadas de avanços diagnósticos e terapêuticos inimagináveis. A ideia de que características diversas dos seres vivos são passadas de uma geração a outra não é nova e antecede a própria ciência moderna; milênios de experiências de domesticação e reprodução seletiva de plantas e animais estão na própria origem daquilo que chamamos civilização (DIAMOND, 1999). A síntese moderna dos achados de Mendel, Darwin e da biologia molecular do século XX, contudo, é considerada, com justiça, um dos grandes feitos da ciência moderna. Os processos de desenvolvimento biológico, nos quais o material genético (leia-se DNA) desempenha papel chave, é um dos exemplos mais notáveis de um modelo complexo, também para a investigação científica (KAY, 2000; LEWONTIN, 2000; KELLER, 2002): múltiplas interações, desde o nível mais microscópico possível (interações entre sítios específicos de moléculas complexas) até o mais abrangente (todas as interações entre organismos e ambiente, considerando que este último também é produto dos primeiros), uma infinidade de eventos que se influenciam mutuamente, com o surgimento a cada nível de articulação de propriedades emergentes, não mapeáveis linearmente aos eventos subjacentes. Em uma palavra, complexidade, em toda a extensão do conceito. 18 Isto não impediu, contudo, que essa complexa dinâmica fosse capturada pelo estilo de pensamento determinista. A complexidade inerente ao campo de saberes relacionado à genética faz com que especialista numa dada subárea, por exemplo, genética molecular, mesmo fazendo parte do círculo esotérico de sua subdisciplina, possa ser parte do círculo exotérico de outra, por exemplo, a genética de populações. Isso torna mais difícil para os participantes da comunidade epistêmica avaliar criticamente o conjunto geral da área, tornando-os mais suscetíveis à interferência das protoideias de cunho determinista no seu estilo de pensamento. E o modelo determinista resiste tenazmente à modificação. As interações complexas são transformadas num sistema simples, com séries de causas lineares, tentativamente expressas pelo conjunto de asserções que se segue: − cada gene determina um traço elementar, atomístico de um organismo; − a coleção de genes determina, em correspondência um para um, o conjunto de características que constituem a totalidade desse mesmo organismo; − cada organismo é, portanto um agregado destas características (a espécie é definida por um conjunto genérico de caracteres, cada indivíduo pelos valores efetivos que cada caractere assume entre os valores possíveis); − o DNA contém um “programa” que codifica todo o organismo; − cada característica singular de um organismo é o resultado do processo competitivo de seleção natural. Cada afirmação dessas é criticada por algum dos autores já citados; além de Kay, Lewontin e Keller, Eldredge (2004) critica especificamente o panadaptacionismo expresso pela última asserção. Não obstante, esse modelo segue sendo difundido, em especial através de publicações de divulgação científica, assegurando sua repercussão nos vários círculos 19 exotéricos, incluindo-se aqueles, como descrito anteriormente, de especialistas das várias subáreas do campo. Essa assimilação seletiva e simplificada do desenvolvimento tecnológico na área de genética tem levado a um reforço de concepções reducionistas e deterministas de concepções gerais sobre o ser humano e a sociedade, num revival da sociobiologia da década de 70, ficando clara a articulação político– ideológica destas concepções com a perspectiva conservadora: o gene egoísta articula-se admiravelmente bem com o agente maximizador de utilidade da economia neoclássica. Essas concepções também se refletem nas representações do processo saúde doença, se expressando entre outras formas na asserção genérica “o gene da doença X”, que traz como corolário (quase invariavelmente citado explicitamente nas matérias sobre o tal gene) a ideia de que uma cura radical e definitiva para a doença X se aproxima no horizonte. Desse modo, padrões recorrentes na história da medicina e de sua relação com a sociedade são novamente acionados, destacando-se em particular a ideia da panaceia salvadora (o “magic bullet” da literatura de língua inglesa) e o reforço da autoridade cognitiva, como já referi anteriormente; como praticamente todos os aspectos da vida humana são reduzidos “aos nossos genes” (expressão frequente no discurso público), segue-se que os especialistas biológicos são os detentores socialmente legítimos dos segredos últimos da vida e da morte. Esse rápido exercício demonstra, a meu ver, tanto as consequências da concepção determinista, mesmo ao se superpor a uma lógica de investigação que a superou historicamente, como a potencialidade do instrumental teórico apontado em fazer frente a ela. Conclusão A concepção epistemológica delineada neste texto impõe certo grau de indefinição; mais uma vez, não me cabe (e não me parece factível) prescrever critérios fixos e definidos de validação, sendo necessário ao invés disso investigar como as diferentes comunidades epistêmicas operacionalizam seus critérios; neste caso, é necessário até mesmo delimitar 24 PSICOLOGIA SOCIAL: O LUGAR DA CRÍTICA, DA MEMÓRIA E DA AFETIVIDADE CAPÍTULO 2 O QUE É MESMO PSICOLOGIA SOCIAL? UMA PERSPECTIVA CRÍTICA DE SUA HISTÓRIA E SEU ESTADO HOJE Pedrinho Guareschi Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Introdução o contexto de “diálogos” que a Associação Brasileira de Psicologia Social ABRAPSO está estabelecendo, pretendo, correndo certamente alguns riscos, trazer aos colegas que trabalham na área algumas reflexões que julgo, no meu entender, pertinentes e atuais. São inúmeras as contribuições que estão sendo trazidas à discussão dentro do amplo espectro da Psicologia Social. Penso não estar exagerando ao dizer que muitos estudiosos ou professores da área começam a trabalhar sofregamente nesse campo sem ter tido tempo de fazer uma reflexão crítica dos inúmeros enfoques nela presentes. Torna-se difícil, desse modo, estabelecer uma visão de conjunto e muito mais árduo ainda discernir as conexões existentes entre uma teoria e outra. Priorizam-se, muitas vezes, aspectos secundários e não se consegue montar um fio condutor que nos oriente e nos ilumine a caminhada. Nesse mundo das teorias, pretendo enfrentar aqui uma questão central, que é: qual o cerne, qual o âmago da Psicologia Social? Há muitos anos venho já lidando com essa disciplina. Vou confessar que as possíveis respostas que ia, aos poucos, encontrando no decorrer de minha experiência acadêmica sobre o que seria a Psicologia Social não me satisfaziam N 25 plenamente. Seria fácil, até mesmo simplório, responder a essa pergunta dizendo que “são muitas psicologias sociais”. Mas essa não seria uma maneira de fugir da questão, talvez por medo de enfrentá-la? Afinal, se trabalhamos e pesquisamos dentro de uma determinada área, temos no mínimo a obrigação de buscar relativa clareza sobre as delimitações, nunca absolutamente precisas, do campo que investigamos. Por mais que defendamos uma transdisciplinaridade na compreensão dos fenômenos temos, no nosso caso, de ter relativa clareza sobre que dimensão, isto é, sob que “luz” nós nos propomos iluminar esse fenômeno, com outras palavras: como a Psicologia Social o enfoca? Não só por honestidade, mas também por obrigação, pretendo enfrentar essa questão. Arrisco então, essa reflexão cuidadosa e, enquanto possível, metódica e didática. Vou discutir duas questões: qual o campo da Psicologia Social e, avançando um pouco mais, perguntar sobre as diversas teorias que surgiram no desenvolvimento dessa Psicologia Social, e quais seus pressupostos e como elas tentaram dar conta do psicossocial? Na primeira, perguntamos e discutimos as origens e o que seria a Psicologia Social. Analisamos os pressupostos que se faziam presentes em seu início e como foi seu desenvolvimento e sua atribulada história. Na segunda, discutimos como a Psicologia Social foi se estruturando e quais os elementos centrais que foram se incorporando em sua constituição. Penso valer a pena enfrentar essa discussão. Ajudará a progredir em nossa ciência da Psicologia Social. É minha convicção que tal discussão ajudará a esclarecer muitos pontos e nos ajudará a avançar na discussão teórica de nossa disciplina. Concordo com Moscovici quando afirma que é tempo de parar com pesquisas pontuais e dar mais espaço à reflexão: poderíamos aventurar dar a sugestão de que é tempo de parar com a coleta de informações. Como diz Poincaré, um acúmulo de fatos não constitui uma ciência, assim como um monte de pedras não se torna 26 uma casa. Temos as pedras, não temos a casa. É preciso parar e começar a pensar (MOSCOVICI, 2002, p.145). 1. Em busca de uma Psicologia Social: origens, contexto e trajetória Nessa primeira parte vou procurar responder às seguintes perguntas: − Como iniciou e foi se constituindo uma Psicologia Social? − Quais os pressupostos subjacentes ao início da Psicologia Social? − Como foi sua atribulada história? − Como diferentes enfoques foram se confrontando e se estruturando? Essa primeira parte discute Psicologia Social desde Wundt, em 1872, até a década de 1950, com sua consolidação hegemônica nos Estados Unidos. É fundamental, para se compreender a história da Psicologia Social e a própria Psicologia Social, que se tenha em mente dois “movimentos” ou dimensões, que estiveram presentes em sua origem e em seu desenvolvimento: a influência do materialismo cientificista; a influência do individualismo cartesiano. 1.1. O materialismo cientificista Se aceitarmos, como é relativamente pacífico, que a Psicologia começou com Wundt, temos de aceitar, consequentemente, que foi lá também que teria iniciado a Psicologia Social, pois ela historicamente foi considerada como um alongamento dessa psicologia. E, seguindo a mesma lógica, temos que aceitar que a Psicologia Social começou dentro do quadro amplo da modernidade com seus pressupostos metafísicos, epistemológicos e éticos; ética, aliás sempre negada, até que Bauman ao final do séc. XX, mostra com clareza que a modernidade tinha uma ética e qual era essa ética. 27 Enfatizo essa questão da ética, pois ela é extremamente importante no campo da Psicologia, já que lida fundamentalmente com seres humanos. Para a modernidade o mundo era um relógio, o que era preciso, então, era apenas descobrir quais as leis implícitas, subjacentes e ocultas que governavam esse relógio. O segundo passo, dado por Comte, Durkheim e outros sociólogos, foi mostrar que a sociedade também era um relógio com suas leis subjacentes; o social era uma “coisa” como qualquer outra, e a sociedade era um sistema fechado, governado por leis determinantes e determinadas. Wundt, para os que o aceitam como o fundador da psicologia, não fez nada mais que dar o terceiro passo dentro dos pressupostos da modernidade; se o mundo é um relógio a sociedade é um relógio, então o ser humano também é um relógio; vamos colocá-lo dentro de um laboratório e descobrir suas leis implícitas. O problema todo se resume em fazer experimentos para descobrir essas leis. E esses experimentos estão sendo feitos por muitos até hoje! É interessante, se não chocante, ver como foi exatamente isso que fez o Nazismo, conforme descreve muito bem Bauman ao analisar a ética da modernidade. Para ele, o Holocausto nazista nada mais foi que uma consequência coerente da modernidade. Quando os russos tomaram Auschwitz encontraram ainda nos barracões dos campos de concentração, ao redor de 80.000 pessoas, metade de sua capacidade total de 160.000. E dessas 80.000 a metade eram crianças, a maioria delas gêmeos, trigêmeos, quadrigêmeos etc. Mengele e sua equipe de 60 pesquisadores, especialistas e técnicos faziam com elas os experimentos estratégicos para poder encontrar “o homem ideal”, o homem que seria o protótipo para a nova raça nazista que iria governar o mundo por no mínimo, mil anos. Eles se dedicavam, com insano esforço, em descobrir as “regularidades”, as leis implícitas no “relógio” que é o ser humano. Tudo o que fosse dispensável ou o que já fosse constatado como descartável, comprovadamente não mais necessário à investigação, ia sendo dispensado como os ciganos, os judeus, os anões e os portadores de qualquer deficiência. É conhecida a comparação que Bauman faz ao descrever esses procedimentos “científicos”: o mundo 28 deveria ser como um jardim todo alinhado, organizado e limpo. Tudo o que fosse desordem, ervas daninhas, deveria ir para a fogueira. E a ética que governava esse empreendimento (aqui a questão) era a eficiência, o rigor científico, o funcionamento prático e útil. Exatamente o que o responsável pelas pesquisas realizadas com o jovem delinquente, narradas no filme “Laranja Mecânica”, respondeu a quem questionou as possíveis implicações éticas de seus experimentos: “Se funciona, é bom!” Na ética, o que é “bom” é o que funciona, as técnicas rigorosamente seguidas à risca; consequentemente, se não funciona é “ruim”. Um tipo de pragmatismo e o cientificismo de mãos dadas. Mas avancemos um pouco mais na discussão desse primeiro movimento. Devemos a Robert Farr (1998) e a seus 25 anos de pesquisa, ininterrupta e escrupulosa, o esclarecimento e a crítica mais aprimorada e metódica sobre as origens de nossa Psicologia Social. Principalmente em seu capítulo 2 (p.37–59), ele nos mostra como essa ideia parcial de ciência (experimental) tomou conta da psicologia como um todo, de tal modo que na sua expressão, para os experimentalistas, “a pele forma o limite de estudo” (FARR, 1998, p. 41). Essa concepção de psicologia como uma ciência experimental passou, automaticamente, para a Psicologia Social. A Psicologia “científica”, isto é, fisiológica e materialista se desenvolveu à base de experimentos, mas experimentos “fisiológicos”, materiais, biológicos, comportamentais, que não iam além da pele. A Psicologia Social, como a Psicologia tout court, passou a fazer parte das Naturwissenchaften. Como diz Farr (1998, p. 59), “a herança de Wundt foi uma psicologia experimental que não era social”. Mas, se a psicologia se tornou por primeiro uma ciência experimental na Alemanha, foi a Psicologia Social que se tornou depois uma ciência experimental nos Estados Unidos. Watson e seus seguidores fizeram uma cruzada sistemática com o objetivo de livrar a psicologia de toda referência à consciência, à mente ou ao self. Para eles, só valia o observável, o externo, o material. O próprio 29 Watson afirmava que a introspecção deveria ser banida da psicologia. Para quem lê o Manifesto Behaviorista, coordenado por Watson, fica evidente essa “materialização” do psicológico, pressuposto do materialismo cientificista de que estamos falando. Eles podiam afirmar, então, com tranquilidade, baseados nesses pressupostos, que tinham enterrado o fantasma que atormentava Descartes, isto é, a questão do psíquico, da consciência. Ele, Descartes, para se livrar do psíquico (imaterial, simbólico, representacional) cindiu o ser humano ao meio: a ciência se ocuparia apenas do material, do biológico e a filosofia do imaterial. Mas acontece que não é por um ato voluntarista que se elimina uma realidade que durante séculos preocupa a humanidade. Por isso, o fantasma de Descartes continua a assombrar os estudos modernos. O behaviorismo, longe de enterrar esse fantasma, é apenas uma das faces desse dualismo cartesiano. Na herança cartesiana o psíquico, o self, pertence à filosofia mental. O self só poderia se tornar acessível através da introspecção. Mas isso, para os comportamentalistas não era ciência. Essa é a natureza do dualismo cartesiano que herdamos na psicologia. Quando ela se tornou,apenas, uma ciência do comportamento exterior , não avançou para além do dualismo cartesiano. Já para Mead, a mente é um fenômeno puramente natural, como veremos. Para Watson, ela é apenas um fenômeno sobrenatural. Jovchelovitch (2007) discute com clareza as consequências desse dualismo cartesiano e mostra que tal dualismo não se sustenta diante de uma crítica bem fundamentada. Tal concepção ainda bebe dos pressupostos do materialismo cientificista para quem o ser humano, a sociedade e o mundo são iguais e devem ser tratados, epistemologicamente falando, do mesmo modo. Como consequência, pode-se dizer que Watson reduziu a racionalidade humana à racionalidade dos ratos: sabemos agora muita coisa sobre as leis da aprendizagem que são comuns a ratos e a seres humanos. Mead comparou a psicologia de Watson à Rainha, em Alice no País das Maravilhas sem cabeça, sem nada acima da espinha dorsal. Para ele, Watson não tinha 34 − No espírito da época, nas pegadas de Descartes, a Psicologia Social que se estruturou, foi uma psicologia individualista, onde o social não passava de soma de individuais. − Há, contudo, tentativas de criação de uma Psicologia Social que desse conta do imaterial, psíquico, simbólico, representacional: − A primeira delas são os 10 volumes de Wundt de Psicologia Social e os estudos de Durkheim sobre representações coletivas. Se Wundt, por um lado, separou o social do individual, Durkheim, por sua vez, “corporificou”, “reificou” seu socia, suprimindo o individual. McDougall fez uma interessante tentativa de ligar o fisiológico (biológico) e o coletivo em seus estudos sobre a mente grupal vendo o instinto como base da vida em sociedade. Mas sua tentativa morreu na casca; era muito difícil poder vingar, em função do peso da mentalidade da época. − Uma segunda, e para mim muito importante, foi a de Mead com a teorização sobre o self. Ele construiu uma primeira síntese dialética entre o individual e o social, e entre o biológico e o psíquico: pensou o instinto como base da vida em sociedade, mas admitiu a realidade do simbólico (psíquico, mental): essa síntese seria o self. − Para Farr (1998, pg. 76), também Freud, ter-se-ia aproximado e tentado construir essa síntese com seus conceitos de “id, ego, superego”, que estariam entre sua primeira tópica do pré- consciente, consciente e inconsciente, por um lado, e de uma crítica psicanalítica da cultura e da sociedade, por outro. Muitos se surpreendem com essa afirmação de Farr. Não tenho posição formada sobre isso, mas é pelo menos, uma hipótese que mereceria uma discussão mais aprofundada. 35 − Ao final do séc. XIX e início do séc. XX, para se poder dar conta do social, houve uma tentativa de criação de uma psicologia “coletiva”, das massas e da cultura. Tal psicologia, contudo, não foi à frente devido, é meu entender, ao fato de ter sido identificada como “irracional” e perigosa. − Quando a Psicologia foi “transportada” da Alemanha aos EE.UU., foi levada como uma psicologia fisiológica, nada além da pele (behaviorismo). Quando transpôs a barreira da pele tornou-se psíquica, imaterial, mental, mas permaneceu, contudo, absolutamente individual. Não conseguiu incorporar o social. − Dos EE.UU. ela passou a outros continentes como a América Latina e a Europa.Com respeito à Europa, foi montada uma espécie de “Plano Marshall acadêmico”, numa investida conquistadora de implantar a psicologia de viés americano. Tal investida sofreu, contudo, principalmente por parte de Moscovici (1972), na França, fortes reações. Ele começou a estranhar e a duvidar que sua tendência individualista pudesse dar verdadeiramente conta do “social”. É nesse contexto que começa a pesquisar e a pensar numa nova teoria, no caso, das Representações Sociais, que procurasse superar dicotomias, como entre o individual e o social, o externo e o interno, o estruturante e o estruturado, o processo e a estruturação e, ao mesmo tempo, pudesse dar conta também de novos contextos sociais. É o que veremos a seguir. 2. A estruturação da Psicologia Social: a incorporação de novos elementos (A Psicologia Social tomando corpo) Nessa segunda etapa de nossa caminhada, passo a discutir a Psicologia Social a partir da década de 1950, principalmente a partir de Serge Moscovici. Mostro como a Psicologia Social começou a questionar a si mesma 36 e como novas dimensões foram sendo incorporadas a ela, redimensionando sua compreensão e abrangência. Percorro os seguintes pontos: 2.1) O “ambiente” da Psicologia Social na década de 1950 2.2) O “social” da Psicologia Social 2.3) O “simbólico” da Psicologia Social 2.1. O “ambiente” da Psicologia Social na década de 1950 Ao final da década de 50 e inícios da década de 60, Moscovici começa a questionar a Psicologia Social existente na Europa, mostrando-se insatisfeito com o que lá existia e se fazia. Inicia fazendo uma avaliação geral da situação da Psicologia Social na Europa. Em seu trabalho de 1972, “Sociedade e Teoria em Psicologia Social”, ele confessa a terrível situação em que eles se encontravam na Europa com respeito à Psicologia Social: “Em frente de nós, atrás de nós e ao nosso redor, havia —e ainda há— ‘a Psicologia Social americana’” (2002, p. 111). E continua dizendo que, apesar do respeito que tinham por ela, sua aceitação estava se tornando progressivamente mais difícil, pois seus princípios “nos são estranhos, nossa experiência não condiz com a deles, nossa visão de homem, de realidade e de história é diferente” (p.112). E ele vai assim desfilando, exemplo atrás de exemplo, as características dessa “Psicologia Social da ingenuidade” que não dava conta do “social” e que excluía a contradição. O que faltava à Psicologia Social, segundo ele, eram as contribuições de Marx, Freud, Piaget, Durkheim: a questão das desigualdades, o fenômeno da linguagem, a força das ideias na construção da sociedade, a realidade social. Ela deveria ser uma ciência mais do movimento, do que da ordem. E ainda: a ciência é uma instituição social e, como tal, é um objeto de análise como qualquer outro, da mesma forma que os experimentos e seus sujeitos estão engajados na interação social, como todos os demais;... qual a finalidade da comunidade científica: apoiar a ordem, ou criticá-la e transformá-la? 37 Procurando dar um exemplo de como uma ciência pode se tornar reducionista e servir para fins ideológicos, Moscovici comenta como alguns economistas projetaram as normas e atitudes de uma sociedade capitalista, baseados nos processos de troca. Suas reconstruções “psicológicas” pertencem a este contexto; a ação humana é concebida como determinada pelos imperativos de uma economia de mercado e de lucro. E comenta: Mas há ainda mais que isto. Tudo o que é social é simplesmente excluído deste tipo de economia. Investimentos coletivos, gastos que não são canalizados através do mercado, ou da chamada economia externa, não estão incluídos nos seus dispositivos... os objetivos se tornam definidos dentro de uma perspectiva individualística, são considerados como ‘dados’ na natureza do Homem. Como resultado de tudo isto, esta versão da economia concebe uma imensa área da conduta humana como irracional, uma vez que, dentro de sua prática, tudo o que vai além do individualismo e tudo o que diverge um pouco de um modelo de capitalismo, entra, por definição, no domínio da irracionalidade (MOSCOVICI, 2002, p.125–126, grifos no original). Outro exemplo provocativo mostra preconceito contra o social, ou o grupo. Moscovici analisa como nos estudos de risco se descobriu que, quando em grupo, as pessoas tomam atitudes de maior risco do que quando sozinhas. A conclusão a que se chega é: logo, o grupo é “perigoso”. Mas o que se esquece de ver é que tais pessoas podem tomar atitudes mais arriscadas exatamente porque discutiram a questão, isto é, estabeleceram uma interação; e com base nessas discussões, arriscaram mais. As duas conclusões a que Moscovici chega, não diferem do que vimos na primeira parte desse trabalho: uma racionalidade que é puramente cartesiana, mecânica; e cálculos (práticas) que são puramente individuais, limitados às relações entre, no máximo, dois indivíduos. Os trabalhos e discussões que se faziam presentes nessa Psicologia Social podiam se resumir em dois enfoques principais. Um primeiro que dava ênfase ao objeto, o que interessava era o objeto, que podia ser diferenciado em diferentes tipos até mesmo em social e não social, mas o sujeito seria sempre igual, indiferenciado. Por 38 exemplo: na pesquisa psicossocial de influência sobre as pessoas, o que importa é a relevância dos objetos que podem causar estímulos diferentes nos sujeitos: importância das pessoas que falam, sua credibilidade etc. Um segundo enfoque dava ênfase ao sujeito, onde esse era classificado em inúmeros tipos diferenciados, mas o objeto não interessava era sempre o mesmo, indiferenciado. Nesse caso, em estudos sobre influência social não interessa quem fala, mas as características de quem recebe : se é sugestionável, crítico etc. É nesse ponto que, a nosso ver, a Psicologia Social dá um salto. Um novo tipo de “social” se faz presente na Psicologia Social. 