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Guias e Dicas
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Theodor Adorno - Teoria estetica, Notas de estudo de Filosofia

Teoria Estética.

Tipologia: Notas de estudo

2013

Compartilhado em 07/08/2013

ju-ju-21
ju-ju-21 🇧🇷

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Baixe Theodor Adorno - Teoria estetica e outras Notas de estudo em PDF para Filosofia, somente na Docsity! THEODOR W. ADORNO TEORIA ESTÉTICA Título original: Asthetische Theorie © Suhrkamp-Verlag Frankfurt am Main, 1970 Tradução de Artur Morão Capa de Edições 70 Depósito legal n.° 72 907/93 ISBN 972-44-0671-7 Direitos reservados para a língua portuguesa por Edições 70, Lda. EDIÇÕES 70, LDA. — Rua Luciano Cordeiro, 123 - 2.° esq.° — 1000 LISBOA Telef. 3158752 Fax: 3158429 Esta obra está protegida pela Lei. Não pode ser reproduzida, no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, incluindo fotocópia e xerocópia, sem prévia autorização do Editor. Qualquer transgressão à Lei dos Direitos de Autor será passível de procedimento judicial. edições 7O ADVERTÊNCIA Adorno/ Theodor W Iforia estética 11l,832/A241t < I M < MM t c (145938/98) A presente tradução segue a segunda edição do texto alemão, preparada por Gretel Adorno e Rolf Tiedemann. Como se sabe, Th. W. Adorno não teve tempo, devido à sua inesperada morte em 1969, de dar ao texto o tratamento e a ordenação adequados, embora fosse essa a sua intenção. Juntamente com a Dialéctica Negativa e outra obra de filosofia moral, que nunca chegou a ser concretizada, a Teo- ria Estética comporia um tríptico central na produção de Adorno. O que ficou reúne partes mais antigas e outras mais recentes, visto que o seu ensino de estética se estendeu ao longo dos anos cinqüenta e sessenta. Esse caracter fragmentário e inacabado explica a textura do livro, a sua escassa organização e a sua incidência, por vezes, repetitiva. Mas, a riqueza de conteúdos e de idéias, a amplidão do horizonte e a variedade dos temas compensam o lacunoso tecido do discurso interrompido pela morte. Por outro lado, Adorno não é fácil: autor mais intuitivo do que lógico, aforismático e subtil, possui, além da terminologia específica derivada do idealismo alemão e do marxismo, um modo de dizer que não é imediatamente apreensível, mas bastante elíptico. Na tradução, procurou-se a todo o custo conservar o tom adorniano: daí, a fide- lidade assás literal, sem descurar, porém, o caracter próprio da língua portuguesa. Um certo preciosismo no emprego por Adorno de pala- vras estrangeiras foi preservado: expressões francesas, gregas, inglesas e outras aparecem em itálico na versão proposta. No final do volume, as menos compreensíveis aparecem em índice, com o respectivo sen- tido. Houve ainda o cuidado de apresentar um glossário dos termos alemães mais relevantes na linguagem de Adorno, com a tradução adoptada ao longo do texto português. Se isso se fez, foi na esperança de ser fiel a um pensamento crítico e empenhado e de realizar um trabalho sério e verdadeiramente cultural, que não desiluda o leitor. 9 para a música libertada, nem a música de mesa constituiu para o homem uma função honrosa a que a arte autônoma se teria subtraído sacrilegamente. O seu barulho miserável não se torna melhor pelo facto de a maior parte de tudo o que hoje atinge os homens como arte fazer ressoar o eco daquele matracar. A perspectiva hegeliana de uma possível morte da arte é confor- me ao seu ter-estado-em-devir. Que ele pensasse a arte como transitória e a atribuísse, no entanto, ao Espírito absoluto harmoniza-se com o caracter ambíguo do seu sistema, mas induz a uma conseqüência que ele nunca teria tirado: o conteúdo da arte que, segundo a sua concep- ção, constitui o seu absoluto, não é absorvido na dimensão da sua vida e da sua morte. A arte poderia ter o seu conteúdo na sua própria efemeridade. É concebível e de nenhum modo apenas uma possibili- dade abstracta que a grande música - algo de tardio - só foi possível num período limitado da humanidade. A revolta da arte, Ideologicamente posta na sua «posição relativamente à objectividade» do mundo his- tórico, transformou-se na sua revolta contra a arte; é inútil profetizar se ela lhe sobreviverá. A crítica da cultura não tem que abafar aquilo contra que vociferava outrora um pessimismo cultural reaccionário: a saber, como já Hegel pensava há cento e cinqüenta anos, que a arte poderia ter entrado na era do seu declínio. Como também há uma centena de anos a palavra terrível de Rimbaud realizava em si, numa antecipação extrema, a história da nova arte, assim o seu silêncio, a sua integração como empregado, antecipavam também esta tendência. Actualmente, a estética não tem nenhum poder sobre se virá a ser ou não o necrológio da arte, mas também não deve brincar às orações fúnebres; não tern em.geral que constatar o fim, reconfortar-se com o passado e, independentemente seja a que titulo for, transitar para a barbárie, que não é melhor que a cultura, a qual mereceu a barbárie como represália pelos seus excessos bárbaros. O conteúdo da arte passada, mesmo que a arte possa, agora estar suprimida, suprimir-se, desaparecer ou prosseguir no desespero, não deve necessariamente caminhar para p seu declínio. Poderia sobreviver à arte numa socie- dade que teria sido libertada da barbárie da sua cultura. Nos nossos dias, não estão mortas apenas as formas, mas inumeráveis temas: a literatura sobre o adultério, que enche o período vitoriano do séc. xix e o princípio do séc. xx, já não é imediatamente reutilizável após a dissolução da célula familiar da burguesia no seu apogeu e o afrou- xamento da monogamia. Apenas continua a viver medíocre e perversamente na literatura vulgar das revistas ilustradas. De igual modo, o que há de autêntico em Madame Bovary, outrora inserido no seu tema, sobrepujou há muito o declínio que é também o seu. Claro está, isto não deve induzir ao optimismo filosófico-histórico da fé no espírito invencível. O conteúdo temático pode igualmente, o que é mais, tudo arrastar na sua queda. Mas a arte e as obras de arte estão votadas ao declínio, porque são não só heteronomamente dependentes, mas porque na própria constituição da sua autonomia, que ratifica a posição social do espírito cindido segundo as regras da divisão do trabalho, não são apenas arte; surgem também como algo que lhe é estranho e se lhe opõe. Ao seu próprio conceito está mesclado o fermento que a suprime. Permanece inalterável para a refracção estética o que é alterado; para a imaginação o que ela concebe. Isto vale sobretudo para a fina- lidade imanente. Na relação com a realidade empírica, a arte sublima o princípio, ali actuante do sese conservare, em ideal do ser-para-si dos seus testemunhos; segundo as palavras de Schõnberg, pinta-se um quadro, e não o que ele representa. Toda a obra de arte aspira por si mesma à identidade consigo, que, na realidade empírica, se impõe à força a todos os objectos, enquanto identidade com o sujeito e, deste modo, se perde. A identidade estética deve defender o não-idêntico que a compulsão à identidade oprime na realidade. Só em virtude da separação da realidade empírica, que permite à arte modelar, segundo as suas necessidades, a relação do Todo às partes é que a obra de arte se torna Ser à segunda potência. As obras de arte são cópias do viven- te empírico, na medida em que a este fornecem o que lhes é recusado no exterior e assim libertam daquilo para que as orienta a experiência externa coisificante. Enquanto que a linha de demarcação entre a arte e a empiria não deve ser ofuscada de nenhum modo, nem sequer pela heroicização do artista, as obras de arte possuem no entanto uma vida sui generis, que não se reduz simplesmente ao seu destino exterior. As obras importantes fazem surgir constantemente novos estratos, envelhecem, resfriam, morrem3. Afirmar que enquanto artefactos, pro- dutos humanos, elas não vivem directamente como homens, é uma tautologia. Mas o acento posto sobre o momento do artefacto na arte concerne menos ao seu ser-produzido do que à sua própria natureza, indiferentemente da maneira como ela se faz. As obras são vivas enquanto falam de uma maneira que é recusada aos objectos naturais e aos sujeitos que as produzem. Falam em virtude da comunicação nelas de todo o particular. Entram assim em contraste com a dispersão do simples ente. Mas precisamente enquanto artefactos, produtos do trabalho social, comunicam igualmente com a empiria, que renegam, e da qual tiram o seu conteúdo. A arte nega as determinações catego- rialmente impressas na empiria e, no entanto, encerra na sua própria substância um ente empírico. Embora se oponha à empiria através do momento da forma - e a mediação da forma e do conteúdo não deve conceber-se sem a sua distinção - importa, porém, em certa medida e geralmente, buscar a mediação no facto de a forma estética ser conteúdo sedimentado. As formas aparentemente mais puras, as for- mas musicais segundo a tradição remontam, inclusive em todos os seus pormenores idiomáticos, a algo que diz respeito ao conteúdo, como á dança. Os ornamentos eram outrora, com freqüência, símbo- los cultuais. Deveria efectuar-se uma referência mais vincada das formas estéticas aos conteúdos, tal como a realizou a Escola de Warburg para o objecto específico da sobrevivência da Antiquidade. Contudo, a 14 15 comunicação das obras de arte com o exterior, com o mundo perante o qual elas se fecham, feliz ou infelizmente, leva-se a cabo através da não-comunicação; eis precisamente porque elas se revelam como re- fractadas. Podia facilmente pensar-se que o seu domínio autônomo só tem de comum com o mundo exterior elementos emprestados, que entram num contexto totalmente modificado. Apesar de tudo, a trivia- lidade da história das idéias é incontestável, de maneira que a evolução dos procedimentos artísticos, tais como eles são quase sempre englo- bados no conceito de estilo, corresponde à trivialidade social Mesmo a obra de arte mais sublime adopta uma posição determinada em re- lação à realidade empírica, ao mesmo tempo que se subtrai ao seu . sortilégio, não de uma vez por todas, mas sempre concretamente e de modo inconscientemente polêmico contra a sua situação a respeito do momento histórico. Que as obras de arte, como mônadas sem janelas, «representem» o que elas próprias não são, só se pode compreender pelo facto de que a sua dinâmica própria, a sua historicidade imanente enquanto dialéctica da natureza_e do domínio da natureza não é da mesma essência que a dialéctica exterior, mas se lhe assemelha em si, sem a imitar. A força produtiva estética é a mesma que a do trabalho útil e possui em si a mesma teleologia; e o que se deve chamar a relação de produção estética, tudo aquilo em que a força produtiva se encontra inserida e em que se exerce, são sedimentos ou moldagens da força social. O caracter ambíguo da arte enquanto autônoma e comofait social faz-se sentir sem cessar na esfera da sua autonomia. Nesta relação à empiria, as forças produtivas salvaguardam, neutralizado, o que outrora os homens experimentaram literal e inseparavelmente no existente e o que o espírito dele bania. Participam na Aufklãrung porque não mentem: não simulam a literalidade do que elas expri- mem. Mas são reais enquanto respostas à forma interrogativa do que lhes vem ao encontro a partir do exterior. A sua própria tensão é significativa na relação com a tensão externa. Os estratos fundamen- tais da experiência,- que motivam a arte, aparentam-se com o mundo objectivo, perante o qual retrocedem. Os antagonismos não resolvidos da realidade retornam às obras de arte como os problemas imanentes da sua forma. É isto, e não a trama dos momentos objectivos, que define a relação da arte à sociedade. As relações de tensão nas obras de arte cristalizam-se unicamente nestas e através da sua emancipa- ção a respeito da fachada fáctica do exterior atingem a essência real. A arte, %copiç do existente empírico, relaciona-se assim, segundo a posição, ao argumento hegeliano contra Kant: a partir do momento em que se estabelece uma barreira, ela é já transposta por meio desta posição, integrando-se aquilo contra que ela se erigiu. Apenas isso e não o facto de moralizar constitui a crítica do princípio de Vart pour l'art, que, numa negação abstracta, constitui o da arte com o seu Uno e Todo. A liberdade das obras de arte, cuja autoconsciência é celebrada e sem a qual elas não existiriam, é a mentira da sua própria razão. Todos os seus elementos as acorrentam ao que elas têm a dita de sobrevoar e em que ameaçam a todo o momento mergulhar de novo. Na relação com a realidade empírica, evocam o teologúmeno segundo o qual, no estado de redenção, tudo é como é e, ao mesmo tempo, inteiramente outro. É óbvia a analogia com a tendência da profanidade para secularizar o domínio sagrado, até quando este se mantém ainda mesmo secularizado; a esfera do sagrado é, por assim dizer, objectivada* murada, porque o seu momento de falsidade aguar- da tanto a secularização como dela se defende mediante o exorcismo. Assim, o puro conceito de arte não constituiria o círculo de um domí- nio garantido de uma vez por todas, mas só se produziria de cada vez, em equilíbrio momentâneo e frágil, muito comparável ao. equilíbrio psicológico do Ego e do Id. O processo de repulsa deve continuamente renovar-se. Cada obra de arte é um instante; cada obra conseguida é um equilíbrio, uma pausa momentânea do processo, tal como ele se manifesta ao olhar atento. Se as obras de arte são respostas à sua própria pergunta, com maior razão elas próprias se tornam questões. A tendência, até hoje porém ainda não afectada por uma cultura tam- bém ela abortiva, para captar a arte de modo extra ou pré-estético, não é apenas um recuo à barbárie ou à miséria da consciência dos que regridem. Algo na arte se presta a isso. Se é percebida de modo es- tritamente estético, não o é portanto de uma maneira correcta. Só quando se sente ao mesmo tempo o Outro da arte como um dos pri- meiros estratos da experiência é que esta pode sublimar-se e resolver a implicação na matéria, sem que o ser-para-si da arte se transforme em alguma coisa de indiferente. A arte é para si e não o é; subtrai-se-- Ihe a sua autonomia, mas não o que lhe é heterogêneo. As grandes epopéias, que sobrevivem ainda ao seu esquecimento, confundiam-se no seu tempo com a narrativa histórica e geográfica; o artista Valéry deplorou que muitas coisas, que nas epopéias homéricas, pagano-- germânicas e cristãs, não estavam refundidas na legalidade formal, se afirmem sem que isso diminua a sua qualidade relativamente a obras sem imperfeições. De igual modo a tragédia, da qual seria possível tirar a idéia de autonomia estética, era a cópia de práticas cultuais concebidas como possuindo efeitos reais. A história da arte enquanto história do progresso da sua autonomia não conseguiu extirpar este momento, e de nenhum modo é apenas devido aos seus entraves. No séc. xix, o romance realista no seu apogeu enquanto forma, tinha algo daquilo a que o reduziu deliberadamente a teoria do chamado realis- mo socialista; tinha reportagem, antecipação do que posteriormente deveria ser descoberto pela ciência social. O fanatismo da perfeição lingüística em Madame Bovary constitui provavelmente uma função do momento que lhe é contrário; a unidade dos dois aspectos forma a sua actualidade intacta. O critério das obras de arte é equivoco: se lhes acontece integrar na sua lei formal imanente os estratos temáti- cos e os pormenores e conservar em semelhante integração, mesmo com lacunas, o elemento que lhes é contrário. A integração enquanto tal não garante a qualidade: na história das obras de arte, os dois 16 17 momentos encontram-se com freqüência separados. De facto, nenhu- ma categoria privilegiada particular, nem sequer a categoria estética central da lei formal, define a essência da arte e é suficiente para o juízo acerca dos seus produtos. A arte possui determinações essen- ciais que contradizem o caracter definitivo do seu conceito estabelecido pela filosofia da arte. A estética do conteúdo de Hegel reconheceu o momento de alteridade imanente à arte e sobrevoou a estética formal, que opera aparentemente com um conceito de arte muito mais puro, libertando no entanto desenvolvimentos históricos bloqueados pela estética do conteúdo de Hegel e de Kierkegaard, como os da pintura não-figurativa. Contudo, a dialéctica idealista de Hegel, que concebe a forma como conteúdo, regríde até jio ponto de desembocar numa dialéctica grosseira e pré-estética. Confunde o tratamento imitativo ou discursivo dos materiais com a alteridade constitutiva da arte. Hegel viola, por assim dizer, a sua própria concepção dialéctica de estética, com conseqüências imprevisíveis para ele; favoreceu a transição tri- vial da arte para a ideologia dominante. Inversamente, o momento de irrealidade, do não-ente na arte, não se encontra liberto do ente. Não é posto arbitrariamente, não é inventado, como desejariam as con- venções, mas estrutura-se a partir de proporções entre o ente, também elas requeridas por ele, pela sua imperfeição, pela sua insuficiência, pelo seu caracter contraditório e pelas suas potencialidades, e mes- mo em tais proporções vibram relações com a realidade. A arte comporta-se em relação ao seu Outro como um íman num campo de limalha de ferro. Não apenas os seus elementos, mas também a sua constelação, o especificamente estético que se atribui comumente ao seu espírito, remete para este Outro. A identidade da obra de arte com a realidade existente é também a identidade da sua força de atracção, que reúne em torno de si os seus membra disiecta, vestí- gios do ente; a obra aparenta-se com o mundo mediante o princípio que a ele a contrapõe e pelo qual o espírito modelou o próprio mundo. A síntese operada pela obra de arte não é apenas imposta aos seus elementos, repete, por seu turno, onde os elementos comu- nicam entre si, um fragmento de alteridade. Também a síntese tem o seu fundamento no aspecto não-espiritual e material das obras, naquilo em que ele se exerce, não apenas em si. O momento estético da forma encontra-se assim ligado à ausência de violência. Na sua diferença com o ente, a obra de arte constitui-se necessariamente em relação ao que ela não é enquanto obra de arte e ao que unicamente faz dela uma obra. A insistência no caracter não-intencional da arte, que, enquanto simpatia pelas suas manifestações menores, se deve observar a partir de um momento da história — em Wedekind, que escarnecia dos «artistas de arte», em Apollinaire, e mesmo na ori- gem do cubismo -, trai uma autoconsciência inconsciente da arte da sua participação no que lhe é contrário; semelhante autoconsciência motivou a viragem crítico-cultural da arte, que se desembaraçou da ilusão do seu ser puramente espiritual. A arte é a antítese social da sociedade, e não deve imediatamente deduzir-se desta. A constituição da sua esfera corresponde à constituição de um meio interior aos homens enquanto espaço da sua representação: ela toma previamente parte na sublimação. É, portanto, plausível extrair a definição do que é a arte a partir de uma teoria do psiquismo. O cepticismo a respeito das doutrinas dos invariantes antropológicos recomenda o emprego da teoria psicanalítica. Mas ela é mais proveitosa no campo psicológico do que na estética. Considera as obras de arte essencialmente como projecções do inconsciente daqueles que as produziram, esquece as categorias formais da hermenêutica dos materiais, transpõe de algum modo o pedantismo dê médicos subtis para o objecto mais inadequado: Leonardo ou Baudelaire. Não obstante a acentuação do sexo, deve ali desmascarar-se o filistinismo pelo facto de, nas obras referentes a estas questões, de muitos modos rebentos da moda biográfica, os artistas, cuja obra objectiva sem censura a negatividade da existência, serem rebaixados à categoria de neuróticos. O livro de Laforgue resume toda a seriedade de Baudelaire ao facto de ele sofrer de um complexo maternal. Nem sequer uma vez surge no horizonte a pergunta de se ele, como psiquicamente são, poderia ter escrito Lês Fleurs du Mal e, com maior razão, se os poemas foram mais medíocres em virtude da neurose. Erige-se abusivamente em critério um psiquismo normal, mesmo quando a qualidade estética se revela ser, de modo tão pronunciado como em Baudelaire, condicionada pela ausência da mens sana. Segundo o teor das monografias psicanalíticas, a arte deveria acabar afirmativamente com a negatividade da experiência. O momento negativo já não é para elas o processo daquele recalcamento, que se inscreve na obra de arte. As obras de arte são, para a psicanálise, sonhos diurnos; ela confunde-os com documentos, transfere-os para os que sonham enquanto que, por outro lado, os reduz, em compensação da esfera extramental salvaguardada, a elementos materiais brutos, de um modo aliás curiosamente regressivo em relação à teoria freudiana do «trabalho do sonho». O momento de ficção nas obras de arte é, como em todos os positivistas, excessivamente valorizado pela sua suposta analogia com os sonhos. O elemento projectivo no processo de produção dos artistas é, na relação à obra, apenas um momento e dificilmente o decisivo; o idioma, o material e sobretudo o próprio produto têm um peso específico, que surpreende sempre os analistas. A tese psicanalítica de que, por exemplo, a música seria o meio de defesa de uma paranóia ameaçadora, é talvez muito válida no plano clínico, mas nada diz sobre a categoria e o conteúdo de uma única composição estruturada. A teoria psicanalítica da arte tem, sobre a teoria idealista, a vantagem de trazer à luz o que, no interior da arte, não é em si mesmo artístico. Permite subtrair a arte ao sortilégio do Espírito absoluto. No espírito da Aufklarung, levanta-se contra o idealismo vulgar que, por rancor contra o' conhecimento da arte, especialmente do seu entrelaçamento com o instinto, a desejaria pôr de quarentena numa pretensa esfera 18 19 acima da práxis. A força da negatividade na obra de arte mede o abismo entre a práxis e a felicidade. Sem dúvida, Kafka não desperta a faculdade de desejar. Mas, a angústia do real, que responde aos escritos em prosa como a Metamorfose ou a Colônia penal, o choque da náusea, da aversão, que, sacudindo a physis, tem mais a ver, en- quanto defesa, com o desejo do que com o antigo desinteresse que a ele e aos seus sucessores se atribuía. O desinteresse seria grosseira- mente inadequado para os seus escritos. Reduziria a arte àquilo de que Hegel escarnecia, ao carrilhão agradável ou útil da Ars poética de Horácio. Dele se libertou a estética da época idealista, ao mesmo tempo que a própria arte. A experiência artística só é autônoma quan- do se desembaraça do gosto da fruição. A via que ai conduz passa pelo desinteresse; a emancipação da arte a respeito dos produtos da cozinha ou da pornografia é irrevogável. Mas, não se fixa no desin- teresse. O desinteresse reproduz de modo imanente, modificado, o interesse. No mundo falso, toda a r|ôovr| é falsa. Por conseguinte, o desejo sobrevive na arte. Tornado irreconhecível, o deleite disfarça-se no desinteresse kantiano. O que a consciência universal e uma estética condescenden te concebem, segundo o modelo do prazer real, sob o «prazer artístico», de nenhum modo existe provavelmente. O sujeito empírico não par ticipa senão de um modo muito limitado e modificado na experiência artística telle quelle; deveria reduzir-se à medida que a obra adquire uma qualidade dada vez maior. Quem saboreia concretamente as obras de arte é um filistinó; expressões como «festim para o ouvido» bastam para o convencer. Mas, se se extirpasse todo o vestígio de prazer, levantar-se-ia então a questão embaraçosa de saber porque é que as obras de arte ali estão. Na realidade, quanto mais se compreendem as obras de arte, tanto menos se saboreiam. O comportamento tradicio nal perante a obra de arte, supondo que ela deve por si mesma ser importante, era antes o da admiração: que elas sejam em si o que são, não para quem as contempla. O que nelas emergia e o fascinava era a sua verdade, tal como ela nas obras do tipo kafkiano eclipsa todos os outros momentos. Não eram um meio de prazer de ordem superior. A relação à arte não era a de incorporação mas, pelo contrário, era o contemplador que desaparecia na coisa; é precisamente o caso nas obras modernas, que vêm na direção do espectador como, por vezes, as locomotivas no cinema. Se se perguntar a um músico se a música lhe causa alegria, ele preferirá antes responder, como na anedota americana do violoncelista fazendo caretas sob a direcção de Toscanini: «I just hate music». Quem tem perante a arte esta relação genuína, na qual ele próprio desaparece, não considera a arte como um objecto; a privação da arte ser-lhe-ia insuportável. As suas manifestações particulares não constituem para ele uma fonte de prazer. É incontestável, como afirmam os burgueses, que ninguém se votaria à arte se dela nada retirasse. No entanto, não é verdade até ao ponto de se poder fazer um balanço assim: hoje à noite, audição da Nona Sinfonia, tal e tal quantidade de prazer; semelhante estupidez erigiu-se, entretanto, em bom senso. O burguês deseja que a arte seja voluptuosa e a vida ascética; o contrário seria jnelhor. A consciência reificada pretende reconquistar como substituto do que ela recusa aos homens na imediatidade sensível, aquilo que não tem lugar na sua esfera. Enquanto que a obra de arte excita aparentemente o consumidor pelo seu caracter sensual, ela torna-se-lhe estranha, alienada: transforma-se em merca- doria, que lhe pertence e que ele receia constantemente perder. A falsa relação à arte encontra-se intimamente ligada à angústia. da posse. A representação feiticista da obra de arte como propriedade que é possível ter e que se_pode_destruir pela reflexão corresponde estrei- tamente à representação feiticista do bem utilizável na economia psicológica. Se se admite que a arte, segundo o seu próprio conceito, é um produto de devir, então não o é menos a sua classificação como meio de prazer. Sem dúvida, as formas mágicas e animistas primitivas das obras de arte foram os elementos constitutivos de uma prática ritual, aquém da sua autonomia; mas, precisamente enquanto sacrais, não se deixam saborear. A espiritualização da arte estimulou o rancor dos excluídos da cultura, iniciou o gênero de arte de consumo, enquanto, inversamente, a aversão contra a última impeliu os artistas para uma espiritualização cada vez mais radical. Nenhuma estátua grega, na sua nudez, era uma pin-up. Não se poderia explicar de outro modo a simpatia dos modernos pelo passado longínquo, e também pelo exótico: os artistas apelam para a abstracção dos objectos naturais como algo de desejável. Além disso, na construção da «arte simbólica», Hegel não ignorou o momento não-sensível do arcaísmo. O momento de prazer na arte, protesto contra o caracter universal e mediatizado de mercadoria, é à sua maneira mediatizável: quem de- saparece na obra de arte é por isso dispensado da miséria de uma vida, que é sempre demasiado escassa. Semelhante prazer pode intensificar- se até ao inebriamento; mas, mais uma vez, o conceito mesquinho de deleite não lhe basta, o qual seria antes apto para desabituar do prazer. De resto, é curioso que uma estética, que sempre insistiu na sensibilidade subjectiva como fundamento do Belo, jamais tenha ana- lisado seriamente esta sensação. As suas descrições foram quase incontestavelmente filistinas; talvez porque o postulado subjectivo é antecipadamente cego para o facto de que só na relação à coisa é que surge, a propósito da experiência artística, algo de válido, e não no gáudio do amador. O conceito de deleite artístico foi um compromisso infeliz entre a essência social da obra de arte e a sua natureza antitética a respeito da sociedade. Se a arte é já inútil para o sistema da autoconservação – o que a sociedade burguesa nunca lhe perdoou -, deve pelo menos preservar -se através de um tipo de valor de uso, decalcado sobre o prazer sensual. Falsifica-se assim também como ela um cumprimento físico, que os seus representantes estéticos não dis- pensam. Hipostasia-se o facto de que aquele que é incapaz de diferenciação sensual não consegue distinguir um belo acorde de um 24 25 acorde sem brilho, cores cintilantes de cores embaciadas, é dificil- mente apto para a experiência artística. Esta experiência recebe, no entanto, intensificada, a diferenciação sensual como meio de estrutu- ração em si, mas não difunde o prazer senão de um modo fragmentário. O seu peso na arte variou; em períodos que, como a Renascença, se seguiram a épocas ascéticas, ele foi o meio de libertação, e sensual, da mesma maneira que no impressionismo correspondeu a uma reac- ção antivitoriana; por vezes, a tristeza da criatura exprimia-se como conteúdo metafísico, ao passo que o encanto erótico penetrava as formas. No entanto, a força que impele este momento a reaparecer é tão grande que, quando aparece literalmente e intacto na arte, conser- va algo de infantil. Apenas é absorvido na lembrança e na nostalgia quando não é copiado, nem efeito imediato. A alergia perante a sen- sibilidade fruste acaba por rejeitar as épocas em que o prazer e a forma gostariam ainda de comunicar intimamente; isso deveria certa- mente suscitar o desafecto para com o impressionismo. O momento de verdade no hedonismo estético é reforçado pelo facto de que, na arte, os meios não se esgotam simplesmente no fim. Na dialéctica de ambos, os meios continuam a afirmar uma certa autonomia, sem dúvida mediatizada. Pela satisfação sensível, a apa- rição, que é essencial à arte, consolida-se a si mesma. Segundo a palavra de Alban Berg, que os pregos não sobressaiam do vigamento e que a cola não tenha odor é uma parcela de objectividade; e a delicadeza da expressão de muitas obras de Mozart evoca a doçura da voz. Nas obras significativas, o sensível, brilhando com a sua arte, espiritualiza-se a si mesmo, da mesma maneira que, inversamente, o pormenor abstracto, por mais indiferente que seja quanto à aparição, adquire esplendor sensível a partir do espírito da obra. Às vezes, e graças à sua linguagem formal estruturada, obras de arte perfeitamen- te acabadas e articuladas em si tendem já fora de tempo para a satisfação sensível. A dissonância, sinal de todo o modernismo, admite, mesmo nos seus equivalentes ópticos, a atracção do sensível, ao mesmo tem- po que o transfigura no seu contrário, a dor: fenômeno estético original da ambivalência. O alcance imprevisível de tudo o que é dissonante para a nova arte desde Baudelaire e o Tristão - na verdade, uma espécie de invariante do modernismo - provém do facto de que o jogo imanente de forças da obra de arte converge com a realidade exterior, cujo poder sobre o sujeito aumenta paralelamente à autonomia da obra. A dissonância a partir do -interior confere à obra de arte o que a sociologia vulgar chama a sua alienação social. Entretanto, as obras de arte proíbem a suavidade mediatizada pelo espírito como sendo demasiado semelhante à suavidade vulgar. A evolução devia avançar para a intensificação do tabu sensual mesmo se, por vezes, é difícil distinguir em que medida o tabu se funda na lei formal e em que medida se baseia simplesmente em insuficiências de métier. Trata-se, aliás, de uma questão semelhante às que surgem nas controvérsias estéticas, sem que proporcionem grandes frutos. O tabu sensual acaba por se aproximar do contrário da satisfação, porque é sentido na sua negação específica, ainda que de muito longe. Para esta forma de reacção, a dissonância aproxima-se muitíssimo do seu contrário: a reconciliação; torna-se inflexível contra uma aparência do humano, da ideologia de inumanidade, e inclina-se para o lado da consciência reificada. A dissonância petrifica-se em material indiferente; isto é, numa nova forma de imediatidade, sem vestígio da recordação daquilo de que proveio, ou seja, insensível e sem qualidade. Numa sociedade onde a arte já não tem nenhum lugar e que está abalada em toda a reacção contra ela, a arte cinde-se em propriedade cultural coisificada e entorpecida e em obtenção de prazer que o cliente recupera e que, na maior parte dos casos, pouco tem a ver com o objecto. O prazer subjectivo na obra de arte aproximar-se-ia do estado que se esquiva à empiria enquanto totalidade do ser-para-outro, não da empiria. Seria Schopenhauer o primeiro a notar isso. A felicidade produzida pelas obras de arte é uma fuga precipitada e não um fragmento daquilo a que a arte se subtraiu; é sempre acidental, mais inessencial para a arte do que a felicidade do seu conhecimento. O conceito dedeleite artístico enquanto constitutivo deve ser eliminado. Segundo Hegel, se a todo o sentimento do objecto estético se encontra associado um elemento contingente, quase sempre a projecção psicológica, ele exige da parte do contemplador conhecimento, e mesmo um conhecimento justo: exige que se penetre na sua verdade e na sua não-verdade. Poder-se-ia objectar ao hedonismo estético a passagem da doutrina kantiana do sublime que ele extrai penosamente da arte: a felicidade produzida pelas obras de arte seria, quando muito, o sentimento da resistência que elas mediatizam. O que precede vale tanto para o domínio estético enquanto totalidade como para a obra particular. Com as categorias, também os materiais perderam a sua evidên- cia aprióriça: assim, as palavras da poesia. A decomposição dos materiais é o triunfo do seu ser-para-outro. Como primeiro e penetrante teste- munho tornou-se célebre a Carta de Chandos de Hofmannsthal. É possível considerar a poesia neo-romântica no seu conjunto como a tentativa de resistir a tal dissolução e de restituir à linguagem, como aos outros materiais, algo da sua substancialidade. Mas, a idiossincrasia contra o Jugendstil adere ao facto de que semelhante tentativa falhou. Segundo a palavra de Kafka, ela surge retrospectivamente como uma divertida aventura gratuita. George, no poema de introdução de um ciclo tirado do Séptimo Anel, teve apenas, para evocar uma floresta, de pôr lado a lado as palavras oiro e cornalina, para esperar que, segundo o seu princípio de estilização, a escolha das palavras tivesse um brilho poético (8). Sessenta anos mais tarde, a escolha das palavras tornou-se reconhecível como arranjo decorativo, deixando de ser su- perior à acumulação temática bruta de todos os materiais nobres possíveis (8) Cf. Stefan George, Werke. Edição em dois volumes por R. Boehringer, Munique e Düsseldorf, 1958, vol. I, p. 294. 