2.2. O “social” da Psicologia Social Temos aqui um novo enfoque, que vem questionar teórica e epistemologicamente os dois anteriores: tudo tem a ver com tudo, não há nada “isolado”, indiferenciado: “uma relação triangular complexa, em que cada um dos termos é totalmente determinado pelos outros dois... o triângulo Sujeito–Outro–Objeto é crucial para essa discussão, pois é o único esquema capaz de explicar e sistematizar os processos de interação” (MOSCOVICI, 2002, p. 152–3). Duas décadas depois, Bauer e Gaskell (1999), a partir desse esquema, acrescentam a dimensão do tempo em que esses triângulos vão se sucedendo, formando o que eles chamam de “modelo do toblerone”: tempos dialéticos que se sucedem. Ao discutir a relação entre indivíduo e sociedade, Moscovici diz (2002, p.157): “a sociedade não é vista como um produto dos indivíduos, nem os indivíduos vistos como produtos da sociedade... o problema das relações entre ser humano e sociedade se relaciona intrinsecamente com ambos os termos do rapport”. Aprofundando essa afirmação de Moscovici, podemos mergulhar um pouco mais na discussão do social e dos diferentes tipos de social. Isso porque há vários sociais, e o conceito de “social” pode, também, produzir equívocos, necessitando de uma análise criteriosa. O exame das diferentes 39 teorias e autores mostra que podem ser identificadas ao menos três concepções de social. Dentro de uma concepção individualista, cartesiana, onde o ser humano é entendido como um “indivíduo” (indivisum in se, sed divisum a quolibet alio), falando em termos bem precisos, não existe o social; o que existe é apenas o individual e o social, nessa visão, é uma soma de individuais. Tanto as pessoas, como os objetos, passam, consequentemente, a ser realidades discretas, separadas. Desse modo, somando-se diversos individuais, temos um grupo, que seria um amontoado de elementos, mas onde cada ser, indivíduo, mantém sua unidade e singularidade, sem se relacionar com os outros. Dentro dessa cosmovisão, há um entendimento específico do que seja “público”, ou “bem comum”: público é a soma de indivíduos; o “bem comum” passa a existir quando os diversos indivíduos, separadamente, estão bem. Foi por isso que Jeremy Bentham, junto com muitos teólogos do fim do séc. XIX argumentaram que, à medida que cada indivíduo competisse, procurasse seu próprio interesse e bem-estar, os problemas sociais automaticamente se resolveriam; não precisava o Estado intervir. O Estado, para um autêntico liberal, só tem sentido para defender os interesses particulares dos indivíduos. Assim também os outros serviços, como a segurança, a saúde, a educação. Tais realidades, para eles, são sociais apenas por estarem juntos. Na verdade são uma soma de realidades discretas. Já numa cosmovisão totalitária e coletivista, onde o ser humano é assumido como “uma peça da máquina”, ou “uma parte de um todo”, o social é a grande, única e principal realidade existente: dele deriva o sentido para tudo o mais. O social tem o mesmo status de realidade que “coisa”; ele é, une chose, como dizia Durkheim. O grupo e o coletivo, são a verdadeira e única realidade. Os elementos desse grupo (as pessoas) passam a ter importância a partir de sua pertença aos grupos. As pessoas são “peças” da máquina: o que vale é a máquina. Não importa a consciência individual: importa a consciência coletiva. 44 MOSCOVICI, S. L’Age des Foules: um traité historique de psychologie des masses. Paris: Fayard, 1981. ______. The Age of the Crowd: a historical treatise on mass psychology. 1985. ______. La Psychanalyse, son image et son public. Paris: PUF, 1961/1976. ______. Society and Theory in Social Psychology, em: ISRAEL, J. e TAJFEL, H. The Context of Social Psychology. Londres: Academic Press, 1972. ______. Representações Sociais Investigações em Psicologia Social. Petrópolis: Vozes, 2002. 45 CAPÍTULO 3 PSICOLOGIA SOCIAL DA MEMÓRIA: SOBRE MEMÓRIAS HISTÓRICAS E MEMÓRIAS GERACIONAIS Celso Pereira de Sá Universidade do Estado do Rio de Janeiro constituição de uma “psicologia social da memória” —expressão utilizada já em 1963 por J. Stoetzel (1976) em seu manual de psicologia social— tem tomado efetivamente corpo, na Europa, há cerca de duas décadas, com trabalhos como de D. Jodelet (1992) sobre as “memórias de massa”, dentre outros. No Brasil, uma acentuação do engajamento de psicólogos sociais nesse domínio começou a ocorrer não muito tempo depois, embora a contribuição pioneira de E. Bosi (1979) date antes disso. O contexto acadêmico em que surge essa retomada do interesse pela memória por parte dos psicólogos sociais é o da “psicologia social sociológica europeia”, na esteira dos estudos sobre o pensamento social, dentre os quais se destaca a perspectiva das representações sociais, devida a S. Moscovici (1961/1976). Assim, como Moscovici derivou, não sem importantes adaptações, o conceito psicossocial de “representações sociais” de uma noção sociológica anterior, as “representações coletivas”, devida a E. Durkheim (1912/1985), a perspectiva psicossocial no campo da memória se deriva em grande parte da noção de “quadros sociais da memória” e, um tanto menos, da “memória coletiva”, da sociologia de M. Halbwachs (1925/1994, 1950/1997). Não obstante, as contribuições para a constituição da psicologia social da memória não se esgotam (como também não ocorreu no caso das representações sociais) com essa apropriação de uma perspectiva sociológica. Uma segunda contribuição importante, conquanto menos geralmente A 46 reconhecida, e que tem um caráter tão pioneiro quanto aquela sociológica, é a perspectiva psicossocial prévia de F. C. Bartlett (1932/1995). A importância dessas contribuições se faz sentir já quanto ao propósito básico da psicologia social da memória em se constituir como um domínio nãopsicologista e não sociologista, colocando-se assim em tão boa companhia quanto a da “construção social da realidade” de P. Berger e T. Luckmann (1973). Ela deve em grande parte o não psicologismo à sua derivação sociológica, pela qual, com Halbwachs, se concebe a memória em termos de uma construção social e não da retenção e reprodução de experiências passadas que permaneceriam intactas na mente (consciente ou inconsciente) dos indivíduos, como sustentam a filosofia de H. Bergson e a psicanálise de S. Freud. Por outro lado, o não sociologismo resulta de uma opção por não se acompanhar Halbwachs em sua proposição de uma “memória do grupo”, preferindo-se a fórmula, igualmente construtivista, mas não sociologista, de uma “memória no grupo”, devida a Bartlett. Três outras ordens de contribuições têm também desempenhado papéis significativos na constituição da psicologia social da memória. A primeira é representada pelas releituras da obra de Halbwachs empreendidas por sociólogos contemporâneos, como G. Namer (2000) e P. Jedlowski (2001), que têm atenuado o seu sociologismo original. A segunda tem sua origem na história e traz, além da proximidade com o campo da história oral, uma profícua problematização das relações entre história e memória, como o fazem J. Le Goff (1996) e P. Nora (1997). A terceira consiste no tratamento dado à memória por uma vertente da psicologia cognitiva que, como descreve U. Neisser (1996), se afastou da orientação experimental e passou a adotar uma estratégia observacional ou naturalista de pesquisa, numa ocasião anterior mesmo à retomada do interesse pela memória por parte dos psicólogos sociais. É da articulação entre estas três ordens de contribuições —sociológica, histórica e psicológica— que trata o presente trabalho, para buscar dar conta da natureza em si da psicologia social da memória. E, como conceitos 47 construídos em termos propriamente psicossociais, em resultado daquela articulação, focalizam-se aqui especificamente as “memórias históricas” e as “memórias geracionais”. O termo “memória histórica” é encontrado em Halbwachs (2004), que o considerava uma contradição em termos —pois, no seu entender, a história só começa a ser escrita quando a memória está se extinguindo— e restringia a memória da história às memórias coletivas construídas em grupos sociais razoavelmente circunscritos. Para esse autor, portanto, a história de que se pode guardar uma memória seria apenas a “história vivida”, cuja duração não ultrapassa os limites e o período de existência de um grupo, e não a “história relatada”, de âmbito mais extenso no espaço e no tempo. Para a psicologia social da memória, na articulação aqui desenvolvida, a memória social dos fatos históricos ou “memória histórica” comporta duas modalidades (SÁ, 2005; SÁ, no prelo 2) —“memória histórica oral” e “memória histórica documental”.A primeira das quais pode ser bem abarcada pela noção de memória coletiva, como queria Halbwachs, enquanto a segunda exige, para a sua consideração mais completa, o recurso também a outras categorias descritivas, assim como a outras formulações conceituais, como se argumenta a seguir. Em primeiro lugar, cabe convir, a partir das distinções propostas por Jedlowski (2001) e por Sá (2005), que não só memórias coletivas, mas ainda memórias pessoais e memórias comuns estejam envolvidas na configuração de uma dada memória histórica. Há diferença das “memórias coletivas”, que têm como objeto o passado e a história dos grupos, cuja lembrança é cultivada —leia-se, construída— através da interação dos seus membros, as “memórias pessoais” se referem ao próprio passado das pessoas, embora possam envolver também lembranças de circunstâncias grupais e de fatos históricos dos quais elas tenham participado ou apenas ouvido falar. É certo que Halbwachs (1997) subordina as memórias individuais às coletivas, mas ele admite também que a determinação das lembranças, bem como dos esquecimentos, pela participação em diferentes grupos e pelo afastamento 48 deles, ao longo da vida, possa resultar em configurações únicas de memórias em diferentes pessoas. Distinguíveis das memórias coletivas que resultam da discussão e elaboração dos fatos e informações pelos membros do grupo, são também as “memórias comuns”, construídas por pessoas que não se encontram em interação, mas que devido à participação comum em um contexto sócio–histórico–cultural, são expostas aos mesmos fatos e informações e acabam por guardar deles as mesmas lembranças. Em segundo lugar, a noção de “documento” pode e deve ser atualizada e ampliada, pois Halbwachs (op. cit.) tinha razão em dizer que os documentos encerrados em museus e bibliotecas, aos quais só um reduzido número de estudiosos tem acesso, não pode constituir por si só uma memória. Mas, como argumenta o historiador P. Nora (1997), há documentos —e aí se incluem não apenas textos escritos, mas também obras de arte, monumentos, espaços arquitetônicos etc.— sobre os quais parcelas de uma população investem uma “vontade de memória” e, por isso mesmo, eles são transformados em “lugares de memória”deixando de ser simples “lugares de história”. Propõe-se ainda, para fins da análise psicossocial aqui pretendida, uma segunda ampliação da noção histórica de documento, no sentido de englobar não apenas os traços e registros materiais deixados pelo passado, mas também tudo o que se tem crescentemente produzido e divulgado sobre ele, como livros didáticos de história, filmes cinematográficos, matérias nos meios de comunicação de massa etc. Tal ampliação implica que o conhecimento documental —não importando se verdadeiro, preciso ou não— acerca do passado e, em especial, dos fatos históricos se encontra hoje amplamente acessível a uma população e não apenas a reduzidas parcelas desta. Por exemplo, praticamente todos os cidadãos brasileiros que cumpriram o nível fundamental de ensino sabem que o Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral e mantêm em suas mentes —como se disso se lembrassem— as imagens das caravelas portuguesas aqui chegando pelo mar e dos nossos índios as observando da praia (SÁ, OLIVEIRA & PRADO, 2005). 49 Em continuidade, cabe considerar, como sustentado tanto por Halbwachs quanto por Bartlett, e depois por Moscovici, que conhecimento e memória estão intrinsecamente associados e, muitas vezes, mesclados a um tal ponto que o que é lembrado do passado e aquilo que se sabe sobre ele se tornam indistinguíveis. Daí que, mesmo quando o fato passado não pode ser objeto de lembranças pessoais ou grupais —como é o caso do descobrimento do Brasil—, os documentos que o fazem conhecer permitem uma apropriação que é frequentemente experimentada mais como uma memória do que como um saber. É nesse sentido que M. Ferro (1990) afirma que “a história como nos foi contada quando éramos crianças deixa sua marca em nós por toda a vida” (p. 9). A mera disponibilidade de tais documentos —mesmo que ampliados para abarcar os produtos artísticos, educacionais e comunicacionais— não faz deles, entretanto, memórias, pois numa perspectiva psicossocial, somente quando os documentos são de alguma forma mobilizados —lidos, visitados, apreciados ou apenas referidos— por pessoas e grupos sociais, é que emerge um fenômeno de memória histórica documental. Isto implica que não são os documentos que ensejam unilateralmente a construção de memórias, mas sim as representações que os diversos conjuntos sociais — por exemplo, as múltiplas e sucessivas classes de alunos de nível fundamental— fazem ativamente deles —por exemplo, do conteúdo dos manuais escolares acerca do descobrimento do Brasil. Daí decorre ainda que, no caso das obras de arte —como a tela “Guernica”, de Picasso— e dos filmes —sobre a Guerra Civil Espanhola—, as memórias históricas documentais consistem em representações (sociais) formadas a partir de representações (artísticas). O estudo de memórias históricas documentais pela psicologia social da memória exige, pois dada uma população e um fato, processo ou período histórico, que: sejam identificadas as fontes documentais de conhecimento histórico disponíveis; seja avaliado o grau de “mobilização funcional” da população em relação a tais documentos, incluindo a circunstância de que alguns deles se tenham constituído em “lugares de memória”; e, como 54 BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1996. BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979. BROWN, R.; KULIK, J. Flashbulb memories. In NEISSER, U (Org.). Memory observed: remembering in natural contexts. New York: W. H. 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Nacional, 1976. 56 PSICOLOGIA SOCIAL E PROCESSO EDUCACIONAL — IMPLICAÇÕES IDEOLÓGICAS E ÉTICAS CAPÍTULO 4 ARMADILHAS E ALTERNATIVAS NOS PROCESSOS EDUCACIONAIS E NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES: UMA ANÁLISE NA PERSPECTIVADA PSICOLOGIA SÓCIO–HISTÓRICA Wanda Maria Junqueira de Aguiar Pontifícia Universidade Católica de São Paulo objetivo deste simpósio é, ao refletir sobre a realidade educacional, suas armadilhas e alternativas, destacar a necessidade de se lançar um olhar teórico–crítico tanto sobre as concepções de educação, escola e seus processos constitutivos como sobre a formação de professores. Para tanto, destacaremos a relevância do referencial teórico e metodológico, no caso a Psicologia Sócio–Histórica, baseada nos pressupostos do Materialismo Histórico e Dialético. Colocar o processo educacional em foco —e com ele, a questão da formação de professores— gera várias indagações: O que entendemos por educação? Quais as nossas expectativas a respeito do processo educacional? Qual a nossa avaliação da sua atual condição? Como concebemos o papel do professor? Como avaliamos sua formação? Vemos necessidade de alguma transformação em suas práticas pedagógicas? Que tipo de transformação esperamos? Claro que não poderíamos responder a todas essas perguntas, não só pela enormidade de questões envolvidas como pela sua complexidade. No entanto, acreditamos ser possível apresentar algumas reflexões que nos ajudem a focar e, quem sabe, apreender de um modo menos aparente os O 57 processos educacionais, desmontando armadilhas que nos conduzem, muitas vezes, a leituras ingênuas dos processos educacionais e a práticas conservadoras e alienadas. Destacamos assim que, coerentemente com o referencial adotado, pensar Educação é pensar o desenvolvimento e a transformação do Homem. A possibilidade dessa compreensão se dá por via de uma das principais categorias do Materialismo Histórico, ou seja, a Historicidade. Tal categoria nos permite apreender o homem no seu movimento dialético e multideterminado pelas mediações sociais e históricas. Como nos lembra Vigotski (2000) historicidade se desdobra em dois aspectos inseparáveis. Um apontando a existência de uma “dialética geral das coisas”, ou seja, o homem se desenvolve nas e pelas contradições no movimento dialético constitutivo das mediações sociais, ao mesmo tempo que —considerando aqui o segundo momento— num processo histórico, temporal, com toda a materialidade que o caracteriza. Com isso, afirmamos que o homem se constitui na relação de mediação com o social, relação em que homem e sociedade vivem a tensão constante de serem diferentes, opostos, mas de se constituírem mutuamente. Assim, indivíduo e sociedade vivem uma relação na qual se incluem e se excluem ao mesmo tempo. Quando afirmamos se incluem, lembramos Vigotski (2001) ao afirmar que o indivíduo é “quase o social”; para ele não há invenções individuais no sentido estrito da palavra. Em todas as criações humanas existe sempre alguma colaboração anônima. E, quando afirmamos se excluem, se diferenciam, destacamos a singularidade do sujeito. Desse modo, conforme Aguiar e Ozella (2006), “(...) indivíduo e sociedade não mantêm uma relação isomórfica entre si, mas uma relação onde um constitui o outro”. Ainda segundo os autores, “(...) Vigotski (1999) afirma que o processo de internalização deveria ser chamado de “processo de revolução”, pressupondo uma radical reestruturação da atividade psíquica neste movimento chamado de internalização”. Estamos entendendo, desse modo, que o homem, ser social e singular, síntese de múltiplas determinações, 58 nas relações com o social (universal) constitui sua singularidade através das mediações sociais (particularidades/circunstâncias específicas). Explicitando melhor esse processo de constituição da singularidade histórica, e de seu mecanismo de apreensão, afirmamos que ele ocorrerá “pela compreensão de como a singularidade se constrói na universalidade e ao mesmo tempo e do mesmo modo, como a universalidade se concretiza na singularidade, tendo a particularidade como mediação” (OLIVEIRA, 2001:1). Será deste homem que vamos falar. É o homem sujeito e foco da educação. Homem que se constitui humano na história, no processo constante de objetivação e subjetivação. Voltando à ideia de que Educação é transformação e desenvolvimento do homem, faz-se necessário completá-la afirmando que o processo educacional deve ser entendido, também e essencialmente, como aquele que permite ao homem, com toda a sua historicidade e singularidade, se apropriar do conhecimento produzido historicamente pela humanidade. É a educação que, como nos ensina Vigotski (2001), permitirá a “refundição do Homem” , a revolução nas suas funções psíquicas superiores. Sem qualquer ingenuidade, e sem esquecer o peso das condições objetivas dadas pelo modo de produzir de uma sociedade, acreditamos que o processo educacional contribui para que se proporcionem ao sujeito condições de se afirmar enquanto tal, de não se sujeitar, de ter instrumentos para compreender e transformar a realidade e a si mesmo. A educação, conforme aponta Severino (2005) precisa gestar possibilidades de educandos e professores se apropriarem das relações de poder e desvendarem as armadilhas ideológicas. Segundo o autor, só assim a educação atuará como força de transformação. Isto posto, sintetizando nossa concepção de educação, lembramos Paulo Freire ao afirmar que “a educação como prática política da liberdade, ao contrário daquela que é prática da dominação, implica a negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim, como também a negação do mundo como uma realidade ausente dos homens” (1996:70). 59 Essas colocações deixam claro que o olhar teórico e metodológico adotado é fundamental para a explicitação do homem, da educação e do que se espera desse processo. Mas onde ocorre esse processo? O que marca tais espaços? Ao falar de educação podemos pensar numa grande diversidade de espaços e modalidades. No entanto, aqui vamos fazer um recorte e focar a escola como espaço privilegiado para a prática educativa. Partimos do princípio de que, dependendo de como analisamos a instituição Escola, criamos maiores ou menores condições de apreendê-la na sua totalidade e contradições e, deste modo, ser capazes de uma intervenção mais ou menos qualificada. A nosso ver, será o referencial adotado que permitirá a apreensão da realidade escolar para além de sua aparência, entendida aqui como opaca, camufladora do real, enganosa. Acreditamos que a psicologia sócio–histórica, tendo como base o materialismo histórico e dialético, permite-nos uma apreensão da escola e dos processos que nela se constituem e que, ao mesmo tempo, lhe dão vida e concretude. Destacamos, assim, alguns pressupostos do materialismo histórico e dialético, vistos como essenciais para a apreensão da instituição Escola. Em primeiro lugar apresentamos a noção de Processo. Como afirma Vigotski “Estudar uma coisa historicamente significa estudá-la no processo de mudança: esse é o requisito básico do método dialético” (2000:85). Assim, escola só poderá ser aprendida como uma instituição prenhe de contradições, em constante movimento. Sem essa compreensão corremos o risco de naturalizá-la, tomá-la em si, descolada das mediações que a constituem. Na perspectiva adotada, escola será compreendida como uma totalidade histórica e contraditoriamente constituída, na qual cada parte revela o todo transformado pela dialética de sua singularidade. Ao mesmo tempo, a totalidade expressa as partes, sem ser delas cópia ou somatório. 64 a dimensão subjetiva é uma configuração dos sujeitos a partir de suas experiências no mundo social; é a dimensão dos registros simbólicos e emocionais que o sujeito vai construindo no decorrer de suas vivências; é o mundo psicológico propriamente dito (2005: 123). Isto posto, ao focarmos o trabalho do professor, com a meta de gerar maior e melhor apreensão, por parte dos mesmos, de suas determinações constitutivas, não podemos jamais esquecer que suas expressões revelam ao mesmo tempo o social, a ideologia, a realidade institucional, dialeticamente transformadas em singularidade, em subjetividade. Tendo em vista as proposições apresentadas, de que a atividade docente pode ser geradora de mudanças nos processos educacionais, e que, portanto, conhecer o sujeito professor, sua atividade, e sua dinâmica subjetiva é fundamental, retomamos algumas questões já apontadas. Como se dão tais mudanças? Que olhar deve ser lançado à atividade docente para que possamos apreendê-la na sua complexidade? Como produzir uma prática de formação docente que promova a vivência das contradições, sua apreensão e superação? Sem ter a pretensão de responder a todas as questões, destacamos que num trabalho de formação de professores deve-se ter como meta o esforço de romper o cotidiano, de desmistificar velhas concepções, aprofundar compreensões rasteiras, ultrapassar a aparência. Para isso, torna-se fundamental a reflexão sobre o cotidiano, de modo a se escapar das armadilhas do pensamento do senso comum, dos preconceitos, das leituras naturalizantes da realidade social. No esforço de penetrar no cotidiano, de desvendar suas contradições, suas determinações, é fundamental que o professor tenha clareza de que a luta pela competência, ou, pela superação das contradições vividas neste espaço, não se dá somente no plano individual, pela busca de técnicas milagrosas. Mas é fundamental compreender que a ação competente da escola é seu trabalho coletivo. 65 Sabemos que essa é uma tarefa árdua. Como estabelecer um processo de interrogação explícita e ilimitada no espaço cotidiano de trabalho docente? Como produzir novos sentidos? Como sair do lamento e partir para construção de um projeto que tenha como norte a gestão coletiva do sentido escolar? Neste momento vemos a necessidade de discutir o conceito de ressignificação. Seria simplista afirmar que, para se produzir novos sentidos, bastaria que os professores se apropriassem de suas determinações. Temos de considerar a dialética objetividade/subjetividade. Como aponta Aguiar, “nesse processo de objetivação/ subjetivação que é único, social e histórico a realidade social encontra múltiplas formas de ser configurada, com a possibilidade de que tal configuração ocorra sem desconstruir velhas concepções e emoções calcadas em preconceitos, visões ideologizadas, fragmentadas etc.” (2000, p. 180). Sabemos que muitas vezes, no seu cotidiano, o professor não se apropria de suas experiências, não valoriza os desafios, os questionamentos colocados tanto pelos alunos, como pela própria realidade. Parece estar imune ao novo que a realidade sempre trás. Aí se coloca nosso desafio. Como uma contribuição para se analisar e apreender a atividade docente nas suas contradições e possibilidades, trazemos algumas reflexões produzidas por Yves Clot (2006) no que se refere à discussão sobre o “ Real a Atividade” e a “ Atividade Real”. A partir das contribuições do autor, depreendemos que a atividade docente, como qualquer outra atividade, se encontra em desenvolvimento. No entanto, essa atividade, tecida por conflitos estabelecidos entre vários de seus aspectos, que podem, por vezes, se mostrarem contraditórios e/ou equivocados, pode ser ‘impedida’, ocasionando dano àqueles que a exercem. Dessa forma, a tentativa não é a de simplesmente descrever a atividade, mas de analisar a atividade docente como um processo de desenvolvimento, sobre o qual não se sabe, de antemão, que direção irá seguir e que não pode ser reduzido às ações observadas. 66 Assim, esse autor afirma que o “real da atividade”, diferentemente da “atividade real” (aquela que se resume ao observável), envolve tanto o que foi realmente feito como tudo aquilo que poderia ter sido feito, que se procurou fazer sem o conseguir, que se queria ter podido fazer, que ainda se pretende fazer em outra ocasião. Envolve ainda, e especialmente, tudo o que se faz para não se fazer o que deve ser feito. Fazer ou realizar é, portanto, frequentemente, desfazer e refazer. Nesse caso, Clot 2006 considera que a atividade pode ser entendida como uma difícil escolha subjetiva, na medida em que cada pessoa avalia a si mesma e aos outros ao avaliar o real, buscando uma oportunidade de fazer o que deve ser feito. Considerando que as atividades não realizadas que não foram ou não puderam ser concretizadas (ou seja, as que fracassaram, portanto) —têm, inegavelmente, um impacto na atividade realizada, o autor propõe que elas sejam também incluídas na análise da atividade. Em síntese, se a atividade realizada é apenas uma parte muito pequena do real da atividade, parece ser fecunda a proposta de, no intuito de irmos para além da aparência, de buscarmos as contradições, de efetivamente buscarmos os sentidos do professor, efetuarmos este esforço analítico, construtivo e interpretativo da atividade do professor. Vemos nesta perspectiva a possibilidade de gerar um conhecimento que, compartilhado com os professores, pode se constituir num fator potencializador de reflexões sobre si mesmos e sobre as práticas desenvolvidas, gestando possibilidades de transformação. Para finalizar retomamos a ideia de que, como nos lembra Vigotski ao escrever “O Significado da Crise da Psicologia”, é fundamental a existência de um método para apreendermos o real, na sua complexidade, nas suas contradições. Desse modo, reiteramos a importância da perspectiva teórica e metodológica adotada para a leitura dos processos educacionais apresentados, acreditando que a mesma nos permite uma análise que escapa das armadilhas, das dicotomias, das visões reducionistas, das naturalizações. 67 Em última instância podemos afirmar que buscamos uma compreensão que permita redirecionar as atividades propostas em educação, de modo a apreender a totalidade dos fenômenos, suas contradições, sem perder de vista o sujeito real, concreto, propiciando assim uma prática educacional mais transformadora, ética e inclusiva. Referências bibliográficas AGUIAR, W.M.J. Professor e Educação: Realidades em Movimento, In: TANAMACHI, E.; PROENÇA, M.; ROCHA, M (Org.) 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In: CEDES, Educação e Sociedade — Revista Quadrimestral de Ciência da Educação, n.71, 2000. 69 CAPÍTULO 5 INTERFACES ENTRE EDUCAÇÃO NÃO FORMAL E JUVENTUDE1 Cleci Maraschin Universidade Federal do Rio Grande do Sul Carolina Seibel Graduada da UFRGS Deisemer Gorczevski Doutora pela Unisinos Introdução s circunstâncias de vida dos jovens brasileiros, principalmente aqueles que vivem em comunidades com insuficientes condições materiais apresentam uma série desafios às políticas públicas e às instituições sociais. Tomando como exemplo o contexto educacional, existe uma diminuição progressiva da escolarização formal do brasileiro à medida que esse passa da infância para a adolescência. Segundo dados do IBGE (1997), a taxa de escolarização (proporção de pessoas frequentando a escola em relação ao total da população da mesma faixa etária) das crianças e adolescentes no Brasil atinge o pico de 93% dos 7 aos 14 anos de idade, caindo em seguida para 73,3% de 15 a 17 anos de idade. Na região sul, a diferença é ainda 1 Trabalho resultante de projeto de pesquisa-extensão intitulado “Vivenciando a cultura na Restinga”, apoiado pelo CNPq, com bolsa de Iniciação Científica e pelo MEC/SESU. Uma versão ampliada do mesmo foi publicada sob o título: Saberes e práticas de oficineiros — análise de uma cognição situada em coautoria com Carolina Seibel Chassot (Graduanda em Psicologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ex-bolsista de Iniciação Científica) e Deisimer Gorczevski (Doutora em Ciências da Comunicação pela Unisinos. Bolsista do CNPq. Educadora e Pesquisadora Social) na Revista Psico n° 3, v. 3, p. 287 a 296, set. a dez. 2006. A 74 Embora o contexto escolhido para essa análise não consista em uma observação “naturalística” dos fazeres dos oficineiros, uma vez que se trata de uma pesquisa–intervenção, pensamos que este permanece sendo um campo importante de análise. Primeiro porque, toda a observação já pode ser considerada uma intervenção (MARASCHIN, 2004) e, segundo, porque o conversar do coletivo pode produzir reflexões sobre a ação reconfigurando- as. Tomamos como foco de análise o ponto de vista dos oficineiros a partir de suas trajetórias no projeto como um modo de pensar a cognição posta em ação, vivida. Organizando objetivos e perspectiva de análise Para Varela (2003) existem competências que se traduzem em uma “disposição” ou em um “conhecimento prático” baseados na experiência e que não podem ser traduzidos diretamente por proposições lógicas ou entendidos como uma representação. Não podemos tratar o conhecimento situado como uma “falha” “que pode ser eliminada progressivamente mediante o descobrimento de regras mais elaboradas” mas sim como “a essência mesma da cognição criativa” (p. 176). Essa ideia nos possibilita tomar o saber–fazer dos oficineiros cognição enatuada, atribuindo-lhe um reconhecimento muitas vezes desconsiderado pelas teorias cognitivas que têm na formalização dos modelos seu foco principal. O mesmo autor explica que o conhecimento é resultante de uma interpretação que emerge da capacidade de compreensão. A ação de interpretar pode ser entendida como “enatuar” ou “fazer emergir” o sentido a partir de uma rede de relações das quais participam o corpo, a linguagem, a história social, enfim, o que sintetiza como corporeidade. Se o interpretar está necessariamente arraigado à nossa corporeidade biológica, ele é vivido e experimentado dentro de um domínio de ação consensual e de história cultural. Nosso objetivo é mapear como se produzem as interpretações em diferentes momentos de intervenção e de conversação entre oficineiros no contexto da experiência. 75 Relatos de campo foram registrados de várias formas: uma lista de mensagens eletrônicas foi mantida pelos participantes da equipe durante todo o transcorrer da experiência, registros escritos, filmagens e fotografias foram feitos pelos vários integrantes da equipe. Desses registros optamos por analisar os percursos de dois oficineiros. O motivo da escolha da análise das trajetórias em uma experiência como método de pesquisa foi o entendimento de que havia, nestes percursos, diferentes modos de interpretar. Além do que, esse modo de análise possibilita acompanhar os saberes e as práticas em seu próprio acontecer, o que certamente, está em congruência com o conceito de enação. Os critérios para a escolha dos oficineiros foram baseados em sua participação intensa em todas as etapas do projeto e em questões que, inicialmente possibilitavam pontos de convergência (como a experiência com a tecnologia do vídeo) e divergência (a relação com a condição de oficineiro, o envolvimento com movimentos sociais, a experiência com adolescentes). Na análise dos registros, percebemos que as questões colocadas pelos dois oficineiros tinham pertinência com: 1. o próprio fazer, que aparece em forma de autonarrativa; 2. o espaço–intervenção que se produz ao oficinar; 3. a rede de instituições na qual a oficina se produz (escola, universidade, projeto e comunidade). Essas questões guiaram a análise das trajetórias. Tomamos nessa análise a ideia de um processo enativo de subjetivação, ou seja, de que ser oficineiro resulta de um modo de viver como tal: falar-se, identificar-se, agir como se acredita que fala, que age um oficineiro em uma dinâmica conversacional —a oficina— que opera como uma rede de elementos interconectados capaz de sofrer alterações estruturais ao longo de uma história coletiva com uma certa permanência. Nosso percurso será então mapear os diversos modos que nossos dois protagonistas “enatuam”, ou seja, os modos pelos quais sua ação produtiva, 76 propositiva, faz emergir um mundo, mantendo vivo um modo de interação que denominam de oficina. Assim denominaremos os sujeitos da pesquisa, tomados aqui em análise, de “protagonistas”. 1. Como se faz oficineiro? – autonarrativas O modo como nossos dois protagonistas (Vítor e Augusto) se apresentam ao grupo evidencia diferenças no sentido que atribuem ao fazer do oficineiro. Essa narrativa de si faz transparecer um modo de problematizar a própria experiência de oficineiro. Vítor, ao se apresentar, diz que trabalha nos correios e nas horas vagas com vídeo, se definindo como autodidata nesta área. Informa que colaborou na edição de um jornal numa escola da comunidade. Diz que não é oficineiro, mas se sente um. Tem experiências com jovens e vontade de ensinar. Está no projeto para se capacitar como oficineiro3. Augusto trabalhou como ator e oficineiro de teatro, fotografia, rádio (já foi radialista da rádio comunitária). Também já trabalhou com massagem e atualmente trabalha com vídeo. Quer trabalhar com arte e comunicação, promover mudança social, conhecer as pessoas, promover o desenvolvimento e o autoconhecimento. A descrição inicial das trajetórias pode já trazer evidências de distintas posições e sentidos acerca do que é ser oficineiro a partir do modo como vivem essas experiências. Enquanto Vítor comenta que trabalha com algumas mídias, em específico vídeo e jornal, atuando junto ao público jovem nas horas livres, Augusto assume a atividade de oficineiro como sua ocupação principal. Estas diferenças demonstram que os sujeitos falam de um modo de viver como oficineiros e não somente como representam uma ideia ou uma noção de ser oficineiro. 3 Todos os relatos de campo apresentados neste trabalho foram registros escritos tomados entre novembro de 2003 e julho de 2004 por diferentes integrantes do projeto. Estes registros estarão indicados em itálico. 77 As falas autorreferentes anteriores também estão articuladas a uma rede de conversações que remetem ao reconhecimento dessas atribuições pela própria comunidade, evidenciando que os processos de autoria de constituir-se a si mesmo se sustentam não somente com uma autorreferência, mas em uma referência a outras instituições. Assim, para Vítor existe uma diferença entre “sentir-se” um oficineiro e ser reconhecido como tal. Diz que se sente oficineiro pelo desejo de ensinar aquilo que sabe. Mas o reconhecimento está em outra instância como a de uma capacitação. Para ser um oficineiro, é tão importante sentir-se como tal (ter o desejo de) como ser reconhecido institucionalmente como tal. Já para Augusto, a sua própria experiência já se constitui fonte de reconhecimento. Mas, em sua concepção, não é qualquer experiência com oficina que constitui um sujeito como oficineiro. Uma distinção fundamental é a participação em movimentos sociais. Augusto diz: “temos muitos ativistas políticos na comunidade. O oficineiro é ligado aos movimentos sociais, engajado no social”. A militância e a dedicação que são definidoras de um oficineiro para Augusto contrastam com o altruísmo e a certificação para Vítor. 2. Oficinando Assim como “ser oficineiro” é um modo de individuação, a oficina é um espaço–invenção que se produz no próprio exercício do oficinar. As questões e problemas que apontam nossos protagonistas permitem acompanhar sua processualidade. Vítor diz que a oficina tem que contemplar o real (gesticula como quem manipula argila) para lidar tem que tocar as coisas. As ideias necessitam ser concretizadas através de ações ou operações práticas, essa característica é que distingue uma oficina de outra prática educativa. Augusto faz outras distinções: a oficina é mais maleável que ensino formal: “educa o sentimento, tem linguagem mais acessível, abarca mais 78 saberes, improvisa, aceita emoção. Tem apresentação, aquecimento, relaxamento e volta (reflexão)”. Na fala de Augusto, a oficina se produz em contraponto à educação formal. A comparação com os modos escolares de intervenção retorna em vários momentos, tanto na preparação e avaliação quanto na execução da própria oficina, produzindo assim uma marca identificatória pela busca de uma alteridade. As falas revelam ênfases no que se distingue como oficina. Uma condição necessária é a atividade e, parece, uma atividade manual e material, não somente intelectual. A atividade e o conteúdo necessitam ter ligação. A técnica deve ser usada a favor do tema, e não só como técnica pela técnica. Não se trata, tampouco, de um empreendimento meramente cognitivo. A oficina contém uma estrutura: “faltou unidade, objetivo e fechamento” (Fala de Augusto, ao analisar elementos faltantes em uma experiência de oficina de outra colega). Apesar das diferenças, ambos oficineiros afirmam a oficina muito mais como um modo de operar do que seus elementos constituintes. Uma forma de ação produtiva, enativa. O lugar do objeto técnico também foi objeto de debate. O vídeo, meio de registro ou conteúdo de uma aprendizagem? Essa problematização é interessante, pois revela que existe uma tensão entre as relações de meios e fins, onde alguns objetos podem ocupar simultaneamente diferentes funções. Para Vítor a proposta é que a aprendizagem do uso do vídeo ocorresse durante todo o tempo, priorizando o vídeo como conteúdo da aprendizagem, o que gerou um questionamento de Augusto: “nós não vamos avaliar o uso do vídeo, vamos avaliar a oficina através do vídeo”. Para Augusto o foco não deveria ser a câmera, deveria ser outro tema e o vídeo ser usado a favor desse tema. O vídeo deve estar a serviço da oficina e não o contrário. O fim da oficina não é produzir expert em vídeo, mas o vídeo é um instrumento para se apropriar do tema. 79 A posição de Vítor, embora criticada por Augusto tanto pelo voluntarismo quanto pelo tecnicismo, foi que possibilitou o acesso dos jovens à câmera de vídeo. Vítor teve a iniciativa de apresentar a câmera ao grupo e em seguida devolvê-la ao grupo em questão, permitindo que este se experimentasse na posição de estar atrás das câmeras. O que pode revelar que um ativismo sem experimentação, domínio técnico, também torna-se inócuo. A tensão do lugar da tecnologia durante as oficinas possibilitou a ampliação da experimentação de suas funções e usos. O vídeo pôde ser tomado como (1) um objeto de aprendizagem: como produzir vídeos, como filmar; (2) um outro ponto de vista de observação, uma vez que o que era filmado era exibido em uma TV presente na oficina, possibilitando aos participantes combinar sua perspectiva de observação com a perspectiva de quem que filmava e (3) um documento de registro da experiência capaz de atualizar o ponto de vista do operador da câmera distante do momento da oficina; (4) como um meio potencializador de reflexões sobre temas específicos. A ampliação dos usos não era algo pré-determinado. Aqui encontramos como a enação faz emergir um gradiente de possibilidades ainda não antecipado pelo grupo. Ou seja, a polêmica produzida por nossos protagonistas entre meio e fim, possibilitou a experimentação do vídeo abrindo possibilidades inusitadas de uso, como o ponto 2 e 3 acima referidos. As diferentes experiências com o vídeo na oficina constituíram coletivamente outros usos aos dois previamente formulados por nossos dois protagonistas. O vídeo tornou-se um instrumento interessante de avaliação provocando o debate, a argumentação e a contra-argumentação. Certamente Vítor não previa que ao disponibilizar o vídeo para os oficinandos sua própria ação poderia ser tomada como objeto de análise, de debate, uma vez que as filmagens eram objeto de análise para o preparo das oficinas subsequentes. Outro fator que merece destaque, e que já vínhamos mencionando, é a função do registro no trabalho. Diferentemente da experiência da maioria dos oficineiros, que organizava e desenvolvia oficinas individuais, o projeto incentivou o trabalho coletivo. Esse elemento desafiador tornou possível 84 O encorajamento da criatividade e da autoexpressão foram efeitos de um modo de regular aquilo que era planejado e a possibilidade de um certo improviso. Tal composição trouxe flexibilidade para reconfigurações de percurso e incremento de soluções criativas. Uma das ações mais frequentes é a ideia da bricolagem, ou seja, um modo de organizar arranjos com os materiais, objetos, pessoas e condições que estão à disposição e não apenas lamentar que as condições ideais não estejam presentes. A informalidade e a ludicidade da oficina contribuem para uma participação efetiva e curiosa, produzindo um certo encantamento, ou desejo de conhecer e experimentar. Algumas outras características mereceriam aprofundamento de análise, tal como a precariedade e o não reconhecimento do trabalho do oficineiro. Talvez a primeira reflexão concernentes às redes de conexão entre educação formal e não formal possam dar pistas dessas dificuldades. Referências bibliográficas HUNING, S. Ordinário, Marche! A Constituição e o Governo de Crianças/Adolescentes pelo Risco–Diferença. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado não publicada, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2003. IBGE — Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa nacional por amostra de domicílios. [CD-ROM]. Microdados: Rio de Janeiro, 1997. MARASCHIN, C. Pesquisar e intervir. Psicologia & sociedade v.16, n. 1, p. 98–107, 2004. VARELA, F. Conhecer: as ciências cognitivas tendências e perspectivas. Lisboa: Instituto Jean Piaget, 1994. ______, THOMPSON, E. & ROSCH, E. A mente incorporada: ciências cognitivas e experiência humana. Porto Alegre: Artmed, 2003. 85 ÉTICAS, VIOLÊNCIAS E DIREITOS HUMANOS CAPÍTULO 6 TRANSCENDÊNCIA E VIOLÊNCIA Jurandir Freire Costa Universidade do Estado do Rio de Janeiro ranscendência ética e violência ligam-se por laços de dependência e oposição que, até hoje, vêm sendo investigados pelos estudiosos do tema. A primeira é tida como a única força capaz de fazer face à violência, enquanto a última é o que pode enfraquecer, desagregar ou eliminar a primeira. Pode-se perguntar, então, por que apenas a transcendência pode se opor à violência tornando-se um pré-requisito da vida ética? Esta é a questão que penso em discutir neste trabalho. De início, tentarei precisar a noção de transcendência, e, no final do trabalho, a de violência. Espero que, o desenvolvimento do argumento, esclareça os motivos dessa ordem expositiva. 