26 27 no Retrato de Dorian Gray de Wilde, que se assemelha aos interiores, de um esteticismo refinado, às lojas de antigüidades e aos leilões, e mesmo ao comércio execrado. Schõnberg observava de modo análo- go: Chopin teve muita sorte, bastou-lhe apenas utilizar a tonalidade de Fá sustenido maior, então abandonada, para fazer música bela; com, além disso, a diferença filosófico-histórica de que, no início da música romântica, materiais, como as tonalidades requintadas de Chopin, irradiavam já efectivãmente a força do inexplorado, que na linguagem de 1900 se tinham já depravado para o nível da selecçao. Mas, o que aconteceu às suas palavras, à sua justaposição ou às suas tonalidades, atacou infalivelmente o conceito tradicional do poético considerado como algo de superior e de consagrado. A poesia retirou-se para o abandono sem reservas ao processo de desilusão, que destrói o con- ceito do poético; é o que torna irresistivel a obra de Beckett. A arte não reage à perda da sua evidência apenas através de modificações concretas do seu comportamento e dos seus procedi- mentos, mas forçando a cadeia que é o seu próprio conceito: o de que ela seja arte. Na arte menor ou no divertimento de outrora, hoje ad- ministrados, integrados e qualitativamente desfigurados pela indústria cultural, pode isto constatar-se de modo muito claro. De facto, essa esfera nunca se conformou ao que só mais tarde se tornou no conceito de arte pura. Projectou-se sempre nesta como o testemunho do fracas- so da cultura, tornou-se por movimento próprio testemunha do seu fracasso, cultivando o humor de uma harmonia serena entre a sua forma tradicional e a sua forma actual. Os ingênuos da indústria cul- tural, ávidos das suas mercadorias, situam-se aquém da arte; eis porque percebem a sua inadequação ao processo da vida social actual - mas não a falsidade deste - muito mais claramente do que aqueles que ainda se recordam do que era outrora uma obra de arte. Impelem para a Entkunstung da arte (9). A paixão do palpável, de não deixar nenhuma obra ser o que é, de a acomodar, de diminuir a sua distância em relação ao espectador, é um sintoma indubitável de tal tendência. A diferença humilhante entre a arte a vida que eles vivem e na qual não querem ser perturbados, porque já não suportariam o desgosto, tem de desaparecer: tal é a base subjectiva da classificação da arte entre os bens de consumo mediante vested interests. Se, apesar de tudo, ela não for simplesmente consumível, a relação com ela pode pelo menos apoiar-se na relação com os bens de consumo propriamente ditos. O que é facilitado pelo facto de que, numa época de superprodução, o seu valor de uso se torna também problemático e se submete final- mente ao deleite secundário do prestígio, da moda e do próprio caracter de mercadoria: paródia da aparência estética. Da autonomia da arte, que suscita a cólera dos consumidores da cultura, pelo facto de con- (9) Cf. T. W. Adorno, Prismen, Kulturkritik und Gesellschaft, 3. ed., Francoforte, 1969, p. 159. siderarem as obras algo melhor do que eles crêem ser, resta apenas o caracter feiticista das mercadorias, regressão ao feiticismo arcaico na origem da arte: nesta medida o comportamento contemporâneo perante a arte é regressivo. Nas mercadorias culturais consome-se o seu ser- para-outro abstracto, sem que elas sejam verdadeiramente para os outros; na medida em que lhes estão ao serviço, enganam-nos. A antiga afinidade de contemplador-contemplado é invertida. Ao reduzir a obra de arte a simples factum, gesto típico do comportamento de hoje, vende-se também em saldo o momento mimético, incompatível com toda a essência coisal. O consumidor pode à vontade projectar as suas emoções, os seus resquícios miméticos, no que lhe é apresentado. Até à fase da administração total, o sujeito que contemplava, ouvia ou lia uma obra, devia esquecer-se de si, tornar-se indiferente, desaparecer nela. A identificação que ele realizava era, segundo o ideal, não a de tornar a obra semelhante a si mesmo, mas, antes a de se assemelhar à obra. Nisso consistia a sublimação estética; Hegel chamava geralmente a este comportamento a liberdade perante o objecto. Garantia assim a dignidade ao sujeito que, numa experiência espiri- tual, se torna sujeito através da sua alienação, ao contrário do desejo filistino que exige à arte que lhe dê alguma coisa. No entanto, como tabula rasa de projecções subjectivas, a obra de arte desqualifica-se. Os pólos da sua Entkunstung são os seguintes: por um lado, torna-se coisa entre as coisas; por outro, faz-se dela o veiculo da psicologia do espectador. O espectador substitui o que as obras de arte reifiçadas já não dizem pelo eco estandardizado de si mesmo que percebe a partir delas. A indústria cultural põe em andamento este mecanismo e ex- plora-o. Deixa mesmo aparecer como próximo dos homens, como sua pertença, o que lhes foi alienado e de que se pode dispor heteronomamente na restituição. Também a argumentação social di- rectamente dirigida contra a indústria cultural possui componentes ideológicas. A arte autônoma não esteve completamente isenta do insulto autoritário da indústria cultural. A sua autonomia é um ter-- estado-em-devir, que constitui o seu conceito, mas não a priori. Nas obras mais autênticas, a autoridade, que outrora deviam exercer sobre as gentes as obras cultuais, tornou-se uma lei formal imanente. A idéia de liberdade, intimamente ligada à autonomia estética, formou-- se na dominação que a generalizava. Também as obras de arte. Quanto mais livres se tornaram dos fins exteriores, tanto mais perfeitamente se definiram enquanto organizadas, por sua vez, na dominação. Mas, porque as obras de arte voltam sempre um dos seus lados para a sociedade, a dominação interiorizada irradiava igualmente para o exterior. É impossível, com a consciência deste contexto, exercer a crítica da indústria cultural, que emudeceu perante a arte. Quem no entanto, e com razão, suspeita em toda a arte da sua não-liberdade, sente-se tentado a capitular, a resignar-se à burocracia invasora por- que, na verdade, sempre assim foi, se bem que, sob a aparência de um Outro, despontava também a sua possibilidade. Que no seio de um 28 29 tividade da obra em si anterior ao sujeito vivo: a obra de arte absoluta confunde-se com a mercadoria absoluta. O resto de abstracção no conceito do moderno é o tributo que lhe paga. Se, no seio do capita- lismo monopolista, se continua a soborear o valor de troca, e já não o valor de uso (10), então a abstracção torna-se para a obra de arte moderna a indeterminação irritante daquilo e para aquilo que ela deve ser, a cifra do que é. Tal abstracção nada tem em comum com o caracter formal das antigas normas estéticas, por exemplo, com as normas kantianas. É antes provpcadora, desafio à ilusão segundo a qual seria ainda a vida e, ao mesmo tempo, o meio daquela distanciação estética, que já não é conseguida pela fantasia tradicional. Desde a origem, a abstracção estética, ainda rudimentar em Baudelaire e ale- górica como reacção ao mundo tornado abstracto, foi antes uma interdição de imagens. Isso vale para o que os provincianos esperam finalmente salvar sob o nome de mensagem, isto é, da aparição como algo de sensível: depois da catástrofe do sentido, a aparição torna-se abstracta. Semelhante inflexibilidade, desde Rimbaud até à actual arte vanguardista, é extremamente determinada. Modificou-se tão pouco como o estrato fundamental da sociedade. O moderno é abstracto em virtude da sua relação com o «ter-sido» e, contrariamente à magia, é incapaz de dizer o que ainda não existe e esforça-se, no entanto, por o querer contra o envilecimento do «sempre-semelhante»: eis porque os criptogramas baudelaireanos do modernismo equiparam o Novo ao desconhecido, ao telos oculto, como também o assemelham, em vir- tude da sua incomensurabilidade, ao sempre idêntico, ao horrível, ao goüt du néant. Os argumentos contra a cupiditas rerum novarum estética, que podem com assaz plausibilidade reclamar-se da ausência de con- teúdo desta categoria, são profundamente farisaicos. O Novo não constitui nenhuma categoria subjectiva, mas brota forçosamente da própria coisa, que de outro modo não pode tomar consciência de si, livrar-se da heteronomia. O Novo obedece à pressão do Antigo que precisa do Novo para se realizar. A práxis artística imediata, junta- mente com as suas manifestações, torna-se suspeita, logo que se apoia especialmente em tal facto; no Antigo, que ela também preserva, nega quase sempre a sua diferença específica. No entanto, a reflexão esté- tica não é indiferente em relação ao cruzamento do Antigo e do Novo. O Antigo tem unicamente o seu refúgio na ponta do Novo; nas rup- turas, não na continuidade. A expressão um pouco simplista de Schõnberg: «Quem não busca não encontra» é um slogan do Novo; o que ela não observa de modo imanente, no contexto da obra de arte, transforma-se em sua insuficiência; entre as capacidades estéticas, a menos irrelevante não é a de parar a criação no processo de produção em posições regressivas prejudiciais; graças ao Novo, a crítica, a (10) Cf. T. W. Adorno, Dissonanzen. Musik in der verwalteten Welt, 4. ed.. Gottinga, 1969, p. 19 ss. recusa torna-se momento objectivo da própria arte. Mesmo os segui- dores, contra quem todos são unânimes, têm mais força do que aqueles que pretendem corajosamente a estabilidade. Se o Novo se torna fei- tiço segundo o seu modelo, o caracter feiticista da mercadoria, é preciso criticá-lo na própria coisa, não a partir de fora e unicamente porque He transforma em feitiço; quase sempre se choca então com a discre- pância entre meios novos e fins antigos. Se uma possibilidade de inovações se esgotou, se continua a procurar-se mecanicamente numa linha que a repete, deve modificar-se a tendência directriz da inova- çfio e situar-se numa outra dimensão. O Novo abstracto pode estagnar, transformar-se em algo de «sempre-semelhante». A feiticização ex- prime o paradoxo de toda a arte, que já não é evidente para si mesma, o paradoxo de que um «realizado» deve ser feito por si mesmo; e precisamente este paradoxo é o nervo vital da arte moderna. O Novo é, por necessidade, alguma coisa de querido, mas, enquanto Outro, neria o «não-querido». A veleidade acorrenta-o ao sempre idêntico; üaí a comunicação do moderno e do mito. Visa a não-identidade, mas torna-se, no entanto, idêntico graças à intenção; a arte moderna exer- cita as anedotas do barão de Münchhausen: uma identificação do nfio- idêntico. Os sinais da desorganização são o selo de autenticidade do mo- dernismo; aquilo pelo qual ela nega desesperadamente o encerramento üu invariância. A explosão é um dos seus invariantes. A energia untitradicionalista transforma-se em turbilhão devorador. Nesta medi- da o Moderno é um mito voltado contra si mesmo; a sua intemporalidade torna-se catástrofe do instante que rompe a continuidade temporal. O conceito de Benjamin de «imagem dialéctica» encerra este momento. Mesmo quando o Moderno conserva, enquanto técnicas, aquisições tradicionais, estas são suprimidas pelo choque que não deixa nenhu- ma herança intacta. Assim como a categoria do Novo resultava do processo histórico, que dissolve primeiro a tradição específica e, em seguida, toda e qualquer tradição, assim o Moderno não é nenhuma aberração que se deixaria corrigir, regressando a um terreno que já não existe e não mais deve existir; isto é paradoxalmente o fundamen- to do Moderno e confere-lhe o seu caracter normativo. Também na estética não se devem negar os invariantes; enquanto extraídos, po- rém, sem conseqüências. A este respeito, a música pode tomar-se como exemplo. Seria vão contestar que ela é uma arte temporal; que o tempo musical, por pouco que coincida imediatamente com o tempo da experiência real, é como este irreversível. Se, no entanto, quisesse ir-se além do mais vago e do geral, tendo a música a tarefa de arti- cular a relação do seu «conteúdo», dos seus momentos intratemporais, ao tempo, cair-se-ia imediatamente na estreiteza ou subrepção. Gom efeito, a relação da música ao tempo musical formal determina-se simplesmente na relação do acontecimento musical concreto com o tempo. Sem dúvida, durante muito tempo prevaleceu o facto de que a música deveria organizar sugestivamente a seqüência intratemporal 34 dos seus fenômenos: dejxar que um acontecimento decorra de outro de um modo que permita tão pouca reversibilidade como o próprio tempo. Mas, a necessidade desta seqüência temporal, conformemente ao tempo, nunca foi verbal mas fictícia, participação no caracter de aparência da arte. Hoje, a música rebela-se contra a ordem convencio- nal do tempo; em todo o caso, a investigação do tempo musical deixa espaço para soluções amplamente divergentes. Por mais proble- mático que continue o facto de a música conseguir esquivar-se à invariância temporal, é igualmente certo que esta, uma vez reflectida, se torna um momento em vez de um a priori. - A violência do Novo, para o qual se adoptou o nome de processo experimental, não deve imputar-se ao pensamento subjectivo ou à natureza psicológica do artista. Onde nem as formas nem os conteúdos determinam este ím- peto, os artistas produtivos são objectivamente compelidos à experimentação. No entanto, o conceito de experimentação modifi- cou-se em si, e de maneira exemplar para as categorias do Moderno. Originalmente, ele significava apenas que a vontade consciente de si mesma experimentava processos técnicos desconhecidos ou não san- cionados. Tradicionalmente, estava subjacente a crença de que se tornaria público se os resultados se impunham ao que já estava estabelecido e se legitimavam. Esta concepção da experimentação artística tornou-- se tão evidente como problemática na sua confiança na continuidade. O gestus experimental, termo que designa os procedimentos artísticos para os quais o Novo é obrigatório, manteve-se, mas hoje designa de muitos modos, com a passagem do interesse estético da subjectivida- de comunicativa para a consonância do objecto, algo de qualitativamente outro: o facto de que o sujeito artístico pratica métodos cujos resul- tados concretos não pode prever. Também esta viragem não é absolutamente nova. O conceito de construção, que pertence ao estrato fundamental do Moderno, implica sempre o primado dos procedimentos construtivos em relação à imaginação subjectiva. A construção impõe soluções que o ouvido ou o olho que as representam não têm imediatamente presentes em toda a claridade. O imprevisto não só é efeito, mas possui igualmente um lado objectivo. Isso encon- tra-se modificado numa nova qualidade. O sujeito tomou consciência da perda de poder, que lhe adveio da tecnologia por ele libertada, erigiu-a em problema, sem dúvida, a partir do impulso inconsciente para dominar a heteronomia ameaçadora, ao integrá-la no ponto de partida subjectivo para dela fazer um momento do processo de produ- ção. Chegou-se assim ao facto de que a imaginação, o caminhar da obra através do sujeito, para o qual Stockhausen chamou a atenção, não é nenhuma grandeza fixa, mas se diferencia segundo a acuidade e a indistinção. O produto vaporoso da imaginação pode, por seu lado, enquanto meio artístico específico, ser imaginado na sua imprecisão. O comportamento experimental equilibra-se aqui sobre o fio da nava- lha. É difícil decidir se, antedatando para Mallarmé, ele obedece à intenção formulada por Valéry, segundo a qual o sujeito poderia com- provar a sua força estética permanecendo senhor de si ao mesmo tempo que se abandona à heteronomia ou se, através de semelhante ieto, ratifica a sua demissão. Em todos os casos e na medida em que Oi procedimentos experimentais, na acepção mais corrente, se encon- tram apesar de tudo organizados subjectivamente, é quimérica a crença iegundo a qual a arte se esquivaria através deles à sua subjectividade g se tornaria verdadeiramente o Em-Si, que ela não faz mais do que iimular. O rancor contra o que se denomina ismos, contra correntes artís- ticas programadas, conscientes de si, representadas se possível por grupos, responde à dor da experimentação. Estende-se de Hitler, que gostava de se enfurecer contra os «im e ex-pressionistas», até escri- tores que, por fanatismo vanguardista político, suspeitam do conceito de vanguarda estética. Picasso confirmou-o expressamente para o pe- ríodo do cubismo, antes da I Guerra mundial. No seio dos ismos, distingue-se claramente a qualidade dos artistas individuais, se bem que, no princípio, facilmente se sobrestimem aqueles que trazem na testa com maior evidência as características da escola, em compara- çfto dos que não se reduzem obrigatoriamente ao programa: assim, o Pissarro da época impressionista. Sem dúvida, o uso lingüístico do ismo contém uma ligeira contradição na medida em que, através da reflexão e da decisão, parece expulsar da arte o momento do involun- tário; naturalmente, a objecção perante as correntes menosprezadas como ismos, tais como o expressionismo e o surrealismo, que toma- ram voluntariamente como programa a produção automática, é formalista. Uiteriormente, o conceito de vanguarda, após muitos decênios, reser- vou para as tendências que de cada vez se declaravam as mais progressistas, algo do cômico da juventude senil. Entre as dificulda- des em que se enredam os chamados ismos exprimem-se também as de uma arte emancipada do seu caracter de evidência. A consciência, para cuja reflexão se remete toda a obrigação artística, desmontou simultaneamente a obrigação estética: daí a sombra de simples velei- dade que cai sobre os ismos detestados. O facto de que nenhum exercício importante jamais provavelmente existiu sem vontade consciente só chega à autoconsciência nos ismos tão combatidos. E força à organi- zação das obras de arte em si; e também à organização exterior na medida em que as obras querem afirmar-se na sociedade monopolista totalmente organizada. O que pode haver de verdade na comparação da arte com o organismo é mediatizado pelo sujeito e pela sua razão. Esta verdade entrou desde há muito ao serviço da ideologia irracional da sociedade racionalizada; eis porque são mais verdadeiros os ismos que a recusam. De nenhum modo entravaram as forças produtivas individuais, mas antes as intensificaram, e graças sobretudo a um trabalho colectivo. Um aspecto dos ismos adquire apenas hoje a sua actualidade. O conteúdo de verdade de muitos movimentos artísticos de nenhum modo culmina em grandes obras de arte; Benjamin ilustrou isto a propósito 36 37 do teatro barroco alemão (n). Presumivelmente, o mesmo vale para o expressionismo alemão e para o surrealismo francês, os quais não foi por acaso que puseram em questão o conceito de arte - um momento que, desde então, permaneceu mesclado em toda a arte nova autênti- ca. Mas, visto que ela ficou, não obstante, como arte, é enquanto cerne desta provocação que se deve procurar a preponderância da arte sobre a obra de arte. Ela personifica-se nos ismo$. O que sob o aspecto da obra se apresenta como não conseguido ou como simples exemplo atesta também impulsos que dificilmente se podem objectivar numa obra particular; assim os impulsos de uma arte que se transcende a si mesma; a sua idéia aguarda a salvação. É digno de atenção o facto de que o mal-estar perante os ismos raramente inclui o seu equivalente histórico, as escolas. Os ismos são, por assim dizer, a sua seculariza- ção, escolas numa época que destruía aquelas enquanto tradicionalistas. São ofensivas, porque não se acomodam ao esquema da individuação absoluta, entretanto ilha daquela tradição que foi abalada pelo princí- pio de individuação. O objecto deste ódio deve, pelo menos, estar completamente isolado, para segurança da sua impotência, da sua ineficácia histórica, da sua morte próxima e sem rasto. As escolas entraram com o modernismo numa contradição que se exprime de modo excêntrico nas medidas das academias contra os estudantes, suspeitos de simpatia pelas correntes modernas. Os ismos são tenden- cialmente escolas que substituem a autoridade tradicional e institucional por uma autoridade objectiva. A solidariedade com eles é melhor do que renegá-los, ainda mesmo que fosse pela antítese do Moderno e do modernismo. A crítica do up-to-date, estrutura não demonstrada, não carece de justificação: o que, por exemplo, não tem qualquer função e assume ares de função é regressivo. Mas, a remoção do modernismo - enquanto convicção dos seguidores - do autêntico Moderno é um erro, porque, sem a convicção subjectiva, que é estimulada pelo Novo, também nenhuma arte moderna objectiva se cristaliza. Na verdade, tal distinção é demagógica: quem se lamenta do modernismo, pensa de facto no Moderno, da mesma maneira que se combatem os seguidores para atingir os protagonistas, contra os quais se declaram e cuja proe- minência se impõe aos conformistas. O critério da sinceridade, pelo qual se avaliam farisaicamente os modernistas, supõe o contentar-se com ser agora assim e não de outro modo, supõe um hábito funda- mental do indivíduo esteticamente reaccionário. A sua falsa natureza é eliminada pela reflexão, que hoje se transformou em cultura artís- tica. A crítica do modernismo em favor do verdadeiro Moderno serve de pretexto para pretender que a arte moderada, por detrás da qual a razão espreita resquícios de racionalidade trivial, é melhor que o modernismo radical; na verdade, é o inverso que se produz. O que ficou para trás não dispõe já dos meios mais antigos de que se serve. A história também domina totalmente as obras que a negam. Em viva oposição à arte tradicional, a arte nova salienta o momento outrora oculto do fabricado, do produzido. A parte do que nele é 0eaei cresceu tanto que as tentativas para levar o processo de produção a perder-se na coisa estariam de antemão necessariamente votadas ao fracasso. Já a geração precedente tinha limitado a pura imanência das obras de arte, ao mesmo tempo que a impelia até ao extremo: através do autor enquanto comentador, mediante a ironia e quantidades de materiais que foram habilidosamente protegidos da intervenção da arte. Daí resultou o prazer de substituir as obras de arte pelo processo da sua própria produção. Hoje, cada obra é virtualmente, como afirmava Joyce a propósito de Finnegans Wake antes de ele o ter l publicado na íntegra, work in progress. Mas o que, segundo a própria V complexão, só é possível como emergência e devir, não pode sem mentira pôr-se ao mesmo tempo como algo de fechado, de «acabado». A arte é incapaz voluntariamente de se libertar desta aporia. Adolf Loos escrevia, há decênios, que os ornamentos não se deixavam inventar (12); mas, o que ele anunciava tende a expandir-se. Quanto mais na arte se deve fabricar, buscar e inventar, menos certo é que se consiga fabricar e inventar. A arte radicalmente fabricada reduz-se ao problema da sua elaboração. O que provoca o protesto quanto ao passado é precisamente o que é arranjado, calculado e não, como se teria dito cerca de 1800, o que de novo se tornara natureza. O progresso da arte enquanto «fazer» e o cepticismo a ela adscrito formam entre si contraponto. Na realidade, este progresso é acompanhado pela tendência para o involuntário absoluto desde a escrita automática, de há perto de cinqüenta anos, até ao tachismo e à música aleatória de hoje. É com razão que se constatou a convergência da obra de arte tecnicamente integral e totalmente fabricada com a obra absolutamente fortuita; sem dúvida, o que aparentemente não parece fabricado é-o com maior razão. A verdade do Novo, enquanto verdade do já não ocupado, reside na ausência de intenção. Entra assim em contradição com a reflexão, o motor do Novo, e eleva-a à segunda potência. Ele é o contrário do seu conceito filosófico usual, por exemplo, da doutrina schilleriana do sentimental, que tende a carregar as obras de arte com intenções. A reflexão segunda capta o procedimento, a linguagem da obra de arte na acepção mais lata, mas visa a cegueira. O .slogan do absurdo, por insuficiente que seja, exprime isso. A recusa de Beckett em interpre- tar as suas obras, associada à consciência extrema das técnicas, das implicações dos temas, do material lingüístico, não é uma aversão simplesmente subjectiva: com a intensificação da reflexão e da sua (n) Cf. Walter Benjamin, Ursprung dês deutschen Trauerspiels, ed. de R. Tiedemann, 2.a ed., Francoforte, 1969, p. 33 e ss., e passim. (l2) Cf. Adolf Loos, Sãmtliche Schriften, ed. de F. Glück, Vol. I, Viena e Munique 1962, p. 278, 393 e passim. 