1. Sobre a transcendência A palavra transcendência possui uma grande extensão semântica. Na acepção ética, contudo, podemos defini-la como o estado ou a condição de um princípio, entidade ou realidade postulados como fundamento das aspirações morais do sujeito. O transcendente ético, portanto, é o Outro cujas exigências condicionam nossa existência como pessoas responsáveis por decisões e ações orientadas pela distinção entre o Bem e o Mal. Na visão de mundo pré-moderna, a realidade transcendente foi prática e teoricamente assimilada à ideia de Deus. Na Idade Média, Deus era o criador perfeito, eterno, necessário e onipotente, enquanto o sujeito era a criatura imperfeita, mortal contingente e finita. O transcendente T 86 causava o sujeito naquilo que ele era e deveria ser, e este último era convocado a se autogovernar no intuito de aproximar sua inerente imperfeição da plenitude ontológica do Outro divino. A Modernidade político–filosófica revogou a maior parte destas crenças, dissociando a ideia de transcendência da ideia de Deus. No pensamento secular, o transcendente tornou-se um simples artefato cultural feito da matéria humana e com finalidades humanas. O sujeito, dizia-se, mediante o pleno uso da Razão, conheceria seus melhores interesses, e, ipso facto, seus mais nobres objetivos. A heteronomia ética chegara ao fim. A emancipação em relação ao Outro sobrenatural transformou o indivíduo das revoluções democrático–burguesas em ator e autor de suas aspirações ao Bem ou à felicidade. Contudo, foi justamente neste momento teórico–histórico que a violência emergiu como um objeto de inquietações morais e intelectuais. O pivô da questão foi o debate sobre a legitimação racional da força da Lei. Isto é, se o Transcendente ético foi, sobretudo, imaginado como a Lei válida para todos, qual deveria ser a natureza da força que tornaria eficaz sua aplicação? A força da Razão ou a força bruta da violência? E se por acaso fosse a última, quais argumentos poderiam fundamentar racionalmente tal escolha? 2. O repúdio secular à violência divina Desdobro o raciocínio. Uma das críticas recorrentes à religião feita pelo pensamento leigo concerniu à violência intrusiva da Lei divina nos negócios humanos. A intrusão foi denunciada em duas esferas da vida cultural: a político–social e a antropológica. No caso da primeira, afirmava- se que a ordem sociopolítica do catolicismo medieval havia fracassado em seus objetivos, quais sejam, tornar a comunidade temporal dos crentes um espelho da cidade espiritual de Deus. Durante e após as Guerras Religiosas, que se iniciaram com a Reforma protestante —1520, aproximadamente— e se prolongaram até a Paz de Vestfália —1648—, muito se fez para mostrar que o ethos católico, em vez da paz, trouxera a opressão, o atraso social e a 87 carnificina da guerra. A melhor prova era o imobilismo da nobreza, que reprimia a expansão das novas iniciativas socioeconômicas, e os intermináveis banhos de sangue entre as famílias reais governantes. A solução para o problema era substituir Deus pelo Estado democrático, único capaz de direcionar o viver coletivo rumo à concórdia e à segurança. Os ideais de transcendência ética foram, por essa razão, empurrados da órbita da Lei divina para a das Leis humanas. O estado de direito democrático converteu-se no alicerce das finalidades pessoais e sociais, e sua base racional assentou-se nas concepções de História e do respeito às liberdades individuais. A valorização da História pretendia tornar o ideal de perfectibilidade humana um processo em aberto, e não uma busca pela ilusória perfeição perdida nos tempos pré-adâmicos, e a ideia de liberdade individual visava anular o peso da vontade divina, substituindo-o pela vontade humana. Deus, dizia-se, não havia criado o homem; o homem é que havia inventado Deus, por ignorar seu verdadeiro potencial criador. Na medida em que tomasse consciência de sua alienação, ele poderia elevar sua moralidade ao nível do governo autônomo de si. No caso da segunda esfera, a antropológica, o dano teria sido outro. Os pensadores leigos afirmavam que Lei coextensiva ao Transcendente divino tinha-se mostrado exorbitante em seus requerimentos. Por considerar o sujeito como um ser marcado pela Queda, a religião não dava tréguas à pretensa malignidade escondida em sua alma. O Outro divino era implacável e a violência lhe era congenial. Ele não hesitava em castigar aqueles que não podiam amá-lo através do amor ao próximo, razão da culpa, do temor e da perda de liberdade sofridos pelos seus súditos fiéis. O exemplo cabal da infantilização do indivíduo pelo medo era a moral do sacrifício. A ética sacrificial, para os fundadores do materialismo racionalista e ateísta, nutria-se do permanente sentimento de dívida e culpa, visto por eles como um atentado à dignidade do sujeito secular. O sujeito religioso, afirmava-se, fora moralmente coagido a sentir-se, ao mesmo tempo, portador de um Mal sem redenção mundana e devedor da própria 88 vida, ou seja, a vida da qual fruía era uma dádiva amorosa recebida sem merecimento. Ao nascer, portanto, ele já chegaria ao mundo cabisbaixo, acusado de inadimplência ontológica, pois a dívida que fora obrigado a contrair era impagável. Viver equivalia a sentir-se culpado por gozar de um benefício ao qual não se fez jus e que poderia ser perdido se Deus decidisse privá-lo da bem-aventurança da vida eterna. Só havia um meio de atenuar essa culpa esmagadora: encená-la no ritual compulsivo do sacrifício. Nos ritos de reconhecimento da dívida, o indivíduo pagaria em pequenas parcelas o tributo devido ao Transcendente, desonerando-se do excesso de culpa, mas tornando-se, inevitavelmente, um animal triste. O caminho para restaurar a dignidade humana lesada pela mistificação religiosa era devolver ao sujeito a consciência de que ele era o próprio produtor de suas crenças. 3. O núcleo violento da Lei humana Do prisma ético, entretanto, a deposição de Deus e a entronização do Estado democrático como guardião do Bem Comum revelou-se mais precária do que pensaram seus mentores. O objetivo da secularização era o de expurgar a violência do viver terreno, neutralizando a presença esmagadora e alienante de Deus. Tal objetivo, porém, malogrou. A violência expulsa pela porta da frente retornou pela de trás, e o motivo do retorno deveu-se ao modo pelo qual o Transcendente leigo foi concebido, ou seja, como Lei garantidora do poder do Estado liberal democrático. Os ideólogos do pensamento secular —em especial, os porta-vozes do liberalismo filosófico político— desde pronto defrontaram-se com um sério obstáculo à pretensão de fundar uma ética em bases puramente racionais. O obstáculo pode ser sumarizado em duas interrogações: a primeira concerniu ao rumo da História; a segunda, ao valor conferido ao indivíduo como agente autônomo dos ideais éticos. No caso da História, a pergunta era: se os eventos históricos eram contingentes, e não pontos contínuos em uma linha teológica pré-traçada, como reconhecer neles indícios seguros do progresso ou do retrocesso moral? No que tange ao indivíduo, a pergunta era similar: sem o aval de um Deus onisciente e 89 onipotente, como saber se os fins morais momentaneamente aprovados não se revelariam, posteriormente, como maus e destrutivos? Em síntese, como garantir a bondade do ideal ético perseguido apoiando-se na transitoriedade das opções morais assumidas? A saída para o impasse consistiu em substituir a Vontade divina pelo assentimento de todos em obedecer à Vontade Geral. Esta, obtida pelo consenso racional sobre as verdadeiras finalidades da conduta humana, ofereceria o metro indubitável da retidão das atitudes e crenças morais. Entretanto, para ser eficiente, tinha que dispor do Estado legislador e repressor, sem a violência implícita no poder de reprimir os dissidentes, ela se tornaria um simulacro impotente de si mesma. Os teóricos da secularização foram, por isso, levados a chamar de volta a violência atribuída ao Deus católico para colocá-la a serviço do legislador humano. Mas, para justificar o passo atrás, tiveram que revisar, para baixo, a idealização do indivíduo racional dos sonhos seculares. Ao contrário do que havia sido dito, a sensatez, a cortesia e a boa-vontade não mais seriam predicados espontâneos do sujeito racional liberado da superstição religiosa. O indivíduo, com ou sem a nódoa do pecado original, continuava resistente a curvar-se à lei racionalmente fundada, dada sua natureza originariamente violenta. A inconsistência teórica–prática foi, assim, casuisticamente remendada com um adendo ad hoc, o mito da gênese violenta da cultura. O mito, em linhas gerais, consistiu em tratar uma suposição teórica com um dado empírico. Em um suposto estágio pré-civilizatório, dizia-se, bandos de criaturas humanas viviam em perene estado de guerra de todos contra todos. Finalmente, após um período de lutas fratricidas, as hordas concluíram um pacto que delegava a uma única instância simbólico–social o poder de matar ou de deixar viver. Essa instância assumiu várias feições, ao longo da história da civilização, até tomar a forma do Estado democrático da Modernidade. Seja como for, a ideia nodal do mito é a de que a Lei, o contrato social, seria o produto da violência assassina que habita em cada um de nós. 94 Prometer e perdoar são gestos e disposições simultâneos. Trata-se, deste modo, de saber se podemos compatibilizar a originalidade da promessa e do perdão com alguma imagem do sujeito verossímil, dos pontos de vista teórico e empírico. Diria que sim, e sugiro três dessas hipóteses: uma oriunda da filosofia política e duas outras da psicanálise. Tomo o pensamento de Hannah Arendt como representante da filosofia política. De acordo com Arendt, o fundamento da promessa e do perdão pré-legais é correlato à concepção do ser humano como alguém capaz de iniciar algo novo, de forma indeterminada e imprevisível. A seu ver, não somos, de forma dominante, seres reativos, e ainda menos exclusivamente movidos pelo medo; somos originariamente destinados a agir de maneira livre. Em função disso, diz ela: A imprevisibilidade, eliminada, pelo menos parcialmente, pelo ato de prometer, tem dupla origem: decorre ao mesmo tempo da treva do coração humano, ou seja, da inconfiabilidade fundamental dos homens, que jamais podem garantir hoje quem serão amanhã, e da impossibilidade de se prever as consequências de um ato numa comunidade de iguais, onde todos têm a mesma capacidade de agir. O fato de que o homem não pode contar consigo mesmo nem ter fé absoluta em si próprio (e as duas coisas são uma só) é o preço que os seres humanos pagam pela liberdade; e a impossibilidade de permanecerem senhores únicos do que fazem, de conhecerem as consequências de seus atos e de confiarem no futuro é o preço que pagam pela pluralidade e pela realidade, pela alegria de conviverem com outros num mundo cuja realidade é assegurada a cada uma pela presença de todos (ARENDT, 2001: 255–6). Em suma, porque a “treva do coração” nos impede de ser “senhores únicos do que sentimos e fazemos” e porque não temos poder de prever as consequências de nossos atos somos impelidos a prometer e a cumprir o que prometemos. A instituição da promessa, desta maneira, dispensa a violência ou a Lei para se realizar. Seu único requisito é a confiança de que o outro possui igual capacidade de prometer, por reconhecermos nele um ser de ação idêntico a nós mesmos. Quanto ao perdão, diz Arendt: 95 Se não fôssemos perdoados, eximidos das consequências daquilo que fizemos, nossa capacidade de agir ficaria, por assim dizer, limitada a um único ato do qual jamais nos recuperaríamos; seríamos para sempre vítimas de suas consequências, à semelhança do aprendiz de feiticeiro que não dispunha da fórmula mágica para desfazer o feitiço (ibid. 249). Em seguida, continua, dado que ... a ação estabelece constantemente novas relações numa teia de relações, precisa do perdão, da liberação, para que a vida possa continuar, desobrigando constantemente os homens daquilo que fizeram sem o saber. Somente através dessa mútua e constante desobrigação do que fazem, os homens podem ser agentes livres; somente com a constante disposição de mudar de ideia e recomeçar, pode-se-lhes confiar tão grande poder quanto o de consistir em algo novo (ibid. 252). Sem perdão, sem a chance de nos desobrigarmos do que fizemos sem saber que estávamos fazendo, não poderíamos recomeçar e agir em liberdade. Aliás, a simples fantasia de que poderíamos permanecer presos pelo resto da vida às consequências do que um dia fizemos é o desenho mais cruel da danação religiosa! Portanto, não é preciso imaginar que somos seres angelicais, generosos e altruístas para entender porque perdoamos e esperamos que o outro nos perdoe. Perdoamos e prometemos porque somos seres livres, isto é, seres que não podem deixar de agir. E como o produto do agir humano é inelutavelmente irreversível e imprevisível, perdoamos para nos tornarmos responsáveis pela liberdade que exercemos no passado e prometemos para nos tornarmos responsáveis pela liberdade que venhamos a exercer no futuro. No caso das teorias psicanalíticas, o eixo da explicação gira em torno do “sujeito afetivo ou pulsional”. Como veremos, a psicanálise oferece, por assim dizer, uma espécie de suplemento psicológico ao que Arendt afirmou. Tomo Freud como primeiro exemplo. Costuma-se alinhar Freud à lista dos difusores do mito da gênese violenta da cultura. A imputação, a meu ver, não se sustenta. Freud, efetivamente, encampou parte desse mito em seu relato das origens do tabu do incesto e do parricídio. Mas, embora marcado pela 96 antropologia funcionalista do século XIX e pelo ideário do liberalismo político, soube fugir do reducionismo intelectual das doutrinas que o influenciaram. Recapitulemos, de modo breve, o mito freudiano do nascimento do tabu do incesto e do parricídio. Freud aceitou, inicialmente, as teses de Darwin sobre a horda primitiva e a proibição do acesso às mulheres, decretada pelo pai primordial. Entretanto, logo percebeu que a tese deixava inexplicada a transição da horda animal para a sociedade humana, pois, dizia ele, Este estado primitivo da sociedade nunca foi observado em lugar nenhum. A organização mais primitiva que conhecemos e que existe ainda em certas tribos consiste em associações de homens gozando de direitos iguais e submetidas às limitações do sistema totêmico, inclusive a herança na linhagem materna (FREUD, 1968:162–3). Em virtude disso, recorreu às ideias de Atkinsons sobre o parricídio e as lutas fratricidas, que vieram a colocá-lo junto aos pensadores seculares do liberalismo político–filosófico (ibid. 163). Ao contrário, porém, daqueles pensadores, Freud não se contentou com esta solução, pois, nem o parricídio nem as lutas fratricidas tornavam compreensível a transição da obediência a uma ordem externa e violenta para a obediência a uma lei invisível e interiorizada. O dilema foi solucionado pela introdução das ideias de ambivalência e culpa, e do curioso acréscimo de uma terceira, a de que os irmãos, por ocasião do banimento da horda pelo chefe, “criaram laços sentimentais entre eles” (FREUD, 1948:111), ou seja, a culpa pelo assassinato do pai odiado, mas também amado, e o desenvolvimento de laços sentimentais entre os irmãos estariam na base de uma primeira forma de organização social, com a renúncia aos instintos, a aceitação de obrigações mútuas, o estabelecimento de certas instituições declaradas invioláveis, sagradas, em suma, o início da moral e do direito (ibid.:112). Dito de outra maneira, o medo de morrer não disporia da força coercitiva necessária ao surgimento da cultura, como postula o liberalismo clássico. Sem ambivalência, culpa e vínculo sentimental, os irmãos nunca 97 poderiam ter passado do estágio de lutas fratricidas para o de respeito a normas morais. A mudança na grade interpretativa é evidente. Enquanto os sujeitos foram concebidos como mônadas narcísicas interessadas no próprio gozo, o medo da morte perpetuou o impasse do fratricídio. À medida que Freud os descreveu como seres ambivalentes, capazes de odiar e amar uma mesma pessoa, o impasse teve fim, pelo fato de sermos ambivalentes podemos perdoar e prometer. Retomando, assim, o que observaram Girard e MacIntyre, diria que o nexo lógico entre o fratricídio e a Lei não pode ser inferido do medo de morrer, mas do poder de prometer e perdoar, que se atualiza na ambivalência de nossos laços afetivos com o Outro. A promessa e o perdão primordiais, portanto, não precisam ser “institucionalmente legalizadas” para funcionarem como trincheira contra o homicídio mútuo. Ao descrever a barbárie que teria precedido o advento da cultura, Freud quis ilustrar, fantasiosamente, o panorama macabro de um mundo despido da força transcendente da promessa e do perdão. O segundo exemplo vindo da psicanálise, é a teoria winnicottiana. Winnicott também mostra o que nos dispõe afetivamente a confiar na promessa do Outro, e, por conseguinte, a tornar-nos promitentes aptos a cumprir promessas (COSTA, 2004). Sua tese articula, de certa forma, as afirmações de Arendt sobre o sujeito da ação livre e as de Freud sobre a fonte afetiva da promessa e do perdão. Mas o fundamento de seu ponto de vista é a ideia do sujeito originalmente espontâneo e confiante. A espontaneidade concerne á ação agressiva e criativa do sujeito no ambiente, que, no vocabulário do autor, recobre o que designamos como mundo cultural. Para Winnicott, todavia, cultura não é primordialmente uma engrenagem protetora contra a culpa ou a impotência diante de impulsos assassinos auto ou heterodirigidos; é o terreno privilegiado de manifestação da espontaneidade criadora. Por essa razão, o mito da gênese violenta da cultura lhe parece inaceitável. 98 A recusa em ver na cultura uma montagem que defende os indivíduos de seus próprios impulsos violentos baseia-se em dois tipos de argumentos. O primeiro é de natureza epistemológica. Cultura, observa Winnicott, não é uma lente racional blindada que o sujeito fabrica para se abrigar da intrusão do Outro; é o fator indispensável à constituição da vida subjetiva. Enquadrar a cultura na moldura da culpa diante de uma dívida impagável ou do desamparo frente à ameaça de morte, se não é falso, é tendencioso. A cultura pode vir a adquirir essa função como pode abrir-se à multiplicidade imprevisível de outras funções, todas criadas retrospectivamente, tendo em vista outros possíveis horizontes de significação. O segundo tipo de argumento é de ordem psicológica. Neste ponto, insere-se o conceito de confiança. A espontaneidade, relembro, refere-se a relação do sujeito com sua agressividade criadora; a confiança, em contrapartida, concerne à presença ativa do Outro. Mas, entenda-se bem, confiança, na metapsicologia do autor, não é um ideal moral conscientemente cultivado pelos homens de bem; é a condição sine qua non do desenvolvimento psíquico. Confiança é a disposição para atribuir gratuitamente ao Outro uma boa fé para conosco da qual não temos provas ou garantias. Embora não possamos justificar racionalmente esta disposição, sem ela a vida relacional seria impossível. Confiamos no Outro não por estarmos pressionados pelo medo de morrer —o que seria um contrassenso—, mas pelo fato de termos tido experiências contínuas e previsíveis de que, pelo menos, um Outro mostrou-se sensível aos desejos e necessidades que nos permitiram viver. O pressuposto da confiança, assim, precede a prova da confiabilidade, esta sim, uma habilidade emotivo– cognitiva adquirida ao longo da maturação psíquica. Em suma, se sempre tivéssemos sido frustrados em nossas legítimas expectativas, nenhum medo da morte nos levaria a prometer o que quer que fosse ou a perdoar quem quer que fosse. Somos capazes de prometer e perdoar porque aprendemos, ao longo do tempo, que muitas promessas que nos foram feitas foram cumpridas, e que as eventuais falhas no cumprimento puderam ser reparadas ou perdoadas. Donde nossa atitude 99 habitual de primeiro confiar, e, só depois de nos decepcionarmos, perder a confiança. Essa é uma constante psicológica dificilmente refutável. Suspeitar sistematicamente do Outro, imputando-lhe o desejo de nos fazer mal significaria lidar com um estado mental totalmente incompatível com o equilíbrio psíquico. Para Winnicott, então, no início não estava a culpa ou o medo de aniquilamento; estava um Outro que doa o necessário e o adequado ao exercício da criatividade. Sem isso, o sujeito ficaria paralisado no mundo interior de suas fantasias ou se esgotaria no trabalho inútil de vencer obstáculos humanamente intransponíveis. Essa ideia aparentemente simples e prosaica suscitou críticas sarcásticas. Muitos viram nela um rousseauísmo angelical, pronto para o consumo das almas pias e “pré-pós-modernas”. Winnicott, porém, não nega a existência da latência demoníaca do que Freud chamou pulsão de morte ou do que Lacan chamou de Real. Ele apenas argumenta, com base em Darwin, que se a teoria infernal da vida psíquica fosse consistente estaríamos todos loucos ou mortos! De sua perspectiva, portanto, violência é tudo que nos faz perder a confiança no outro, e, por conseguinte, nos impede de exercer o poder de prometer e perdoar. A disposição para confiar, certamente, não tem seguro contra riscos. Podemos enganar-nos quanto à boa vontade do Outro ou quanto a nossa própria boa vontade. Podemos, igualmente, desentender-nos quanto à natureza das finalidades morais que nos levam a prometer e a perdoar. Não podemos, entretanto, dispensar a premissa da confiança, se quisermos viver em coletividade. O poder de prometer e perdoar, portanto, não é um ornamento das boas consciências; é a expressão compulsória do fato de sermos criaturas ativas e afetivas. Porque somos espontaneamente ativos, podemos prometer, e porque somos espontaneamente afetivos, podemos perdoar. A promessa e o perdão, assim, são a face visível da Transcendência ética. Transcendência que, aquém da Lei e além da violência, nos ensina que a vida vale a pena ser vivida. 