38 39 objecto motivada objectivãmente como pelo seu correlato, o empobre- pimento do sujeito. A linha de conclusão é tirada sob todas as montagens e documentação, sob todas as tentativas de se desembaraçar da ilusão de uma subjectividade significante. Mesmo quando a realidade encon- tra admissão precisamente onde ela parece recalcar o que outrora o sujeito poético realizava, isso não se coaduna com aquela realidade. A sua desproporção em relação ao sujeito enfraquecido, que a torna absolutamente incomensurável à experiência, desrealiza-a com razão. O excesso de realidade é a sua decadência; ao destruir o sujeito, mata-- se a si mesma. Esta transição constitui o elemento artístico em toda a anti-arte. É levada por Beckett até'à aniquilação evidente da reali- dade. Quanto mais total é a sociedade, tanto mais ela se reduz a um sistema unívoco, tanto mais as obras, que armazenam a experiência deste processo, se transformam no seu Outro. Se um dia se precisar de um conceito de abstracção tão vago como for possível, ele assina- lará então a regressão do mundo objectivo justamente onde nada restará a não ser o seu caput mortuum. A arte nova é tão abstracta como as relações dos homens se tornaram em verdade. As categorias do rea- lismo e do simbolismo encontram-se igualmente fora de curso. Porque a proscrição da realidade exterior quanto aos sujeitos e às suas formas de reacção se tornou absoluta é que a arte pode opor-se-lhe unicamente tornando-se semelhante a ela. Mas, no ponto zero em que a prosa de Beckett põe em acção a sua natureza, com as forças no infinitamente pequeno da física, brota um segundo mundo de imagens, tão sinistro como rico, concentrado de experiências históricas que, na sua imediatidade, não atingem o decisivo, isto é, o esvaziamento do su- jeito e da realidade. O caracter mesquinho e inútil deste universo simbólico é a cópia, o negativo do mundo administrado. Nesta medi- da, Beckett é realista. Mesmo naquilo que figura vaguement sob o nome de pintura abstracta, sobrevive algo da tradição, que por ela foi eliminada; ela aplica-se provavelmente ao que se percebe já na pin- tura tradicional, na medida em que os seus produtos se concebem como quadros e não como cópias de alguma coisa. A arte leva a cabo a decadência da concreção, em que a realidade não quer consentir e na qual o concreto constitui apenas a máscara do abstracto, o particu- lar determinado, simplesmente o exemplar representativo e enganador da universalidade, idêntico com a ubiqüidade do monopólio. A sua ponta volta-se assim contra toda a arte tradicional. Basta apenas pro- longar um pouco as linhas da empiria para tomar consciência de que o concreto, quando muito, está lá para permitir identificar, reter e comprar seja o que for na medida em que se diferencia. O cerne da experiência encontra-se esgotado; nenhuma experiência, nem sequer a que se subtrai imediatamente ao comércio, deixou de ser minada. O que ocorre no cerne da economia, a concentração e a centralização, que usurpa para si o disperso e reserva as existências autônomas apenas para a estatística profissional, age até às mais íntimas rami- ficações do espírito, sem que muitas vezes seja possível tomar consciência de tais mediações. A personalização mentirosa na política, na tagarelice sobre o homem na desumanidade são adequadas à pseudo-individuali- zação objectiva; mas, porque não existe nenhuma arte sem individualização, 'isto torna-se para ela um fardo insuportável. Atribui-se simplesmente ao mesmo setado de coisas um outro giro através da indicação de que a presente situação da arte é inimiga do que a gíria da autenticidade (*) chama testemunho. A questão importante da dramaturgia da RDA - «Que quer ele dizer?» - chega precisamente para meter medo aos autores assim apostrofados, mas levaria a protestar perante toda a peça de Brecht, cujo programa consistia finalmente em pôr em movi- mento processos de pensamento e não em comunicar dizeres cheios de significado; de outro modo, o falar de teatro dialéctico seria de antemão inútil. As tentativas de Brecht para destruir os matizes sub- jectivos e os tons intermédios com uma objectividade conceptual rigorosa são artifícios e, nas suas melhores obras, um princípio de estilização, e não uma fábula docet; é difícil investigar o que pensa apenas o autor no Galilei ou no Bom Homem de Se-Tchuan, guardar silêncio sobre a objectividade das obras que não coincidem com a intenção subjectiva. A alergia aos valores expressivos, a predilecção de Brecht por uma qualidade que gostaria de impor à sua incompreensão dos protocolos positivistas, é também uma forma de expressão, eloqüente apenas enquanto sua negação determinada. Por pouco que a arte consiga ser a linguagem do puro sentimento, que ela nunca foi, ou ainda a da alma que se afirma, também pouco há nela para correr atrás do que o co- nhecimento dos estilos usuais procura atingir, por exemplo, a reportagem social, prestação para a investigação empírica a levar a cabo. O espa- ço que resta para as obras de arte entre a barbárie discursiva e o embelezamento poético só com dificuldade é maior do que o ponto de indiferença em que Beckett se instalou. A relação ao Novo tem o seu modelo na criança que busca no piano um acorde jamais ouvido, ainda virgem. Mas, o acorde existia já desde sempre, as possibilidades de combinação são limitadas; na verdade, já tudo se encontra no teclado. O Novo é a nostalgia do Novo, a custo ele próprio; disso enferma tudo o que é novo. O que se experimenta como utopia permanece algo de negativo contra o que existe, embora lhe continue, a pertencer. Central nas antinomias actu- ais é o facto de que a arte deve e pretende ser utopia, e tanto mais decididamente quanto a relação real das funções impede a utopia; e que ela, porém, para não trair a utopia pela aparência e pela consola- ção, não tem o direito de ser utopia. Se a utopia da arte se realizasse, seria o seu fim temporal. Hegel foi o primeiro a reconhecer que isto se encontrava implicado no seu conceito. Que a sua profecia não se (*) Jargon der Eigentlichkeit, na terminologia de Adorno (N. do T.). 44 45 tenha realizado tem a sua razão paradoxal no seu optimismo histórico. Ele traiu a utopia ao construir o existente como se fosse a utopia, a Idéia absoluta. Em oposição à doutrina de Hegel, segundo a qual o espírito universal ultrapassaria a forma da arte, afirma-se a sua outra tese que ordena a arte na existência contraditória, a qual persiste contra toda a filosofia afirmativa. Isto é conclusivo na arquitectura: se ela quisesse, por desgosto nas formas funcionais e na sua total adaptabi- lidade, entregar-se à fantasia desenfreada, cairia imediatamente no kitsch. A arte, tal como a teoria, não está em condições de realizar a utopia; nem sequer negativamente. O Novo enquanto criptograma é a imagem da decadência; só através da sua negatividade absoluta é que a arte exprime o inexprimível, a utopia. Nessa imagem reúnem-se todos os estigmas do repelente e do repugnante na arte moderna. Pela recusa intransigente da aparência de reconciliação, a arte mantém a utopia no seio do irreconciliado, consciência autêntica de uma época, em que a possibilidade real da utopia - o facto de a terra, segundo o estado das forças produtivas, poder ser aqui e agora o paraíso - se conjuga num ponto extremo com a possibilidade da catástrofe total. Na imagem da utopia - não cópia, mas cifra do seu potencial - rea- parece o traço mágico da mais remota pré-história da arte sob o sortilégio integral; como se ela, através da sua imagem, quisesse conjurar a catástrofe. O tabu acerca do telos histórico é a única legitimação daquilo por que o Novo se compromete no plano político e prático, do seu aparecimento como fim em si. A ponta que a arte volta para a sociedade é, por seu turno, algo de social, reacção contra a pressão opaca do «corpo social»; tal como o progresso intra-estético, progresso das forças produtivas, especial- mente da técnica, está ligado ao progresso das forças produtivas extra-estéticas. Por vezes, forças produtivas esteticamente libertadas representam a libertação real, que é impedida pelas relações de pro- dução. Obras de arte organizadas pelo sujeito podem realizar tant bien que mal o que a sociedade organizada sem sujeito não permite; o urbanismo coxeia já necessariamente no seguimento do projecto de uma grande obra desinteressada. O antagonismo no conceito de téc- nica como de algo de intra-esteticamente determinado e de um desenvolvimento exterior às obras de arte não pode conceber-se de, modo absoluto. Surgiu historicamente e pode desaparecer. Hoje em dia, é já possível, na electrónica, produzir artisticamente a partir da natureza específica de meios de origem extra-artística. O salto quali- tativo é evidente entre a mão que desenha um animal na parede da caverna e a câmara, que permite o aparecimento simultâneo das ima- gens em inúmeros lugares. Mas, a objectivação do desenho da caverna perante o imediatamente visto contém já o potencial do procedimento técnico, que opera a separação do acto subjectivo da visão. Toda a obra, enquanto destinada a uma pluralidade, é já, segundo a idéia, a sua reprodução. Que Benjamin, na dicotomia da obra de arte aurática e da obra de arte tecnológica, reprimisse este momento de unidade em favor da diferença, seria de facto a crítica dialéctica à sua teoria. Sem dúvida, a noção de Moderno remonta cronologicamente muito atrás do Moderno enquanto categoria filosófico-histórica; mas esta não é cronológica. É antes o postulado rimbaudiano da consciência mais progressista, na qual os procedimentos técnicos mais avançados e mais diferenciados se interpenetram com as experiências mais avan- çadas e mais diferenciadas. Mas estas, enquanto sociais, são críticas. Esta arte moderna deve mostrar-se adulta à grande indústria, não a manipulando apenas. O seu próprio comportamento e a sua linguagem formal devem reagir espontaneamente à situação objectiva; a reacção espontânea, enquanto norma, circunscreve um paradoxo eterno da arte. Porque nada pode esquivar-se à experiência da situação, também nada conta que actue como se a ela se subtraísse. Em numerosas obras autênticas da arte moderna, o estrato material industrial é rigorosa- mente evitado como tema, por desconfiança perante a arte mecânica como pseudomorfose; mas, negada pela redução do tolerado e por uma construção reforçada, afirma-se com maior força: assim em Klee. Neste aspecto da arte moderna houve tão pouca mudança como no facto da industrialização enquanto critério para o processo vital dos homens. Eis o que confere provisoriamente à noção estética do mo- derno a sua peculiar invariância. Sem dúvida, não proporciona à dinâmica histórica menor lugar do que o próprio modo de produção industrial, que, durante os últimos cem anos, evoluiu do tipo da fábrica do séc. xix para a automação, passando pela produção de massa. O momento conteudal da arte moderna tira a sua força do facto de que os proce- dimentos mais progressistas da produção material e da sua organização não se limitam ao domínio em que apareceram imediatamente. De um modo que a sociologia ainda não analisou muito bem, eles irradiam a partir daí para as mais afastadas esferas vitais, penetram profunda- mente na zona da experiência subjectiva que não dá por eles e protege as suas reservas. É moderna a arte que, segundo o seu modo de ex- periência e enquanto expressão da crise da experiência, absorve o que a industrialização produziu sob as relações de produção dominantes. Isto implica um cânon negativo, proibição do que tal arte moderna nega na experiência e na técnica; e semelhante negação determinada é já quase, por seu turno, o cânon do que é necessário fazer. Que uma tal arte moderna seja mais do que um vago «espírito do tempo» ou um versado up-to-date deve-se ao desencadeamento das forças produti- vas. Ela é tão determinada socialmente pelo conflito com as relações de produção como intra-esteticamente enquanto exclusão de elemen- tos gastos e de procedimentos técnicos ultrapassados. A modernidade opor-se-á antes a todo o espírito do tempo~que domina em cada época e hoje mesmo o deve fazer; a arte moderna radical surge perante os consumidores de cultura convencidos com uma seriedade fora de moda e, também por causa disso, extravagante. Em nenhum lado se exprime de maneira tão enfática a natureza histórica de toda a arte como na irresistibilidade qualitativa da arte moderna; o pensar nas invenções 46 47 da produção material não constitui uma simples associação. Obras de arte significativas tendem a aniquilar tudo o que, na sua época, não^ atinge o seu padrão. Por conseguinte, o rancor é uma das razões por que tantas pessoas cultas se fecham à arte moderna radical e por que a força histórica assassina da arte moderna se equipara à decomposi- ção a que se apegam no desespero os detentores da cultura. Contrariamente ao que pretende o clichê, a arte moderna não é débil quando vai demasiado longe segundo esta mesma fraseologia, mas quando não foi demasiado longe, quando as obras vacilam por falta de conseqüência. Apenas as obras que alguma vez se expuseram têm a oportunidade da sobrevivência, contanto que ela ainda não exista; não aquelas que, por medo do efêmero, se perdem no passado. Renascenças de arte moderna moderada, exploradas pela consciência restauradora e seus interessados, fracassam mesmo diante dos olhos e dos ouvidos de um público de nenhum modo na vanguarda. Do conceito material do Moderno, bem dirigido contra a ilusão de uma essência orgânica da arte, deriva a utilização consciente dos seus. meios. Mesmo aqui convergem a produção material e a produção estética. A necessidade de ir ao mais extremo é a de uma tal raciona- lidade em relação com o material, e não a de uma competição pseudocientífica com a racionalização do mundo desencantado. Ela separa categoricamente o modernismo material do tradicionalismo. A racionalidade estética exige que todo o meio artístico, tanto em si como segundo a sua função, seja tão determinado quanto possível de maneira a cumprir por si aquilo de que nenhum meio tradicional o alivia. O extremo é proposto pela tecnologia artística, não apenas desejado por uma disposição anímica rebelde. O modernismo mode- rado é em si contraditório, porque refreia a racionalidade estética. Que cada momento realize numa obra tudo o que ele deve levar a cabo coincide imediatamente com o Moderno enquanto desiderato: a arte moderada subtrai-se-lhe, porque recebe os meios de uma tradição existente ou fictícia e lhe atribui um poder que já não possui. Defen- der o modernismo moderado pela sua honestidade, que o preservaria de seguir a moda, é desonesto relativamente ao conforto com que se regozijam os defensores. A pretensa imediatidade do seu comporta- mento artístico é completamente mediatizada. O estado socialmente mais progressista das forças produtivas, das quais uma é a consciên- cia, é, no interior das mónadas estéticas, o estado do problema. As obras de arte indicam na sua própria figura o lugar onde se deve buscar a resposta que elas no entanto, só por si mesmas, não conse- guem fornecer sem intervenção; só isto constitui uma tradição legítima na arte. Toda a obra significativa deixa vestígios no seu material e na sua técnica; segui-los é a definição do Moderno como do que se vence a prazo, e não cheirar o que anda no ar. Ela concretiza-se pelo mo- mento crítico. Os vestígios deixados no material e nos procedimentos técnicos, a que adere toda a obra qualitativamente nova, são cicatri- zes, os pontos onde as obras precedentes fracassaram. Embora a nova obra sofra dessas cicatrizes, volta-se contra aquelas que deixaram vestígios; o que o historismo aborda enquanto problema de geração na arte remete para o fenômeno em causa e não para a mudança de um sentimento vital puramente subjectivo ou para as modificações dos estilos estabelecidos. O declínio da tragédia grega dá testemunho de tal facto, só o panteão da cultura neutralizada engana a seu respeito. O conteúdo de verdade das obras de arte funde-se com o seu conteúdo crítico. Eis porque exercem a crítica entre si. É isso, e não a continui- dade histórica das suas dependências, que liga as obras de arte umas às outras; «uma obra de arte é a inimiga mortal da outra». A unidade da história da arte é a figura dialéctica de uma negação determinada. E não é de outra maneira que ela serve a idéia de reconciliação. Uma idéia, por muito fraca e inexacta que seja, de tal unidade dialéctica brota do modo como os artistas de um gênero se experimentam como uma comunidade de trabalhadores clandestinos, quase independente- mente dos seus produtos particulares. Por pouco que, na realidade, a negação do negativo constitua uma posição, na esfera estética, ela não se dá sem verdade: no pro- cesso de produção artístico subjectivo, a força da negação imanente não se encontra tão acorrentada como no exterior. Artistas de sensi- bilidade muitíssimo apurada de gosto como Stravinsky e Brecht abordaram, por gosto, o gosto ao contrário; a dialéctica lançou-lhe a mão, ele vai além de si mesmo e eis o que constitui também a sua verdade. Por momentos estéticos subjacentes à fachada obras de arte realistas revelaram-se, no séc. xix, por vezes, mais substanciais do que outras que, por si próprias, honravam o ideal de pureza da arte; Baudelaire prestou homenagem a Manet e tomou partido por Flaubert. Segundo a peinture purê, Manet excede incomparavelmente Puvis de Chavannes; compará-los um ao outro toca as raias do cômico. O erro do esteticismo foi estético: confundiu o seu próprio conceito de arte com as suas realizações. No cânon dos interditos depositaram-se idiossincrasias dos artistas, mas, por seu turno, elas adquiriram uma obrigação objectiva; do ponto de vista estético, aqui, o particular é literalmente o universal. Com efeito, o comportamento idiossincrático, primeiramente inconsciente e a custo teoricamente transparente a si mesmo, é um sedimento de modos colectivos de reacção. O kitsch é um conceito idiossincrático, tão obrigatório como indefinível. Que a arte deve hoje reflectir sobre si própria indica que ela se torna cons- ciente das suas idiossincrasias e as articula. Em conseqüência disso, a arte aproxima-se da alergia a si mesma; encarnação da negação que exerce, ela é a sua própria. Em correspondência com o passado, o que reaparece torna-se um Outro no aspecto qualitativo. As deformações de figuras e rostos humanos na escultura e na pintura modernas evo- cam, à primeira vista, obras antigas em que a reprodução dos homens nas formas culturais ou não era desejada ou não era realizável com os meios técnicos disponíveis. Mas, existe uma diferença total, a saber, se a arte, na posse do grau de experiência da imitação, nega esta, tal 48 49 posto; as artes mais progressistas impelem este empobrecimento até à beira do mutismo. Que o mundo, perdido que foi, segundo o verso de Baudelaire (16), o seu perfume e, em seguida, a sua cor, de novo o receba da arte, só parece possível à ingenuidade. Isso continua a abalar a possibilidade da arte sem no entanto a deixar destruir. De resto, durante o primeiro período do Romantismo, um artista como Schubert, tão explorado mais tarde pela afirmação, perguntava já se havia música alegre e jovial. A injustiça, que toda a arte engraçada, sobretudo a de divertimento, gera é uma injustiça para com os mortos, para com a dor acumulada e muda. Apesar de tudo, a arte negra possui traços que, mesmo se fossem definitivos, selam o desespero histórico; na medida em que tudo se pode ainda modificar, tais traços não pas- sariam de efêmeros. O que o hedonismo estético, o qual sobreviveu às catástrofes, censura como perversão ao postulado do sombrio, erigido pelos surrealistas em programa como humor negro, a saber, que os momentos mais tenebrosos da arte devem preparar algo como o pra- zer, reduz-se a que a arte e uma consciência recta dela só podem encontrar a sua felicidade na capacidade de resistência. Esta felicidade irradia na aparição sensível. Tal como nas obras de arte correctas o seu espírito se comunica ainda ao fenômeno mais inflexível, o salva por assim dizer de modo sensível, assim, desde Baudelaire, também o tenebroso seduz sensivelmente como antítese ao engano da fachada sensível da cultura. Há mais prazer na dissonância do que na conso- nância: isto acontece ao hedonismo medida por medida. O elemento cortante, reforçado dinamicamente, diferenciado em si e da uniformi- dade do afirmativo, torna-se fascínio; e este fascínio, dificilmente menos do que o desgosto perante a debilidade mental positiva, conduz a arte nova para uma terra-de-ninguém, substituto da terra habitáveL No Pierrot lunaire de Schõnberg, onde a essência imaginária e a totalidade da dissonância se unem de modo cristalino, realizou-se pela primeira vez este aspecto da arte moderna. A negação pode trans- formar-se em prazer, mas não em positivo. A arte autêntica do passado, que hoje tem de se ocultar, não é assim determinada. As grandes obras esperam. Algo do seu conteúdo de verdade não se esvanece com o sentido metafísico, por pouco que ele se possa fixar; é por seu intermédio que elas permanecem elo- qüentes. A uma humanidade libertada deveria caber a herança da sua pré-história, uma vez expiada. O que outrora foi verdadeiro numa obra de arte e foi desmentido pelo curso da história, só pode de novo vir à luz quando se modificarem as condições em virtude das quais aquela verdade foi liquidada: tão profunda é, no plano estético, a (16) Cf. Charles Baudelaire, Oeuvres completes, éd. Y.-G. Lê Dantec et C. Pichois, Paris, 1961, p. 72: «Lê Printemps adorable a perdu son odeur!» penetração recíproca do conteúdo de verdade e da história. A realida- de reconciliada e a verdade restituída do passado deveriam convergir. O que, na arte do passado é, ainda experienciável e se pode atingir pela interpretação é como que uma directriz para um tal estado. Nada garante que ela seja realmente recompensada. A tradição não deve negar-se abstractamente, mas criticar-se de modo não ingênuo, segun- do a situação presente: o presente constitui assim o passado. Nada deve aceitar-se sem exame, só porque existe e outrora valeu alguma coisa, mas também nada deve ser eliminado, porque passou: o tempo, só por si, não é nenhum critério. Uma reserva incalculável de coisas do passado revela-se imanentemente como insuficiente, sem que as obras em questão o tenham sido na sua situação original e para a consciência da sua própria época. As deficiências são desmascaradas no decurso do tempo, deficiências, porém, de qualidade objectiva, não do gosto que se modifica. - Só o elemento mais progressista tem a possibilidade de resistir à desintegração no tempo. Na sobrevivência das obras, porém, manifestam-se diferenças qualitativas que de ne- nhum modo coincidem com o grau de modernidade da sua época. No comum bellum omnium contra omnes, que enche a história da arte, é possível que, como passada, a arte moderna mais antiga predomine sobre a arte mais nova. Mas não que algum dia o que se tornou antiquado par ordre du jour consiga revelar-se duradoiramente mais genuíno do que a arte avançada. A esperança de renascenças dos Pfitzner e Sibelius, dos Carossa e Hans Thoma, diz mais sobre os que acalentam semelhante esperança do que acerca da persistência do valor de tais espíritos. Mas, em virtude da evolução histórica, é possível que obras se actualizem mediante a correspondance com obras ulte- riores: nomes como Gesualdo da Venosa, Greco, Turner, Büchner são exemplos conhecidos de todos, não redescobertos por acaso após a ruptura com a continuidade da tradição. Mesmo obras, que tecnica- mente ainda não tinham atingido o padrão da sua época, como as primeiras sinfonias de Mahler, comunicam com as ulteriores e, sem dúvida, por força daquilo que as separava do seu tempo. A sua música tem o elemento mais progressista na recusa simultaneamente desajei- tada e objectiva da embriagues sonora neo-romântica, mas a recusa era, por seu lado, escandalosa, talvez igualmente tão moderna como as simplificações de Van Gogh e dos Fauvistas perante o impressio- nismo. Tão pouco é a arte imagem do sujeito, tão justa é a crítica de Hegel frente à expressão de que o artista deveria ser mais do que a sua obra - não é raro que seja menos, de certa maneira o envólucro vazio do que ele objectiva na coisa -, tão verdade continua a ser que nenhu- ma obra de arte pode ter êxito a não^ser que o sujeito a encha de si mesmo. Não reside no sujeito, enquanto «órganon» da arte, o ultra- passar a separação a ele augurada, que não é a separação do estado de espírito e da consciência ocasional. Através, porém, desta situação, a arte enquanto elemento espiritual é compelida à mediação subjecti- 54 55 vá na sua constituição objectiva. A parte subjectiva na obra de arte é em si mesma um fragmento de objectividade. Sem dúvida, o momento mimético inalienável na arte é, segundo a sua substância, um univer- sal, que, no entanto, só é possível atingir através da idiossincrasia indissolúvel do sujeito individual. Se a arte é em si e no mais íntimo de si mesma um comportamento, então não deve isolar-se da expres- são e esta não existe sem sujeito. A passagem para o universal discursivamente discernível, mediante o qual os sujeitos individuais, que reflectem sobretudo politicamente, esperam subtrair-se à sua atomização e impotência, é esteticamente uma recaída na heteronomia. Se a causa do artista deve ir além da sua contingência,"devê então pagar por, diferentemente daquele que pensa discursivamente, não poder elevar-se acima de si mesmo e dos limites objectivamente fixa- dos. Ainda que um dia se modificasse a estrutura atomista da sociedade, a arte não teria de sacrificar a sua idéia social, como é em geral possível sacrificar um particular ao universal social: enquanto o par- ticular e o universal divergirem, não há liberdade. Antes, esta proporcionaria ao particular aquele direito que, esteticamente, hoje em dia já não é reivindicado em nenhum lugar a não ser nos constran- gimentos idiossincráticos, a que os artistas têm de obedecer. Quem, perante a impderada pressão colectiva, insista na penetração da arte através do sujeito, não deve de nenhum modo pensar sob o véu sub- jectivista. No ser para-si estético reside o que pelo elemento colectivamente mais progressista escapou ao sortilégio. Toda a idiossincrasia, em virtude do seu momento mimético pré-individual, vive das forças colectivas, de que ela própria é inconsciente. A refle- xão crítica do sujeito, por isolado que esteja, vela por que estas não arrastem para a regressão. O pensamento social sobre a estética está habituado a descurar o conceito de força produtiva. No mais profun- do, porém, dos processos tecnológicos, ela é o sujeito; solidificou-se em tecnologia. As produções, que o evitam, e pretendem por assim dizer tornar-se esteticamente independentes, devem corrigir-se na adesão ao sujeito. A rebelião da arte contra a sua falsa espiritualização - intencional - por exemplo, a de Wedekind no programa de uma arte corporal, é por sua vez uma rebelião do espírito que, embora nem sempre, no entanto se nega a si mesmo. Ele está, porém, presente na situação actual da sociedade em virtude apenas do principium individuationis. Em arte, é possível um trabalho colectivo; é difícil imaginar a extin- ção da subjectividade que lhe é imanente. Se houvesse de ser de outro modo, existiriam as condições para a consciência social total ter atin- gido o estado que não mais a ponha em conflito com a consciência mais progressista e esta é, hoje, unicamente a dos indivíduos. A filo- sofia burguesa idealista, mesmo nas suas modificações mais subtis, não conseguiu, na teoria do conhecimento, derrubar o solipsismo. Para a consciência normal burguesa, a teoria do conhecimento não teve qualquer conseqüência. A arte surge-lhe como necessária e ime diatamente «intersubjectiva». Deve inverter-se esta relação da teoria do conhecimento e da arte. Aquela, através da auto-reflexão crítica, pode eliminar o fascínio solipsista, enquanto que o ponto de referên cia subjectivo da arte permanece realmente o que o solipsismo fingia simplesmente na realidade. A arte é a verdade filosófico-histórica do solipsismo falso em si. Nele não pode ser voluntariamente ultrapassa do o estado que a filosofia erradamente hipostasiou. A aparência estética é o que o solipsismo extra-esteticamente confunde com a verdade. Porque não atende à diferença central, o ataque de Lukács à arte moderna radical passa totalmente a seu lado. Contamina-a com cor rentes real ou supostamente solipsistas da filosofia. No entanto, o semelhante é aqui e além simplesmente o contrário. - Um momento crítico do tabu mimético levanta-se contra essa quentura morna, que hoje começa a expandir-se como expressividade. As emoções expres sivas geram uma espécie de contacto, com que o conformismo se alegra vivamente. Foi em tal estado de espírito que se absorveu o Wozzeck de Berg e se jogou reaccionariamente contra a escola de Schõnberg, que não nega a sua música em nenhum compasso. O paradoxo deste estado de coisas concentra-se no prefácio de Schõnberg às Bagatelas para quarteto de cordas de Webern, uma obra extrema mente expressiva: elogia-a porque desdenha um calor animal. Contudo, semelhante calor encontra-se, entretanto, também atestado nas obras cuja linguagem outrora o recusava, justamente em nome da autentici dade da expressão. A arte sólida polariza-se, por um lado, para uma expressividade que recusa mesmo a última reconciliação, não edulcorada e inconsolada, que se torna construção autônoma; por outro, para a inexpressividade da construção, que exprime a impotência crescente da expressão. - A discussão sobre o tabu, que pesa sobre o sujeito e a expressão, diz respeito a uma dialéctica da maioridade. O seu pos tulado em Kant, enquanto postulado da emancipação do fascínio infantil, vale tanto para a razão como para a arte. A história da arte moderna é a história do esforço pela maioridade, enquanto antipatia organizada e crescente pelo infantilismo da arte, a qual certamente se torna pueril apenas segundo o critério da estreita racionalidade pragmática. Con tudo, a arte não se rebela menos contra o próprio tipo de racionalidade que, passando por cima da relação fim-meios, esquece os fins e feiticiza os meios em fins. Semelhante irracionalidade no princípio da razão é desmascarada pela irracionalidade independente e ao mesmo tempo racional da arte nos seus procedimentos técnicos. Ela põe em evidên cia o infantil no ideal do adulto. A imaturidade a partir da maturidade é o protótipo do jogo. , Na arte moderna, o métier é fundamentalmente diverso das instru- ções artesanais tradicionais. A sua noção designa o conjunto das faculdades pelas quais o artista faz justiça à concepção e rompe assim com o cordão umbilical da tradição. No entanto, o métier não brota apenas da obra particular. Nenhum artista aborda alguma vez a sua 56 57 obra unicamente com os seus olhos, os seus ouvidos, o sentido verbal dela. A realização do específico pressupõe sempre qualidades que são adquiridas para lá dos limites da especificação; apenas os diletantes confundem a tabula rasa com a originalidade. O totum das forças investidas na obra de arte, aparentemente algo de subjectivo apenas, é a presença potencial do colectivo na obra, em proporção com as forças produtivas disponíveis: contém a mónada sem janelas. É o que se manifesta da maneira mais drástica nas correcções críticas do ar- tista. Em cada melhoramento, a que se vê obrigado, freqüentemente em conflito com o que ele considera o primeiro impulsp, trabalha ele como agente da sociedade, indiferente quanto à consciência desta. Encarna as forças produtivas sociais sem, ao mesmo tempo, estar necessariamente ligado às censuras ditadas pelas relações de produ- ção, que ele também critica sempre mediante o rigor do métier. Para muitas das situações individuais, com que a obra confronta o seu autor, deve talvez haver permanentemente à disposição uma plurali- dade de soluções, mas a diversidade de tais soluções é finita e perceptível em toda a sua extensão. O métier põe os limites contra a infinidade nefasta nas obras. Define concretamente o que se poderia chamar, com um conceito da lógica hegeliana, a possibilidade abstracta das obras de arte. Eis porque todo o artista autêntico se encontra obsessionado com os seus procedimentos técnicos; o feiticismo dos meios tem tam- bém o seu momento legítimo. Que a arte não deve reduzir-se à polaridade indiscutível do mimé- tico e do construtivo como a uma fórmula invariante reconhece-se pelo facto de que, de outro modo, a obra de arte de qualidade deveria oscilar entre os dois princípios. Mas, na arte moderna, foi frutuoso o que se dirigiu para um dos extremos, não o que ficou no meio; quem se esforçasse por realizar a síntese entre os dois seria recompensado por um consenso suspeito. A dialéctica desses momentos assemelha- se à dialéctica lógica, em que é apenas num que o outro se realiza, não no meio. A construção não é correcção ou certeza objectivante da expressão, mas deve, por assim dizer, acomodar-se sem planificação aos impulsos miméticos; aí reside a superioridade da Erwartung de Schõnberg sobre muito do que dela fez um princípio, que, por sua vez, era um princípio de construção. No expressionismo sobrevivem, como algo de objectivo, os fragmentos que dispensam o arranjo construtivo. A isso corresponde o facto de que nenhuma construção, enquanto forma vazia de conteúdo humano, se deve cumular de expressão. As obras adquirem esta expressão pela frieza. As obras cubistas de Picasso, e aquilo porque ele mais tarde as remodelou, são muito mais expres- sivas pelo ascetismo da expressão do que os produtos estimulados pelo Cubismo, mas que mendigavam a expressão e se tornaram implorantes. Isto leva-nos muito além da disputa do funcionalismo. A crítica da objectividade enquanto crítica de uma forma de consciência reificada não pode introduzir fraudulentamente nenhuma negligência, que se imagina, por uma diminuição da exigência construtiva, restau- rar a fantasia pretensamente livre e, assim, o momento expressivo. Hoje, o funcionalismo, cujo protótipo reside na arquitectura, deveria levar tão longe a construção que ela adquire valor expressivo através da recusa das formas tradicionais e semi tradicionais. A grande arqui- tectura recebe a sua linguagem superfuncional onde, livre dos seus fins, os testifica por assim dizer mimeticamente como seu conteúdo. A Ópera de Berlim, construída por Scharoun, é bela porque, de modo a realizar espacialmente as condições ideais para a música orquestral, a ela se torna semelhante sem lhe ir buscar empréstimos. Enquanto o seu objectivo nela se exprime, transcende ela a mera finalidade sem que, de resto, seja garantida uma tal passagem às formas finais. A condenação neo-realista da expressão e de toda a mimese como algo de ornamental e supérfluo, como ingredientes subjectivos não obriga- tórios, só vale na medida em que a construção é fornecida com a expressão; não vale para as formas de expressão absoluta. A expres- são absoluta seria objectiva, seria a própria coisa. O fenômeno da aura descrito por Benjamin com uma negação nostálgica perverteu-se onde ele se aplica e deste modo simula; onde produtos, que após a produção e a reprodução se opõem ao hic et nunc, se baseiam na aparência de um tal hic et nunc, como o filme comercial. Isso, eviden- temente, prejudica também o produto individual, desde que este conserve a aura, ordene o particular e se apresse a socorrer a ideologia, a qual se mimoseia com o bem individuado, que existiria ainda no mundo administrado. Por outro lado, a teoria da aura, manuseada adialecticamente, presta-se ao abuso. Com ela, a Entkunstung da arte deixa-se trocar em slogan, que na época da reprodutibilidade técnica da obra de arte se difunde. Segundo a tese de Benjamin, o hic et nunc da obra de arte não é apenas a sua aura, mas aquilo que nela ultra- passa sempre o seu caracter de dado, o seu conteúdo; não é possível suprimi-lo e querer a arte. Também as obras desmistificadas são mais do que o que nelas apenas ocorre. O «valor de exposição», que aí deve substituir o «valor cultuai» aurático, é uma imago do processo de troca. À disposição deste está a arte que adere ao valor de expo- sição, tal como as categorias do realismo socialista se acomodam ao status quo da indústria cultural. A negação do compromisso nas obras de arte torna-se crítica da própria idéia da sua coerência, da sua per- feição e integração sem falhas. A coerência desfaz-se perante o que lhe é superior, a verdade do conteúdo, que já não se satisfaz nem na expressão - pois esta recompensa a individualidade impotente com uma importância enganadora - nem na construção - porque ela é mais do que simplesmente análoga ao mundo administrado. A integração extrema é extrema só na aparência e isso provoca a sua modificação: os artistas que a levam a cabo mobilizam, desde o último Beethoven, a desintegração. O conteúdo de verdade da arte, cujo «órganon» era a integração, volta-se contra a arte e nesta viragem encontra o seu instante enfático. Mas, é nas suas próprias obras que os artistas en- 58 59 no contínuo da obra. O estado de coisas existente só se realiza na medida em que engole gráficos com crianças de trabalhadores mor- rendo à fome, representações extremas como documentos daquele bom coração que, mesmo no mais maligno, pulsaria e lhe permitiria assim dizer que ele não é o mais malvado. A arte labora contra semelhante acordo abandonando pela linguagem das formas o resto da afirmação que conservava no realismo social: é o momento social no radicalis- mo formal. A infiltração da moral no estético, tal como Kant a procurava fora das obras de arte, no sublime, é difamada como degeneração pela apologia da cultura. A arte teve tanta dificuldade em fixar os seus limites na sua evolução, observou-os tão pouco, enquanto divertimen- to, que o que recorda a fragilidade desses limites, todo o híbrido, provoca a mais viva defesa. O veredicto estético do feio apoia-se na tendência psicológico-social verificada para, com razão, equiparar o feio à expressão do sofrimento e, projectivamente, a desprezar. O Reich de Hitler, tal como em toda a ideologia burguesa, também aqui fez a prova: quanto mais se torturava nas caves tanto mais inexoravel- mente se velava para salvar a fachada. As teorias dos invariantes tendem à censura da decadência. A sua antítese deve ser justamente a natureza, por ela é responsável o que para a ideologia se chama decadência. A arte não tem de se defender contra a censura de dege- nerescência; ao defrontar tal censura, recusa-se a aceitar o infame curso do mundo como natureza inamovível. Mas, dado que a arte tem o poder de ocultar o que lhe é contrário, sem nada perder do seu desejo, antes transforma o seu desejo em força, o momento do feio aparenta-se à sua espiritualização, tal como George observara com toda a clarividência no prefácio à tradução das Fleurs du mal. O título de Spleen et Ideal insinua isso, se, por detrás das palavras, se puder ver de outro modo a obsessão pela sua inflexibilidade contra a inser- ção numa forma, por algo inimigo da arte enquanto agente da arte, que amplia o seu conceito muito além da noção de ideal. Eis para que serve o feio na arte. Mas a fealdade e a crueldade na arte não são apenas um representado. O seu próprio gesto, como Nietzsche sabia, tem algo de cruel. Nas formas, a crueldade torna-se imaginação: ex- tirpar algo do vivo, do corpo da linguagem, dos sons, da experiência visível. Quanto mais pura a forma, maior a autonomia das obras, portanto, mais cruéis elas são. Apelos para uma atitude mais humana das obras de arte, para a adaptação aos homens como seu público virtual, diluem normalmente a qualidade, debilitam a lei formal. A arte oprime o que, no sentido mais lato, elabora, rito da dominação da natureza que sobrevive no jogo. Tal é o pecado original da arte; é também o seu permanente protesto contra a moral, que pune cruel- mente a crueldade. São, porém, bem sucedidas as obras de arte que, do amorfo, ao qual elas incondicionalmente violentam, algo preser- vam para a forma, que enquanto separada o provoca. Só isso é o reconciliado na forma. Contudo, a violência que incide sobre os temas é copiada por aquela que deles promana e que perdura na sua resis- tência contra a forma. A dominação subjectiva da inserção na forma não se expande em temas indiferentes, mas é deles tirada. A crueldade da inserção na forma é a mimese do mito, com que ela lida. O gênio grego alegorizou isto inconscientemente: um relevo dórico antigo do museu arqueológico de Palermo, de Selinonte, representa Pégaso como brotando do sangue da Medusa. Se, nas novas obras de arte, a cruel- dade levanta sem fingimento a sua cabeça, ela reconhece assim a verdade segundo a qual, perante a superioridade da realidade, a arte não mais pode a priori sentir-se capaz da transformação do terrível na forma. O cruel é um elemento da sua auto-reflexão crítica; duvida da pretensão ao poder, que ela realiza como reconciliado. O cruel emer- ge, na sua nudez, das obras de arte, logo que o seu próprio fascínio é abalado. O elemento terrífico e mítico da beleza imprime-se nas obras de arte como sua irresistibilidade, como ela outrora era atribuí- da à Afrodite Peithon. Assim como a violência do mito passara no seu grau olímpico, do amorfo para a unidade, que a si submete o múltiplo e a multiplicidade e mantém o seu elemento destruidor, as- sim também as grandes obras de arte preservaram na autoridade do seu êxito o elemento destruidor como aniquilante. A sua irradiação é treva; o belo governa inteiramente a negatividade, no qual ela parece vencida. Mesmo dos objectos aparentemente mais neutros, que a arte se esforçava por eternizar como belos, irradia - como se temessem pela vida que lhes é sorvida pela imortalização - algo de duro, de inassimilável: de feio, provindo inteiramente dos materiais. A catego- ria formal da resistência de que, no entanto, a obra de arte precisa, se é que não está destinada a mergulhar no jogo gratuito denunciado por Hegel, introduz a crueldade do método mesmo em obras de arte de épocas felizes como a do impressionismo, da mesma maneira que, por outro lado, os temas, em que o grande impressionismo se expandiu, raramente são temas da natureza tranqüila, mas misturados com ele- mentos civilizadores, que, em seguida, a pintura terá prazer em incorporar. De certo modo, o belo surgiu do feio mais do que ao contrário. Mas, se o seu conceito fosse posto no índex, como muitas correntes psicológicas procedem com a alma e numerosos sociólogos com a sociedade, a estética tinha de se resignar. A definição da estética como teoria do belo é pouco frutuosa porque o caracter formal do conceito de beleza deriva do conteúdo global do estético. Se a estética não fosse senão um catálogo sistemático de tudo o que é chamado belo, não existiria nenhuma idéia da vida no próprio conceito do belo. No que visa a reflexão estética, o conceito de belo figura apenas como um momento. A idéia da beleza evoca algo de essencial na arte sem que, no entanto, o exprima imediatamente. Se não se afirmasse dos artefactòs, de maneiras muito modificadas, que eles são belos, o in- teresse por eles seria incompreensível e cego, e ninguém, artista ou espectador, teria oportunidade de sair do reino dos fins práticos, o da autoconservação e do princípio de prazer, o qual a arte, pela sua 64 65 constituição, exige. Hegel petrifica a dialéctica estética através da definição estática do belo como a aparição sensível da idéia. Tão pouco se deve definir o belo como renunciar ao seu conceito; uma estrita antinomia. Sem categoria, a estética seria uma descrição infor- me relativistico-histórica do que se entendeu por beleza aqui e além, em diferentes sociedades ou diversos estilos; uma unidade caracterís- tica daí destilada transformar-se-ia irresistivelmente em paródia e destruir-se-ia a seguir perante algo escolhido de mais concreto. A universalidade fatal do conceito do belo não é, no entanto, contingen- te. A passagem para o primado da forma, que a categoria do belo codifica, reduz-se já ao formalismo, à coincidência do objecto estéti- co com as determinantes subjectivas mais gerais, de que sofre em seguida o conceito do belo. Não há que opor ao belo formal uma natureza material: o princípio deve compreender-se como produto de devir, na sua dinâmica, e, deste modo, conteudalmente. A imagem do belo, enquanto imagem do uno e do diverso, surge com a emancipa- ção da angústia perante a totalidade esmagadora e a opacidade da natureza. Esse terror perante ela liberta-o o belo em si, em virtude da sua impermeabilidade frente ao existente imediato, mediante a cria- ção de uma esfera do intocável; as obras tornam-se belas por força da sua oposição à simples existência. O espírito elaborador de formas estéticas, de tudo aquilo em que se ocupava, deixou passar apenas o que se lhe assemelha, o que ele concebeu ou aquilo a que esperava assemelhar-se. Esse processo era um processo de formalização; por isso, a beleza, segundo a sua tendência histórica, foi algo de formal. A redução que a beleza faz sofrer ao horrível, do qual ela provém e sobre o qual se eleva, e que ela de igual modo mantém fora do recinto sagrado, tem algo de impotente face ao horrível. Este entrincheira-se no exterior como o inimigo diante dos muros da cidade cercada e submete-a pela fome. A beleza, se é que não quer falhar o seu telos, deve trabalhar contra tal faeto, mesmo em desfavor da sua tendência própria. A história do espírito grego, percebida por Nietzsche, é ines- quecível porque expôs e representou o processo existente entre o mito e o gênio. Os gigantes arcaicos, alongados num dos templos de Agrigento, são tão pouco rudimentos como demônios da comédia ática. A forma tem deles necessidade para não sucumbir ao mito, que nela se prolonga, contanto que ela simplesmente a ele se encerre. Em toda a arte ulterior, que é mais do que viagem sem carga, persiste e mo- difica-se aquele momento, já assim em Eurípides, em cujos dramas o horror das violências míticas se dirige às divindades olímpicas purificadas, associadas à beleza, que, por seu lado, são agora acusa- das como demônios; a filosofia epicurista quis, em seguida, do medo perante eles sarar a consciência. Mas, visto que as imagens da natu- reza temível suavizam mimeticamente, desde a origem, essas figuras demoníacas, as máscaras arcaicas, os monstros e os centauros asse- melham-se já também a um humano. A razão ordenadora impera já nas obras híbridas; a história natural não deixou sobreviver coisas iguais a essas. São temíveis porque recordam a fragilidade da identi- dade humana, mas não de um modo caótico; a ameaça e a ordem encontram-se aí misturadas. Nos ritmos repetitivos da música primi- tiva, a ameaça provém do próprio princípio da ordem. A antítese do arcaico está nele implicada; o jogo de forças do belo contido em tal princípio. O salto qualitativo da arte é uma transição mínima. Em virtude de semelhante dialéctica transforma-se a imagem do belo no movimento global da Aufklãrung. A lei da formalização do belo foi um instante de equilíbrio, destruído progressivamente pela relação com o dissemelhante, que a identidade do belo em vão afasta de si. A própria beleza exprime o horrível como o constrangimento que irradia da forma; o conceito de esplendoroso exprime esta experiên- cia. A irresistibilidade do belo, sublimado pelo sexo, atinge as mais elevadas obras de arte, é exercida pela sua pureza, pela sua distância da materialidade e do efeito. Semelhante constrangimento torna-se conteúdo. O que sujeitava a expressão, o caracter formal da beleza, com toda a ambivalência do triunfo, transforma-se em expressão, na qual o aspecto ameaçador da dominação da natureza se une com a nostalgia do que é dominado e se ilumina com tal dominação. Mas, é a expressão do sofrimento na subjugação e no seu ponto de fuga: a morte. A afinidade de toda a beleza com a morte tem o seu lugar na idéia da forma pura, que a arte impõe à diversidade do ser vivo, que nela se extingue. Na beleza imperturbada, o que lhe resiste seria to- talmente pacificado e semelhante reconciliação estética é mortal para o extra-estético. E a tristeza da arte. Cumpre irrealmente a reconcilia- ção ao preço da reconciliação real. A última coisa que ela pode fazer c o lamento pelo sacrifício que oferece e que é ela própria na sua impotência. O belo não fala apenas, como a Valquíria de Wagner a Sigismundo, enquanto emissário da morte, mas assemelha-se-lhe em si, como processo. O caminho para a integração da obra de arte, uma só coisa com a sua autonomia, é a morte dos momentos na totalidade. O que na obra de arte afasta para lá de si a própria particularidade busca o próprio declínio, e a totalidade da obra é a sua substância. Se as obras de arte têm a sua idéia na vida eterna, então, só mediante a aniquilação do vivo na sua esfera; também isso se comunica à sua expressão. É a expressão da decadência da totalidade, do mesmo modo que a totalidade fala do declínio da expressão. No impulso de todo o elemento singular das obras de arte para a sua integração anuncia-se secretamente o impulso desintegrador da natureza. Quanto mais inte- gradas as obras de arte, tanto mais nelas se desintegra o que as constitui. O seu próprio êxito é, nessa medida, decomposição e esta confere-- Ihes o caracter abissal e liberta ao mesmo tempo a força antagônica imanente à arte, a força centrífuga. - O belo realiza-se cada vez menos na forma particular, purificada; o belo desloca-se para a totalidade dinâmica da obra e prolonga, em semelhante emancipação crescente da particularidade, a formalização, mas estreita-se também com o difuso. Ao destruir na imagem do belo o ciclo da falta e da expiação, que tem 66 67 lugar na arte, virtualmente, e no qual participa, a interacção desvela o aspecto de um estado para além do mito. Transpõe o ciclo para a imago que o reflecte e assim o transcende. A fidelidade à imagem do belo suscita contra esta a idiossincrasia. Exige a tensão e volta-se, por fim, contra o seu equilíbrio. A perda de tensão é a mais severa objec- ção contra muita da arte contemporânea, por outras palavras, a indiferença na relação das partes ao todo. A tensão em si, abstracta- mente postulada, seria aqui mais uma vez tênue e artesanal: o seu conceito vale sempre também para o tenso, para a forma e para o seu outro, cujo representante na obra são as particularidades. Mas se, alguma vez, o belo, enquanto homeóstase da tensão, for transferido para a totalidade, fica enredado no seu turbilhão. Pois esta, a relação das partes à unidade, requer ou pressupõe um momento de substancia- lidade das partes, e, sem dúvida, muito mais do que a arte antiga, na qual a tensão permanecia muito mais latente sob os idiomas estabe- lecidos. Porque a totalidade absorve finalmente a tensão e se conforma com a ideologia, a própria homeóstase é rompida: eis a crise do belo e da arte. Para aqui convergem, de facto, os esforços dos últimos vinte anos. Ainda aí prevalece a idéia do belo, que tem de eliminar tudo o que lhe é heterogêneo, as leis convencionais, todo o vestígio de reificação. Também por causa do belo não há mais belo: o belo deixou de existir. O que não pode aparecer de outro modo senão negativa- mente ridiculariza uma dissolução que ele divisa como falsa e que, por tal razão, avilta a idéia de belo. A sensibilidade do belo relativa- mente ao polido, à consideração empenhada de que a arte, ao longo da sua história, se comprometeu com mentiras, transfere-se para o momento da resultante, que a arte tão pouco pode dispensar como as tensões das quais tal momento provém. É possível prever a perspec- tiva de uma recusa da arte em nome da arte. Ela anuncia-se naquelas suas obras que se tornam silenciosas ou desaparecem. Mesmo do ponto de vista social, elas são a consciência recta: é melhor não haver arte alguma do que o realismo socialista. A arte é refúgio do comportamento mimético. Nela, o sujeito expõe-se, em graus mutáveis da sua autonomia, ao seu outro, dele separado e, no entanto, não inteiramente separado. A sua recusa das práticas mágicas, dos seus antepassados, implica participação na ra- cionalidade. Que ela, algo de mimético, seja possível no seio da racionalidade e se sirva dos seus meios, é uma reacção à má irracionalidade do mundo racional enquanto administrado. Pois, o objectivo de toda a racionalidade, da totalidade dos meios que domi- nam a natureza, seria o que já não é meio, por conseguinte, algo de não-racional. Precisamente, esta irracionalidade oculta e nega a socie- dade capitalista e, em contrapartida, a arte representa a verdade numa dupla acepção: conserva a imagem do seu objectivo obstruída pela racionalidade e convence o estado de coisas existente da sua irracionalidade, da sua absurdidade. O abandono da ilusão de uma apreensão imediata do espírito, que regressa insaciavelmente e de modo intermitente na história da humanidade, transforma-se em inter dito de a memória se voltar imediatamente, através da arte, para a natureza. A separação só pode ser anulada pela separação. Isso forti fica na arte o momento racional e exorciza-o ao mesmo tempo, porque ele se contrapõe à dominação real; sem dúvida, enquanto ideologia, alia-se sempre de novo a ela. Falar de magia da arte é palavriado, porque a arte é alérgica à recaída na magia. A arte constitui um momento no processo do assim chamado por Max Weber desencantamento do mundo, implicado na racionalização; todos os seus meios e métodos de produção dela procedem; a técnica, que declara herética a sua ideologia, que tanto lhe é inerente como a ameaça, porque a sua he- rança mágica se manteve tenazmente em todas as suas transformações. Só que ela mobiliza a técnica numa direcção muito mais oposta do que o faz a dominação. A sentimentalidade e a fragilidade de quase toda a tradição do pensamento estético deve-se a que ele silenciou a dialéctica de racionalidade e mimese, imanente à arte. Isso prolonga-- se no espanto perante a obra de arte técnica como se ela tivesse caído do céu: as duas noções são intrinsecamente complementares. No en- tanto, o palavriado sobre a magia da arte evoca algo de verdadeiro. A sobrevivência da mimese, a afinidade não-conceptual do produto sub- jectivo com o seu outro, com o não estabelecido, define a arte como uma forma de conhecimento e, sob este aspecto, como também «ra- cional». Pois, aquilo a que responde o comportamento mimético é o telos do conhecimento, que ele simultaneamente bloqueia mediante as suas próprias categorias. A arte completa o conhecimento naquilo que dele é excluído e prejudica também, desta maneira, o seu caracter de conhecimento, a sua univocidade, a qual ameaça desmembrar-se por- que a magia, que ela seculariza, a isso se recusa, enquanto a essência mágica, em plena secularização, se degrada em resquício mitológico, em superstição. O que hoje sobressai como crise da arte, como sua nova qualidade, é tão antigo como o seu conceito. A maneira de a arte lidar com esta antinomia decide da sua possibilidade e da sua quali- dade. A arte não pode satisfazer o seu conceito. Isso afecta cada uma das suas obras, mesmo a mais elevada, com uma imperfeição que desmente a idéia de perfeito a que as obras de arte devem aspirar. Uma Aufklãrung irreflectidamente consistente deveria rejeitar a arte, tal como o faz realmente o prosaísmo do pragmático obstinado. A aporia da arte, entre a regressão à magia literal ou a transferência do impulso mimético para a racionalidade coisificante, prescreve-lhe a sua lei de movimento; tal aporia não pode remover-se. A profundida- de do processo, que é cada obra de arte, é posta a descoberta pela irreconciliação desses momentos; é preciso acrescentá-la à idéia da arte como imagem da reconciliação. Unicamente porque nenhuma obra de arte pode ter sucesso de modo enfático é que as suas forças são libertadas; só assim ela encara a reconciliação. A arte é racionalidade, que critica esta sem se lhe subtrair; não é algo de pré-racional ou irracional, como se estivesse antecipadamente condenado à inverdade 68 69 graças à crítica que, através da sua existência, exerce sobre a racio- nalidade erigida em absoluto. O próprio encantamento, liberto da sua pretensão a ser real, é uma parcela de Aufklarung: a sua aparência desencanta o mundo desencantado. Tal é o éter dialéctico em que hoje a arte se desenvolve. A renúncia à exigência de verdade do momento mágico preservado engloba a aparência estética e a verdade estética. Na herança do modo comportamental do espírito, virado outrora para as essências, subsiste a oportunidade de a arte perceber imediatamen- te essa essencialidade, cuja proibição é equiparada ao progresso do conhecimento racional. No mundo desencantado, sem que ele o admi- ta, o factum da arte, imitação do encantamento, é um escândalo que não suporta. Se, porém, a arte tolera isso imperturbavelmente, se aceita ser cega como o encantamento, então rebaixa-se a acto ilusório rela- tivamente à própria pretensão de verdade e a si se destrói pouco a pouco. No seio do mundo desencantado, mesmo a mais extrema pa- lavra de arte, destituída de todo o encorajamento exaltante, tem res- sonâncias românticas. A filosofia da história da estética de Hegel, que institui como fase final a arte romântica, é ainda confirmada pela arte anti-romântica, enquanto só esta, pela sua negrura, pode ultrapassar o mundo desencantado, suprimir o encantamento que exerce pela enor- me força da sua aparição e pelo caracter feiticista da mercadoria. Ao estarem «aí», as obras de arte postulam a existência de um não-exis- tente e entram assim em conflito com a sua não-existência real. Este conflito não deve, porém, pensar-se segundo o gênero de representa- ção dos fãs do jazz: o que, no seu desporto, não lhes convém seria intempestivo por causa da sua incompatibilidade com o mundo desen- cantado. Pois, verdadeiro é apenas o que não se harmoniza com este mundo. Simplesmente, o apriori do começo artístico e o estádio his- tórico deixam de coincidir quando diversamente se harmonizam; e semelhante incongruência não deve ser suprimida mediante a adapta- ção: a verdade consiste antes em resolvê-la. Inversamente, a Entkunstung é imanente à arte, tanto à que permanece imperturbável como à que se vende, de acordo com a tendência tecnológica da arte que não suspende nenhuma exortação à interioridade pretensamente pura e imediata. O conceito de técnica artística surgiu tardiamente e é ainda inexistente no período posterior à Revolução francesa, consciente de si mesma enquanto dominação estética da natureza; mas, a coisa, sem dúvida, não está ausente. A técnica artística não é nenhuma adaptação cômoda a uma época, que a si mesma se etiqueta de técnica com fervor infantil, como se as forças produtivas decidissem imediatamente sobre a sua estrutura, e não tanto as relações de produção, que mantêm aquelas sob o seu jugo. Onde a tecnologia estética, como não raro aconteceu nos modernos movimentos após a Segunda guerra, visa a cientificação da arte enquanto tal, em vez de inovações técni- cas, a arte extravia-se. Os cientistas, especialmente os físicos, pude- ram sem dificuldade detectar contrasensos nos artistas que se intoxi- cavam com a sua terminologia, recordando-lhes que aos termos físi- cos, por eles utilizados nos seus procedimentos, não correspondem os estados de coisas significados por esses termos. A tecnificação da arte ó provocada tanto pelo sujeito, pela consciência desiludida e pela desconfiança contra a magia enquanto véu, como pelo objecto, isto é, pela maneira como as obras se devem obrigatoriamente organizar. A possibilidade de semelhante organização tornou-se problemática com o declínio dos processos técnicos tradicionais, que vigoraram até à época actual. Apenas se proporcionava a tecnologia, que prometia organizar totalmente as obras de arte, no sentido da relação fim-meios, que Kant identificava geralmente com o estético. A técnica não surgiu de nenhum modo como tapa-buracos a partir de fora, embora a história da arte conheça momentos que se assemelham às revolu- ções técnicas da produção material. Com a crescente subjectivização das obras de arte, a livre disposição a seu respeito aumentou nos procedimentos tradicionais. A tecnificação impõe a disponibilidade como princípio. Para se legitimar, pode apelar para o facto de que as grandes obras de arte tradicionais, que desde Palladio apenas intermi- tentemente estavam ligadas ao conhecimento dos processos técnicos, recebem no entanto a sua autenticidade do critério da sua perfeição técnica, até que a tecnologia faça explodir os processos tradicionais. É retrospectivamente que a técnica se deve reconhecer como consti- tuinte da arte, mesmo para o passado, de um modo incomparavelmente muito mais agudo do que o admite a ideologia cultural que, segundo ela afirma, imagina a era técnica da arte como posteridade e declínio do que outrora foi espontaneamente humano. Sem dúvida, é possível desvendar em Bach as lacunas entre a estrutura da sua música c os meios técnicos outrora disponíveis para a sua execução plenamente adequada; para a crítica do historismo estético isso é importante. Mas, juízos deste tipo não cobrem todo o complexo. A experiência de Bach conduziu-o a uma técnica de composição altamente desenvolvida. Inversamente, nas obras que se podem com exactidão chamar arcaicas, a expressão está amalgamada com uma técnica, com a sua ausência ou com aquilo que ela ainda não conseguiu realizar. É vão decidir qual dos efeitos da pintura pré-perspectivista é devido à profundidade do expresso ou a uma stéresis da insuficiência técnica, que sempre se transforma em expressão. Nas obras arcaicas, que geralmente não são amplas mas restritas na sua possibilidade, parece haver tanta técnica, e não mais, quanta a que lhe é necessária para a realização da coisa. Isso confere-lhes aquela autoridade enganadora que ilude relativamente ao aspecto técnico, o qual é condição de semelhante autoridade. Perante tais obras, cessa a questão do que se queria, do que ainda não se conseguia fazer; na realidade, em presença do que está objectivado, ela induz sempre em erro. A capitulação, porém, possui também o seu momento obscurantista. O conceito riegeliano do querer da arte, na medida em que ajuda a curar a experiência estética das normas abstractas intemporais, dificilmente se pode man- ter; o que se pretendeu fazer só pouco e raramente decide de uma 74 75 obra. A rigidez selvagem do Apoio etrusco na Villa Julia é um cons- tituinte do conteúdo, independentemente de se foi ou não intenciona- do. No entanto, transforma-se a função da técnica e muda rapidamen- te em pontos nevrálgicos. Ela estabelece e desdobra plenamente o primado do fazer na arte, diferentemente da quase sempre concebida receptividade da produção. A técnica pode tornar-se adversária da arte na medida em que esta representa, em graus flutuantes, o não factível oprimido. Contudo, mesmo na factibilidade, não se esgota a tecnificação da arte, como desejaria a trivialidade do conservadorismo cultural. A tecnificação, braço prolongado do sujeito dominador da natureza, aliena as obras de arte da sua linguagem imediata. A lega- lidade tecnológica recalca a contingência do simples indivíduo que produz a obra de arte. O mesmo processo, com o qual enquanto morte da alma o tradicionalismo se escandaliza, traz à linguagem nos seus produtos mais elevados a obra de arte, em vez de a partir dai se declarar um elemento psicológico ou humano, como hoje com volu- bilidade se afirma. O que se chama reificação tacteia obscuramente, onde ela é radicalizada, a linguagem das coisas. Aproxima-se virtual- mente da idéia daquela natureza que extirpa o primado do humana- mente significativo. A arte moderna enfática exime-se ao domínio da representação da alma e transita para uma expressão do que nenhuma linguagem pode significar. A obra de Paul Klee é, por isso, do pas- sado mais recente o testemunho mais significativo e ele era membro do Bauhaus, de intenção tecnológica. Se, como pretendia Adolf Loos e como, desde então, gostam de repetir os tecnocratas, se ensina a beleza dos objectos técnicos reais, então atribui-se-lhes aquilo contra que luta a objectividade enquanto inervação estética. A beleza adjacente, medida pelas categorias tradi- cionais opacas como a harmonia formal ou a grandeza imponente, estabelece-se à