104 (s) tem sido a sua focalização. Dito de outra forma, no lugar de se ampliarem políticas universais que fortaleçam o sentido republicano e de cidadania plena, ou então, políticas que propiciem, aos jovens, experiências em torno das quais possam desenvolver-se enquanto sujeitos éticos, as ações governamentais têm sido fragmentadas, no âmbito do atendimento à juventude. As consequências dessa fragmentação passam por novas formas de violência, ou mais precisamente, por novos estigmas (ARAÚJO, 2007, SPÓSITO e CORROCHANO, 2005). Sem negar a relevância das políticas de inclusão em vigor em nossa sociedade, gostaríamos de trazer para o nosso debate as seguintes questões: é possível, com esse tipo de política, construir um sujeito ético? Estaríamos, de fato por meio delas, combatendo a violência ou estaríamos produzindo uma nova forma de violência? Cabe ainda perguntar, em que medida tais políticas contribuem na difusão e compreensão dos direitos humanos? Contextos em mutação Responder as questões acima exige, de nossa parte, um trabalho reflexivo acerca das atuais condições históricas nas quais ética, violência e direitos humanos se entrelaçam, se confirmam, se excluem mutuamente e se reinventam em múltiplas dimensões. Pensando o atual contexto brasileiro, deparamo-nos com situações que nos deixam perplexos e que requerem muita reflexão. Diante de inúmeros eventos envolvendo corrupção e negligência com os cuidados relativos à vida humana e do planeta, demanda-se um “retorno à ética”. Em razão de ações coletivas contra formas explícitas de dominação, evoca-se o caráter conciliador e cordial da sociedade brasileira, reconstituindo-se, cem anos depois, o mito de um Brasil nãoviolento, de um Brasil não racista. Face ao aumento das liberdades individuais, questionam-se duramente as conquistas advindas dos direitos humanos. A nosso ver, essas ações e contrarreações se imbricam e, por isso se explicam pelos mesmos condicionantes. 105 Alguns autores argumentam que as situações acima citadas resultam de uma percepção de que estamos diante de uma “crise de valores”. Outros, porém, reconhecem nessas situações, não uma crise e, sim, a existência de mutações que precisam ser compreendidas (WIEVIORKA, 2007). Como diferenciam crise da mutação, resta saber o que faz com que as duas interpretações coexistam para designar os mesmos problemas, em dado contexto comum. Comecemos, assim, falando do sentimento de crise que se expressa em muitos textos e debates públicos, evocando o “retorno à ética”. A esse respeito, nos diz Marilena de Souza Chauí, fala-se em “retorno ética” como se esta estivesse sempre pronta e disponível em algum lugar e como se nós a perdêssemos periodicamente, devendo, periodicamente, encontrá-la (p.2). Para a autora, nessa fala, a ética é vista como algo externo ao sujeito e não como uma ação intersubjetiva consciente e livre que se faz à medida que agimos e que existe somente por nossas ações e nelas (idem). Na base desse apelo ao “retorno à ética”, existem, para Chauí, poderosos fatores que o impulsionam. Na realidade, são fatores que afetam o mundo em sua globalidade e tiveram sua origem na modernidade capitalista ocidental, mas que se expandiram e envolveram as nações contemporâneas, suas economias e culturas, como um todo (CASTELLS, 1999). Vale, contudo, destacar que esse sentimento de que valores básicos da vida humana estão em crise, pode ser encontrado em outros momentos da produção intelectual do mundo ocidental. Não se trata, assim, de uma nova percepção, embora, em outros momentos, essa crise tenha sido explicada por outros fatores que não os de agora, assim como o apelo ao “retorno à ética” tenha tido, também, significados muito diferentes dos que circulam, hoje, em nossos meios de comunicação. Para efeito de nossa apresentação, fixaremos dois momentos cruciais do mundo ocidental, nos quais, a nosso ver, configura-se uma situação de “crise”. O primeiro deles, refere-se à passagem do século XIX para o século XX. Ali, construtores da sociologia registravam sinais dessa crise em termos 106 dramáticos. Um exemplo deles é Georg Simmel ([1911] 1988). Vejamos algumas passagens de seu pensamento, pois, a nosso ver, ele ofereceu uma das reflexões mais fascinantes acerca da crise de valores no mundo ocidental em um período de profundas mutações. Nessas passagens, Simmel descreve o processo que faz com que sintamos que produtos culturais, embora produzidos pelos próprios sujeitos sejam por esses percebidos como algo acima deles, que lhes oprime. Dentre esses, está à ética conforme assinalada por Chauí, na passagem supracitada. Para Simmel, a crise era resultante de uma tragédia que, segundo ele, era intrínseca à própria vida em sua expressão mais íntima. No dizer desse autor, o que havia de profundamente trágico na cultura era que a vida, para poder existir, devia converter-se, antes de qualquer outra coisa, em não vida. O que queria ele dizer com isso? Em consonância com o espírito de sua época, Simmel defendia a ideia de que, com a inserção do indivíduo humano nos legados da natureza, instaurava-se o primeiro grande dualismo em torno do qual se desenvolveu a relação entre sujeito e objeto (SIMMEL, op. cit., p. 177). Já o segundo grande dualismo, diz ele, nasceu no íntimo de cada indivíduo humano. Sua gênese ocorre da seguinte maneira: tendo desenvolvido o pensamento, este engendra inúmeras produções (arte, agricultura, religião, direito, técnica, ciência, moral, normas sociais, família...). Estas, uma vez criadas, continuam a existir em sua autonomia específica, independentemente do pensamento que as criou, bem como de quem as acolhe ou de quem as rejeita (idem, p. 177). Não se pode esquecer que Simmel formula seu pensamento no período em que proliferam os germes do industrialismo europeu. Na lógica da acumulação do capitalismo industrial, predominante naquela época, as produções do espírito e do trabalho humano, as quais o autor se referia, enquadravam-se, perfeitamente, nas imagens do “fetiche da mercadoria” denunciado por Karl Marx, ao analisar o processo de alienação dos reais produtores (os trabalhadores) em relação ao produto de seu trabalho (as 107 mercadorias). Estas circulavam no mercado, como se fossem coisas autônomas, completamente divorciadas de seus reais produtores, como se elas tivessem vida própria. Simmel estende esse processo de alienação aos produtos culturais. Estes, para nosso autor, nada mais eram do que o pensamento transformado em objeto e até mesmo em mercadoria. Assim, tendo assumido uma forma concreta e cristalizada, esses produtos culturais se opunham ao fluxo da vida e às diversas tensões do psiquismo subjetivo. É nesse formato que o pensamento, diz Simmel, conhece inúmeras tragédias nascidas dessa profunda contradição formal, entre a vida subjetiva e seus conteúdos (SIMMEL, idem). A vida subjetiva, no dizer de Simmel, não tem repouso, é inquieta, mas é limitada no tempo. Já os seus conteúdos, uma vez criados, adquirindo formas definidas, existem como se fossem imutáveis e intemporais. Nesse sentido, a cultura não era ameaçada, segundo nosso autor, do exterior, mas do íntimo de cada indivíduo, pelo fato de que este tem necessidade de que as formas culturais se tornem independentes para que ele possa orientar-se por elas. Forma-se, assim, um dualismo, no seio do qual, para esse construtor da sociologia, reside à ideia de civilização. As obras da cultura, como, por exemplo, a ética e as normas sociais, uma vez criadas pelos sujeitos, assumem, no contexto do capitalismo industrial, uma autonomia sem precedentes. Mas, mesmo reconhecendo esse caráter objetivo da produção cultural, Simmel (op. cit., p. 181) vai insistir que a referida produção só afeta o indivíduo porque aquilo que ela evoca ou manifesta já existe dentro dele, em seu íntimo. Assim, ao falar da cultura, o autor explora a ideia original do próprio termo, a saber: para que se diga que um ser tem cultura é preciso que este ser seja cultivado. Entretanto, só se cultiva algo que já existe em germe na coisa ou no ser que será submetido ao cultivo. É assim que, para ele, a cultura não é outra coisa senão a evolução em direção a um fenômeno que existe na personalidade em germe, nela esboçada a título de projeto ideal (idem). Simmel antecipa de alguma forma, as comprovações experimentais que as neurociências vão trazer no final do século XX. Por exemplo, o bem 108 estar que um indivíduo experimenta ao ser exposto a uma música ou uma obra de arte qualquer, esse bem estar só existe porque, ao sofrer a exposição, neurotransmissores foram liberados por seu cérebro. Essa condição subjetiva tem de existir a priori, caso contrário, a música não teria o efeito citado. Na perspectiva simmeliana, um ser humano só é considerado culto quando os conteúdos externos a ele (conhecimentos, virtuosidades, refinamentos possíveis) vierem desenvolver apenas aquilo que já existe em sua subjetividade enquanto sua mais profunda pulsão, enquanto prefiguração íntima de sua realização pessoal (SIMMEL, op. cit. p.181). Visto dessa forma, o conceito de cultura em Simmel representa uma solução para a equação sujeito e objeto. Ele reconhece que existem objetivos supraindividuais, ou seja, ideais culturais, exteriores ao centro psíquico individual que o orientam de acordo com as exigências desses ideais. Dentre estes, figuram as instituições, os valores morais, a arte, a ética, as normas sociais, em suma, os princípios que orientam a vida coletiva. Ainda que tudo isso seja uma criação do próprio espírito humano, não é possível identificar, no conjunto da produção humana, quem seria o seu produtor específico. Por exemplo, não há como dizer quem foi o produtor da ética, da moral e das normas sociais. É, nessa separação entre o sujeito produtor e o objeto de sua produção, que Simmel descrevia, como vimos acima, a tragédia da cultura sendo o produto que adquire forma objetivada e independente, e muitas vezes se volta contra o seu próprio criador, contra a vida subjetiva dos indivíduos, oprimindo-o. Voltando à questão inicial suscitada por Chauí acerca de uma dada percepção na qual a ética é vista como algo externo que se perdeu e é preciso que a ela se retorne para solucionar uma crise de valores, pode-se dizer, seguindo as reflexões de Simmel, que essa percepção teve sua raiz no pensamento ocidental que refletia o mal estar da civilização em uma das fases da acumulação capitalista, a saber: a sociedade industrial. É daí, a nosso ver, que vem o tal sentimento referido acima por Chauí, de que a ética é algo externo ao qual temos de nos submeter E esse 109 sentimento, por maior crítica que já tenha recebido, permanece em nosso cotidiano quase que inabalável. Não raro ouvimos pessoas próximas de nós, e até nós mesmos, reclamando da “tirania” de normas, de leis. E quando alguém nos pergunta, mas quem fez essas normas? Dificilmente nos reconhecemos como seus produtores. Na maioria ou totalidade das vezes não fomos, de fato, nós quem as produziu, mas nossos antepassados, ou contemporâneos que ocupam uma posição social que lhes outorga autoridade ou poder para fazê-lo. Mas é claro que aquela pergunta não é feita para identificar um indivíduo particular e, sim, para ressaltar que esses produtos não são obras de seres inumanos, deuses ou extraterrestres, mas de seres como nós, humanos. Como se pode ver, o dualismo de Simmel não separa dois mundos —o interno do externo, ao contrário, estabelece uma relação intrínseca entre os dois. O mundo externo, o das formas, é mais durável, transcende, enquanto o de dentro, o da vida subjetiva, é fluxo contínuo. Por isso, conflitam. Em modo contínuo, a vida, para Simmel, é o valor supremo. É dela que deriva tanto o critério de verdade e do erro, quanto o critério do bem e do mal. Bergson e Nietzsche1 estão, sem dúvida, na base desse pensamento. Na obra de Simmel, a vida é representada em toda sua exigência fisiológica, ou seja, naquela em que a vida aspira mais e mais vida. Mas é representada também em suas exigências espirituais, isto é, naquela em que a vida almeja mais do que o simples viver. Nos seres humanos, essas duas exigências são intensificadas pela consciência. É esta que faz das exigências da vida um dever (moral). E como nos lembra Evaristo de Moraes Filho (1983), um grande estudioso da obra de Simmel, o dever moral na perspectiva vitalista simmeliana, reveste-se do caráter de uma “lei individual” (p. 26). Ainda que individual, ressalta Moares Filho, a lei da qual deriva o critério de verdade e de erro, de bem e de mal, não é, para Simmel, subjetiva. Isto ocorre porque ela é imposta pela própria vida. Assim, o a realizar-se a si 1 Sobre a influência desses autores na obra de Simmel cf. FREUND, J. Introduction In: SIMMEL, G. Sociologie et épistemologie. Paris: PUF, 1981, p7-18. 114 por diante. No fundo, essa fragmentação acaba transformando a ética em competências específicas do especialista (as comissões de ética) que detêm o sentido das regras, normas, valores e julgam as ações dos demais segundo esses pequenos padrões localizados (idem). É assim, por exemplo, que a noção de ética está funcionando no nível de várias instâncias. Basta lembrar a quantidade de julgamentos que temos, hoje, na esfera do Congresso Nacional, ambas as casas —Senado e Câmara dos Deputados têm suas respectivas comissões de ética e, por vezes, julgam ações semelhantes com resultados completamente diferentes e contraditórios. O sistema judiciário, as corporações policiais, a pesquisa nas universidades, todos criam suas comissões de ética. É um erro imaginar que a proliferação de comitês de ética localizados signifique um maior grau de democracia, ou de controle social. Ao contrário, essa proliferação revela, pelo menos, duas condições; A primeira, como atesta alguns estudos sobre o estágio das sociedades contemporâneas, revela que está cada vez mais difícil de se sustentar uma imagem unitária da sociedade (WIEVIORKA, 2007), tal como se tinha no final do século XIX e início do século XX. Cada vez mais, os indivíduos estão voltados para uma construção de si como resultado de sua ação social (TOURAINE, 1984). A segunda acentua que é preciso pensar o mais urgentemente possível que mediadores poderiam ajudar a estabelecer a ponte entre esses fragmentos éticos que tornam sempre mais difícil a convivência humana. Dito isso, passemos aos eixos da violência e dos direitos humanos para ver em que sentido eles estão vinculados ao da ética. E como reatá-los de uma outra maneira, se é que isso é possível. Violência e direitos humanos Como dissemos anteriormente, o nosso ponto de partida da juventude foi a violência escolar, tema que mobilizou ou vem mobilizando vários setores da sociedade brasileira. 115 Um dos problemas que nós, e a maioria dos pesquisadores que trataram do assunto, identificamos era a dificuldade de, no interior das escolas, definir o que cada ator entendia por violência. Em todo caso, o que assustava no cenário estudado era o fato de a escola estar sendo palco de atos de violação, de abuso físico e/ou psíquicos contra alguém, de transgressão, de tráfico de drogas e assim por diante (RIBEIRO 2002, ESPÍRITO SANTO 2002). A violência física passou a ter espaço na escola, o que exigiu reflexão dos pesquisadores da educação. Os fenômenos surpreendiam porque, como ressaltou Abramovay e Ruas (2003), ao longo de sua existência, as escolas acreditavam, assim como a sociedade da qual elas faziam parte, de que, no Brasil, a violência era uma variável isolada e controlável e não algo que fizesse parte da sua estrutura. Como diz Chauí (op. cit.), no Brasil, o mito da não violência é muito poderoso. Apesar de todas as evidências e do aumento assustador de indicadores de homicídio, sobretudo, de jovens entre 14 e 17 anos, em nosso país, persiste a imagem de um povo generoso, alegre, sensual, solidário que desconhece o racismo, o sexismo, o machismo, que respeita as diferenças étnicas, religiosas e políticas, não discrimina as pessoas por suas escolhas sexuais etc. (CHAUÍ, op. cit.). Um exemplo de como o mito da não violência sobrevive em meio à violência, pode ser visto no atual debate acerca das políticas de ação afirmativa para negros nas universidades. A crítica mais contundente vem dos próprios setores universitários, pesquisadores, com apoio, é claro, de uma mídia que sustenta, sem qualquer dificuldade, que políticas de cunho racial são aberrações porque quebram aquilo que é o “jeito de ser do brasileiro”, a saber: um povo mestiço, mistura de inúmeras etnias. De um só golpe, reescreve-se em uma outra lógica a história das relações raciais no Brasil. Embora não haja espaço no presente artigo para desenvolver esse tema, gostaríamos, apenas de ressaltar que toda nova construção de um Brasil mestiço e cordial não apaga séculos de desigualdades (PAIXÃO e GOMES, 2006), não anula a política da elite branca no século XIX, tentando “embranquecer” o país por meio de intervenções que facilitavam a entrada 116 maciça de imigrantes europeus no país (AZEVEDO, 1987), não sobrepõe, de forma alguma, a luta de movimentos negros que, ao longo do século XX, não fez outra coisa senão denunciar a violência racial nas entranhas da nação (GONÇALVES e SILVA, 2000). Alguns estudos mostram que essa demonstração de violência, longe de ser um ato isolado, ou uma variável controlável, faz parte das instituições. O Brasil, há muito, desenvolve um racismo institucional (PAIXÃO, 2006). Assim como acontece com a violência racial, todas as outras formas de violência institucional desapareceram, também, do olhar imediato. Ficam imperceptíveis. Ou quando são percebidas, passam a ser vistas como ações sem consequências políticas mais amplas. Dito de outra forma, a sociedade brasileira não é percebida como estruturalmente violenta (CHAUÍ, idem). Ainda no dizer dessa autora, isso ocorre porque a mitologia e os instrumentos ideológicos fazem com que a violência que estrutura e organiza as relações sociais brasileiras não possa ser percebida, e, por não ser percebida, é naturalizada e essa naturalização conserva a mitologia da não violência com a qual se brada pelo “retorno à ética” (idem). O mais importante a ressaltar na citação acima refere-se à persistência da matriz mítica da não violência. Segundo Chauí, ela se conserva porque é periodicamente refeita com noções que correspondem ao presente histórico (op. cit.). Tomando o caso racial como exemplo, o mito aparece inicialmente, entre outras, na obra de Gilberto Freyre ao defender o caráter pacífico do colonizador português em contraste com os anglo-saxões que teriam levado os Estados Unidos da América do Norte a um terrível sistema de segregação racial. A Escola de Sociologia de São Paulo na figura de Florestan Fernandes e Roger Bastide desconstruiu essa imagem mostrando as terríveis condições em que os negros viviam no início do século XX na cidade de São Paulo. Na linha defendida por Freyre, o Brasil era um país miscigenado e isto era prova de que o branco colonizador não criou barreiras para a 117 integração. Paralelamente à teoria da miscigenação, as elites promoviam, como bem assinalou Azevedo (op. cit.) um processo de entrada de imigrantes europeus que possibilitaria o embranquecimento do país. No início dos anos de 1940, movimentos negros na cidade do Rio de Janeiro e na cidade de São Paulo, organizaram-se para denunciar a construção da identidade brasileira sob a égide do governo de Vargas (GONÇALVES e SILVA, op. cit.). Ocultando as desigualdades raciais , o mito da democracia racial reatualizava a ideologia da brasilidade. No atual contexto, ele reaparece sob o signo de um Brasil mestiço no qual é “impossível dizer quem é branco e quem é negro”. Mas esse mito, alerta Chauí, só consegue sobreviver porque ele tem base material real que se traduz no autoritarismo social. Este se reproduz no núcleo familiar, nas relações escolares, nas relações de trabalho, na indistinção entre público e privado, na naturalização das desigualdades e assim por diante. Finalizando, destacamos o eixo dos direitos humanos. Estes ganham força com os movimentos sociais. Na realidade, foram esses atores sociais que introduziram na cena política temas que sequer imaginávamos que seriam discutidos na esfera pública. Foi por meio deles que conseguimos atingir direitos de cidadania para gays, para minorias religiosas e para segmentos marginalizados que não tinham nem voz nem espaço na sociedade dominante. O refluxo desses movimentos nos últimos anos, proporcionado por políticas que os estabilizam e os esvaziam é preocupante, e merece, em outro texto, uma reflexão mais alongada. Conclusão Na realidade, no mundo juvenil que temos mergulhado para estudar as experiências religiosas e suas consequências na construção de um sujeito ético, acabamos encontrando situações que orientam os jovens em direções 118 diferentes. As políticas de inclusão que cada vez mais fragmentam esses jovens nas suas escolhas acabam criando uma ética normativa porque acreditam que essa é a função das iniciativas do poder público, a saber: oferecer aos jovens alternativas de socialização para evitar sua entrada no mundo do crime. Aqui, a ética como algo externo e moralista aparece, como acentua Chauí, de forma clara e indiscutível. O controle sobre os jovens é reforçado por todos os lados, aliás para participar dos benefícios do programas os jovens devem se comprometer a construir seu comportamento na direção desejada pelo programa. Na realidade, tais programas são concebidos para combater a violência ou impedir que os jovens fiquem vulneráveis a ela. Entretanto, a violência é ainda construída como sendo um atributo do indivíduo e não uma consequência estrutural, como ressalta Chauí. Como essas políticas não atingem o sujeito na sua vida subjetiva, permanecem vazios o que leva os jovens a buscar preenchê-los em suas experiências religiosas. Estas têm se orientado por éticas completamente diferentes. A novidade é a emergência dos movimentos neopentecostais que quebram bastante a antiga ética protestante centrada na salvação individual, que concebe o sujeito ético como alguém que decide racionalmente e se responsabiliza individualmente por sua salvação. Na nova leva, o aperfeiçoamento pessoal vem acompanhado com a promessa da prosperidade do sucesso, rápido e imediato, e da não subordinação dos indivíduos às estruturas. Entretanto, nessas experiências, violência e ética não são polos opostos, ao contrário, em muitas delas um justifica o outro. Esperamos poder aprofundar esses elementos em um próximo encontro. Obrigado! Referências ARAÚJO, M.C. de A. 