custa da funcionalidade real em que as obras práticas como pontes ou construções industriais procuram a sua lei formal. Que as obras funcionais sejam sempre belas em virtude da sua fide- lidade àquela lei formal é afirmação apologética, como se quisesse consolar-se sobre o que lhes falta: má consciência da própria objec-^ tividade. Pelo contrário, a obra de arte autônoma, unicamente funcio- nal em si, pretende alcançar pela sua teleologia imanente o que outrora se chamava a beleza. Se, entretanto, a arte funcional e a arte não-- funcional partilham, apesar da sua divergência, a inervação de objec- tividade, a beleza da obra de arte tecnológica autônoma torna-se pro- blemática, a ela renuncia o seu modelo, a obra funcional. A beleza da obra sofre de um funcionalismo sem função. Porque lhe falta o terminus ad quem externo atrofia-se o interno; o funcionalismo, enquanto um para-outro, torna-se supérfluo, ornamental enquanto fim em si. É as- sim sabotado um momento da própria funcionalidade, a necessidade que sobe a partir de baixo, que se dirige para aquilo que e para onde os momentos parciais querem. É profundamente lesado aquele equi- líbrio de tensão que a obra de arte objectiva vai buscar às artes fun- cionais. Em tudo isso se manifesta a inadequação entre a obra de arte perfeitamente estruturada em si de modo funcional e a sua ausência de função. Contudo, a mimese estética da funcionalidade não é revo- gada por nenhum recurso ao imediatamente subjectivo: semelhante recurso mascararia apenas o modo como o indivíduo e a sua psicolo- gia se tornaram ideologia perante a hegemonia da objectividade social: é daí que a objectividade tem a consciência verídica. A crise da objectividade não é nenhum sinal para substituir esta por algo de humano, que logo degeneraria em encorajamento, correlato da inumanidade realmente crescente. Pensada, no entanto, até aos limites mais amar- gos, a objectividade regressa à barbárie pré-artística. A alergia este- ticamente muito difundida ao Kitsch, ao orfiamento, ao supérfluo, ao que se aproxima do luxo, tem também o aspecto de barbárie, do mal-- estar destruidor na civilização, segundo a teoria de Freud. As antinomias da objectividade testificam aquela parcela da dialéctica da Aufklãrung, em que progresso e regressão são idênticos. A barbárie é o literal. Totalmente objectivada, a obra de arte, por força da sua pura legali- dade, torna-se simples factum e suprime-se assim como arte. A alter- nativa, que se abre na crise, é a seguinte: ou sair da arte, ou transfor- mar o seu conceito. Desde Schelling, cuja estética se chama Filosofia da Arte, o in- teresse estético centrou-se nas obras de arte. O belo natural, a que se religavam ainda as definições mais penetrantes da Crítica da Facul- dade de Julgar dificilmente continua a ser objecto temático para a teoria. No entanto, ainda o é um pouco porque, segundo a doutrina de Hegel, ele foi realmente superado em algo superior: foi recalcado. O conceito de belo natural toca numa ferida e pouco falta para que o confundam com a violência que a obra de arte, puro artefacto, impõe ao natural. Totalmente feita pelos homens, a obra de arte contrapõe-- se pela sua aparência ao não-fabricado, à natureza. Como puras antí- teses, porém, referem-se uma à outra: a natureza à experiência de um mundo mediatizado, objectivado; a obra de arte à natureza, ao repre- sentante mediatizado da imediatidade. Por isso, a reflexão sobre o belo natural é inalienável na teoria da arte. Enquanto que, bastante paradoxalmente, as considerações sobre o belo natural, quase a temá- tica em si, causam a impressão de ser antiquadas, monótonas, arcai- cas, a grande arte e a sua interpretação, ao incorporarem em si o que a antiga estética atribuía à natureza, confinam a reflexão àquilo que habita para lá da imanência estética e recai, no entanto, nesta como sua condição. A transição para a religião ideológica da arte no séc. xix, nome inventado por Hegel, a satisfação da reconciliação conse- guida simbolicamente na obra de arte são o preço daquele recalca- mento. O belo natural desapareceu da estética através da dominação 76 77 crescente do conceito de liberdade e de dignidade humana inaugurado por Kant, consequentemente só transplantado para a estética de Schiller e Hegel, conceito esse segundo o qual nada no mundo se deve respei- tar a não ser o que o sujeito autônomo a si mesmo deve. A verdade de tal liberdade para si é, porém, ao mesmo tempo inverdade: servi- dão para outro. Eis porque à propensão para o belo natural, não obs- tante o progresso incomensurável na concepção da arte como algo de espiritual, que ela possibilitou, tão pouco falta o momento destruidor, como também ao conceito de dignidade relativamente à natureza. O ensaio igualmente significativo de Schiller sobre o encanto e a digni- dade introduz aqui a cesura. As desvastações que o idealismo esteti- camente causou tornam-se cruamente visíveis nas suas vítimas que, como Johann Peter Hebel, se sujeitam ao veredicto da dignidade es- tética e, no entanto, lhe sobrevivem, ao transferirem-na, mediante a sua existência que parecia demasiado finita aos idealistas, para a sua própria finitude limitada. Em mais nenhum lugar, talvez, a não ser na estética, se torna tão evidente a dissecação de tudo o que não é do- minado pelo sujeito, a sombra tenebrosa do idealismo. Se se fizesse um processo de revisão legal do belo natural, ele respeitaria à digni- dade enquanto auto-engrandecimento do animal-homem acima da animalidade. Ela desvela-se, perante a experiência da natureza, como usurpação do sujeito que degrada em simples material o que não lhe está submetido, as qualidades, e as remove da arte enquanto potencial totalmente indeterminado, de que ela, segundo o seu conceito próprio, teria necessidade. Os homens não estão positivamente equipados com a dignidade, mas esta seria apenas o que eles ainda não são. Eis porque Kant a relegou para o caracter inteligível e não a atribuiu ao caracter empírico. Sob o signo da dignidade ligada aos homens, tais como são, que rapidamente se transformou na dignidade oficial de que Schiller, por isso mesmo, desconfiava no espírito do séc. xvm, a arte tornou-se a arena do verdadeiro, do belo e do bom, que, na refle- xão estética, expulsou o que era válido para a borda do que a ampla e suja corrente do espírito arrastava consigo. A obra de arte, inteiramente 0EG81, produto humano, representa o que seria qnxrei, não simplesmente coisa em si. A obra de arte tanto se identifica com o sujeito como outrora ela própria deveria ser natureza. A libertação da heteronomia dos materiais, especialmente dos objec- tos naturais, a pretensão legal de qualquer objecto a poder ser adop- tado pela arte, tornaram-na finalmente senhora de si mesma e anula- ram nela a crueza do que há de imediatizado para o espírito. Mas, a senda deste progresso, que enterrava tudo o que não obedecia a seme- lhante identidade, foi também de devastação. No séc. xx, consolidou-- se a lembrança das obras de arte autênticas que incorreram no des- dém, sob o terror do idealismo. No plano lingüístico, Karl Kraus tinha encarado a salvação de tais obras, em consonância com a sua apologia do que se encontra sob a opressão do capitalismo: o animal, a paisa- gem, a mulher. A isso corresponderia a orientação da teoria estética para o belo natural. Hegel careceu manifestamente da capacidade de ver que a experiência genuína da arte não é possível sem a daquele estrato, por difícil que seja de apreender, cujo nome, o belo natural, empalidecia. A sua substancialidade, porém, penetra profundamente na arte moderna: em Proust, cuja Recherche é obra de arte e metafí- sica da arte, a experiência de uma sebe de pilriteiros conta-se entre os fenômenos originais do comportamento estético. As obras de arte autênticas que, ao fazerem-se perfeitamente uma natureza segunda, se comprazem na idéia da reconciliação da natureza, sentiram sempre, como que para retomar fôlego, a ânsia de saírem de si mesmas. Por- que a identidade não é a sua última palavra, buscaram a consolação da primeira natureza: o último acto de Fígaro, que se representa ao ar livre, não menos do que o Freischütz no momento em que Ágata, na varanda, mergulha na noite estrelada. É evidente quão profundamente esta tomada de ar mediatizado depende do mundo das convenções. O sentimento do belo natural intensificou-se, durante longos períodos, com o sofrimento do sujeito retraído sobre si mesmo perante um mundo já pronto e instituído; leva a marca do Weltschmerz. Kant alimentava ainda algum desdém a respeito da arte feita pelos homens, que se contrapõe convencionalmente à natureza: «Esta superioridade da be- leza natural sobre a beleza da arte, mesmo se aquela é ultrapassada por esta quanto à forma, a única, no entanto, a despertar um interesse imediato, concorda com o tipo de pensamento mais evidente e mais profundo de todos os homens que cultivaram o seu sentimento mo- ral» (23). Por conseguinte, é Rousseau que fala, tal como nesta frase: «Se um homem tem o suficiente bom gosto para julgar dos produtos da arte bela com a maior rectidão e finura, abandona de boa vontade o salão onde se encontra a vaidade e, quando muito, as belezas que entretêm as alegrias sociais e volta-se para o belo da natureza, para ai de algum modo encontrar a voluptuosidade do seu espírito num fluxo de idéias que ele jamais pode desenvolver completamente: considera- mos então esta sua escolha com grande estima e pressupomos nele uma bela alma, à qual nenhum entendido ou amador pode censurar o interesse que ele tem nos seus objectos.» (24) Estes extractos da teoria compartilham, com as obras de arte do seu tempo, o gesto da emer- gência. Kant atribuiu à natureza o sublime e, assim, também o belo que irrompe dos jogos puramente formais. Em contrapartida, Hegel e a sua época elaboraram o conceito de uma arte que não «entretinha» - como se afigurava natural ao filho do séc. xvm - «a vaidade e as alegrias sociais». Mas passaram por alto a experiência que, em Kant, ainda se exprime livremente no espírito burguês revolucionário, o (23) Kant, Kritik der Urteilskraft, op. cit, p. 172, § 42. (24) Op. cit. 78 79 mercadoria. A pintura da natureza, também no passado, só foi autên- tica enquanto nature morte: onde ela sabia ler a natureza como cifra de algo de histórico, se não da fragilidade de tudo o que é histórico. A interdição vétero-testamentária das imagens possui, além do seu aspecto teológico, um aspecto estético. O facto de não ser permitido fazer-se uma imagem, nenhuma imagem do que quer que seja, expri- me ao mesmo tempo que uma tal imagem não é possível. O que aparece na natureza é, através do seu desdobramento na arte, privado desse ser-em-si com que se sacia a experiência da natureza. A arte é fiel à natureza fenomenal só quando representa a paisagem na expres- são da sua própria negatividade, os «versos escritos na contemplação de esboços de paisagem» de Borchardt (25) exprimiram isto de maneira insuperável e impressionante. Se a pintura parece felizmente reconci- liada com a natureza como, por exemplo, em Corot, tal reconciliação tem a marca do efêmero: o perfume eterno é paradoxal. O belo natural na natureza fenomenal está directamente compro- metido pelo rousseauísmo do retournons. O caracter errôneo da antí- tese vulgar de técnica e natureza reside manifestamente no facto de a natureza não-contaminada pela intervenção humana e sem nenhuma marca do seu domínio, as morenas e as ladeiras de seixos soltos al- pinas, se assemelharem às montanhas de dejectos industriais, perante os quais se esvai a necessidade estética da natureza socialmente apro- vada. Um dia se assinalará até que ponto o espaço cósmico anorgânico assume um aspecto industrial. O conceito da natureza incessantemen- te idílica permaneceria também, na sua expansão telúrica, na impres- são da técnica total, como o provincianismo de uma ilha diminuta. A técnica que, segundo um esquema recentemente tirado da moral sexual burguesa, teria violentado a natureza, seria igualmente capaz, sob relações de produção modificadas, de a socorrer e, nesta pobre terra, a ajudar a tornar-se no que talvez aspire a ser. A consciência só acede à experiência da natureza quando, como acontece na pintura impressionista, inclui em si os seus estigmas. O conceito fixo do belo natural põe-se assim em movimento. Amplia-se através do que já não é natureza. De outro modo, esta degrada-se em fantasma enganador. A relação da natureza fenomenal com a coisa morta é acessível à sua experiência estética. Pois, em qualquer experiência da natureza está envolvida toda a sociedade. Não só ela desenvolve os esquemas da percepção, mas estabelece de antemão, por contraste e semelhança, o que se chamará respectivamente a natureza. A experiência da nature- za constitui-se simultaneamente mediante o poder de negação deter- minada. Com a expansão da técnica, e mais ainda com a propagação da totalidade do princípio de troca, o belo natural torna-se cada vez mais sua função contrastante e integra-se na essência reificada com- batida. O conceito de belo natural, outrora trocado pelo pedantismo e lugares comuns do absolutismo, perdeu a sua força porque, desde a emancipação burguesa em nome dos pretensos direitos naturais do homem, o mundo da experiência não está menos, mas mais, reificado do que no séc. xvm. A experiência imediata da natureza, liberta da sua intransigência crítica e subsumida na relação de troca - prova-o o termo de indústria turística -, tornou-se informalmente neutra e apologética: a natureza transforma-se em reserva natural e em álibi. A ideologia é o belo natural como subrepção da imediatidade através do mediatizado. Mesmo a experiência adequada do belo natural se aco- moda à ideologia complementar do inconsciente. Se, segundo o cos- tume burguês, se atribui aos homens o mérito de se ter muita sensi- bilidade perante a natureza - quase sempre este mérito se tornou já para eles uma satisfação moral narcisista: da mesma maneira que era preciso ser-se bom para assim poder gratamente sentir-se tanta ale- gria - então, já não há mais nenhum obstáculo para achar belo tudo o que figura nos anúncios de casamento, enquanto testemunhos de uma experiência, miseravelmente retraída. Ela deforma o mais íntimo da experiência da natureza. No turismo organizado, dificilmente resta alguma coisa desta experiência da natureza. Sentir a natureza, o seu silêncio, tornou-se um privilégio raro e comercialmente explorável. No entanto, não se condena sem mais a categoria do belo natural. A tendência para falar da natureza é mais forte onde sobrevive o amor por ela. A expressão «Que belo» perante uma paisagem fere a sua linguagem muda e diminui a sua beleza; a natureza fenomenal quer silêncio, enquanto este impele aquele que é capaz da sua experiência a proferir palavras que, momentaneamente, libertam da prisão monadológica. A imagem da natureza sobrevive, porque a sua perfeita negação no artefacto, a qual salva esta imagem, torna-se necessaria- mente cega quanto ao que estaria para lá da sociedade burguesa, do seu trabalho e das suas mercadorias. O belo natural permanece alego- ria deste para-la, apesar da sua mediação através da imanência social. Mas, se esta alegoria for erradamente considerada como o estado de reconciliação alcançado, degrada-se em meio de emergência para mascarar e justificar o estado irreconciliado em que, no entanto, tal beleza é possível. Aquele «Oh! que belo» que, segundo um verso de Hebbel, pertur- ba «a solenidade da natureza» (26), harmoniza-se com a concentração tensa perante as obras de arte, não com a natureza. Da sua beleza sabe mais a percepção inconsciente. Na sua continuidade, esvai-se por vezes subitamente. Quanto mais intensamente se contempla a natureza, tan- to menos se penetra na sua beleza, excepto se ela espontaneamente já coube em sorte a alguém. Vã é, quase sempre, a visita intencional de pontos de vista famosos, dos miradouros do belo natural. À eloqüên- cia da natureza é prejudicial a objectivação, que a contemplação aten- (25) Rudolf Borchardt, Gedichte, ed. M. L. Borchardt e H. Steiner, Stuttgart 1957, p. 113 ss. (26) Friedrich Hebbel, Werke in zwei Bãnden, editado por G. Fricke, Munique 1952, Vol. I, p. 12 («Herbstbild»). 84 85 tá leva a efeito; no fim de contas, o mesmo vale também para as obras de arte, que só são inteiramente perceptíveis no temps durée, cuja concepção provém, em Bergson, da experiência artística. Mas, se a natureza só pode, por assim dizer, ver-se de um modo cego, então a percepção e a lembrança inconscientes são esteticamente inalteráveis e constituem ao mesmo tempo rudimentos arcaicos, inconciliáveis com a crescente maioridade racional. A pura imediatidade não é su- ficiente para a experiência estética. Além da espontaneidade, neces- sita também da intencionalidade, da concentração da consciência; não se pode eliminar a contradição. Se se avançar logicamente, toda a beleza se abre à análise, que, por seu turno, a remete para a esponta- neidade e seria vã se o momento do espontâneo lhe não fosse ineren- te. Perante o belo, a reflexão analítica reconstitui o temps durée atra- vés da sua antítese. A análise desemboca num belo, tal como deveria aparecer à perfeita percepção não-consciente e esquecida de si. As- sim, ela descreve mais uma vez subjectivãmente a via que a obra de arte descreve em si de modo objectivo: o conhecimento adequado do elemento estético é a realização espontânea dos processos objectivos que, em virtude das suas tensões, ocorrem no seu interior. No plano genético, o comportamento estético deveria exigir na infância a fami- liaridade com o belo natural, de cujo aspecto ideológico se afasta para o salvar na relação com os artefactos. Quando a antítese da imediatidade e da convenção se intensificou e o horizonte da experiência estética se abriu ao que, em Kant, se chama sublime, fenômenos naturais entraram na consciência enquan- to belos, subjugando pela sua grandiosidade. Este modo de compor- tamento foi, historicamente, efêmero. Em Karl Kraus, o gênio polêmi- co - talvez em concordância com o modem style de, por exemplo, Peter Altenberg - recusou-se assim ao culto da paisagem grandiosa, não sentiu manifestamente nenhuma felicidade na alta montanha, tal como só é repartida plenamente ao alpinista, de que o crítico cultural desconfiava com razão. Semelhante cepticismo quanto à grande natu- reza dimana evidentemente do sensorium artístico. Em virtude de uma diferenciação progressiva, este último tornou-se inflexível perante a identificação predominante na filosofia idealista de grandes projectos e categorias com o conteúdo das obras. Confundir as duas coisas tornou-se entretanto índice de comportamento movido pela amusia. Também a grandeza abstracta da natureza, que Kant ainda admirava e comparava à lei moral, é olhada como reflexo da megalomania burguesa, do gosto pelo recorde, da quantificação, e também do culto burguês dos heróis. Acima de tudo, não se vê que esse momento na natureza proporciona ao espectador algo de inteiramente diferente, algo onde a dominação humana tem os seus limites e que recorda a impotência da engrenagem humana. Assim Nietzsche, em Sils-Maria, podia ainda experimentar este sentimento: «dois mil metros acima do mar, para não dizer acima dos homens». Tais flutuações na experiên- cia do belo natural interdizem todo o apriorismo da teoria tão abso- lutamente como a arte. Quem quisesse fixar o belo natural num con- ceito invariante cairia no ridículo como Husserl, ao afirmar que percepciona enquanto caminha a fresca verdura da relva. Quem fala do belo natural coloca-se à beira da pseudopoesia. Apenas o pedante se atreve a distinguir na natureza o belo e o feio, mas sem tal distin- ção o conceito do belo natural tornar-se-ia vazio. Nem as categorias como as de grandeza formal - que contradiz a percepção micrológica do belo na natureza,, mesmo a mais autêntica - nem, como imaginava a estética antiga,,as relações matemáticas de simetria fornecem crité- rios do belo natural. Este, porém, é indefinível segundo o cânone de conceitos universais, porque p seu próprio conceito possui a sua subs- tância no que se esquiva à conceptualização universal. A sua indeter- minação essencial manifesta-se em que toda a parcela da natureza, como tudo o que é feito pelos homens, o que se petrifica em natureza, pode tornar-^e belo, refulgindo a partir de dentro. Semelhante expres- são tem pouco ou nada a ver com as proporções formais. Ao mesmo tempo, porém, qualquer objecto da natureza experimentado como belo apresenta-se como se fosse o único belo em toda a terra; isto transmite- se a cada obra de arte. Enquanto que, na natureza, não se pode distinguir categoricamente entre o belo e o não-belo, a consciência, que mergulha amorosamente numa coisa bela, vê-se contudo coagida a tal distinção. Um elemento qualitativamente diferente no belo da natureza, se é que ele existe, deve buscar-se no grau de eloqüência daquilo que não é fabricado pelos homens, na sua expressão. Belo, na natureza, é o que aparece como algo mais do que o que existe literal- mente no seu lugar. Sem receptividade, não existiria uma tal expres- são objectiva, mas ela não se reduz ao sujeito; o belo natural aponta para o primado do objecto na experiência subjectiva. Ele é percebido ao mesmo tempo como algo de compulsivamente obrigatório e como incompreensível, que espera interrogativamente a sua resolução. Pou- cas coisas se transferiram tão perfeitamente do belo natural para as obras de arte como este duplo caracter. Sob este seu aspecto, a arte é, em vez de imitação da natureza, uma imitação do belo natural. Este último aumenta juntamente com a intenção alegórica, que o denuncia sem o decifrar; e ainda com as significações que, ao contrário da linguagem significativa, não se objectivam. Elas seriam plenamente de essência histórica como o «Winkel von Hardt» de Hõlderlin (27). Um grupo de árvores sobressai como belo - mais belo do que os outros - lá onde surge, ainda que vagamente, como sinal de um acontecimento passado; uma rocha que, por um segundo, se torna para o olhar um animal antediluviano, enquanto que, logo a seguir, a semelhança se esvai de novo. Tem aqui o seu lugar uma dimensão da experiência romântica, que se afirma para lá da filosofia e da concepção român- ticas. No belo natural, entram em jogo intimamente unidos, ora de (27) Cf. Hõlderlin, op. cit., t. II, p. 120. 86 87 modo musical, ora à semelhança de um caleidoscópio, elementos naturais e históricos. Um deles pode assumir o lugar do outro e é nesta flutua- ção, não na univocidade das relações, que vive o belo natural. É um espectáculo, tal como as nuvens representam dramas shakespeareanos, ou as franjas iluminadas das nuvens prolongam aparentemente a du- ração do relâmpago. Porque a arte não copia as nuvens é que os dramas tentam representar a arte das nuvens; em Shakespeare, isso é sublinhado numa cena de Hamlet com os seus cortesãos. O belo na- tural é história suspensa, devir interrompido. Sempre que, com razão, se concede às obras de arte um sentimento natural, elas reagem a propósito. Só que esse sentimento, apesar de todo o parentesco com a alegorese, é fugaz até ao de j à vu e é mesmo sumamente efêmero. Humboldt adopta também uma posição média entre Kant e Hegel ao aderir firmemente ao belo natural, esforçando-se, contra o formalismo kantiano, por concretizá-lo. Assim, no escrito sobre as bacias dos fontenários, injustamente eclipsado pela Viagem à Itália de Goethe, crítica a natureza sem que esta, como seria de esperar cento e cin- qüenta anos mais tarde, caia no ridículo em virtude da sua seriedade. Humboldt censura a uma grandiosa paisagem de rochas a falta de árvores. O verso «A cidade está bem situada, mas falta-lhe a monta- nha» escarnece de tais sentenças; a mesma paisagem teria certamente entusiasmado cinqüenta anos mais tarde. No entanto, a ingenuidade, inseparável pela natureza extra-humana do uso da faculdade humana do juízo, testifica uma relação com aquela, que é incomparavelmente muito mais estreita do que a admiração universalmente satisfeita. Pe- rante a paisagem, a razão não supõe apenas, como prima fade se poderia suspeitar, um gosto epocal pela razão e pela harmonia, o qual subentende ainda o extra-humano enquanto sintonizado com o ho- mem. Além disso, a razão está vivamente impregnada de uma filoso- fia natural que interpreta a natureza como algo de muito significativo em si, idéia que Goethe partilhava com Schelling. Tal como essa concepção, também a experiência da natureza, que a inspira, é irrecuperável. Mas, a crítica da natureza não é apenas a hybris do espírito que se abre ao absoluto. Apoia-se em parte no objecto. Tão verdade é que, na natureza, tudo pode ser apreendido como belo, como verdadeiro é o juízo de que a paisagem da Toscana é mais bela do que a região de Gelsenkirchen. Sem dúvida, a irrelevância do belo natural acompanhou a decadência da filosofia natural. Esta, porém, não morreu apenas como ingrediente da história do espírito; a expe- riência, que a produzia bem como à felicidade na natureza, modifi- cou-se radicalmente. Com o belo natural passa-se o mesmo que com a cultura: esvazia-se em virtude da conseqüência imperiosa da sua extensão. As descrições da natureza de Humboldt resistem a toda a comparação; as descrições do mar da Biscaia em fúria ocupam uma posição intermédia entre as fórmulas mais poderosas de Kant sobre o sublime e a descrição do Maelstrom de Põe; mas estão irrepetivelmente associadas ao seu momento histórico. O juízo de Solger e Hegel, que da indeterminação crepuscular do belo natural inferiam a sua inferio- ridade, estava errado. Goethe podia ainda distinguir entre os objectos que eram dignos, da pintura e os que o não são; isso levou-o a glori- ficar a caça de motivo e uma pintura de lugares pitorescos, que já não agradavam mesmo ao gosto pretensioso dos editores do jubileu. A estreiteza classificadora dos juízos de Goethe sobre a natureza é, no entanto, em virtude da concreção, superior ao aforismo banal de que tudo é igualmente belo. Sem dúvida, a definição do belo natural, sob a pressão do desenvolvimento pictórico, inverteu-se. Observou-se de- masiado freqüentemente e com um espírito fácil que os próprios pôres-- do-sol eram embaciados pelas obras kitsch. A responsabilidade pela má sorte da teoria do belo natural não é nem da fraqueza rectificável das reflexões, nem da pobreza do objecto inquirido. O belo natural define-se antes pela sua indeterminação, imprecisão do objecto não menos que do conceito. Enquanto indeterminado, em antítese com as determinações, o belo natural é indefinível; aparenta-se nisso com a música que, em Schubert, a partir de tal similaridade inobjectiva ar- ranca os mais profundos efeitos. Como na música, também na natu- reza resplandece o que é belo para, logo a seguir, desaparecer perante a tentativa de o petrificar. A arte não imita nem a natureza, nem um belo natural singular, mas o belo natural em si. Para lá da aporia do belo natural, menciona-se aqui a aporia da estética no seu conjunto. O seu objecto define-se como indeterminável, negativamente. Por isso, a arte necessita da filosofia, que a interprete, para dizer o que ela não consegue dizer, enquanto que, porém, só pela arte pode ser dito, ao não dize-lo. Os paradoxos da estética são ditados pelo seu objecto: «O belo exige talvez a imitação servil do que é indefinível nas coisas» (28). Se é bárbaro afirmar de alguma coisa na natureza que ela é mais bela do que outra, o conceito do belo na natureza enquanto diferenciável traz, contudo, em .si de modo teleológico uma tal barbárie ao passo que, na realidade, o protótipo do pedante permanece aquele que é cego perante o belo natural. A razão disso é o caracter enigmático da sua linguagem. Semelhante insuficiência do belo natural conseguiu, de acordo com a doutrina hegeliana dos degraus, ter desempenhado também um papel como motivação da arte enfática. Com efeito, na arte, o incaptável é objectivado e intimado à duração: nesta medida é conceito, só que não à maneira da lógica discursiva. A fraqueza do pensamento perante o belo natural, enquanto fraqueza do sujeito, e a sua força objectiva exigem que o seu caracter enigmático se reflicta na arte e, por conseguinte, se defina pelo conceito, embora não se trate aqui de algo de conceptual em si. O Wanderers Nachtlied é incomparável, porque aí não é tanto o sujeito que fala - preferiria antes, como em toda a obra autêntica, emudeder nesta perfeitamen- te -, mas porque imita, pela sua linguagem, o indizível da linguagem (28) Cf. Paul Valéry, Oeuwres, Pléiade, Gallimard, t. II, p. 681. 