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A partir desta declaração, foram gerados diversos tipos de regulamentos, como o Informe Belmont: Princípios éticos e guia para a proteção de sujeitos humanos de investigação (NATIONAL COMMISSION FOR THE PROTECTION OF HUMAN SUBJECTS OF BIOMEDICAL AND BEHAVIOURAL RESEARCH, 1979), as Pautas Éticas Internacionais para a Investigação e Experimentação Biomédica em Seres Humanos (COUNCIL FOR INTERNATIONAL ORGANIZATIONS OF MEDICAL SCIENCES e WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2002), o Guia para a conduta em investigação que envolve sujeitos humanos (UNITED STATES DEPARTMENT OF HEALTH AND HUMAN SERVICES. NATIONAL INSTITUTES OF HEALTH, 1995), a Declaração de Helsinki: Princípios éticos para as investigações médicas em seres humanos (WORLD MEDICAL ASSOCIATION, 2004), e a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, adotada por aclamação em 19 de outubro de 2005 pela 33ª Sessão da Conferência Geral da UNESCO (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E CULTURA, 2006). A Declaração de Helsinki foi formulada pela Assembleia da Associação Médica Mundial, em Helsinki, em 1964, e ampliada e modificada ligeiramente em cinco sucessivas Assembleias da Associação Médica Mundial, a última das quais foi a de Edimburgo, em 2000, e duas inclusões aclamatórias a respeito de alguns conceitos chaves, em 2002 e 2004. A declaração de Helsinki é atualmente considerada a principal regulação ética destinada a preservar o bem-estar e a defender os direitos dos sujeitos envolvidos em investigações, especialmente no âmbito biomédico (WORLD MEDICAL ASSOCIATION, 2004). Em princípio é possível encontrar grandes diferenças entre estas declarações, já que algumas são de caráter mais geral e mencionam 125 princípios éticos básicos, como o Informe Belmont, e outras têm um elevado nível de especificação desenvolvido ao longo de grande quantidade de artigos, com é o caso da Declaração de Helsinki. Sem embargo todas elas têm um objetivo comum, que é o de preservar o bem-estar físico, psicológico e social dos indivíduos e das comunidades que participam em tarefas de investigação, incluídas nas investigações psicológicas. Dito bem-estar se centrará basicamente no respeito à decisão de indivíduos e comunidades de participar ou não das mesmas, de deixar de participar quando assim o decidam, de não ser submetidos a nenhuma classe de dano, maltrato ou desvalorização, e de jamais colocar a finalidade da investigação sobre o bem-estar dos participantes. Ao mesmo tempo, estas regulações destinadas a proteger os direitos dos participantes de investigações se relacionam diretamente com os princípios básicos da bioética de beneficência (e não da “maleficência”), autonomia e justiça, os quais propiciam que cientistas e profissionais guiem a produção e aplicação dos seus conhecimentos a partir de um uso ético dos mesmos. Estes princípios básicos da bioética evidenciam a passagem de uma velha moral de caráter naturalista (o que acontece é assim porque está na mesma natureza do sujeito, inclusive porque assim quis Deus), a uma nova moral de ordem basicamente normativista, na qual é relevante a noção de indivíduo autônomo e ao mesmo tempo parte de uma comunidade, a qual gera suas próprias normas de convivência tendentes à preservação do bem- comum (DRANE, 2002; MAINETTI, 2000). Junto a estes desenvolvimentos, referidos especialmente ao âmbito geral dos direitos humanos e ao da investigação com humanos, as profissões vinculadas à saúde também têm realizado um importante aporte desde o ponto de vista normativo, gerando ferramentas tendentes à regulação de todo tipo de prática em saúde, de acordo com os diversos campos profissionais psicologia, medicina, trabalho social, enfermagem etc. Estas normativas são, basicamente, os respectivos códigos deontológicos, habitualmente chamados códigos de ética profissional, onde se expressam 126 os limites do exercício da profissão desde o ponto de vista ético, e se apresentam os princípios fundamentais expressos tanto nas declarações de direitos como nos princípios bioéticos mencionados. Se nos circunscrevermos às normativas que regulam o exercício da psicologia, é necessário destacar que atualmente todas as leis relativas ao exercício profissional apoiam que os direitos humanos formem parte dos princípios iniludíveis que devem guiar ou acionar o profissional (FERRERO, 2005). Nesse mesmo sentido, os códigos de ética profissional da psicologia de maior impacto, como o da American Psychological Association, o da European Federation of Psychologist‘s Associations, o Protocolo de Acordo Marco de Princípios Éticos para o Exercício Profissional dos Psicólogos no Mercosul e Países Associados, e inclusive numerosos códigos nacionais de nossos países latinos americanos, contam entre os denominados princípios gerais o respeito pelos direitos e a dignidade das pessoas, seja de forma explícita ou implícita (American Psychological Association, 2002; EFPPA, 1995; Comité Coordinador de Psicólogos del Mercosur y Países Asociados, 1999). Atualmente, os princípios gerais destes códigos são praticamente idênticos, e, com pequenas diferenças, fazem referência aos mesmos aspectos (FERRERO, 2006; LEACH & HARBIN, 1997). Como exemplo, analisaremos o conteúdo dos princípios gerais do Protocolo de Acordo Marco de Princípios Éticos para o Exercício Profissional dos Psicólogos no Mercosul e Países Associados, do Comitê Coordenador de Psicólogos do Mercosul e Países Associados, formulado em 1997. Nele se faz evidente a presença dos direitos humanos. Para tanto, o primeiro dos seus pontos, denominado precisamente “Respeito pelos direitos e a dignidade das pessoas”, aponta explicitamente para esta temática, e por isso o citamos de forma completa: Os Psicólogos se comprometem a fazer próprios os princípios estabelecidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Assim sendo, guardarão respeito aos direitos fundamentais, à dignidade e ao valor de todas as pessoas, e não participarão em práticas discriminatórias. Respeitarão o direito dos indivíduos à 127 privacidade, confidencialidade, autodeterminação e autonomia (COMITÉ COORDINADOR DE PSICÓLOGOS DEL MERCOSUR Y PAÍSES ASOCIADOS, 1999, pp. 11) (Tradução nossa). Além da referência explícita aos direitos humanos, neste ponto que inaugura o Protocolo, a mesma intenção se faz também presente nos outros itens do mesmo, referidos a diversos aspetos centrais da prática profissional. Vemos assim que no ponto B. Competência, se menciona que os psicólogos: “Terão em conta que as competências que se requerem na assistência, ensino e/ou estudos de grupos humanos, variam com a diversidade desses grupos”. No ponto D. Integridade, se esclarece que os psicólogos: “Se empenharão em ser sumamente prudentes frente às noções que degeneram em rotulações desvalorativas ou discriminatórias”. Finalmente, o ponto E. Responsabilidade social apoia que: “Os psicólogos exercem seu compromisso social através do estudo da realidade e promovem e/ou facilitam o desenvolvimento de leis e políticas sociais que indiquem, desde sua especialidade profissional, a criar condições que contribuam ao bem-estar, ao desenvolvimento do indivíduo e da comunidade” (COMITÉ COORDINADOR DE PSICÓLOGOS DEL MERCOSUR Y PAÍSES ASOCIADOS, 1999, pp. 12–13) (Tradução nossa). Nestes princípios gerais vinculados à competência, à integridade e à responsabilidade social dos profissionais da psicologia, é possível reconhecer a necessidade de respeitar a diversidade individual e cultural, evitar qualquer prática discriminatória, e propiciar políticas sociais tendentes ao desenvolvimento individual e coletivo, aspectos todos vinculados aos direitos básicos das pessoas e das comunidades (COMITÉ COORDINADOR DE PSICÓLOGOS DEL MERCOSUR Y PAÍSES ASOCIADOS, 1999; FERRERO, no prelo). Além destes princípios gerais, os códigos deontológicos de caráter vinculante da psicologia contam com artigos específicos que também se relacionam com os direitos humanos dos consultantes. Por exemplo, a obrigação de respeitar o segredo profissional a confidencialidade, se sustenta no respeito ao direito de privacidade, a necessidade de contar com o consentimento informado se relaciona com o respeito ao princípio de 128 autonomia, e portanto com o direito à livre decisão. A responsabilidade nas relações profissionais aponta para a preservação dos direitos básicos dos consultantes frente à assimetria de papéis existentes. A responsabilidade com a comunidade estabelece especificamente a não discriminação em função de nacionalidade, religião, raça, ideologia ou preferências sexuais de seus consultantes. Inclusive, as pautas estabelecidas com respeito à publicidade que realizam os profissionais acerca de seus serviços, apontam ao direito à informação veraz por parte dos consultantes (FERRERO, 2000). É possível, então, advertir como as obrigações profissionais estipuladas nos códigos deontológicos da psicologia se articulam de modo indissolúvel com o respeito pelos direitos do indivíduo e da comunidade, sendo estes outros seus colegas, seus consultantes ou membros da comunidade em geral. A partir do percurso realizado, verifica-se que tanto as regulações gerais vinculadas ao âmbito da saúde e da investigação com seres humanos, como as específicas do campo da psicologia levam em consideração os temas estabelecidos pelos direitos humanos, e portanto estão destinadas a defender os direitos dos consultantes e da comunidade, já que uma prática profissional e científica ética deverá estar sempre socialmente situada. Em virtude disso, podemos concluir que o exercício profissional da psicologia, em qualquer dos seus campos de aplicação, deverá sustentar-se não só em um desenvolvimento científico e técnico da maior qualificação possível, se não também em um iniludível compromisso ético, baseado no respeito irrestrito pelos direitos humanos. Referências AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION. Ethical principles of Psychologists and Code of Conduct. American psychologist, Washington, v. 57, n. 12, p.1060–1073. dez/2002. COMITÉ CORDINADOR DE PSICÓLOGOS DEL MERCOSUR Y PAÍSES ASOCIADOS. Protocolo de acuerdo marco de principios éticos para el ejercicio profesional de los psicólogos en el Mercosur y Países Asociados. In: CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. A psicologia no Mercosul (pp. 11–14). Brasilia: Autor, 1999. 129 CORTINA, A. Ética mínima. Introducción a la filosofía práctica. Madrid: Tecnos, 2003. COUNCIL FOR INTERNATIONAL ORGANIZATIONS OF MEDICAL SCIENCES (CIOMS) e WORLD HEALTH ORGANIZATION. 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Fundamentos en Humanidades, San Luis (Argentina), v. 6, n. 11, p. 182–190, out. 2005. ______. Human Rights and Psychology Ethics Codes in Argentina. In: COLUMBUS, A (Ed.), Advances in Psychology Research, (pp. 129– 135). New York: Nova Science Publishers, 2006. ______. Professional ethics in psychology facing disadvantaged social conditions in Argentina. Professional Ethics: A Multidisciplinary Journal, Gainesville, Florida, 25, no prelo. GOUVEIA, V.; VASCONCELOS, T.; QUEIROGA, F.; FRANCA, M. e OLIVEIRA, S. A dimensão social da responsabilidade pessoal. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 8, n. 2, p.123–131, jul.–dez/2003. INTERNATIONAL MILITARY TRIBUNAL AT NUREMBERG. Nuremberg Code. In: Trials of War Criminals before the Nuremberg Military Tribunals under 134 etnográficas realizadas para a minha pesquisa de tese de doutorado durante dois anos (2001 e 2003) no Sertão de Pernambuco e incluí, também, trechos de relatórios produzidos pelo movimento de mulheres e depoimentos presentes em dissertações, teses e artigos que de alguma forma fazem referência à temática. As ordens morais de gênero No texto ‘Os usos dos prazeres e as técnicas de si’, para responder à indagação de por que e sob qual forma a atividade sexual foi constituída como domínio moral, Foucault estabelece diferenças importantes entre código moral, moralidade dos costumes e o sujeito moral. Ele define código moral como o conjunto de valores e normas que são prescritas por meio de diversos aparelhos; a moralidade dos costumes se refere ao comportamento dos indivíduos em sua relação com as regras e os valores; e o sujeito moral é a maneira como é preciso conduzir-se e constituir a si mesmo como sujeito moral. Foucault faz uma série de admoestações quanto à suposta aceitação irrestrita e sujeição dos indivíduos aos preceitos morais. Assinalarei três delas. A primeira diz respeito à transmissão e veiculação das normas e valores. O autor destaca que, longe de formar um conjunto alinhado e coerente, elas constituem “(...) um jogo complexo de elementos que se compensam, se corrigem, se anulam em certos pontos, permitindo dessa forma compromissos ou escapatórias” (2004, p. 211). A segunda enfoca a maneira pela qual, as pessoas aceitam, resistem, respeitam ou negligenciam um principio de conduta, uma interdição ou um conjunto de valores. Para Foucault, o estudo da moralidade dos comportamentos deve precisar de que modo e com que margem de variação ou de transgressão os indivíduos ou grupos se conduzem em referência a um sistema prescritivo numa dada cultura. A última se refere à variedade de modos de condução do sujeito moral. Para o autor, há muitas formas de ser fiel e obediente a um princípio moral, e isto não significa operar simplesmente como agente passivo, mas sim como sujeito moral da ação. 135 O autor destaca então que a moral inclui o código das condutas e as formas de subjetivação. “Toda ação moral implica uma relação com o real em que ela se realiza, e uma relação com o código a qual ela se refere; mas também implica uma certa relação consigo mesmo; esta não é simplesmente ‘consciência de si’, mas a constituição de si como ‘sujeito moral’ (...)” (FOUCAULT, 2004, p.214). Essas duas dimensões não devem ser dissociadas, contudo, eventualmente possuem certa autonomia. Em certas sociedades ou períodos históricos a ênfase é no código, em outras, nas formas de subjetivação e nas práticas de si. Com base em Foucault, defino como ordens morais de gênero os valores e as normas pertencentes a uma dada matriz heterossexual que circunscrevem as maneiras pelas quais homens e mulheres devem se constituir e se conduzir num certo sistema prescritivo de gênero. Considero ainda que homens e mulheres, de acordo com as posições que assumem nas diferentes relações sociais, combinam formas variadas de adesão e ou rejeição às ordens morais de gênero. Há diferentes modos de burlar, transgredir e resistir aos valores e às normas que circulam num determinado contexto cultural linguisticamente pautado. Na trama das relações interpessoais as transgressões e negligências não são isentas de sanções e coerções. Os burburinhos, disse me disse, anedotas, sussurros, rumores, mexericos que assolam o cotidiano tentam impor limites aos amores mal-ditos e a quem escapa para além do que é permitido, fazendo Deus sabe o quê. Falo da fofoca como prática discursiva. É importante reiterar que para a compreensão da fofoca estou considerando uma das correntes voltadas ao estudo da linguagem que se aproxima da psicologia discursiva. O foco são as práticas discursivas, que são entendidas como práticas sociais e como linguagem em ação. Para Spink e Medrado (1999), elas constituem as diferentes maneiras a partir das quais as pessoas produzem sentido e se posicionam em relações cotidianas. Na versão de Davies e Harré (1996) são todas as formas por meio das quais as pessoas ativamente produzem realidades sociais e psicológicas. 136 Na análise da fofoca concentrar-me-ei nos conteúdos das práticas discursivas, ou seja, nos repertórios linguísticos. Na definição de Potter et al. (1990), os repertórios são agrupamentos de termos facilmente discerníveis, descrições, lugares-comuns e figuras de linguagens muitas vezes agrupadas em torno de metáforas ou imagens. Potter lembra que a ideia de repertório é semelhante à do repertório do(a) bailarino(a), que escolhe determinados movimentos de acordo com o contexto imediato. A ênfase se volta para a flexibilidade do uso do repertório, ou seja, como é utilizado em contextos discursivos e interacionais específicos. Catarina Tanaka (2003) aborda que a fofoca tem um aspecto paradoxal: ao mesmo tempo em que gera constrangimentos, favorece a interação e o entretenimento. Tem especial importância no campo da interação social e das práticas cotidianas. Para mim, a fofoca é uma forma de contar histórias sobre a vida dos outros que alimenta os vínculos e a cumplicidade entre os(as) participantes e o sentimento de pertença ao grupo ou comunidade. Pelo seu caráter ambíguo também é um dos recursos costumeiramente utilizados para o controle, a vigilância e a regulação das condutas num dado sistema prescritivo. A participação das mulheres em movimentos como ameaça às ordens morais de gênero As pesquisas sobre a agricultura familiar tendem a assinalar o padrão rígido e assimétrico das relações de gênero na área rural. Os(as) pesquisadores(as) ressaltam que as mulheres são confinadas ao espaço da casa, do roçado e da comunidade onde moram, defrontando-se com ordens morais de gênero que impõem duras restrições ao ir e vir. Se o espaço socialmente atribuído às mulheres na área rural está circunscrito a casa, ao grupo familiar e à comunidade a que pertencem, cabe aos homens lidar com outros espaços sociais. Isso significa usufruir a liberdade de ir e vir e poder circular em outros lugares, comunidades 137 vizinhas e cidades. Como compete aos homens a gestão da unidade familiar, a aquisição de equipamentos para o trabalho, a comercialização dos produtos e o comércio de terras, eles desfrutam de espaços e de relações inerentes a essas atividades —o comércio, a feira, as exposições, os bancos, órgãos públicos e programas governamentais. Além disso, homens jovens e adultos têm mais liberdade do que as mulheres para sair, beber com os amigos, ir às festas e jogos, não necessariamente acompanhados da família. Essa análise se transformou quase num modelo ideal para pensar as relações de gênero na área rural e particularmente na agricultura familiar. Entretanto, ela deixa de fora os conflitos, as tensões, as fissuras, e como homens e mulheres negociam e barganham novas posições e lugares. Também não aborda a variedade de modos de organização familiar na área rural —que não corresponde ao modelo de pai, mãe, filhos e filhas— e as diferentes formas de organização da produção familiar. Uma das formas que parece ameaçar as relações de gênero na agricultura familiar é a participação das mulheres em movimentos sociais. As ativistas ampliam as redes de relações para além dos sítios e comunidades e desenvolvem novos interesses e compromissos fora da família; deslocam-se de suas casas para participar de eventos promovidos pelos movimentos, ficam dias fora de casa e muitas vezes viajam para fora do município e do estado. Reorganizam o tempo e as suas atividades agrícolas e domésticas. Essas inflexões provocam tensões e conflitos nas famílias e não passam despercebidas dos(as) parentes, vizinhos(as) e comunidade. As restrições e os obstáculos ao ir e vir das mulheres Sair de casa para as mulheres ativistas aparece como um aprendizado e uma conquista. No rol das conquistas elas incluem trabalhar fora de casa e ter liberdade para viajar, participar de encontros e passear. Quando elas falam que aprenderam a sair de casa, geralmente ressaltam três aspectos: o primeiro é o desvencilhamento dos serviços e das responsabilidades domésticas —destacam que aprenderam a largar a casa 138 para ir aos encontros; o segundo refere-se aos vínculos interpessoais fora da família e da comunidade —além de conhecer pessoas novas elas são reconhecidas e valorizadas fora do espaço da casa; o terceiro diz respeito à liberdade de forma mais ampla, que inclui andar sozinha e ser livre para sonhar, andar, falar, pensar e viajar. Entretanto, mesmo que as mulheres reconheçam que aprenderam a sair de casa e transitar em outros espaços, elas ainda enfrentam muitas dificuldades. Poderíamos dizer que esta ainda não é uma conquista plenamente estabelecida para as participantes do MMTR, e muito menos para todas as mulheres. Nos depoimentos é possível identificar três tipos de obstáculos: a distância e o acesso a transporte; a falta de apoio da família; ‘as críticas’ dos parentes, vizinhos e da comunidade. Para transitar além dos sítios e das comunidades as mulheres lidam com as distâncias e a dificuldade de acesso a transporte, além dos gastos financeiros com as viagens. Como não existe na área rural regularidade do sistema de transporte, as pessoas dependem dos proprietários de carros particulares para se locomover. Há escassez de transporte, intermitência na oferta de horário ou dias e veículos que não oferecem segurança aos(às) passageiros(as). As mulheres enfrentam uma verdadeira maratona para participar de um evento fora da comunidade onde moram. Muitas mulheres se deparam com a franca oposição ou com a falta de apoio do companheiro/marido e/ou dos(as) filhos(as). Elas se queixam que não têm com quem deixar os(as) filhos(as), que há pouca ou nenhuma divisão dos serviços domésticos e das atividades que desenvolvem. Há sobrecarga de trabalhos e é difícil conciliar suas atividades em casa e no roçado com o ativismo político. Um outro tipo de obstáculo está relacionado ao uso da fofoca pelos(as) vizinhos(as) e comunidades para delimitar e restringir o ir e vir das mulheres. Ao se deslocar para além do sistema prescritivo de gênero as mulheres são alvo de boatos e mexericos. É curioso observar que as participantes afirmam que as próprias ‘mulheres da comunidade’ são as que 139 tecem criticas e cuidam para que os limites à mobilidade feminina se mantenham. Para a análise, agrupei repertórios linguísticos que dão conta da mobilidade das mulheres em quatro eixos: danos à imagem da ativista; indagações sobre os resultados da ação política; acusação de infidelidade das casadas ou questionamento da sexualidade das solteiras; incapacidade dos pais e maridos de controlar as mulheres. Para atingir a imagem da ativista as fofocas denunciam que ela não está cumprindo com as atribuições de gênero, especialmente o papel de esposa e mãe amorosa: Nas comunidades tem ‘crítica’ quando a gente vai sair, dizem: ‘oxem’ menina, pra onde tu vai? Que tanta viagem é essa? Chama de vadia, desocupada, perdeu o amor dos filhos, do marido, de tudo, não é mais aquela mulher responsável que era antes, e as companheiras, algumas dizem: Ah! aquela não respeita mais o marido não nessas alturas (apud MMTR, 1994, p. 34). Temos que enfrentar ainda nossos vizinhos, depois de quatro anos de caminhada as pessoas ainda nos chamam de mulheres desocupadas, dizem que lugar de mulher é no fogão cuidando das panelas. Chamam-nos de doidas, vadias, beatas, mulheres sem governo, que o marido perdeu o controle, vão para onde querem, são mulheres soltas no mundo (apud CRUZ, 1999, p. 61). Além disso, pesam sobre as mulheres mais três acusações: são vadias, ou seja, não têm um comportamento moral adequado às normas de gênero, nas quais o recato feminino, a obediência aos pais e ao marido, a discrição dos afetos e da sexualidade e a conformação dos limites corporais e das condutas são traços importantes; são desocupadas, num contexto no qual homens e mulheres trazem as marcas do trabalho nos corpos, nas roupas cerzidas, no cuidado com a terra, com a lavoura e com os animais —os(as) agricultores(as) falam com orgulho que trabalham para que a família tenha as coisas, o que comer e o que vestir; por último, vivem sem controle e sem governo.As ativistas são repreendidas por escapar do controle da família e também dos parentes, vizinhos e da comunidade como um todo. Escolher o próprio destino, ser dona da sua vida, provavelmente em um espaço de valoração dos projetos individuais isto seria considerado uma qualidade, 144 CAPÍTULO 10 SEXUALIDADE, GÊNERO E GERAÇÕES: CONTINUANDO O DEBATE Maria Juracy Filgueiras Toneli Universidade Federal de Santa Catarina As pessoas dizem: “o prazer passa, a juventude acaba. Que eles tenham prazer, afinal sabemos que isso não os levará muito longe. Pagarão bem caro por esse prazer, com sofrimento e dor, com solidão, com rupturas, com disputas, com ódio ou com ciúme”, em suma, sabe-se que o prazer é compensado e, por conseguinte, ele não incomoda. Mas a felicidade... A felicidade não é resgatada por nenhuma infelicidade fundamental... Então, as coisas se tornam intoleráveis. FOUCAULT citado por ERIBON, 1994/1996, p.168. proposta do tema deste simpósio parece-me demasiadamente abrangente e desafiadora. A justaposição de três conceitos complexos e polêmicos, por si só, já representa um desafio hercúleo, na medida em que a própria definição dos termos caracteriza-se como polissêmica e polifônica, revelando seu caráter histórico. Torna-se necessário, portanto, nessa introdução, o esclarecimento do lugar teórico que elegi nesse momento, mesmo porque, parece-me que no campo da Psicologia (e não apenas nele), persistem confusões que merecem um pouco mais de atenção. Com intuito de uma primeira aproximação que me possibilitaria adentrar ao tema, busquei referências junto à BVS (Biblioteca Virtual em Saúde) uma das mais consultadas pela área da Psicologia, que inclui, por exemplo, a Scielo (Biblioteca eletrônica que abrange uma coleção selecionada de periódicos científicos brasileiros), a LILACS (Literatura A 145 Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde) e a MEDLINE (Literatura Internacional em Ciências da Saúde). Com a palavra-chave gênero, acessei 2089 títulos na Scielo, 4947 na LILACS, e 14736 na MEDLINE. Filtrando esses indicadores para os títulos que estão agregados no Índex Psi Periódicos Técnico–Científicos, encontrei 257 menções, 10 no Índex Psi Periódicos de Divulgação Científica, 90 Índex Psi Teses 83 no PEPsic Periódicos Eletrônicos em Psicologia. Ainda que não tenha conseguido analisar todos os itens, dediquei-me um pouco mais à Scielo, buscando nos resumos disponibilizados na página brasileira (415), pistas que pudessem me auxiliar a entender quem, como e porque tem utilizado o termo gênero em seus trabalhos. É importante destacar que, ao pesquisar gênero e sexualidade, encontrei 35 títulos, e com as palavras-chave gênero e geração, apenas dois. Cruzando as três palavras- chave, não encontrei nenhum trabalho. Os trabalhos encontrados refletem, no meu entender, tanto a diversidade das definições possíveis para gênero e as tradições teóricas e metodológicas a ele associadas, quanto, correlatamente, a diversidade interna da própria área da Psicologia. Nesse caso, por exemplo, é possível encontrar trabalhos que se dedicam a algum gênero animal ou vegetal, literário e/ou do discurso, assim como aqueles que ainda utilizam gênero como sinônimo da variável sexo. Em contrapartida, as filiações teórico– epistemológicas apontam, também, para debates complexos que incluem as perspectivas pós-estruturalistas, o diálogo com a psicanálise e a discussão sobre as adequações metodológicas que o conceito exigiria. Destacam-se os trabalhos publicados em revistas acadêmicas dedicadas aos feminismos como a Revista Estudos Feministas (REF) e a Cadernos PAGU, assim como a revista Psicologia & Sociedade da ABRAPSO, em um cenário que inclui revistas das mais diversas áreas, em especial as da Saúde e da Educação. Nesse contexto diverso, penso ser necessária a recuperação da história do conceito, uma vez que as palavras, ideias e coisas que significam têm uma história e lutar por uma única definição ou sentido parece, de antemão, uma 146 causa perdida (SCOTT, 1990). É de autoria da historiadora norte-americana Joan Scott o texto que marcou visivelmente a produção acadêmica que utiliza o conceito gênero, haja vista o número de trabalhos que o citam direta ou indiretamente. Cunhado pelo feminismo anglo-saxão, a partir da chamada “segunda onda” do movimento feminista e em oposição a sexo, gênero pressupunha a forma como cada grupo cultural “dramatiza” o binarismo sexual, rechaçando a fatalidade da natureza. Nesse texto datado, Scott define o conceito de forma a incorporar a assimetria atribuída aos sexos e ao gênero, e, portanto, a noção de que as relações de gênero são relações de poder. Analisa, ainda, as principais tradições teóricas que trabalhavam com o conceito, mostrando seus limites e possibilidades. Pode-se afirmar que, na época, o próprio conceito de gênero mantinha alguns binarismos que criticava como o de natureza–cultura, uma vez que o gênero seria socialmente construído e o sexo corresponderia ao que é biologicamente dado. Os desdobramentos e debates teóricos, no entanto, permitiram pensar que o próprio binarismo sexual é uma produção cultural e o corpo deixa de ser uma constante para ser visto como uma variável. Tomas Lacquer (2001), por exemplo, recupera a história da noção de corpo, mostrando como, no pensamento ocidental a partir do século XVII, as características físicas passaram a ser vistas como a origem das distinções masculino/feminino, culminando na noção contemporânea do corpo bissexuado. A partir de então, as diferenças anatômicas passaram a ser pensadas em termos de descontinuidade e oposição e não mais como continuidade e hierarquia, tal qual no modelo do sexo único que pensava as diferenças como sendo de grau (COSTA, 1996; NICHOLSON, 2000; LACQUER, 2001). Essa operação que cunhou, inclusive, nomes diferentes para os órgãos sexuais, ou seja, linguisticamente os instituiu como distintos, permitiu a ideia da “identidade sexual” enraizada em um corpo diferenciado. Esse binarismo aparece presente no feminismo da “segunda onda” o feminismo da diferença que, de certa maneira, apresentava um discurso que, por um lado, diferenciava essencialmente mulheres e homens, e, por outro lado, igualava as mulheres entre si, de forma a permitir a produção do 147 sujeito político “mulheres”. Ou seja, o retorno ao determinismo biológico do qual se quer escapar mantém-se presente nessa lógica (igualdade na diferença), dando a entender que há algo fixo e imutável que se aplicaria a todas as mulheres como uma verdade trans-histórica (SCOTT, 2002). A desconstrução da oposição binária igualdade/diferença é defendida por Scott (1988), uma vez que oculta a interdependência dos dois termos (a diferença não impede a igualdade e esta, por sua vez, não significa a eliminação da diferença). A igualdade reside na diferença, para Scott, e o discurso da diferença macho–fêmea oculta as inúmeras diferenças entre as mulheres (e entre os homens). A autora defende, portanto, a tese da diferença múltipla ao invés da diferença binária, entendendo que mulheres entre si diferenciam-se quanto à origem de classe, raça/etnia, geração, comportamento, caráter, desejo, subjetividade, sexualidade, experiência histórica. Na esteira do debate, posições diversas são encontradas. Dentre elas, destacam-se as de Linda Nicholson (2000) e Judith Butler (1990, 1993a) que problematizam a ideia de natureza como algo dado e comum a todos os grupos culturais. Ademais, defendem a tese de que o gênero não é algo como uma inscrição cultural (significação) sobre um sexo previamente dado. Antes, o corpo e o sexo são interpretados e instituídos pelo gênero, de sorte que em determinadas culturas africanas pessoas com a genitália feminina podem ser pensadas como maridos, ou em grupos indígenas americanos uma pessoa com genitália masculina pode ser entendida como meio-homem e meio-mulher (NICHOLSON, 2000). Ou seja, não se pode postular a diferença entre os sexos em termos de substância, mas sim como uma ação performativa sem status ontológico (BUTLER, 1993a e 1993b), produzida pelas práticas discursivas responsáveis pelas categorizações como homens e mulheres (LACLAU & MOUFFE, 1985). Nessa perspectiva o sexo é produzido pelo gênero. O gênero é performático e múltiplo, é ação e não identidade ou totalidade, e está associado a outros vetores de distinção como classe, etnia e geração. E 148 finalmente, as diversidades intracategorias revelam tanto quanto aquelas entre categorias, o que politicamente leva às coalizões por afinidades e não por identidades, de forma a superar as matrizes identitárias totalizadoras (HARAWAY, 2000; BUTLER, 1990). Dessa forma, pode-se afirmar com Butler (1990) que: O gênero pode também ser designado como o verdadeiro aparato de produção através do qual os sexos são estabelecidos. Assim, o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; o gênero é também o significado discursivo/cultural pelo qual a ‘natureza sexuada’ ou o ‘sexo natural’ é produzido e estabelecido como uma forma ‘pré-discursiva’ anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual a cultura age (BUTLER, 1990, p. 7). Simultaneamente, essas proposições permitem pensar a sexualidade como construções sociais e históricas que sempre implicam certo tipo de conexão com as relações de poder. Nos dizeres de Gayle Rubin (1998): O âmbito da sexualidade (...) tem sua própria política interna, iniquidades e modos de opressão. Como acontece com outros aspectos do comportamento humano, as formas institucionais concretas da sexualidade humana, num espaço e num tempo determinados, são produtos da atividade humana. Elas são repletas de conflitos de interesse e manobra política, tanto de natureza proposital quanto circunstancial. Nesse sentido, sexo é sempre politizado. Há, porém, períodos históricos nos quais a sexualidade é mais contestada e abertamente politizada. Nesses períodos, o domínio da vida erótica é efetivamente renegociado (RUBIN, 1998, p. 100). Tomo por base aqui as ideias de Michel Foucault, para quem a sexualidade foi inventada como um “instrumento–efeito na expansão do biopoder” (DREYFUS & RABINOW, 1995, p. 185). Na passagem do século XVIII para o século XIX, houve uma mudança de uma sexualidade como aspecto indiferenciado da vida cotidiana e relativamente livre, para outra vigiada e controlada. O dispositivo da sexualidade (entendido como estratégias de força que suportam tipos de saber e vice-versa) permitiu ao biopoder estender suas redes ao sujeito individual. Com efeito, até o século XVIII, os principais códigos legais ocidentais centravam-se no dispositivo da 149 aliança que articulava as obrigações religiosas ou legais do casamento com a transmissão da propriedade e dos laços de sangue, constituindo o sistema social. O dispositivo da “sexualidade” tem sua origem na separação do sexo do dispositivo da aliança. A sexualidade é da ordem do indivíduo. Diz respeito aos prazeres e às fantasias ocultos, aos excessos perigosos para o corpo e passou a ser considerada como a essência do ser humano individual e núcleo da identidade pessoal. Para Foucault (1984, 1994, 1997), as formas de dominação ligadas à identidade sexual são características de nossas sociedades ocidentais e, por isso mesmo mais difíceis de serem identificadas por nós que preferimos acreditar que os movimentos de autoexpressão sexual são resistências às formas de poder em vigor. Foucault (1984, 1994, 1997) não os vê como inerentemente livres ou opostos à dominação. A reformulação do discurso sobre a sexualidade em termos médicos demonstra bem sua articulação com uma forma poderosa de saber que conecta indivíduo, grupo, sentido e controle. As classificações das perversões, das sexualidades desviantes e “improdutivas”, encontram-se associadas a uma “ortopedia” do sexo que incide sobre o corpo o lugar da sexualidade que passa a ser escrutinado nos menores detalhes em busca de todos os segredos biológicos e psíquicos. Os dispositivos de saber e poder sobre o sexo se desenvolvem, desde o século XVIII, a partir de quatro grandes conjuntos estratégicos: (1) “Histerização do corpo da mulher”: tríplice processo pelo qual o corpo da mulher foi analisado como corpo integralmente saturado de sexualidade, integrado ao campo das práticas médicas e posto em comunicação orgânica com o corpo social, com o espaço familiar e com a vida das crianças; (2) “Pedagogização do sexo da criança”: pais, famílias, educadores, médicos e, mais tarde, psicólogos devem se encarregar continuamente do controle sexual destes pequenos seres em perigo; (3) “Socialização das condutas de procriação”: socializações econômica, política e médica, que visam incitar ou frear a fecundidade dos casais; (4) “Psiquiatrização do prazer perverso” (FOUCAULT, 1997, p. 99–100). 154 territórios socialmente reconhecidos como próprios de consumo de camadas médias, como os shopping centers, e circulam nestes espaços com adereços corporais, reproduzindo performances mediadas pelas relações de consumo. O trabalho aparece como um meio pelo qual essa demanda é atendida, sendo que um dos informantes relatou que a participação no tráfico foi uma mediação importante para possibilitar o acesso a tais bens. Tal relação entre imagem corporal, acesso aos bens de consumo e à cultura do tráfico nos morros remete a uma discussão sobre a constituição das próprias subjetividades desses/as jovens e, portanto, de como eles/as se lançam no mundo e quais mediações são significativas no estabelecimento de relações entre os pares. Entre os garotos, o padrão normativo de imagem corporal é enfatizado, valorizando o modelo heterossexual, branco e “sarado”. A questão do corpo é tomada a partir de um tópico central, a saber, como eles se veem e lidam com seu corpo. A imagem corporal relaciona-se também a uma “identidade” ou subjetividade jovem. Os meninos mais jovens demonstram-se mais desinibidos para falar da imagem corporal das meninas do que deles mesmos. Quando se referem ao corpo das garotas, apresentam descrições mais detalhadas, descrevendo partes do corpo; já quando solicitados a falar da imagem corporal de meninos, alguns se recusam a dizer, demonstrando traços homofóbicos, expressos por meio de comentários jocosos sobre a relação entre corpos de rapazes e algo que os aproxime, em alguma medida, a modelos femininos. Os garotos demonstram acreditar que as garotas de sua idade se sentem bem com seu corpo, pois este está se desenvolvendo, no entanto ressaltam que algumas esperam algo diferente, ou seja, esperam que seus corpos se modifiquem, adequando-se a um modelo de um corpo esbelto e esperado (“violão”, gostoso aos olhos dos garotos). Com relação aos meninos da mesma idade, eles relacionam a satisfação com o próprio corpo à autoestima, relatando que se o garoto aborda a garota ele está se sentindo bem com seu corpo. 155 Nota-se, de modo geral entre os garotos, uma grande preocupação relacionada com a imagem, seguindo o padrão normativo percebido com frequência em praias badaladas de Florianópolis, como a Praia Mole, considerada reduto jovem. Preocupam-se em estar dentro de um perfil exigido pelos pares, ou seja, um corpo malhado de academia, com roupas e acessórios de marca famosa. Pergunta: Vocês acham que os meninos fazem alguma coisa para cuidar do corpo? I: “Provavelmente” (GF Meninos 20–24 anos) Pergunta: Tipo o quê? I: “(...) academia, regime, caminhada, natação, a rapaziada gosta de esporte”. I2: “Tem que ter um corpo legal para estar na moda, porque você olha as pessoas indo pra praia mole, ai você também vai querer ir, ai o que vai acontecer, ai entra na academia, vai malhar para também poder ir” (GF Meninos 20–24 anos) Observa-se que estes garotos buscam alcançar um padrão ditado pela burguesia, afirmando que assim podem conquistar mais facilmente as garotas, independente da classe social. Pergunta: O que mais chama a atenção das meninas nos meninos? I: “Eu acho que é na bunda. Se o cara tira a camiseta e não tem um corpo legal, ninguém olha”. I2.: “Ai eu vou discordar de ti cara, porque hoje em dia..”. I.: “Cara, mais a maioria é assim, se você tirar a camiseta e tiver um corpo legal você não precisa falar nada”. I.: “Olha só, antes se você ia pegar uma guria de uma classe social mais alta, não tinha, não pegava se a guria estudasse no Energia, por exemplo. Hoje em dia, se você coloca uma camisa de marca, coloca uma corrente de prata e vai lá na X. Duvido que elas não cheguem” (GF Meninos 20–24 anos) A imagem corporal feminina que eles idealizam também está relacionada ao padrão de beleza colocado pela mídia: “Loira, olhos azuis, corpo perfeito, rosto de boneca...”. Ao mesmo tempo afirmam que muitas garotas de sua idade são gordas e a maioria, segundo eles, não está satisfeita com seu corpo: 156 Pergunta: E essa Camila, digamos que ela tenha 22 anos, vocês acham que ela está se sentindo bem com o corpo dela? I.: “A mulher pode estar com 10, 20, 30, 50 anos, ela sempre vai achar algum defeito. Que nem roupa, ela vai se olhar no espelho e sempre vai achar alguma coisa errada, é sempre assim”. I2.: “A mulher com corpo bonito, ela já briga com o espelho todo dia, imagina se ela tiver com um pneuzinho a mais” (GF Meninos 20–24 anos) Quanto às garotas, a imagem corporal reflete a heterogeneidade dos tipos físicos das participantes da pesquisa. Ou seja, que esta pode ser tanto alta quanto baixa, tanto magra quanto “gordinha”, não havendo um padrão único de referência. O mesmo, porém, não ocorre quando descrevem o tipo físico de um menino da mesma faixa etária. Este parece seguir um padrão normativo de beleza. Esta visão que possuem dos meninos, leva-as a pensar que eles sentem-se sempre bem com o seu corpo. Um fator que contribui nesta direção, segundo as garotas, é o fato de que os meninos, diferentemente delas, não sofreriam pressão para estarem de acordo com este padrão. Elas, por sua vez, não parecem satisfeitas com os seus corpos, mostrando estarem aquém de um ideal de beleza aparentemente inatingível para si mesmas. É pertinente apontar que, apesar de ambos, garotos e garotas, sentirem-se pressionados a alcançar e manter um padrão de estética corporal, na concepção dos garotos, essa pressão não ocorreria com as meninas, enquanto que elas afirmam, inversamente, que isso não aconteceria com eles. Quanto ao autocuidado, percebe-se uma interconexão com o descrito acima. Ou seja, os cuidados com o corpo vão buscar modelos dominantes de estética corporal. Com relação ao cuidado com a saúde e com o seu próprio corpo, percebe-se que os/as jovens dão mais ênfase à estética do que à promoção de saúde. Os garotos acreditam que atualmente cuidar do próprio corpo é algo relacionado a ambos os sexos e não somente imposto às mulheres. Pergunta: E eles fazem alguma coisa pra cuidar do corpo? O Tiago ou a Camila? I: “Ah, mas claro né”. 157 I: “Se produzem, se embelezam”. I: “Que até o homem agora ta se produzindo, né. Não é só mulher. Isso aí já é coisa do passado, só mulher” (GF Meninos 15–19 anos). Entretanto, os garotos não fazem referência a uma preocupação quanto aos cuidados para com o seu próprio corpo e aos cuidados em relação à(s) parceira(s) no âmbito da promoção de saúde, o que incide sobre um modelo de masculinidade que parece legitimar práticas de vulnerabilidade por meio de estratégias de reafirmação das posições que homens “devem” ocupar na dinâmica social e, atravessadas por concepções socialmente legitimadas a respeito das masculinidades4. Há também o uso de bebidas alcoólicas como parte de um lócus que relaciona valentia, força, disposição e coragem como elementos de investimento e de marca de um masculino exaltado pelos pares e pelas garotas também. No que se refere às transformações corporais desta idade, os garotos remetem à atuação dos hormônios influenciando no surgimento da atração sexual e afirmam que ocorre uma intensificação do desejo sexual, da vontade de ter uma relação sexual; ou seja, uma relação entre prazer e desejo masculino remetida à ordem do biológico. Eles comentam as transformações corporais da adolescência, como o início da ‘malícia’ entre os sexos e o surgimento do desejo sexual. Colocam também que nesta fase ocorre uma mudança na maturidade, ou seja, com o despertar da sexualidade e as mudanças corporais, o próprio jovem cresce, amadurece em direção à fase adulta. 4 A esse respeito, ver dentre outros: NASCIMENTO, Pedro. ‘Ser homem ou nada’: Diversidade de experiências e estratégias de atualização do modelo hegemônico da masculinidade em Camaragibe/PE. Dissertação (Mestrado em Antropologia Cultural). Recife: UFPE, 1999; KIMMEL, Michael S. El desarrollo (de género) del subdesarrollo (de género): la producción simultánea de masculinidades hegemónicas y dependientes en Europa y Estados Unidos. In: VALDÉS, Teresa y OLAVARRÍA, José (eds.). Masculinidades y equidad de género en América Latina. Santiago: FLACSO, 1998, p. 207–217; CONNELL, R. W. La organización social de la masculinidad. In: VALDÉS, Tereza y OLAVARRÍA, José (Eds.) Masculinidades y equidad de género en América Latina. Santiago: FLACSO/ISIS Internacional, Ediciones de las Mujeres, 1997, p. 31–48; CONNELL, R. W. El imperialismo y el cuerpo de los hombres. In: VALDÉS, Teresa y OLAVARRÍA, José (Eds.) Masculinidades y equidad de género en América Latina. Santiago: FLACSO, 1998, p. 76–89. 158 As garotas demonstram estarem informadas sobre as transformações corporais decorrentes da passagem da infância para a adolescência, apontando que tais mudanças exigem outros cuidados, principalmente em relação às questões referentes à vida sexual, o que parece remeter a um reconhecimento de si em relação ao seu próprio corpo. Contudo, percebe-se que os cuidados com o corpo são muito mais enfatizados quanto a se manterem magras do que à promoção de saúde. Na busca para atingir mais rapidamente o padrão de estética normativo, as garotas, principalmente as de 15 a 19 anos, recorrem a métodos mais rápidos de emagrecimento, como a bulimia. Desta maneira, o cuidado consigo mesmas está mais voltado à vaidade com os cabelos e com a higiene do que com exercícios físicos, o que as leva a utilizar o recurso da bulimia para emagrecerem. Para elas os garotos malham muito mais que as garotas e tomam “bomba” (anabolizantes) para atingir os seus objetivos físicos mais rapidamente. Esta utilização de recursos que proporcionam resultados mais rápidos demonstra o quanto o ideal estético estabelecido pela mídia e pelos seus pares, controla as atitudes destes/as jovens que não conseguem atingi-lo. Ainda em relação ao autocuidado o uso de chás é citado pelas garotas como técnica usada para “fazer a menstruação descer” e para emagrecer. Elas não fazem referência ao uso de medicamentos ou de técnicas médicas para se manterem no padrão de beleza ou para cuidarem do que acontece no seu corpo, mas afirmam que usam a pílula como método contraceptivo. Pergunta: Com relação ao seu corpo, você se cuida? Como? “No verão passado eu tomava chá de sene, tomava outros laxantes como lacto purga. Tô sempre me cuidando, faço exame de sangue, urina, uma fez por ano (...) Acho importante cuidar do corpo, claro, principalmente nos últimos anos. Imagina, se eu não arranjar marido pra mim agora!” (CÁTIA, 21 anos) Pergunta: E já rolou alguma vez sem camisinha? E depois que acontece você faz alguma coisa para evitar a gravidez? 