89 formal. Hegel não se decide a tal; eis talvez porque confunde os momentos materiais da arte com o seu conteúdo objectivo. Ao rejeitar o caracter efêmero do belo natural, como também tendencialmente tudo o que é inconceptual, mostra-se obstinadamente indiferente quanto ao motivo central da arte, que é tactear a sua verdade no fugidio, no frágil. A filosofia de Hegel tropeça perante o belo: porque ele equi- para entre si a razão e o real através da totalidade das suas media- ções, hipostasia também o equipamento de todo o ente mediante a subjectividade enquanto absoluto, e o não-idêntico serve-lhe apenas de entrave da subjectividade, em vez de definir a experiência do não-- idêntico como telos do sujeito estético, como sua emancipação. A estética dialéctica em progresso torna-se necessariamente também crítica da estética hegeliana. A transição do belo natural para o belo artístico é dialéctica en- quanto transição para a dominação. É artisticamente belo o que é objectivãmente dominado no quadro, que em virtude da sua objecti- vidade transcende a dominação. As obras de arte libertam-se dela, ao transformarem em trabalho produtivo o comportamento estético sen- sível ao belo natural, trabalho esse que tem o seu modelo no trabalho material. Mas, enquanto linguagem dos homens, simultaneamente organizadora e reconciliada, a arte gostaria de se aproximar daquilo que, na linguagem da natureza, se oculta aos homens. As obras de arte têm tantos elementos comuns com a filosofia idealista que elas impe- lem a reconciliação para a identidade com o sujeito; na verdade, esta filosofia tem aqui a arte por modelo, como acontece expressamente em Schelling, e não o inverso. Elas estendem ao extremo a esfera de dominação dos homens, não à letra, porém, mas em virtude do esta- belecimento de uma esfera para si, que se separa da dominação real precisamente pela sua imanência estabelecida e deste modo a nega na sua heteronomia. Só mediante esta polarização, não através da pseudomorfose da arte em natureza, é que as duas reciprocamente se mediatizam. Quanto mais rigidamente as obras de arte se abstêm do natural e da reprodução da natureza, tanto mais as obras bem sucedi- das se aproximam da natureza. A objectividade estética, reflexo do ser-em-si da natureza, realiza perfeitamente o momento de unidade subjectivãmente teleológico; só assim as obras se tornam semelhantes à natureza. Em contrapartida, toda a semelhança particular é aciden- tal, quase sempre estranha à arte e ligada às coisas. O sentimento de necessidade de uma obra de arte é apenas uma outra expressão para tal objectividade. Com o seu conceito faz-se, como demonstra Benja- min, um mau uso da habitual história do espírito. Aspira-se a apreen- der ou a justificar fenômenos com os quais não é possível estabelecer de outro modo nenhuma relação, sobretudo histórica, declarando-os necessários, por exemplo, justificar uma música monótona porque ela se tornou necessária enquanto fase inicial da grande música. A prova de semelhante necessidade nunca se poderá fornecer: nem na obra artística singular, nem na relação histórica recíproca das obras de arte e dos estilos existe legalidade evidente segundo o tipo das ciências da natureza; e as coisas não vão melhor com a psicologia. Na arte, não se deve falar more scientifico da necessidade, mas só na medida em que uma obra opera pelo poder do seu fechamento a evidência do seu ser-assim-e-não-de-outro-modo, como se ela houvesse apenas de lá estar e dela não se pudesse abstrair. O ser-em-si, a que aspiram as obras de arte, não é a imitação de algo real, mas antecipação de um em-si que ainda não existe, de um incógnito e de alguma coisa que se define através do sujeito. As obras de arte indicam que algo existe em si, mas nada predizem a seu respeito. De facto, a arte, como desejaria a consciência reificada, não alienou a natureza pela espiritualização que a afectou durante os últimos duzentos anos e graças à qual se tornou autónorna, mas, segundo a sua própria estrutura, aproximou-se do belo natural. Uma teoria da arte, que identificasse simplesmente a sua tendência para a subjectivização com o desenvolvimento da razão subjectiva em conformidade com a ciência, passaria por alto o conteú- do do movimento artístico em favor do plausível. A arte gostaria de com meios humanos realizar o falar do não-humano. A pura expres- são das obras de arte liberta das interferências coisais e também do chamado material natural; converge com a natureza, da mesma ma- neira que, nas mais autênticas criações de Anton Webern, o som puro, a que se reduzem em virtude da sensibilidade subjectiva, se transfor- ma em tom natural; no de uma natureza eloqüente, é certo, linguagem sua, e não em cópia de um elemento desta. A plena elaboração sub- jectiva da arte enquanto linguagem não conceptual é, no estádio da racionalidade, a única figura em que reflecte algo de parecido com a linguagem da criação, com o paradoxo do efeito de deslocamento próprio de fenômeno de reflexão. A arte procura imitar uma expres- são, que não incluiria intenção humana. Esta é apenas o seu veículo. Quanto mais perfeita uma obra de arte, tanto mais as intenções dela se ausentam. A natureza, indirectamente o conteúdo de verdade da arte, elabora imediatamente o seu contrário. Se a linguagem da natu- reza é muda, a arte aspira a fazer falar o silêncio, exposta ao insucesso pela contradição insuperável entre esta idéia, que impõe o esforço desesperado, e aquela,, a que se aplica o esforço, de um não-intencio- nal puro e simples. A natureza deve a sua beleza ao facto de parecer dizer mais do que é. A idéia da arte é arrancar este mais à sua contingência, torná-- lo senhor da sua aparência, determiná-lo a ele mesmo como aparên- cia, e também negá-lo como irreal. O «Mais» fabricado pelo homem não garante em si o conteúdo metafísico da arte. Esta poderia ser um nada absoluto e, no entanto, as obras de arte poderiam pôr esse «Mais» como aparência. Tornam-se obras de arte na elaboração do «Mais»; produzem â sua própria transcendência, sem serem o seu teatro, e, por isso, são novamente separadas da transcendência. O lugar da trans- 94 95 cendência nas obras de arte é a coerência dos seus momentos. Ao nela insistirem e a ela se adaptarem, ultrapassam a aparição que elas são, mas tal ultrapassagem pode ser irreal. Na realização dessa ultrapas- sagem, não em primeiro lugar, mas antes graças a significações, as obras de arte são algo de espiritual. A sua transcendência é o seu discurso ou a sua escrita, mas uma escrita sem significação ou, mais exactamente, com uma significação truncada ou velada. Subjectiva- mente mediatizada, ela manifesta-se objectivamente, mas de um modo ainda mais descontínuo. A arte degrada-se mais que o seu conceito e, quando não atinge essa transcendência, perde o seu caracter de arte. Contudo, trai igualmente a transcendência quando a procura enquan- to coerência produtiva. Isso implica um critério essencial da arte nova. As composições degeneram em fundos sonoros ou em mate- rial puramente artificial, em quadros, onde as tramas geométricas, a que elas se reduzem, permanecem na redução o que são; daí, a relevância dos desvios a partir das formas matemáticas em todas as obras que delas se servem. O estremecimento intentado perde o valor: não tem lugar. Um dos paradoxos das obras de arte é que elas não têm o direito de estabelecer o que estabelecem; por aí se mede a sua substancialidade. A definição psicológica da forma, segundo a qual um todo é mais do que as suas partes, não basta para descrever o «Mais». Com efeito, o «Mais» não é apenas a coerência, mas um outro, por ela mediatizado e, apesar de tudo, dela distinto. Os momentos artísticos na sua coerên- cia sugerem o que nesta não se integra. Choca-se assim, porém, com uma antinomia filosófico-histórica. Sob a temática da aura, cujo con- ceito se aproxima muito da aparição - remetendo para além de si por força do seu fechamento -, Benjamin chamou a atenção para o facto de que a evolução inaugurada por Baudelaire interdiz a aura, aproxi- madamente como «atmosfera» (37); já em Baudelaire a transcendência da aparição artística é simultaneamente realizada e negada. Sob este aspecto, a Entkunstung da arte não se define apenas como fase da sua liquidação, mas como sua tendência evolutiva. No entanto, a rebelião contra a aura e a atmosfera, entrementes socializada, não fez apenas desaparecer esta liquidação em que o «Mais» do fenômeno se mani- festa contra este último. Basta simplesmente comparar bons poemas de Brecht, que se comportam como se fossem proposições protocola- res, com maus poemas de autores, nos quais a rebelião contra o ele- mento poetizante regressa ao pré-estético. O que na lírica desencan- tada de Brecht difere basicamente da expressão simplista constitui a sua qualidade eminente. Erich Kahler foi, sem dúvida, o primeiro a ver isso; o poema dos Dois Grous (38) é a este respeito p maior tes- (37) Cf. Walter Benjamin, Schriften, ibid, Vol I, p. 459 ss. (38) Cf. Bertolt Brecht, Gediehte //, Francoforte 1960, p. 210 («Die Liebenden»). temunho. A transcendência estética e o desencantamento encontram-- se em uníssono no mutismo: na obra de Beckett. O facto de a lingua- gem afastada de toda a significação não ser uma linguagem que fala funda a sua afinidade com o mutismo. Talvez toda a expressão, muito aparentada com o transcendente, esteja perto do mutismo, da mesma maneira que, na grande música moderna, nada tem tanta expressão como o que se extingue, o som que emerge nu da forma compacta, no qual a arte, em virtude do seu próprio movimento, desemboca no seu momento natural. O instante da expressão nas obras de arte não é, porém, a sua redução ao seu material enquanto algo de imediato, mas extremamente mediatizado. As obras de arte tornam-se aparições no sentido mais rico do termo, aparições de um outro, quando o acento incide sobre o caracter irreal da sua realidade. O caracter do acto a elas imanente confere-lhes algo de momentâneo, de súbito, tivessem ainda elas de ser muito elaboradas nos seus materiais como algo de duradoiro. O sentimento de surpresa perante toda a obra importante regista isso. Desse caracter imanente todas as obras de arte recebem, analogamente ao belo natural, a sua semelhança com a música, cujo nome evocava outrora o de musa. Perante a contemplação paciente, as obras de arte entram em movimento. Sob este aspecto, são elas verdadeiras cópias do estremecimento pré-histórico, na época da objectivação; o seu caracter terrífico ressurge perante os objectos objectivados. Quanto mais pro- fundo o gregu entre as coisas singulares delimitadas, separadas umas das outras, e a essência esvanecente, tanto mais vazio é o olhar das obras de arte, única anamnese do que teria o seu lugar para além do gregu. Porque o estremecimento passou e, apesar de tudo, sobrevive, é que as obras de arte o objectivam como suas cópias. Com efeito, se outrora os homens, na sua impotência perante a natureza, talvez te- nham temido o estremecimento como algo de real, o seu medo não é nem mais fraco, nem menos fundado perante o facto de ele desapare- cer. Toda a Aufklarung é acompanhada pela angústia de que venha a esvanecer-se o que ela pôs em movimento e o que corre o risco de por ela ser devorado: a verdade. Restituída a si mesma, ela afasta-se daquela objectividade límpida, que gostaria de atingir; daí que lhe esteja adscrito, por necessidade da sua própria verdade, o ímpeto a conservar o que é condenado em nome da verdade. A arte é esta Mnemósina. No entanto, o instante da aparição nas obras é a unidade paradoxal ou o equilíbrio do que se esvanece e jo que se preserva. As obras de arte são tanto um imobilismo como um dinamismo; gêneros abaixo da cultura aprovada, como os quadros nas cenas de circo e nas revistas, e até já os jogos de água mecânicos do séc. XVII, são confissões do que as obras de arte autênticas ocultam em si como o seu apriori secreto. Permanecem ao mesmo tempo sob o efeito da Aufklãrung, M porque gostariam de tornar comensuravel aos homens este estremeci- mento relembrado, incomensurável na pré-história mágica. A formu- 96 97 lação hegeliana da arte como tentativa de eliminar o estranho (39) exprime esta idéia. No artefacto, o estremecimento liberta-se da ilu- são mítica do seu ser-em-si, sem que, no entanto, seja nivelado pelo espírito subjectivo. A autonomização das obras de arte, a sua objec- tivação pelos homens, apresenta a estes o estremecimento como algo de não atenuado e que jamais aconteceu. O acto da alienação em semelhante objectivação, que toda a obra de arte realiza, é correctivo. As obras de arte são epifanias neutralizadas e, deste modo, qualitati- vamente modificadas. Se as antigas divindades nos seus locais de culto tiveram de aparecer transitórias ou, pelo menos, apareceram num passado longínquo, esta aparição tornou-se a lei da permanência das obras de arte, à custa da encarnação viva da aparição. Aproxima-- se muito da obra de arte enquanto aparição a apparation, aparição celeste. As obras artísticas estão de acordo com ela na sua transcen- dência supra-humana, que se subtrai à intenção dos homens e ao mundo das coisas. As obras de arte, a que foi extirpada a apparition sem deixar vestígio, nada mais são do que envólucros, piores do que a simples existência, porque não servem para nada. As obras nunca se recordam tanto do mana como na sua antítese mais extrema, isto é, na construção de ineluctabilidade posta subjectivãmente. O instante, que as obras de arte são, cristalizava-se pelo menos nas obras tradicionais, onde se tornavam totalidade a partir dos seus momentos particulares. O momento fértil da sua objectivação é o que os concentra na apari- ção, de nenhum modo apenas os caracteres da expressão que se espa- lham a propósito das obras. Elas ultrapassam o mundo das coisas por meio do seu próprio elemento coisal, da sua objectivação artificial. Falam em virtude da ignescência da coisa e da aparição. São coisas destinadas a aparecer. O seu processo imanente exterioriza-se como seu próprio «fazer» e não como o que os homens nelas fizeram e não simplesmente para os homens. O fenômeno do fogo de artifício, que, por causa do seu caracter efêmero e enquanto divertimento vazio, dificilmente foi julgado digno de consideração teórica, é prototípico para as obras de arte; só Valéry desenvolveu reflexões que, pelo menos, dele se aproximam. O fogo de artifício é apparition ^OCT £^o%r|v: aparição empírica liberta do peso da empiria, enquanto peso da duração, sinal celeste e produzido de uma só vez, Mené Teqél, escrita fulgurante e fugidia, que não se deixa ler no seu significado. O isolamento da esfera estética na total gratuitidade de um efêmero absoluto não pode servir-lhe de definição formal. Não é pela perfeição elevada que as obras de arte se separam do ente indigente mas, de modo semelhante ao fogo de artificio, ao actualiza- rem-se numa aparição expressiva fulgurante. Não constituem apenas (39) Cf. Hegel, op. cit., I Parte, p. 41: «O homem faz isso [isto é, transforma as coisas exteriores às quais imprime o selo da sua interioridade], para tirar do mundo exterior, enquanto sujeito livre, a sua estranheza árida e, na forma das coisas, sabo- rear apenas uma realidade exterior a si mesma.» o outro da empiria: tudo nelas se torna outro. A isso aspira com toda a força a consciência pré-artística nas obras de arte. A consciência obedece ao encantamento que, de qualquer modo, só conduz à arte ao servir de mediação entre a arte e a empiria. Enquanto que o estrato pré-artístico é contaminado pela sua decomposição ao ponto de as obras de arte o eliminarem, ele sobrevive nelas sublimado. As obras de arte possuem menos a idealidade do que prometem, em virtude da sua espiritualização, uma sensibilidade bloqueada ou denegada. Essa qualidade é perceptível nos fenômenos dos quais se emancipou a experiência estética, nos relictos de uma arte de certo modo afastada da arte, a bem ou mal chamada inferior, como no circo, para o qual se viraram, em França, os pintores cubistas e os seus teóricos e, na Alemanha, Wedekind. A arte corporal, segundo a expressão de Wedekind, não ficou só para trás da arte espiritualizada, não perma- neceu simplesmente como seu complemento: enquanto não-intencio- nal, foi também o seu modelo. Toda e qualquer obra de arte, pela sua simples existência, enquanto obra estranha ao que está alienado, con- jura o circo; está, porém, perdida logo que com ele compete. A arte torna-se quadro, não imediatamente pela apparition, mas só através da tendência que lhe é antagonista. O estrato pré-artístico da arte é ao mesmo tempo o memento da sua característica anticultural, da sua suspeita perante a antítese ao mundo empírico, que a este deixa intacto. As obras importantes aspiram, contudo, a incorporar em si esse estrato anti-artístico. Onde ela, suspeita de infantilismo, falta - ao espiritual intérprete de música de câmara o último vestígio do rabequista, ao teatro sem ilusão o último vestígio da mágica de bastidores -, a arte capitulou. Também para Fin de Partie de Beckett, o levantar do pano é rico de promessas; as peças de teatro e os processos de ence- nação, que o omitem, saltam sobre a sua sombra com um truque inútil. O instante em que o,pano sobe é a expectativa da apparition. Se as peças de Beckett, lívidas como o pôr do sol e o declínio do mundo, querem exorcizar a variegação do circo, são-lhe, no entanto, fiéis por serem representadas no palco; sabe-se que os seus anti-heróis foram inspirados pelos clowns e pelo burlesco cinematográfico. Aliás, não renunciam de nenhum modo, com toda a austerity, ao guarda-roupa e aos bastidores: o criado Clov, que em vão gostaria de fugir, veste a indumentária cômica e velha do Inglês em viagem: a colina de areia dos Happy Days assemelha-se às formações do Oeste americano. Fica sobretudo por perguntar se as obras mais abstractas da pintura não trazem consigo, através do seu material e da sua organização visual, resquícios da objectividade que elas põem fora de circuito. Mesmo as obras de arte que se interdizem incorruptivelmente a solenidade e a consolação não fazem desaparecer a pompa; adquirem-na tanto mais quanto mais bem sucedidas são. Hoje, tal pompa entrou justamente nas obras desesperadas. A sua ausência de finalidade, para lá do abismo das idades, simpatiza com o vagabundo inútil, que não se conforma totalmente com a firme propriedade e a civilização sedentária. Entre 98 99 não há que hipostasiar as imagens, mesmo quando são históricas. - As imagens estéticas não são algo de imóvel, invariantes arcaicas: as obras de arte tornam-se imagens por os processos, que nelas se petri- ficam em objectividade, falarem por si mesmos. A imagerie da arte é confundida com o seu contrário pela religião burguesa da arte de proveniência diltheyana: com o tesouro das representações psicológi- cas dos artistas. Tal tesouro é um elemento da matéria prima que entra na composição da obra de arte. Os processos latentes nas obras de arte e que irrompem no instante, são antes a sua historicidade interna, a sua história externa sedimentada. A vinculatoriedade da sua objec- tivação e as experiências, de que elas vivem, são colectivas. A lingua- gem das obras artísticas é, como qualquer outra, constituída por uma corrente colectiva subterrânea, em especial aquelas que são subsumidas pelo clichê cultural como isoladas, emparedadas na torre de marfim; a sua substância colectiva exprime-se a partir do seu próprio caracter simbólico, e não a partir do que elas gostariam de enunciar em refe- rência directa à colectividade, como bombasticamente se afirma. A realização especificamente artística consiste em apanhar de surpresa a sua vinculatoriedade predominante, não através da temática ou do contexto da acção, mas em apresentar monadologicamente, mediante a imersão nas suas experiências fundamentais, o que está para além da mónada. O resultado da obra é tanto o caminho que leva à sua imago como esta enquanto objectivo; é simultaneamente estático e dinâmico. A experiência subjectiva produz imagens que não são ima- gens de alguma coisa, mas justamente imagens de natureza colectiva; é assim e não de outro modo que a arte é mediatizada para a experi- ência. Em virtude de tal conteúdo experiencial e não apenas pela fixação ou modelação na acepção usual, as obras de arte divergem da realidade empírica; empiria mediante a deformação empírica. Tal é a sua afinidade com o sonho, tanto quanto a sua legalidade formal as subtrai aos sonhos. Isso indica igualmente que o momento subjectivo das obras de arte é mediatizado pelo seu ser-em-si. A sua colectivi- dade latente liberta a obra artística monadológica da contingência da sua individuação. A sociedade, a determinante da experiência, cons- titui as obras como seu verdadeiro sujeito; eis o que se pode objectar à censura de subjectivismo, corrente quer na direita quer na esquerda. Em todos os estádios estéticos, renova-se o antagonismo entre a irre- alidade da imago e a realidade do conteúdo histórico emergente. Mas as imagens estéticas emancipam-se das imagens míticas ao subordi- narem-se à sua própria irrealidade; a lei formal não significa outra coisa. Isso constitui a sua méthexis na Aufklãrwng. O ponto de vista da obra de arte empenhada ou didáctica regride para lá disso. Sem atender à realidade (Wirklichkeit) das imagens estéticas, ela planifica a antítese da arte à realidade (Realitàt) e integra-a nesta realidade que ela ataca. São «esclarecidas» as obras de arte que, numa distância inflexível relativamente à empiria, dão testemunho de uma consciên- cia verídica. O espírito é aquilo mediante o qual as obras de arte, ao tornarem-- se aparição, são mais do que são. A determinação das obras de arte pelo espírito está associada à sua definição como fenômeno emergen- te, não aparição cega. O que aparece nas obras artísticas, inseparável da aparição, mas também a ela não idêntico, isto é, o não-fáctico na sua facticidade, é o seu espírito. Este faz das obras de arte, coisas entre as coisas, um outro enquanto coisal, ao passo que elas, porém, só podem tornar-se coisas, não em virtude da sua localização nó es- paço e no tempo, mas graças ao processo de reificação que lhei é imanente, que as torna em algo de semelhante a si mesmo, a elas idêntico. De outro modo, dificilmente se poderia falar do seu espírito, do simples não-coisal. Ele não é unicamente o spiritus, o sopro que anima as obras de arte e as transforma em fenômeno, mas também a força ou o interior das obras, a força da sua objectivação; participa não menos nesta do que na fenomenalidade, que lhe é contrária, O espírito das obras de arte é a sua mediação imanente, que sobrevém aos seus instantes sensíveis e à sua configuração objectiva; mediação no sentido estrito de que cada um destes momentos na obra de arte se transforma claramente no seu outro. O conceito estético do espírito é gravemente comprometido, não só pelo idealismo, mas também por escritos que datam dos inícios do modernismo radical, como os de Kandinsky. Em revolta motivada contra um sensualismo que, mesmo no Jugendstil,. confere a preponderância à satisfação sensível na arte, ele isolava abstractamente o oposto deste princípio e reificava-o de tal modo que era difícil distinguir o «Deves crer no espírito» da supers- tição e do fanatismo artesanal pelo princípio supremo. O espírito das obras de arte transcenderão mesmo tempo a sua coisidade e o fenô- meno sensível e sójexj.ste_enquantg_essas duas coisas são momentos. Isso exprime negativamente que, nas obras de arte, nada é literal. menos ainda as suas palavras; o espírito é o seu éter, o que através delas fala ou, mais rigorosamente., ceias az uma escrita. Assim como não seria espírito que nelas não brotasse da configuração dos seus momentos sensíveis - todo o outro espírito nas obras de arte, em especial o espírito filosoficamente acrescentado e pretensamente ex- presso, todos os ingredientes intelectuais aí são materiais, como as cores e os sons -, assim também um elemento sensível não seria artístico, se não fosse mediatizado pelo espírito. Mesmo as obras fran- cesas mais sensíveis e mais fascinantes adquirem a sua dignidade ao transformarem involuntariamente os seus momentos sensuais em por- tadores de um espírito, que possui o seu conteúdo de experiência na resignação funesta relativamente ao existente sensível perecível; pois, tais obras jamais fruem a sua suavidade, ela é incessantemente ampu- tada pelo sentimento formal. Sem qualquer referência a uma filosofia do espírito objectivo ou subjectivo, o espírito das obras de arte é objectivo, isto é, o seu próprio conteúdo; é ele que delas decide: espírito da própria coisa, que emerge através da aparição. A sua ob- jectividade tem o seu critério na violência com que ele se infiltra na 104 105 aparição. Compreende-se quão pouco ele se assemelha ao espírito dos autores, quando muito a um dos seus momentos, por ser evocado pelo artefacto, pelos seus problemas e pelo seu material. A própria apari- ção da obra de arte enquanto totalidade não é nem o seu espírito, nem finalmente a idéia por ele pretensamente encarnada ou simbolizada; é impossível apreendê-lo em identidade imediata com a. sua aparição. Também não constitui nenhum estrato situado abaixo ou por cima'da aparição, cuja suposição não seria menos coisal. O seu lugar é a configuração do que aparece. Ele dá forma à aparição, como esta também o modela; fonte luminosa pela qual resplandece o fenômeno, se torna fenômeno no sentido mais preciso do termo. Para a arte, só o seu elemento sensível é espiritualizado, refractado. É o que se pode ilustrar na categoria da gravidade em importantes obras artísticas do passado, sem cujo conhecimento a análise seria infrutífera. Antes do início da retomada da primeira frase musical da Sonata a Kreutzer, a que Tolstoi censura a sua carga sensual, um acorde de segunda subdominante produz um efeito considerável. Se ele ocorresse em qualquer outro lado, além da Sonata a Kreutzer, seria mais ou menos irrelevante. A passagem adquire a sua importância unicamente nesta frase pelo lugar e pela função que aí desempenha. Torna-se grave ao pôr o acento, ao mesmo tempo que remete para além, mediante o seu hic et nunc, sobre este aspecto e ao difundir o sentimento de gravida- de sobre o que precede e o que segue. Tal sentimento não deve con- ceber-se como uma qualidade sensual singular mas, pela constelação sensível de alguns acordes no lugar crítico, torna-se irrefutável como só o é tudo o que toca aos sentidos. O espírito, que se manifesta esteticamente, é conjurado para o seu lugar no fenômeno, como ou- trora os espíritos deviam estar nos lugares que assediavam; a não ser que apareça, as obras de arte existem tão pouco como ele. E indife- rente quanto à distinção entre arte de pendor sensual e uma arte idea- lista segundo o esquema da história do espírito. Tanto quanto a arte sensual existe, ela encarna o espírito da sensibilidade, não é apenas sensual; a concepção de Wedekind do espírito carnal (Fleischgeist) registara isso. O espírito, elemento da vida da arte, está vinculado ao seu conteúdo de verdade sem com ele coincidir. O espírito das obras pode ser a inverdade. Com efeito, o conteúdo de verdade postula como sua substância um real, e nenhum espírito é um real imediato. Tanto mais irreflectidamente ele determina sempre as obras de arte e arrebata para o seu domínio tudo o que é puramente sensual e factual. As obras tornam-se assim mais seculares, mais hostis à mitologia, à ilusão de uma realidade do espírito, mesmo da do seu próprio espírito. As obras de arte mediatizadas radicalmente pelo espírito vivem deste modo de si mesmas. Na negação determinada da realidade do espírito, porém, elas permanecem a ele referidas: não o reflectem, mas a força que contra ele mobilizam é a sua omnipresença. Nenhuma outra forma do espírito se pode hoje apresentar; a arte fornece o seu protótipo. Enquanto tensão entre os elementos da obra de arte, em vez de ser um simples existente sui generis, o seu espírito é processo e ao mesmo tempo a obra de arte. Conhecer a obra de arte é apreender aquele processo. O espírito das obras artísticas não é conceito, mas é por seu intermédio que se tornam comensuráveis ao conceito, A crítica, ao isolar o espírito a partir das configurações das obras, ao confrontar entre si os momentos e com o espírito que nelas aparece, transforma-- se em sua verdade para além da configuração estética, Bis porque a crítica é necessária às obras. No espírito das obras, ela reconhece O seu conteúdo de verdade ou dele o distingue. Só neste acto, i nlo através de uma filosofia da arte que a esta ditaria o que o seu espírito devia ser, é que a arte e a filosofia convergem. À estrita imanência do espírito das obras de arte contrapõe-se, certamente, uma tendência antagonista não menos imanente: a de se desenredar do fechamento da própria estrutura, de em si colocar cesuras que já não permitem a totalidade da aparição. O espírito das obras, porque nelas se não esgota, quebra a forma objectiva através da qual se constitui a si mesmo; tal ruptura é o instante da apparition. Se o espírito das obras de arte fosse literalmente idêntico aos seus momen- tos sensíveis e à sua organização, seria apenas a substância da apa- rição: a recusa aqui é o limiar contra o idealismo estético. O espírito das obras de arte resplandece na sua aparição sensível, resplandece unicamente como sua negação, na unidade com o fenômeno simulta- neamente enquanto seu outro. O espírito das obras de arte adere à sua forma, mas só é espírito enquanto aponta para lá dela. A ausência de qualquer diferença entre a articulação e o articulado, a forma imanen- te e o conteúdo, é fascinante sobretudo como apologia da arte moder- na, mas dificilmente se pode manter. Torna-se aqui plausível que o essencial da análise tecnológica não capta em primeiro lugar o espí- rito de uma obra, mesmo se ela já não é uma redução inimaginativa aos elementos, mas realça o contexto e a sua legalidade bem como as componentes originais reais ou supostas; apenas uma reflexão apro- fundada o faz aparecer. Só enquanto espírito é a arte a contradição da realidade empírica, que se orienta para a negação determinada da organização do mundo existente. A arte deve construir-se dialecticamente na medida em que o espírito lhe é imanente, sem que ela, porém, o possua como absoluto ou ele lhe garanta um absoluto. Por mais que as obras de arte queiram parecer como um ente, cristalizam-se entre esse espírito e o seu outro. Na estética hegeliana, a objectividade da obra de arte era a objectividade transformada na sua alteridade e ao mesmo tempo verdade idêntica do espírito. Para ele, o espírito iden- tificava-se com a totalidade, incluindo a totalidade estética. Mas, nas obras de arte, o espírito não é nenhuma particularidade intencional, mas um momento, como todo o individual, todo o elemento constitu- tivo; .