159 “Já (...) se eu tivesse transado sem camisinha e achasse que iria engravidar, antes da menstruação descer já tomo um chazinho e a menstruação desce normalmente. Tem um remedinho, que não é abortivo, mas é um remédio superforte. Um monte de menina aborta com isso. Mas eu acho um veneno. Eu sempre tomei chazinho, se é natural, não faz mal” (KEILA, 19 anos). Como se pode evidenciar na análise de outras falas das garotas, como as que contemplam a discussão sobre o uso ou não uso de preservativo, os cuidados com o corpo também aparecem sob a ótica das preocupações em relação à gravidez, muito mais do que em relação às DST/AIDS. Mesmo que, muitas vezes, elas admitam que não sejam sempre tão cuidadosas quanto à prevenção, de modo geral as informantes demonstram estarem informadas quanto ao que pode se processar no seu corpo quando iniciam sua vida sexual. O duplo padrão de moral sexual ainda mantém-se presente nos grupos investigados, assim como a exigência da atividade sexual por parte dos homens como forma de comprovação de sua virilidade/masculinidade. No entanto, a preocupação em torno da virilidade não encontra correspondência no que diz respeito à fertilidade, o que pode ser atestado pela maior negligência por parte dos jovens homens com relação aos cuidados contraceptivos. A vida reprodutiva é vista quase que exclusivamente como uma responsabilidade das mulheres. Ainda que alguns admitam que os cuidados contraceptivos e a responsabilidade pelos filhos são atribuições de ambos, homens e mulheres, o uso da camisinha de vênus é assistemático, sendo que outros métodos são pouco utilizados, e por meio da iniciativa das mulheres. Os filhos, quando existem, ficam sob os cuidados das mães, embora alguns jovens afirmem a divisão das responsabilidades nesse campo. No entanto, a própria iniciativa do aborto pode ser identificada, em alguns casos, como uma imposição do homem que ameaça a parceira com a quebra do vínculo. Já entre as jovens mulheres investigadas, a reprodução aparece como uma das consequências da vida sexual ativa e se torna uma preocupação maior do que para os homens. Ou seja, o corpo sexual nem sempre é visto como um corpo reprodutivo, especialmente entre os garotos. 164 HISTÓRIA E FORMAÇÃO DO PSICÓLOGO CAPÍTULO 11 A FORMAÇÃO DE PSICÓLOGOS NA ARGENTINA: A PSICOLOGIA SOCIAL DE PICHON-RIVIÈRE Hugo Klappenbach Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas Universidad Nacional de San Luis, Argentina esde a redemocratização em 1983, a formação de psicólogos na Argentina ganhou em diversidade e extensão. Até aquele momento era possível cursar estudos superiores de Psicologia em apenas sete universidades públicas e dez particulares. Segundo informações coletadas no Ministério de Educação em agosto de 2007, a oferta em universidades públicas não variou significativamente, uma vez que, agora, o curso de Psicologia é ministrado em nove institutos deste gênero; por outro lado, é possível escolher entre 31 universidades particulares, além de uma estadual (ver Tabelas 1 e 2). Se bem que a ampla oferta de cursos assegure uma diversidade em variados aspectos, é também possível identificar um núcleo constitutivo comum para esses quarenta e um programas em Psicologia (KLAPPENBACH, 2003a). A análise histórica do ensino universitário da Psicologia na Argentina identifica alguns aspetos comuns no início da formação destes cursos no país, bem como uma série de aspetos divergentes (VILANOVA, 1993). Como é conhecido, em nível internacional os primeiros estudos dedicados a verificar a situação dos programas de formação universitária em Psicologia foram produzidos nos Estados Unidos, especialmente nos anos próximos à Segunda Guerra Mundial. Lá, tais estudos foram produzidos no marco de análises das condições profissionais para o trabalho no campo D 165 clínico. Um dos primeiros relatórios foi elaborado por um Comitê designado pela Associação de Psicólogos de Michigan e consistiu na análise de um questionário em que se solicitava aos associados que descrevessem os cursos necessários para o trabalho em diagnóstico e tratamento, fora do âmbito dos cursos de graduação, mestrado ou doutorado (GREENE, 1938). Ainda quando as informações apresentavam bastante dispersão, as conclusões do estudo sublinham que 80% dos entrevistados coincidia no fato de que o treinamento para diagnóstico e tratamento exigia não menos de quinze cursos em psicologia, além de cinco em ciências sociais, três em medicina e outros cinco tanto em ciências como em língua estrangeira (GREENE, 1938). O contexto do estudo mostrava as exigências para ser aceito o campo do diagnóstico e tratamento em torno do qual, antes da Segunda Guerra Mundial, havia se iniciado a disputa —que amadureceria uma década depois— entre psicólogos e psiquiatras (BUCHANAN, 2003). No contexto da década de 30, a formação e treinamento profissional constituíam ferramentas centrais no debate das reivindicações profissionais. Training was in important means maintaining medical control over psychotherapy in this period. There was a paucity of graduate training programs for would be clinical psychologists before the war. Existing programs were master-level at best and tended to emphasize diagnostic (BUCHANAN, 2003, p. 227). Nos Estados Unidos, as limitações na formação profissional do psicólogo vinham sendo assinaladas em vários estudos desde o começo da década de 1940. Um destes estudos, que se converteria em clássico, por exemplo, foi o levado a cabo por David Shakow (1942). É interessante destacar que Shakow atuava na universidade somente em âmbito hospitalar, no conhecido Worcester State Hospital. Shakow (1942) enquadrava seu relatório no marco da psicologia aplicada em geral, ainda que seu objetivo fosse o treinamento do psicólogo clínico. Sugeria que o treinamento em psicologia clínica fornecesse o fundamento para todo o trabalho profissional do psicólogo, mesmo quando reconhecia, numa nota de pé de página, que o programa de treinamento por ele sugerido era o resultado de sua experiência hospitalar. 166 Ou seja, o campo profissional sobre o qual se recortava a formação em psicologia era explicitamente o da medicina, ao qual se acrescentava o do trabalho social. Contudo, o Relatório Shakow recomendava articular a formação acadêmica à profissional, insistindo que a formação deveria ser tão rigorosa e extensa como um doutorado, além de que a ela se deveria acrescentar um ano de internato (proposta já formulada anteriormente em Shakow, 1938). Nessa direção, o autor descrevia as três atividades básicas do treinamento em psicologia clínica: diagnóstico, investigação e terapia. The question becomes one of determining the king of trained person who, at the present stage of development of the profession and with the present needs of the field, would most adequately represent and advance clinical psychology. Such a person would seem to be one who, besides meeting certain basic personality requirements and having a breadth of educational background, is competent to carry a triad of responsibilities: diagnosis, research, and therapy (SHAKOW, 1942, p.278). Há muitas razões para analisar com cuidado o Relatório Shakow, como sua ênfase no nível da graduação (undergraduate), a ideia de que a especialização principal (major) deveria ser em ciências biológicas, sendo a secundária (minor) em ciências sociais. Assim mesmo, os estudos denominados de ciências médicas (anatomia, fisiologia, neuroanatomia, endocrinologia, medicina clínica, terapia) adquiririam importância no segundo nível de formação, tendente ao doutorado. Para a tradição argentina, é interessante a recomendação do autor do estudo de línguas como castelhano e russo, assim como suas considerações sobre a formação psicanalítica: If psychoanalysis is accepted as part of the program special care will have to be taken to select analysts who are relatively free from doctrinarism and who have an interest in psychological theory as well as in therapy (SHAKOW, 1942, p.281). Apenas um ano depois do Relatório Shakow, outro estudo reconhecia a necessidade de revisar a formação acadêmica clássica em psicologia, principalmente aquela dirigida à investigação. 167 Psychologists report their greatest number of deficiencies both in themselves and others in psychology, particularly in the applied fields, this in spite of the fact that most of them have taken a great many psychology courses. This condition suggests the desirability of making a study of the kind of psychology that is studied in the regular courses. It is possible that the traditional degree-program set up as training in research should be considerably overhauled to be suitable for professional psychological work (TROW & SMART, 1943, p. 40). Enquanto nos Estados Unidos, portanto, os primeiros estudos acerca da formação em psicologia apareceram nas décadas de 30 e 40, na Argentina, por seu turno, os estudos sobre o tema são todos posteriores à década de 1960, estando relacionados à implantação de cursos de psicologia na metade da década anterior (tabela 1 e 2). Há uma quantidade significativa de estudos centralizados em um determinado curso ou programa de formação em psicologia, sendo os de La Plata pesquisados em Piacente, Compagnucci, Schwartz & Talou (2000) e os de Tucumán por Lapur (1972). Igualmente, não têm faltado estudos relacionados ao ensino de uma determinada matéria ou grupo de matérias em diferentes universidades (NAZUR, CORILI & CASADO, 2001), estudos centralizados no treinamento de determinadas especialidades também em diferentes universidades (KLAPPENBACH, 2003b) e estudos focalizados na aquisição das habilidades por parte dos formados (CASTRO SOLANO, 2004). De particular interesse, três trabalhos publicados nos primeiros anos de existência dos cursos de psicologia, entre 1961 e 1975, realizavam estudo comparativo sobre a formação do psicólogo em todas as universidades nacionais (BARRIONUEVO & GARCIA MARCOS, 1975; CHAPARRO, 1969; HORAS, 1961). Destes trabalhos, em muitos aspectos divergentes entre si e respondendo a objetivos igualmente distintos, podemos extrair algumas conclusões gerais sobre a formação do psicólogo na Argentina e, em particular, em psicologia social. 168 Por exemplo, o estudo de Chaparro (1969) revela que mais de um quarto das matérias era comum aos seis cursos das universidades públicas. As oito matérias comuns eram Psicologia Social, Neurobiologia, Estatística, Psicometria, Psicologia Evolutiva, Psicopatologia, Técnicas Projetivas ou Psicodiagnóstico e Psicologia do Trabalho. Juntas, estas oito matérias representavam 28% do número total de disciplinas cursadas em um programa mediano. Ademais, outras quatro matérias eram comuns a cinco dos cursos analisados: Filosofia, Psicologia Geral, Psicologia Profunda e Psicologia da Personalidade. Essas matérias, somadas às anteriores, representavam 41% do número total de disciplinas em um programa mediano. Por último, outras cinco matérias eram comuns em quatro dos cursos estudados: Introdução à Psicologia, Sociologia, Antropologia Cultural, Métodos e Técnicas de Investigação Psicológica e Psicologia Clínica de Crianças e Adultos. Somadas às anteriores, as disciplinas citadas correspondiam a 62% do número total de matérias cursadas em um programa mediano (CHAPARRO, 1969). Em suma, quase dois terços das matérias eram comuns a pelo menos quatro dos seis cursos de psicologia nas universidades públicas. Entre estas matérias, é interessante indicar que a formação em psicologia social estava contemplada em todas as universidades públicas desde suas respectivas fundações, junto a outras matérias afins como Psicologia do Trabalho ou, ao menos em quatro universidades, a Sociologia. Por sua vez, o estudo de Barrrionuevo & García Marcos (1975) diferia do de Chaparro por sua ênfase em apontar as diferenças absolutas entre todos os planos de estudo. Não obstante, concordava que, nos dez cursos oferecidos em Buenos Aires, existiam três matérias comuns: Psicologia Geral, Psicologia Evolutiva e, novamente, Psicologia Social. Por fim, o relatório de Plácido Horas afirmava que “na universidade nacional a carreira de psicologia nas diversas faculdades carece de diferenças 169 essenciais e seus planos se assemelham aos oferecidos pelas instituições de estudos superiores de outros países” (HORAS, 1961, p.346). Nesse contexto, podemos perceber que a psicologia social não ocupava lugar secundário por dois motivos. Primeiro, porque era uma das poucas matérias comuns a praticamente todos os cursos de graduação em psicologia no país. Segundo, porque os cursos de psicologia apareceram na República com um interesse manifesto nos campos da educação e do trabalho, logo, era inevitável uma aproximação social. Durante os anos 60, em diferentes contextos intelectuais, começaram a serem sentidas mudanças significativas que enfatizavam o interesse em aproximações sociais dentro do campo psicológico (KLAPPENBACH, 2000; VEZZETTI, 2004). Na segunda metade dos anos 60, a Argentina passava por eventos que impactariam a formação do psicólogo e em psicologia social em particular. Por um lado, desde a queda de Perón em 1955, a denominada “nova esquerda” começava a se distanciar do clássico antiperonismo de esquerda vinculado ao Partido Socialista ou ao Partido Comunista Argentino (TERÁN, 1993). Por outro lado, no domínio universitário, guiado pela concepção de que “a universidade somos nós”, os anos seguintes à queda de Perón foram caracterizados pelo protagonismo do movimento estudantil, especialmente na Universidade de Buenos Aires e em La Plata (SIGAL, 2002, p.43). A literatura costuma considerar a década entre 1955 e 1966 como a “idade de ouro” da universidade argentina em razão de vários indicadores, como a absoluta economia das universidades, a renovação curricular e a crescente ênfase na pesquisa. Contudo, historiadores insuspeitos de simpatia com o regime que findou em 1955 observam que o dito período não foi menos arbitrário que o iniciado na universidade argentina na década anterior. O movimento estudantil, por exemplo, promoveu o ajuizamento dos docentes relacionados com o regime peronista (SIGAL, 2002). Mais ainda, um conhecido jurista expulso da Universidade de Buenos Aires em 1946 foi reincorporado em 1955; neste momento o interventor na Faculdade de Direito e Ciências Sociais da referida Universidade sustentava que era 174 Oñativia assinalava o aporte de Kurt Lewin por aproximar conceitos da Gestalt e das psicanálises e as tentativas de Murray de articular a topologia de Lewin ao freudismo (OÑATIVIA, 1955). Por outro lado, algumas cátedras de psicologia social ou institucional em universidades, públicas e particulares, incorporaram conteúdos pichonianos, havendo inclusive algumas que diretamente se centraram em um enfoque pichoniano. Caso paradigmático constitui a matéria de Psicologia Social na Universidade Nacional de Tucumán, que explicitamente declara sua moratória à obra de Pichon: A teoria da Psicologia Social desde os trabalhos e investigações de Enrique Pichon-Rivière se inicia nos fins da década de 50 a partir especialmente do desenvolvimento das Psicanálises na Argentina (UNIVERSIDADE DE TUCUMÁN. FACULDADE DE PSICOLOGIA, 2005, p.1). O caso de Tucumán não deve surpreender: Pichon-Rivière viajou reiteradamente por aquela província para praticar experiências com cultivadores de cana-de-açúcar e logo começou a ensinar grupos operativos. Seu filho Joaquin Pichon-Rivière destaca devermos (...) ter em conta que praticamente a primeira escola de psicologia social, a particular, da última etapa, foi aberta primeiro em Tucumán e depois em Buenos Aires; quer dizer que esta experiência fundadora entre 1958 e 1960 deixa em Tucumán uma marca muito grande com os colaboradores; de fato ele nunca deixou de viajar para Tucumán e supervisar um grupo muito forte, hoje uma escola muito importante que, creio, inclusive já oferta pós-graduação em psicologia social em Tucumán” (CARMONA PARRA, 2007 s/p). Além de Tucumán, há casos em que a influência de Pichon-Rivière sobre as universidades respondem a distintas variáveis, dentre as quais destacamos as pessoais. Em fins da década de 70, a cátedra de Psicologia Social na Universidade de Salvador esteve a cargo de Ana Quiroga, última esposa e seguidora do ensino de Pichon-Rivière, além dela mesma ser a diretora da primeira Escola Particular de Psicologia Social. Não só os conteúdos do programa eram nitidamente pichonianos, como também a 175 didática enfatizava os grupos operativos, como eu mesmo pude comprovar enquanto estudante. Ademais, foram constituídas cátedras operativas ou livres que explicitamente retomam os ensinos de Pichon, dentre as quais o Seminário eletivo “Desenvolvimentos clínicos baseados no pensamento do Doutor Enrique Pichon-Rivière: patologias atuais”, na Universidade Nacional de Rosário (GALIÑANES, 2004). De todas as maneiras, ainda que existam outras experiências, o ensino da psicologia social não tem privilegiado o enfoque pichoniano. Desde já, em todos os cursos de graduação em psicologia, tanto em universidades públicas como em particulares, há um número variável de disciplinas diretamente relacionadas ao campo da psicologia social (ver Tabelas 3 e 4). Paralelamente, o mais reconhecido curso de formação em psicologia social pichoniana tem tido um desenvolvimento externo a quaisquer universidades, baseando-se em Escolas ou Institutos terciários — instituições não universitárias que conferem títulos não universitários, como “Operador em Psicologia Social” ou similar. Dois exemplos paradigmáticos desta formação paralela à universitária constituem a primeira Escola Particular de Psicologia Social, dirigida por Ana Quiroga, e a Escola de Psicologia Social do Sul, dirigida por Gladys Adamson. A primeira é a fundada por Pichon-Rivière em 1967, transformando a antiga Escola de Psiquiatria Social que perdeu seu caráter de pós- graduação. Com essa mudança, a instituição e o curso de Psicologia Social se abrem a todos aqueles que, sejam qual fossem seus estudos e formação prévia, se interessem em realizar uma aprendizagem centrada na compreensão dos processos de interação e o na análise do processo social, particularmente ao que faz a relação entre estrutura social e subjetividade (PRIMEIRA ESCOLA DE PSICOLOGIA SOCIAL, 2007a, s/p). A oferta acadêmica da escola oferece diferentes titulações terciárias: 176 1) Técnico Superior em análise e intervenção, nos campos grupal, institucional e comunitário (Curso terciário de quatro anos com título oficial reconhecido). Com uma carga horária de 16 horas, ou seja, dentro da média semanal, com duas reuniões semanais e tarefas não presenciais; 2) Curso tradicional de Psicologia Social; curso terciário de quatro anos de duração —Título não oficial (Tabela 5). Por seu turno, a Escola de Psicologia Social do Sul tem sido especialmente promotora do reconhecimento dos títulos terciários, oferecendo também diferentes títulos reconhecidos (Resolução 606/02 da Secretaria de Educação do Governo da Cidade de Buenos Aires): 1) Técnico em Comunicação e Psicologia Social (dois anos); 2) Operador em Psicologia Social (três anos) (tabela 6). Iniciativas dessa natureza existem em todo o país e implicam uma formação terciária não universitária, embora o título de operador social e outros análogos comecem a ser reconhecidos em instituições públicas para o exercício de certas práticas. Ao mesmo tempo, foi constituída a Associação de Psicólogos Sociais da República com a argumentação de que representa aqueles que obtiveram seu título naquela escola terciária. Por outro lado, a Província de Buenos Aires, a maior do país, tem sob estudo, desde setembro de 2006, a sanção de uma lei relativa ao exercício profissional do Operador em Psicologia Social (Câmara de Deputados de Buenos Aires, 2006). Ainda, a partir de 1999 a Universidade CAECE (anteriormente Universidade “Centro de Altos Estudos em Ciências Exatas” que, tornando- se mais abrangente, passou a ser intitulada “Universidade CAECE”) implantou a Licenciatura em Psicologia Social explicitamente com o objetivo de articular a formação desse profissional com as formações técnicas superiores em psicologia social de diferentes instituições terciárias (Tabela 7). Explicitamente, o curso destaca alguns dos títulos aceitados para essa articulação (UNIVERSIDADE CAECE, 2007a, s/p): 177 − “Operador em Psicologia Social” (Resolução 992/93 do Ministério de Cultura e Educação da Nação Argentina); − “Operador em Psicologia Social (Resolução 679/94 da Direção Geral de Escolas e Cultura da Província de Buenos Aires)”; − “Plano Alternativo do Curso de Formação de Operadores em Psicologia Social” (Resolução 14286/97 da Direção Geral de Cultura e Educação da Província de Buenos Aires); − “Plano Alternativo do Curso de Formação de Operadores em Psicologia Social” (Resolução 4521/98 da Direção Geral de Cultura e Educação da Província de Buenos Aires). − “Operador em Psicologia Social” (Resolução 401/99 da Secretaria de Educação do Governo da Cidade de Buenos Aires). − “Técnico Superior em análise e intervenção nos campos grupal, institucional e comunitário” (Resolução 346/01 da Secretaria de Educação do Governo da Cidade de Buenos Aires). − “Operador em Psicologia Social” (Resolução. 606/02 da Secretaria de Educação do Governo da Cidade de Buenos Aires). O modelo da Universidade CAECE despertou várias críticas, fundamentadas no modelo latino-americano proposto na Conferencia Latino- americana sobre treinamento do psicólogo, ocorrida em 1974 em Bogotá, que recomendava títulos gerais em nível de grau universitário (ARDILA, 1975). Em 2005 a mesma universidade estabeleceu a Licenciatura em Psicologia, apesar da Licenciatura em Psicologia Social não ter desaparecido. Em definitivo, os cursos de graduação em modelos pichonianos de intervenção em psicologia social na Argentina têm ficado a cargo de instituições terciárias, com exceção da Universidade CAECE. O crescimento de ditas escolas tem sido fenomenal, especialmente após a 178 redemocratização. Por seu lado, os cursos universitários de psicologia iniciaram processo que tende a reconhecer seus cursos universitários, logo que os mesmos sejam declarados de interesse público, a partir de uma petição que foi compartilhada pela Associação de Psicologia (AUAPsi), instituição que reúne os cursos de psicologia das universidades nacionais, a Unidade de Vinculação Acadêmica de Psicologia (UVAPsi), que reúne os cursos de psicologia de universidades particulares e a Federação de Psicologia da República Argentina (FePRA) (REPÚBLICA ARGENTINA. MINISTERIO DE EDUCACIÓN, CIENCIA Y TECNOLOGÍA, 2005). Nesse sentido, os títulos em psicologia e de operador ou técnico superior em psicologia social parece que seguirão por caminhos divergentes, não obstante algumas situações isoladas de aproximação. Referências ARDILA, R. The first latin-american conference on training in psychology. International Journal of Psychology, 7, 435–446, 1975. AVENBURG, R.. 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