é, sem dúvida, o que transforma em arte os artefactos, nunca, porém, sem o que lhe é contrário. De facto, a história dificilmente conheceu obras artísticas que alguma vez atingissem a pura identidade do espírito e do não-espiritual. Segundo o seu próprio conceito, o 106 107 espírito não é puro nas obras, mas função daquilo que o faz surgir. As obras que parecem encarnar tal identidade e nela se comprazem difi- cilmente são as mais significativas. Claro, o que nas obras de arte se opõe ao espírito de nenhum modo é o elemento natural próprio dos seus materiais e objectos; designa antes nas obras artísticas um valor-- limite. Os materiais e os objectos são histórica e socialmente pré-- formados como os seus procedimentos técnicos e modificam-se de dm modo decisivo em virtude do que lhes acontece nas obras. O seu elemento heterogêneo é imanente: o que neles resiste à sua unidade e de que a unidade precisa para ser mais do que uma vitória de Pirro sobre o que não oferece resistência. Que o espírito das obras de arte não se deve simplesmente comparar com o seu contexto imanente, isto é, a complexão dos seus momentos sensíveis, confirma-se por eles de nenhum modo constituírem aquela unidade em si sem falha, aquele tipo de forma a que a reflexão estética os reduziria mediante uma estilização adequada. Quanto à sua estrutura, as obras não são organismos, mas os produtos mais elevados, refractários ao seu as- pecto orgânico enquanto ilusório e afirmativo. Em todos os seus gê- neros, a arte está penetrada de momentos intelectivos. Basta dizer que as grandes formas musicais jamais se teriam constituído sem eles, sem a pré-audição e a pós-audição, sem a expectativa e a lembrança, sem a síntese do dividido. Enquanto que tais funções se devem atri- buir em certa medida à imediatidade sensível, portanto, que comple- xos parciais actuais suscitam as qualidades estruturais do passado e do futuro, as obras de arte, porém, atingem valores liminares onde semelhante imediatidade acaba, onde elas devem ser «pensadas», não numa reflexão que lhes é exterior, mas a partir delas próprias: à sua congênita complexão sensível cabe a mediação intelectiva que condi- ciona a sua percepção. Se existe como que uma característica predo- minante das grandes obras tardias, deveria procurar-se na irrupção do espírito através da forma. Ele não é uma aberração da arte, mas o seu correctivo mortal. Os produtos mais elevados da arte são condenados ao fragmentário e a admitir que também não possuem o que a imanência da sua estrutura pretende ter. O idealismo objectivo foi o primeiro a acentuar, com toda a ener- gia, o momento espiritual da arte, em contraste com o momento sen- sível. Ligou assim a sua objectividade ao espírito: o elemento sensual, em conexão irreflectida com a tradição, era para ele idêntico ao con- tingente. A universalidade e a necessidade que, segundo Kant, pres- crevem ao juízo estético o seu cânone, embora permaneçam proble- máticos, tornam-se para Hegel, construíveis através do espírito, que, no seu pensamento, é a categoria soberana. O progresso de semelhan- te estética sobre todas as precedentes é evidente; assim como a con- cepção da arte se liberta dos últimos vestígios do divertimento feudal, assim também o seu conteúdo espiritual enquanto sua determinação essencial se solta, quanto à origem, da esfera do puro significar e das intenções. Porque o espírito é, em Hegel, o ente em-si e para-si, é ré- conhecido na arte como a sua substância e não como algo pairando superficial e abstractamente sobre ela. É o que se contém na defini- ção do belo como aparência sensível da Idéia. O idealismo filosófi- co, porém, de nenhum modo era tão inclinado à espiritualização estética como esta construção o permitia esperar. Comportava-se antes como defensor daquele elemento sensível, que era eliminado pela espiritualização; segundo a própria expressão de Hegel, esta doutri- na do belo como aparência sensível da Idéia era afirmativa enquanto apologia da imediatidade considerada como algo de plenamente sig- nificativo; a espiritualização radical é disso o contrário. Esse progres- so, porém, custa caro; pois, o momento espiritual da arte não é o que, para a estética idealista, significa espírito; é antes o impulso mimético firmemente reprimido enquanto totalidade. Na modernidade, poderia já reconhecer-se o sacrifício da arte por aquela maioridade, cujo pos- tulado era sabido desde a fórmula discutível de Kant - «Nenhuma coisa sensível é sublime» (43). Com a eliminação do princípio figurativo na pintura e na escultura, da retórica na música, tornou-se quase inevitável que os elementos libertados: cores, sons, configurações absolutas de palavras, surgissem como seja exprimissem alguma coisa em si. Mas isso é uma ilusão: só se tornam expressivos através do contexto em que ocorrem. A superstição do elementar, do imediato, a que prestou homenagem o expressionismo e que dai passou para o artesanato e a filosofia, corresponde o arbitrário constitutivo e o con- tingente na relação entre o material e a expressão. O valor expressivo de um vermelho era já uma ilusão e no valor dos sons complexos e múltiplos vive, como sua condição, a negação decidida dos sons tra- dicionais. Reduzido ao «material natural», tudo isso é vazio e os teoremas, que o mistificam, não têm mais substância do que a charlatanaria das experiências tonais. Só o fisicalismo recente, por exemplo na música, opera uma redução literal a elementos, espiritualização que, em seguida, expulsa o espírito. Aqui se exterioriza o aspecto auto-destruidor da espiritualização. Enquanto que a sua metafísica se tornou filosoficamente contestável, ela é, por sua vez, uma definição demasiado universal para poder fazer justiça ao espí- rito da arte. De facto, a obra de arte afirma-se ainda então como algo de essencialmente espiritual, mesmo se o espírito deixou pura e sim- plesmente de se pressupor como a substância. A estética hegeliana deixa aberto o problema de como se deverá falar do espírito enquanto determinação da obra de arte, sem que a sua objectividade como iden- tidade absoluta seja hipostasiada. Deste modo, a controvérsia é em certo sentido remetida para a sua instância kantiana. Em Hegel, o espírito na arte, enquanto grau do seu modo de manifestação, era deduzível a partir do sistema e, por assim dizer, nítido em todo o gênero artístico e potencialmente em cada obra de arte, à custa do atributo estético da ambigüidade. A estética, porém, não é uma filo- (43) Cf. Kant, Op. cit., p. 105 (Crítica da Faculdade de Julgar, § 23) 108 109 mente desprovida do momento intuitivo, a arte identificar-se-ia com a teoria, enquanto que se torna, porém, manifestamente impotente em si quando, como pseudomorfose da ciência, ignora a sua diferença qualitativa relativamente ao conceito discursivo; a sua espiritualização, enquanto primado dos seus procedimentos, afasta-a justamente da con- ceptualidade ingênua e da representação vulgar de um inteligível. Enquanto que a norma do caracter intuitivo acentua a oposição* *ao pensamento discursivo, ela suprime a mediação inconceptual, o não-- sensível na estrutura sensível, que, ao constituir esta estrutura, tam- bém sempre a destrói e a subtrai à intuição, na qual ela aparece. A norma do caracter intuitivo, que nega o elemento implicitamente categorial das obras, reifica a própria intuição em algo de opaco, de impérvio, transforma-a, segundo a pura forma, em cópia do mundo endurecido, sobre o qui-vive relativamente a tudo aquilo por cujo intermédio a obra poderia destruir a harmonia por ela reflectida. Na realidade, a concreção das obras na apparition, que as sacode e abala, vai muito além da intuição que se costuma contrapor à universalidade do conceito e que se coaduna bem com o sempre idêntico. Quanto mais inexoravelmente o mundo continua a ser dominado pelo univer- sal, tanto mais facilmente se confundem os rudimentos do particular enquanto rudimentos do imediato com a concreção, ao passo que a sua contingência é o molde da necessidade abstracta. No entanto, tal como a existência pura e o isolamento conceptual, também a concre- ção artística não é aquela mediação pelo universal, que evoca a idéia do tipo. Segundo a própria definição, nenhuma obra de arte autêntica é típica. Lukács pensa de um modo estranho à arte ao opor obras típicas «normais» a obras atípicas e, portanto, aberrantes. De outro modo, a obra de arte seria unicamente uma espécie de contribuição prévia à ciência iminente. A declaração retomada do idealismo de que a obra de arte é a unidade presente do universal e do particular é inteiramente dogmática. Vagamente tirada da doutrina teológica do símbolo, é reprovada como mentira pela ruptura a priori entre o mediato e o imediato, a que não conseguiu, até hoje, subtrair-se nenhuma obra de arte emancipada; se ela for dissimulada, em vez de a obra de arte nela se absorver, perde-se. Ao recusar os desideratos do realismo, a arte radical tende para o símbolo. Seria preciso demonstrar que os símbolos ou, no campo lingüístico, as metáforas tendem, na arte nova, a tornar-se independentes perante a sua função simbólica e a contri- buírem, portanto, para a constituição de uma esfera antitética à empiria e às suas significações. A arte absorve os símbolos em virtude de eles já nada mais simbolizarem; os próprios artistas avançados realizaram a crítica do caracter simbólico. As cifras e os caracteres da moderni- dade são signos que se tornaram absolutos, esquecidos de si mesmos. A sua penetração no médium estético e a sua reserva quanto às inten- ções são dois aspectos da mesma coisa. A transformação da dissonância em «material» musical deve interpretar-se de modo análogo. Na lite- ratura, esta transformação produziu-se relativamente cedo, na afinida- de de Strindberg com Ibsen, em cuja fase tardia ela já se esboça. A literalização do que antes era simbólico confere, como num choque, ao momento espiritual emancipado na reflexão segunda aquela auto- nomia, tal como ela se exprime funestamente no estrato ocultista da obra de Strindberg e torna-se produtiva na ruptura com toda e qual- quer figuratividade. O não existir símbolo algum explica que o abso- luto não se manifesta imediatamente em obra alguma; de outro modo, a arte não seria nem aparência nem jogo, mas algo de real. A pura intuição não pode atribuir-se às obras de arte em virtude da sua refractividade constitutiva. Tal refractividade é de antemão mediatizada pelo caracter do «como se» (Ais ob). Se fosse inteiramente intuitiva, transformar-se-ia na empiria de que ela se desvia. A sua mediatidade, porém, não é um apriori abstracto, mas diz respeito a todo o momento estético concreto; mesmo as obras mais sensuais, em virtude da sua relação com o espírito das obras, continuam a ser não intuitivas. Ne- nhuma análise de obras importantes poderia comprovar o seu caracter intuitivo puro; todas estão impregnadas de elemento conceptual; lite- ralmente na linguagem, indirectamente mesmo na música que está longe do conceito, na qual, sem olhar à gênese psicológica, é possível distinguir de modo tão enérgico a inteligência da tolice. O desiderato da intuição gostaria de conservar o momento mimético da arte, cego para o facto de que tal momento só sobrevive pela sua antítese, isto é, a disposição racional de que as obras gozam sobre tudo o que lhes é heterogêneo. Caso contrário, a intuição torna-se feitiço. Na esfera estética, o impulso mimético afecta antes a mediação, o conceito, o não-presente. O elemento conceptual, enquanto entremeado, é inalienável na linguagem e também em toda a arte, e transforma-se assim em algo de qualitativamente outro em relação aos conceitos enquanto elemen- tos distintivos de objectos empíricos. A introdução de conceitos não é idêntica à conceptualidade da arte; a arte não é nem conceito nem intuição, e eis porque protesta contra a separação. O seu caracter intuitivo difere da percepção sensível, porque se refere incessante- mente ao seu espírito. A arte é a intuição de algo não-intuitivo, é semelhante ao conceito sem conceito. Nos conceitos, porém, liberta o seu estrato mimético, inconceptual. Por conseguinte, a arte moderna perfurou, consciente ou inconscientemente, o dogma da intuição. Neste dogma da intuição, permanece verdadeiro que ela realça na arte o momento do incomensurável, que não emerge na lógica discursiva, e faz efectivamente sobressair a cláusula geral de todas as suas mani- festações. A arte opõe-se tanto ao conceito como à dominação mas, para tal oposição, precisa, como a filosofia, dos conceitos. A sua pretensa intuição é uma construção aporética: ela gostaria de, por um golpe de varinha mágica, tratar as disparidades, os elementos entre si litigantes nas obras de arte, como identidades, e por esta razão é repelida pelas obras de arte, das quais nenhuma resulta em semelhan- te identidade. O termo Anschaulichkeit (intuição), tirado da doutrina do conhecimento discursivo em que ele define o conteúdo, que seria 114 115 formado, tanto atesta o momento racional da arte como igualmente mascara este momento, ao distinguir o elemento fenomenal e ao hipostasiá-lo em seguida. A Crítica da Faculdade de Julgar contém uma indicação segundo a qual a intuição estética é um conceito aporético. A Analítica do Belo aplica-se aos «momentos do juízo de gosto». A seu respeito, Kant, numa nota ao parágrafo I, afirma que «procurou julgar sobre aquilo que, na sua reflexão, a faculdade de julgar tem em conta, ... segundo as indicações das funções lógicas (pois, no juízo de gosto está sempre incluída uma referência ao entendimento») (47). Isto contradiz de modo flagrante a tese do universalmente agradável sem conceito; é notável que a estética kantiana tenha mantido esta contra- dição, sobre ela tenha explicitamente reflectido sem a ter esclarecido de vez. Por um lado, Kant trata o juízo de gosto como uma função lógica, e assim atribui esta também ao objecto estético a que o juízo deve ser adequado; por outro, a obra de arte deve apresentar-se «sem conceito», como simples intuição, como se fosse puramente extralógica. No entanto, semelhante contradição é inerente à própria arte enquanto contradição entre a sua essência espiritual e a sua essência mimética. Mas a exigência de verdade, que implica um universal e que toda a obra de arte manifesta, é incompatível com a pura intuição. Pelas conseqüências pode ver-se até que ponto é fatal a insistência no caracter exclusivamente intuitivo da arte. Está ao serviço da distinção abs- tracta, no sentido hegeliano, entre intuição e espírito. Quanto mais pura a obra surgir no seu elemento intuitivo tanto mais o seu espírito, enquanto idéia, será reificado e se transformará em algo de imutável por detrás da aparição. O que no momento espiritual é subtraído à estrutura do fenômeno é, em seguida, hipostasiado como sua idéia. O resultado é que, na maior parte dos casos, as intenções são elevadas a conteúdo, ao passo que correlativamente a intuição reverte à satisfação sensível. Seria preciso, porém, contradizer a afirmação oficial da uni- dade indistincta em cada uma das obras clássicas, a que ela se refere: justamente nelas a aparência da unidade é o conceptualmente mediatizado. O modelo dominante é o filisteu: a aparição deve ser puramente intui- tiva, o conteúdo puramente conceptual, mais ou menos segundo a di- cotomia rígida de tempos livres e trabalho. Nenhuma ambivalência é tolerada. É o ponto de aplicação polêmica da renúncia ao ideal da intuição. Porque o esteticamente emergente não é absorvido pela intui- ção, também o conteúdo das obras não se reduz ao conceito. Na falsa síntese do espírito e da sensibilidade na intuição estética, espreita a sua não menos falsa e rígida polaridade; é coisal a concepção que está subjacente à estética da intuição, segundo a qual na síntese do artefac- to a tensão, sua essência, dá lugar a um repouso essencial. A intuição não é nenhuma characteristica universalis da arte. É intermitente. Os estetas prestaram-lhe pouca atenção; uma das raras excepções é o tão excelente como esquecido Theodor Meyer, o qual demonstrou que aos poemas nenhuma espécie de intuição sensível corresponde daquilo que eles afirmam, e que a concreção dos poemas consiste na sua estrutura lingüística em vez de residir na representa- ção óptica altamente problemática, que deveriam provocar (48). Os poemas não precisam da realização mediante a representação sensí- vel, são concretos na linguagem e por ela impregnados de não-sensí- vel, de acordo com o oxímoro da intuição não-sensível. Mesmo na arte mais afastada do conceito está em acção um momento não-sen- sível. A teoria, que o nega em atenção ao seu thema probandum, escolhe o partido do vulgo que reserva, para a música que lhe agrada, a expressão de «regalo para o ouvido». A música contém justamente, nas suas grandes e afirmativas formas, complexos que só podem ser compreendidos mediante uma não-presença sensível, através da lem- brança ou da expectativa, e que contêm na sua estrutura as suas de- finições categoriais. É impossível, por exemplo, interpretar como uma sucessão as relações por vezes distantes da execução do primeiro andamento da Heróica com a exposição e o contraste extremo que eles com ela formam, em virtude da nova aparição do tema: a obra é em si intelectual, sem disso se envergonhar e sem que a integração prejudique a sua lei. As artes poderiam, entrementes, aceder à sua unidade na arte até ao ponto em que se procede de igual modo para as obras visuais. A mediação espiritual da obra de arte, pela qual ela contrasta com a empiria, não é realizável sem que incorpore a dimen- são discursiva. Se a obra de arte fosse, em sentido estrito, intuitiva, ficaria fascinada pela contingência do dado sensível imediato, a que ela opõe o seu tipo de logicidade. A sua qualidade regula-se pela maneira como a sua concreção se liberta da contingência, em virtude da sua constituição. A separação purista e, portanto, racionalista, entre intuição e o conceptual é função da dicotomia entre a racionalidade e a sensibilidade, que a sociedade exerce e comanda ideologicamente. A arte deveria antes, in effigie, opor-se a essa separação pela crítica objectivãmente nela contida; ao ser relegada para o pólo sensível, apenas se confirma. A mentira contra a qual se lança a arte não é a racionalidade, mas o seu antagonismo petrificado ao particular; ao despojar-se do momento do particular enquanto caracter intuitivo, endossa essa fixidez, utiliza o refugo abandonado pela racionalidade social para desta se desviar. Pois, quanto mais a obra, segundo o princípio estético, for sem falhas e intuitiva, tanto mais se reifica o seu elemento espiritual, %copiç da aparição, para lá da formação do que aparece. Sob o culto da intuição, espreita o convenu filistino do corpo que permanece no sofá enquanto a alma se eleva: a aparição deve ser o relaxamento fácil, a reprodução da força de trabalho, o espírito - como dizem os burgueses - torna-se rigorosamente no que a obra enuncia de modo conceptual. Protesto constitutivo contra a pretensão à totalidade do discursivo, as obras de arte aguardam jus- (47) Op. cit., p. 53. (48) Cf. Theodor A. Meyer, Das Stilgesetz der Poesie, Leipzig 1901, passim. 116 117 lamente por isso a resposta e a solução e apelam inevitavelmente para os conceitos. Nenhuma obra atingiu alguma vez a indiferença da pura intuição e da universalidade obrigatória, que a estética tradicional supõe como seu apriori. A doutrina da intuição é falsa por atribuir fenomenologicamente à arte o que ela não cumpre. A pureza da intui- ção não é o critério das obras de arte, mas a profundidade vcom que elas realizam a sua tensão relativamente aos momentos intelectuais que lhes são inerentes. Apesar de tudo, não deixa de ter fundamento o tabu que afecta os elementos não-intuitivos das obras de arte. O que é conceptual nas obras implica sistemas de juízos, e julgar é contrário à obra de arte. Podem aí ocorrer juízos, mas a obra não julga, talvez porque ela seja, desde a tragédia ática, deliberação. Se o momento discursivo usurpar o primado, a relação da obra de arte ao que lhe é exterior torna-se demasiado imediata e introduz-se mesmo onde ele, como em Brecht, possui o seu orgulho no contrário: torna-se efecti- vamente positivista. A obra de arte deve inserir os seus elementos discursivos no seu contexto de imanência num movimento oposto ao movimento dirigido para o exterior, apofântico, que liberta o momen- to discursivo. A linguagem da lírica de vanguarda realiza isso e revela assim a sua dialéctica peculiar. Decerto, as obras de arte só podem curar a ferida que a abstracção lhes faz mediante uma abstracção ainda maior, que impeça a contaminação dos fermentos conceptuais com a realidade empírica: o conceito torna-se «parâmetro». Mas a arte, enquanto essencialmente espiritual, não pode ser puramente in- tuitiva. Deve também ser sempre pensada: ela própria pensa. A prevalência da doutrina da intuição, que contradiz toda a experiência das obras de arte, é um reflexo dirigido contra a reificação social. Desemboca na construção de uma categoria especial de imediatidade, cega para os estratos coisais das obras de arte, que são constitutivos para o que nelas é mais do que material. As obras de arte não têm apenas, como Heidegger observou em oposição ao idealismo (49), as coisas como suporte. A sua própria objectivação fá-las coisas de se- gundo grau. A sua estrutura interna, que obedece sempre a uma lógica imanente, o que elas se tornaram em si, não é atingido pela pura intuição; e o que nelas se apreende intuitivamente é mediatizado pela sua estrutura; contrariamente a esta, o seu caracter intuitivo é inessencial e toda a experiência das obras de arte deve ultrapassar o seu elemento intuitivo. Se apenas fossem intuitivas, seriam um efeito subalterno e, segundo a expressão de Richard Wagner, um efeito sem causa. A reificação é essencial às obras e contradiz a sua essência enquanto algo que aparece; o seu caracter coisal não é menos dialéctico do que o seu elemento intuitivo. Mas a objectivação da obra de arte não se confunde com o seu material, como pensava Vischer, já muito menos convencido pelo hegelianismo, mas constitui, pelo contrário, a resul- tante do jogo de forças vigente na obra, aparentada com o caracter de (49) Cf. Martin Heidegger, Holzwege, 2.a ed., Francoforte 1952, p. 7 ss. coisa enquanto síntese. Existe alguma analogia com o duplo caracter da coisa kantiana enquanto Em-si transcendente e objecto subjectiva- mente constituído, e lei das suas aparições. Por um lado, as obras de arte são coisas (Dinge) no espaço e no tempo; é difícil decidir se formas limites musicais como a improvisação, primeiramente desapa- recida e depois ressuscitada, podem figurar como tais; o momento pré- coisal das obras de arte reimpregna incessantemente o momento coisal. Contudo, muitas coisas vão neste sentido, mesmo na prática da improvisação: a sua aparição no tempo empírico; mais ainda, o ela revelar modelos objectivados, quase sempre convencionais. Pois, tanto quanto as obras de arte são obras, surgem como coisas em si mesmas, objectivadas em virtude da sua própria lei formal. A necessidade de, por exemplo no teatro, se considerar a execução como a própria coisa, e não o texto impresso e de, na música, se atender aos sons e não às notas, atesta a precaridade do caracter coisal na arte sem que, no entanto, a obra de arte seja liberta da sua participação no mundo das coisas. As partituras não são apenas quase sempre melhores do que as execuções, mas também mais do que simples indicações para estas; são muito mais a própria coisa (Sache). De resto, ambos os conceitos coisais da obra de arte não estão absolutamente separados. A execu- ção musical era, pelo menos até há pouco, a versão interlinear da partitura. A fixação pela escrita ou notas não é exterior à coisa; por seu intermédio, a obra de arte adquire a autonomia perante a sua gênese: daí o primado dos textos sobre a sua reprodução. Sem dúvida, o não fixado na arte está, quase sempre na aparência, mais perto do impulso mimético, mas freqüentemente não acima, antes abaixo do fixado, resquício de uma práxis ultrapassada, muitas vezes regressiva. A recente rebelião contra a fixação das obras enquanto reificação, como, por exemplo, a substituição virtual do sistema de medida por signos mediante imitações gráficas e nêumicas de acções musicais, continuam, comparadas com estas, a ser significativas, reificações de um grau mais antigo. No entanto, essa rebelião dificilmente se alar- garia se a obra de arte não sofresse da coisidade imanente. Só uma fé de artista insensível e filisteu poderia ignorar a cumplicidade do ca- racter coisal artístico com o caracter coisal social e subestimar assim a sua falsidade, a feiticização do que é processo em si e relação entre momentos. A obra de arte é ao mesmo tempo processo e instante. A sua objectivação, condição da autonomia estética, é também petrificação. Quanto mais o trabalho social contido na obra de arte se objectiva e plenamente se organiza, tanto mais ela soa a oco e se torna estranha a si mesma. A emancipação do conceito de harmonia revela-se como rebelião contra a aparência: a construção é tautologicamente inerente à expres- são, à qual se opõe polarmente. Mas, a rebelião contra a aparência não se faz, como Benjamin podia pensar, em favor do jogo, embora não se possa, por exemplo, ignorar o caracter lúdico das permutações em vez de desenvolvimentos fictícios. Em geral, a crise da aparência 118 779 didáctica, cujo caracter regressivo se torna quase flagrante na tolice e na trivialidade das sábias sentenças por elas pretensamente comu- nicadas. Eis porque a arte radicalmente moderna, apesar das condena- ções sumárias que sobre ela deixam pronunciar interesses políticos de toda a ordem, pode dizer-se avançada, não só em virtude das técnicas nela desenvolvidas, mas segundo o conteúdo de verdade. Mas õ meio pelo qual as obras de arte existentes são mais do que a existência não é um novo ser-aí, mas a sua linguagem. As obras autênticas falam mesmo quando recusam a aparência, desde a ilusão fantasmagórica até ao último sopro aurético. O esforço para as expurgar do que a subjectividade contingente exprime pura e simplesmente através de- las, confere involuntariamente à sua linguagem ainda maior relevo plástico. É o que significa o termo de expressão nas obras de arte. Com razão, onde ele é empregado mais longa e expressamente, isto é, tecnicamente, enquanto indicação de execução musical, nada exige de especificamente expressivo, nenhum conteúdo psíquico particular. De outro modo, o expressivo seria substituível por termos para tudo o que haveria a exprimir de modo determinado. O compositor Arthut Schnabel esforçou-se por isso, mas não era realizável. Nenhuma obra de arte possui uma unidade plena, cada uma deve simulá-la, colidindo assim consigo própria. Confrontada com a reali- dade antagonista, a unidade estética, que a ela se opõe, torna-se apa- rência de um modo também imanente. A elaboração total das obras de arte desemboca na aparência; a sua vida identificar-se-ia com a vida dos seus momentos, mas os momentos introduzem nela o heterogêneo e a aparência transforma-se em falsidade. De facto, toda a análise mais perspicaz descobre ficções na unidade estética, quer porque as partes não se adaptam a ela de maneira automática, porque tal unidade lhes é imposta, quer porque os momentos de antemão modelados sobre ela não constituem verdadeiros momentos. A pluralidade nas obras de arte já não é o que era, mas é preparada logo que ingressa no seu domínio; tal facto condena a reconciliação estética à banalidade esté- tica. A obra de arte não é só aparência enquanto antítese da existên- cia, mas perante o que ela quer de si mesma. Está afectada pela incoe- rência. Enquanto ente em-si, as obras de arte protestam em virtude da sua coerência de sentido que é, nelas, o órganon da aparência. Mas ao integrá-las, tal coerência torna-se o próprio sentido, o fundamento da unidade, declarado como presente pela obra de arte sem aí o estar realmente. O sentido que realiza a aparência participa de modo emi- nente no caracter de aparência. Apesar de tudo, a aparência do sentido não constitui a sua definição exaustiva, pois, o sentido de uma obra de arte é ao mesmo tempo a essência que se oculta no fáctico; traduz em aparição o que esta de outro modo esconde. A organização da obra de arte, isto é, o agrupamento dos seus momentos e o seu inter-rela- cionamento, tem este objectivo e é difícil, mediante a atitude crítica, distingui-lo do elemento afirmativo, da aparência da realidade (Wirklichkeit) do sentido, tão cuidadosamente como agradaria à cons- trução conceptual filosófica. Mesmo quando a arte acusa de monstruo- sidade a essência escondida, que a retém na aparição, com seme- lhante negação é estabelecido, enquanto seu critério, um ser não-- presente, o da possibilidade; o sentido é ainda inerente à negação do sentido. A associação da aparência ao sentido, sempre que este se manifesta na obra de arte, confere a toda a arte a sua tristeza; ela sofre tanto mais quanto mais perfeitamente a coesão bem sucedida sugere o sentido; é reforçada a tristeza do «Oh, se isso acontecesse». Ela é a sombra do heterogêneo a toda a forma, que se esforça por banir, sombra do simples existente. Nas obras de arte felizes, a tristeza antecipa a negação do sentido nas obras desorganizadas, imagem inversa da nostalgia. Das obras de arte ressalta implicitamente que ela existe antes da loucura e que, sujeito gramatical inconvertível, ela não exis- te; não pode ser referida de modo demonstrativo a nada de existente no mundo. Na utopia da sua forma, a arte sujeita-se ao peso oprimente da empiria, da qual se desvia enquanto arte. Caso contrário, a sua perfeição é vã. A aparência nas obras de arte aparenta-se ao progresso da integração que elas deviam exigir de si mesmas e pelo qual o seu conteúdo parece imediatamente presente. A herança teológica da arte é a secularização da revelação, do ideal e do limite de toda a obra. Contaminar a arte com a revelação significaria repetir irreflectidamente na teoria o seu inevitável caracter feiticista. Extirpar nela o vestígio da revelação seria rebaixá-la a simples repetição indiferenciada do que é. A coerência de sentido, a unidade, é organizada pelas obras de arte porque ela não é e, enquanto unidade organizada, nega o ser-em-- si em vista do qual foi empreendida a organização - em última análise, a própria arte. Qualquer artefacto se opõe a si. As obras que são planeadas como tour de force, como acto equilibrista, revelam algo de superior a toda a arte: a realização do impossível. A impossibilidade de toda a obra de arte define em verdade mesmo a mais simples obra de arte como tour de force. A difamação do elemento de virtuosidade por Hegel (51), que, no entanto, se entusiasmava com Rossini, sobre- vivendo até ao rancor a respeito de Picasso, age disfarçadamente de acordo com a ideologia afirmativa que suprime o caracter antinómico da arte e de todos os seus produtos: as obras que agradam à ideologia afirmativa são quase sempre dirigidas pelo topos de que a grande arte deveria ser simples, lugar comum esse desafiado pelo tour de force. Um dos não menores critérios da fertilidade da análise estética técnica é que ela descobre o meio pelo qual uma obra se transforma num tour de force. A idéia do tour de force só aparece claramente quando se apoia nos graus da prática artística que se situam exterritorialmente ao seu conceito cultural; isso talvez tenha outrora fundado a simpatia entre a vanguarda e o Music-Hall ou a Variété, contacto dos extre- mos, contra um domínio intermediário, ufanando-se de interioridade, (51) Cf. Hegel, op. cit., 3.a Parte, p. 215 ss. 124 125 de uma arte que, através do seu caracter cultural, trai o dever da arte. A arte sente dolorosamente a aparência estética na insolubilidade principal dos seus problemas técnicos; e de modo mais flagrante ain- da, nos problemas da representação artística: da execução musical ou teatral. Interpretá-los correctamente significa formulá-los como problemas: reconhecer as exigências incompatíveis com que as obras, na relação do conteúdo com a sua aparição, confrontam aquele que as interpreta. A reprodução das obras de arte, ao desvelar nelas o tour de force, deve encontrar o ponto de indiferença onde se esconde a possibilidade do impossível. Devido à antinomia das obras, a sua reprodução adequada não é realmente possível; toda a restituição adequada deveria reprimir um momento de contradição. O critério mais elevado da interpretação é aquele em que, sem tal repressão, ela se torna teatro dos conflitos que rebentaram no tour de force. - As obras concebidas como tour de force são aparência, porque se devem fazer passar essencialmente por aquilo que essencialmente não podem ser; corrigem-se, ao realçarem a sua impossibilidade: é a legitimação da virtuosidade na arte que interdiz uma estética tacanha da interioridade. Às obra mais autênticas é que seria preciso ir buscar a prova do tour de force, da realização do irrealizável. Bach, que a interioridade vul- gar gostaria de anexar, era virtuoso na conciliação do inconciliável. O que ele compôs é a síntese do pensamento do baixo contínuo harmô- nico e do pensamento polifónico. Insere-se sem solução de continui- dade na lógica de um progresso harmônico, mas este, enquanto resul- tado puro da execução vocal, despoja-se do seu peso constrangente e heterogêneo e isso confere à obra de Bach a sua ligeireza singular. Com não menos rigor, poderia mostrar-se em Beethoven o paradoxo de um tour de force: que do nada venha alguma coisa é a prova esteticamente viva dos primeiros passos da lógica hegeliana. O caracter de aparência das obras de arte é imanentemente medi- atizado pela sua própria objectividade. Ao fixar-se um texto, uma pintura, uma música, a obra existe realmente e simula simplesmente o devir que ela encerra, o seu conteúdo; mesmo as tensões mais es- tranhas de um desenvolvimento no tempo estético são tão fictícias quanto elas se encontram de antemão decididas na obra, de uma vez por todas; de facto, o tempo estético é, em certa medida, indiferente ao tempo empírico por ele neutralizado. Mas, no paradoxo do tour de force de tornar possível o impossível, mascara-se totalmente o para- doxo estético: como é que o «fazer» pode deixar aparecer um não-- feito? Como é que aquilo que, segundo o próprio conceito, não é verdadeiro pode, no entanto, ser verdadeiro? Isso só é concebível por um conteúdo enquanto diferente da aparência; mas nenhuma obra de arte possui conteúdo a não ser mediante a aparência, na própria estru- tura desta. Por conseguinte, o centro da estética seria a salvação da aparência e o direito enfático da arte, legitimação da sua verdade, depende dessa salvação. A aparência estética quer salvar o que o espírito activo, que produziu igualmente os portadores da aparência, os artefactos, subtraiu ao que ele reduziu a seu material, um para-- outro. Mas, ao mesmo tempo, o que lhe era preciso salvar transforma-- se a si mesmo num dominado, quando por ele não é produzido; a salvação da aparência é em si mesma aparente e a sua impotência apropria-se da obra de arte mediante o seu caracter de aparência. A aparência não é a characteristicaformalis, mas material, das obras de arte, o vestígio da degradação que gostariam de revogar. Só com a condição de que o seu conteúdo seja verdadeiro não metaforicamente é que a arte expulsa o fabricado, a aparência produzida pelo seu ser-- feito. Se, pela sua tendência à reprodução figurativa, se comporta como se fosse contra o que ela parece, cai na ilusão do trompe-d'oeil, vítima justamente do momento que nela gostaria de ocultar; aí se funda o que, outrora, se chamou objectividade (Sachlichkeit). O seu ideal era que a obra de arte, sem em nenhuma das suas características querer parecer outra coisa além do que é, estivesse em si tão plena- mente estruturada que se confundissem potencialmente o «como que» ela aparece e «o que» quer ser. É pelo seu «ser-formado», não pela ilusão, nem pelas vãs tentativas da obra de arte em quebrar as cadeias do seu caracter de aparência, que este talvez não mantenha aí a última palavra. No entanto, até mesmo a concretização das obras de arte não se liberta do véu da sua aparência; tanto quanto a sua forma não é simplesmente idêntica à sua adequação aos fins práticos, elas conti- nuam ainda, mesmo quando a sua factura não quer aparecer, a ser aparência face à realidade, de que diferem pela sua pura determinação como obras de arte. Ao exterminarem os momentos de aparência que lhes são aderentes, reforça-se antes a aparência que procede da sua existência, a qual, mediante a sua integração, se solidifica num em-si, que elas não são enquanto postas. Não mais se deve, por exemplo, partir de formas previamente dadas, nem de renunciar ao floreado da linguagem, ao ornamento, aos resquícios de formas predominantes; a obra de arte deve organizar-se a partir de baixo. Mas, antecipadamente, nada garante à obra de arte que, depois de o seu movimento ima-nente ter feito explodir essas formas predominantes, ela se feche e reagrupe os seus membra disiecta. Isso levou os procedimentos artísticos a preformar com antecedência nos bastidores - a expressão teatral é apropriada - todos os momentos parciais de modo a serem capazes de realizar a transição para o todo, transição que era recusada pela contingência dos pormenores, tomada absolutamente, após a li- quidação do pré-ordenado. Assim se apodera a aparência dos seus adversários jurados. É despertada a ilusão de que isso não é uma ilusão; que o difuso e o que aqui é estranho ao eu e a totalidade estabelecida se harmonizam a priori, quando a própria harmonia é organizada; que o processo na sua limpidez total é apresentado como cumprido, quando nele subsiste a antiga definição imposta, que difi- cilmente pode continuar a ser concebida pela determinação espiritual das obras de arte. Tradicionalmente, o caracter de aparência das obras artísticas é referido ao seu momento sensível, sobretudo na formula- 726 727 cão hegeliana da aparição sensível da Idéia. Esta concepção da apa- rência encontra-se sob a influência da concepção tradicional aristoté- lico-platónica da aparência do mundo sensível por um lado, e da es- sência ou do puro espírito, enquanto verdadeiro ser, por outro. No entanto, a aparência das obras de arte promana da sua essência espi- ritual. O que aparece pertence ao próprio espírito enquanto separado do seu outro, objectivando-se perante ele e inapreensível no seu ser-- para-si; todo o espírito, %copiç do corporal, possui em si o aspecto de elevar um não-ente, um abstracto, a ente; eis o momento de verdade do nominalismo. A arte faz a prova do caracter aparente (Scheinha- ftigkeit) do espírito, enquanto essência sui generis, ao tomar à letra a pretensão do espírito de ser ente e ao apresentá-lo como ente. Muito mais do que a imitação do mundo sensível pelo sensível estético a que a arte aprendeu a renunciar, é isso que a força à aparência. O espírito, porém, não é apenas aparência, mas também verdade; não é somente a fraude de um ente-em-si, mas também a negação de um falso ser-- em-si. O momento do seu não-ser e da sua negatividade penetra nas obras de arte que, sem dúvida, não fazem do espírito algo de imedia- tamente sensível, não o fixam, mas só se tornam espírito através da relação recíproca dos seus elementos sensíveis. Por isso, o caracter de aparência da arte é ao mesmo tempo a sua méthexis na verdade. A fuga de numerosas manifestações actuais da arte para a contingência poderia interpretar-se como a resposta desesperada à ubiqüidade da aparência: o contingente deve imergir no todo sem o pseudos da har- monia pré-estabelecida. Por um lado, porém, a obra de arte está aqui ao sabor de uma legalidade cega, que já não é possível distinguir a partir de cima da sua total determinação; por outro, o todo rende-se à contingência e a dialéctica do pormenor e do todo degenera em apa- rência: sem daí resultar uma totalidade. A completa ausência de apa- rência regride para convenção caótica onde o azar e a necessidade renovam a sua conspiração funesta. A arte não tem qualquer poder sobre a aparência pela supressão. O caracter de aparência das obras de arte é a condição de o seu conhecimento entrar em contradição com o conceito de conhecimento da razão pura kantiana. São aparên- cia ao voltarem o seu interior, o espírito, para fora, e só são reconhe- cidas na medida em que, contrariamente à interdição do capítulo das antinomias, o seu interior é reconhecido. Na crítica kantiana do juízo estético, que se apresenta tão subjectiva que nem se fala de um inte- rior do objecto estético, isso encontra-se contudo virtualmente pres- suposto no conceito de teleologia. Kant subordina as obras artísticas à idéia de uma finalidade para si e em si, em vez de abandonar a sua unidade apenas à síntese subjectiva do espírito cognoscente. A expe- riência artística, enquanto experiência de uma finalidade, desliga-se da estruturação simplesmente categorial de um caos pelo sujeito. O método de Hegel de se abandonar à natureza dos objectos estéticos e de abstrair dos seus efeitos subjectivos enquanto algo de contingente, põe à prova a teoria kantiana: a teleologia objectiva torna-se o cânone da experiência estética. O primado do objecto na arte e o conhecimen- to das suas obras desde o interior são dois aspectos da mesma coisa. Segundo a distinção tradicional de coisa (Ding) e fenômeno (Erscheinung), as obras de arte, em virtude da sua tendência contrária à própria coisidade e, finalmente, à reificação em geral, têm o seu lugar entre os fenômenos. Nelas, porém, a aparição é a da essência, a esta não indiferente; a própria aparição pertence nelas ao domínio da essência. Ela caracteriza verdadeiramente a tese de que, em Hegel, o realismo e o nominalismo se engendram entre si: a sua essência deve aparecer, a sua aparição é essencial; nenhuma é para um outro, mas é a sua determinação imanente. Por conseguinte, nenhuma, pense o que pensar o seu produtor, é organizada em vista de um observador, nem sequer de um sujeito transcendental aperceptivo; nenhuma obra de arte se deve descrever e explicar em categorias da comunicação. As obras de arte são aparência por se esforçarem por fazer obter uma espécie de existência segunda, modificada, ao que elas não podem ser em si mesmas; são aparição, porque o não-ente nelas, em virtude do qual existem, chega a uma existência por quebrada que seja, graças à realização estética. Contudo, a identidade de essência e de aparição é tão pouco acessível à arte como o conhecimento do real. O ser que imerge na aparição e lhe põe o seu selo, também sempre a faz explo- dir; o que aparece é também cobertura, graças à sua definição como algo que aparece perante o aparente. O conceito estético de harmonia e todas as categorias que em seu torno se reúnem esforçam-se por negar isso. Esperavam um equilíbrio do ser e da aparência graças, por assim dizer, a esforços de conciliação; no uso lingüístico corrente antigo, apontam para aí termos como «a habilidade do artista». A harmonia estética nunca é perfeitamente acabada, mas é polimento e equilíbrio; no íntimo de tudo o que, em arte, se pode com direito chamar harmonioso, sobrevive o absurdo e contraditório (52). Nas obras de arte, tudo o que, segundo a sua constituição, é heterogêneo à sua forma deve desaparecer, enquanto que elas, porém, são formas só na relação com o que gostariam de fazer desaparecer. Ao que nelas quer aparecer levantam-lhe impedimentos mediante o seu a priori. Devem-- no esconder e contra tal luta a idéia da sua verdade até que denunciem a harmonia. Sem o memento da contradição e da não-identidade, a harmonia seria esteticamente irrelevante da mesma maneira que, se- gundo o ponto de vista dos escritos de Hegel sobre a diferença, a identidade só pode ser concebida como identidade com algo de não-- idêntico. Quanto mais profundamente as obras de arte mergulham na idéia de harmonia, do ser que aparece, tanto menos podem nele satis- fazer-se. Só com dificuldade se generaliza impropriamente, do ponto de vista filosófico-histórico, a demasiada divergência quando, em vez de os gestos anti-harmônicos de Miguel Ângelo, do velho Rembrandt, (52) Cf. Theodor W. Adorno, «Zum Klassizismus von Goethes Iphigenie», in: Neue Rundschau 78 (1967), p. 586 ss. 128 729 pela qual a natureza penetra no mais profundo da arte, é ao mesmo tempo apenas o seu aspecto não-literal, memento do que a expressão em si não é e do que, no entanto, não se concretizava de outro modo a não ser pelo seu como. A mediação da expressão das obras de arte pela sua espiritualiza- ção, presente nos primeiros tempos dos representantes mais importan- tes do expressionismo, implica a crítica deste dualismo grosseiro da forma e da expressão, para o qual também se orienta, à maneira da estética tradicional, a consciência de muitos artistas genuínos (54). Não é que esta dicotomia seja desprovida de todo o fundamento. A preponderância da expressão, por um lado, e o aspecto formal, por outro, dificilmente se deixam eliminar da arte antiga, que oferecia refúgio às emoções. Contudo, os dois momentos estão intimamente mediatizados. Quando as obras não são nem plenamente estruturadas, nem formadas, perdem aquela expressividade por amor da qual se dispensam do trabalho e da disciplina da forma; e a forma pretensamente pura, que nega a expressão, estala. A expressão é um fenômeno de interferência, tanto função do procedimento técnico como mimética. A mimese, por seu lado, é evocada pela densidade do processo téc- nico, cuja racionalidade imanente parece, no entanto, opor-se à ex- pressão. O constrangimento que exercem as obras integrais é equiva- lente à sua eloqüência, ao seu elemento falante, não é simples efeito sugestivo; de resto, a própria sugestão é aparentada com processos miméticos. Isso conduz a um paradoxo subjectivo da arte: produzir algo de cego - a expressão - a partir da reflexão e pela forma; não racionalizar o que é cego, mas produzi-lo primeiramente de modo estético; «fazer coisas acerca das quais não sabemos o que são». Esta situação, hoje agravada até ao conflito, possui uma longa pré-história. Ao falar do sedimento do absurdo, do incomensurável em toda a pro- dução artística, Goethe aflorou a constelação moderna do consciente e do inconsciente; chegou também à previsão de que a esfera da arte, inconscientemente alimentada pela consciência, se tornaria no spleen tal como ela se compreendeu no segundo romantismo, desde Baudelaire; num domínio reservado inserido na racionalidade e suprimindo-se virtualmente a si mesmo. No entanto, a referência a este ponto não despede a arte: quem deste modo argumenta contra a modernidade atém-se mecanicamente ao dualismo de forma e expressão. O que para os teóricos não passa de uma contradição lógica, é confiado aos artistas e desenvolvido no seu trabalho: disposição sobre o momento mimético que suscita, destrói e salva o seu caracter não-arbitrário. O arbitrário no não-arbitrário é o elemento vital da arte, a força para tal arbitrário é um critério fidedigno da aptidão artística, sem que fique oculta a fatalidade de semelhante movimento. Os artistas reconhecem nesta aptidão o seu sentimento formal. Ela representa a categoria (54) Cf. Theodor W. Adorno, Berg, der Meister dês kleinstes Ubergangs, Viena 1968, p. 36. mediadora em relação ao problema de Kant: como pode a arte que, para ele, é algo de flagrantemente aconceptual, arrastar consigo aquele momento de universalidade e de necessidade que, segundo a crítica da razão, se reserva unicamente para o conhecimento discursivo? O sentimento formal é a reflexão simultaneamente cega e necessária da coisa (Sache) em si, a que ela se deve abandonar; a objectividade fechada a si mesma que cabe ao poder mimético subjectivo que, por seu turno, se reforça no seu contrário, isto é, na construção racional. A cegueira do sentimento formal corresponde à necessidade na coisa (Sache). Na irracionalidade do momento expressivo, a arte tem o objec- tivo de toda a racionalidade estética. Incumbe-lhe, contra toda a or- dem decretada, desembaraçar-se tanto da necessidade natural sem saída como da contingência caótica. A arte não atribui ao acaso, pelo qual a sua necessidade percebe o seu momento fictício, o que lhe é próprio, ao incorporar intencionalmente de modo fictício o elemento contin- gente, para assim enfraquecer as suas mediações subjectivas. Faz antes justiça ao acaso tacteando na via obscura da sua necessidade. Quanto mais fielmente a segue, tanto menos ela é transparente a si própria. Obscurece-se. O seu processo imanente tem algo de vedor. Seguir a sua direcção é mimese enquanto execução da objectividade; as notas automáticas, por exemplo as de Schõnberg em Erwartung, deixaram-- se inspirar pela sua utopia, sem dúvida para bem depressa tropeçarem no facto de que a tensão da expressão e da objectivação não se equi- libra na identidade. Não é suficiente nenhum meio termo entre a autocensura da necessidade expressiva e a solicitação da construção. A objectivação passa pelos extremos. A necessidade de expressão, não refreada por nenhum gosto, por nenhum juízo artístico, converge com a nudez da objectividade racional. Por outro lado, o «pensar-se a si mesma» da arte, a sua nóesis noéseos, não pode ser guiado por nenhuma irracionalidade decretada. A racionalidade estética deve precipitar-se com os olhos vedados na estruturação, em vez de a co- mandar do exterior enquanto reflexão sobre a obra de arte. Inteligen- tes ou absurdas, as obras de arte não são, segundo os seus procedi- mentos técnicos, as idéias que um autor delas tem. Fortemente res- guardada da racionalidade de superfície, a arte de Beckett possui em cada instante esse bom senso imanente, mas ele de nenhum modo é uma prerrogativa da modernidade, mas pode igualmente descortinar-- se, por exemplo, nas abreviações do último Beethoven, na renúncia aos ingredientes supérfluos e, portanto, irracionais. Inversamente, as obras de arte menores, sobretudo a música fácil, são de uma tolice imanente contra a qual reage polemicamente, sobretudo, o ideal de emancipação da modernidade. A aporia da mimese e da construção torna-se para as obras de arte uma necessidade de unir o radicalismo com a pondera- ção, sem acrescentar de maneira apócrifa hipóteses auxiliares. Mas a ponderação não conduz para fora da aporia. Historicamen- te, uma das raízes da rebelião contra a aparência é a alergia à expres- são; se a relação de geração existe algures na arte é, então, aqui que 134 735 entra em jogo. O expressionismo tornou-se imago paterna. Poderia confirmar-se empiricamente que os homens não-livres, convencionais, agressivos e reaccionários, tendem a recusar a intraseption, a auto-- reflexão em todas as formas e, assim, também a expressão como algo de demasiado humano. Os mesmos, sobre o pano de fundo da geral hostilidade à arte, pronunciam-se com particular rancor contra o modernismo. Obedecem psicologicamente aos mecanismos de defesa pelos quais um eu debilmente formado repele de si o que poderia abalar a sua penosa capacidade funcional, sobretudo, o seu narcisismo. A atitude em questão é a da intolerance of ambiguity, intolerância contra o ambivalente, o que não pode subsumir-se de modo impecá- vel; finalmente, intolerância contra o que é aberto, o que não é pre- viamente decidido por uma instância, contra a própria experiência. Imediatamente atrás do tabu mimético, encontra-se um tabu sexual: nada deve ser húmido, a arte torna-se higiênica. Algumas das suas tendências identificam-se com isso e com a caça às bruxas contra a expressão. O antipsicologismo da modernidade modifica a sua fun- ção. Outrora prerrogativa de uma vanguarda que se sublevava tanto contra o Jugendstill como contra o realismo da interioridade, foi en- tretanto socializado e posto ao serviço do existente estado de coisas. A categoria da interioridade deve, segundo a tese de Max Weber, datar do protestantismo, que punha a fé acima das obras. Enquanto que, mesmo em Kant, a interioridade significava também o protesto contra a ordem imposta heteronomamente ao sujeito, estava-lhe desde o início associada a indiferença relativamente a essa ordem: disposi- ção de a deixar como ela é e de lhe obedecer. Isso era conforme à origem da interioridade a partir do processo de trabalho: ela devia criar um tipo antropológico que, por dever e quase voluntariamente, executasse o trabalho assalariado de que precisa o novo modo de produção e a que o constrangem as relações sociais de produção. Com a crescente impotência do sujeito ente para-si, a interioridade trans- formou-se totalmente em ideologia, em ilusão de um reino interior, onde a população silenciosa busca a sua compensação pelo que lhes é recusado pela sociedade; torna-se assim cada vez mais vaga, priva- da de conteúdo. A arte já não gostaria de a tal se acomodar. Mas o momento da interiorização dificilmente dela pode ser retirado. Benja- min disse um dia: «a interioridade pode ir para o diabo!» Visava Kierkegaard e a «filosofia da interioridade» que dele se reclama, cujo nome teria sido tão desagradável ao teólogo como o termo de ontologia. Benjamin pensava na subjectividade abstracta que, impotente, se ele- va a substância. Mas a sua reflexão é tão pouco a verdade plena como o é o sujeito abstracto. O espírito - e mesmo que seja o de Benjamin - deve entrar em si para poder negar o em-si. Esteticamente, seria, possível demonstrar isso no contraste entre Beethoven e o Jazz, em relação ao qual já muitos ouvidos de músico começam a tornar-se surdos: Beethoven, modificado e, no entanto, definível, é a experiên- cia total da vida exterior, que retorna interiormente, da mesma manei- rã que o tempo, médium da música, é o sentido íntimo; a music em todas as suas versões situa-se aquém de semelhante mação, estimulante somático e, deste modo, regressivo, quanto à autonomia estética. Também a interioridade participa na dialéctiea, embora de um modo diverso do que acontece em Kierkegaard, Com a sua liquidação, mesmo um tipo humano curado da ideologia não consegue elevar-se mas, sim, aquele que nem sequer é capaz de chegar ao eu; aquele para quem David Riesman encontrou a fórmula outer-directed (*). Incide assim sobre a categoria da interioridade na arte um reflexo reconciliador. De facto, a acusação de heresia feita a obras radicalmente expressivas a que se censurou o romantismo tardio pretensamente superado transformou-se na tagarelice de todos aque- les que arengam acerca da repristinação. A alienação (Entausserung) estética na coisa (Sache), a obra de arte, não exige um eu fraco, acomodadiço, mas antes um eu forte. Só o eu autônomo pode virar-- se criticamente para si e eliminar o seu embaraço ilusório. Isso não é concebível enquanto o momento mimético for reprimido a partir de fora por um superego estético alienado, em vez de desaparecer na sua tensão com o que lhe é oposto na objectivação, e de se conservar. Contudo, a aparência torna-se mais flagrante na expressão, porque esta surge como não-aparente e, no entanto, subsume-se na aparência estética; a grande crítica inflamou-se no contacto da expressão en- quanto histrionismo. O tabu mimético, um elemento central da ontologia burguesa, intrometeu-se no mundo administrado na zona que estava reservada pela tolerância à mimese, e rasteou salutarmente nela a mentira da imediatidade humana. Além disso, porém, essa alergia contribui para o ódio ao sujeito, sem o qual nenhuma crítica do mundo das mercadorias seria significativa. Ele é negado abstractamente. Sem dúvida, o sujeito, que se revela tanto mais compensador quanto mais impotente e funcional se tornou, é já na expressão, falsa consciência ao simular enquanto expressivo uma relevância que lhe foi retirada. Mas a emancipação da sociedade a respeito da preponderância das suas relações de produção tem por objectivo a real construção do sujeito, que até então as relações impediram, e a expressão não é apenas hybris do sujeito, mas lamento do seu próprio fiasco como cifra da sua possibilidade. Decerto, a alergia à expressão tem a sua mais profunda legitimação no facto de que, na expressão, sobretudo no equipamento estético, algo tende para a mentira. A expressão é a priori uma falsificação. A confiança latente na expressão de que, ao ser proclamada ou apregoada, tudo seria melhor é ilusória, um rudi- mento mágico, uma crença no que Freud chamou polemicamente a «omnipotência do pensamento». Mas a expressão não permanece in- teiramente sob o encanto da magia. O facto de ser dita e de aí ganhar uma distância em relação à imediatidade cativa do sofrimento, trans- forma-a da mesma maneira que o brado atenua a dor insuportável. A (*) Extra-determinado, extra-dirigido (N. do T.). 136 137 expressão objectivada em linguagem persiste inteiramente, o que um dia foi dito dificilmente se esvanece de modo completo, tanto o mau como o bom, tanto o slogan da solução final como a esperança da reconciliação. O que acede à linguagem integra-se no movimento de algo de humano que ainda não existe e se agita em virtude da impo- tência que o constrange à linguagem. O sujeito, tacteando por detrás da sua reificação, limita esta mediante o rudimento mimético, repre- sentante da vida intacta no seio da vida mutilada, que o sujeito erigia em ideologia. A inextricabilidade de ambos os momentos circunscre- ve a aporia da expressão artística. Não há em geral que julgar se alguém que faz tabula rasa de toda a expressão é porta-voz da cons- ciência reificada ou a expressão muda, inexpressiva, que àquela de- nuncia. A arte autêntica conhece a expressão do inexpressivo, o choro a que faltam as lágrimas. Em contrapartida, a franca extirpação neo-- objectivista da expressão insere-se na adaptação universal e submete a arte antifuncional a um princípio que só poderia fundamentar-se através da funcionalidade. O não-metafórico, o não-ornamental na expressão é subestimado por esta reacção; quanto mais plenamente as obras de arte a ele se abrem, tanto mais se tornam protocolos de expressão e viram a objectividade (Sachlichkeit) para o interior. É pelo menos evidente, tanto nas obras de arte ao mesmo tempo hostis à expressão e a si mesmas, por exemplo em Mondrian, como nas obras matematizadas que se declaram positivas, que elas não decidi- ram o processo da expressão. Se o sujeito já não deve poder exprimir-- se imediatamente, deve, no entanto - segundo a idéia da modernidade não fundada na construção absoluta - falar através das coisas, da sua forma alienada e mutilada. As obras de arte não devem ser compreendidas pela estética como objectos hermenêuticos; na situação actual, haveria que apreender a sua ininteligibilidade. O que enquanto clichê se vende ao slogan de modo absurdo e sem resistência só poderia ser recuperado por uma teoria que pensasse a sua verdade. Não há que distingui-lo da espiritualização das obras de arte como seu contraponto; este é, se- gundo a expressão de Hegel, o seu éter, o próprio espírito na sua omnipresença, e não uma intenção do enigma. Pois, enquanto negação do espírito dominador da natureza, o espírito das obras de arte não surge como espírito. Inflama-se naquilo que lhe é oposto, na materia- lidade. De nenhum modo está mais presente nas obras de arte espi- rituais. A arte tem a sua salvação no acto com que o espírito nela se arroja. Não é por reversão que se mantém fiel ao estremecimento. É antes a sua herança. O espírito das obras de arte produ-lo mediante a sua alienação nas coisas (Sachen). A arte participa assim, segundo a lei da Aufklãrung, no movimento real da história, de modo que o que outrora pareceu a realidade emigra para a imaginação em virtude da autoconsciência do gênio, e aí subsiste ao tornar-se consciente da própria irrealidade. A senda histórica da arte como espiritualização é tanto a da crítica do mito como a da sua salvação: o que é recordado pela imaginação é por ela reforçado na sua possibilidade. Um tal movimento ambíguo do espírito na arte descreve mais a história primigénia inscrita no seu conceito do que a história empírica. O movimento incessante do espírito para o que lhe foi retraído fala na arte em favor do que foi perdido na origem. A mimese é na arte o pré-espiritual, o contrário do espírito e, por outro lado, aquilo a partir do qual ele se incendeia. Nas obras de arte, o espírito tornou-se seu princípio de construção, mas só satisfaz o seu telos onde se eleva a partir do que deve ser construído, dos impulsos miméticos, e nelas se integra em vez de se lhes impor de um modo autoritário. A forma unicamente objectiviza os impulsos individuais quando os segue para onde eles se dirigem por si mesmos. Apenas isto constitui a méthexis da obra de arte na reconciliação. A raciona- lidade das obras de arte só se torna espírito ao desaparecer no que lhe é diametralmente oposto. A divergência do construtivo e do mimético, a que nenhuma obra de arte se acomoda - por assim dizer, o pecado original do espírito estético - tem o seu correlato no elemento do desvario e do burlesco, que mesmo as mais importantes obras contêm em si; parte do significado que possuem consiste em camuflá-lo. A falta de observância deste fenômeno pelo classicismo deve-se a que ele reprime esse momento; a arte deve dele desconfiar. Com a sua espiritualização em nome da autonomia, este desvario acentua-se apenas ainda mais bruscamente; quanto mais a sua estrutura própria - em virtude da sua consonância - se assemelha a uma estrutura lógica, tanto mais manifestamente a diferença desta logicidade com a logicidade que age a partir de fora, se transforma em sua paródia; quanto mais a obra é racional segundo a sua constituição formal, mais disparatada se torna segundo o critério da razão na realidade. Contudo, o seu desvario é igualmente uma parte de processo contra essa racionalida- de, contra o facto de tal racionalidade, transformada em seu próprio fim no seio da práxis social, virar em irracionalidade e em aberração, de tomar os meios pelos fins. O desvario na arte, que os broncos percebem melhor do que quem ingenuamente nela vive, e a loucura da racionalidade absolutizada acusam-se mutuamente; de resto, tem sor- te, a exemplo do que se passa com o desvario, aquele que, não impe- lido pelo sexo, visto a partir do domínio da conservação de si, pode apontá-lo maliciosamente. O desvario é o resíduo mimético da arte, o preço da sua impermeabilidade. O filisteu, da sua parte, tem sempre contra ele um pouco de razão. Este momento, enquanto resíduo de algo de irredutível estranho à forma, de bárbaro, transforma-se ao mesmo tempo na arte em mediocridade, enquanto esta o reflectir em si sem o estruturar. Se ele permanecer na puerilidade e se deixar, possivelmente, cultivar como tal, já não existe nenhuma restrição para ofun calculado da indústria cultural. A arte, no seu conceito, implica o kitsch, com o aspecto social, de tal modo que, contido, para subli- mar esse momento, pressupõe o privilégio cultural e a relação de classes: incorre então na pena do fun. Contudo, os momentos de de- 138 739 o sentimento pueril em enunciar a palavra; tem mais a ver com o falso título de «Sonata ao Luar» do que com a composição e, no entanto, não é causai; sem as sonatas, que a irmã tocava, não haveria os sons isolados em que a melancolia do poeta buscava refúgio. Algo de se- melhante têm também, no poema, as palavras mais simples, que ele vai buscar ao discurso comunicativo; por conseguinte, a crítica de Brecht à arte autônoma, que repetiria simplesmente o que uma coisa é, erra o alvo. Mesmo a cópula é, omnipresente em Trakl, torna-se, na obra de arte, estranha ao seu sentido conceptual: não exprime nenhum juízo existencial, mas a sua cópia esbatida, qualitativamente modifi- cada até à negação; que algo exista é nisso menos e mais e traz consigo que tal não exista. Quando Brecht ou Carlos Williams sabo- tam no poema o poético e o aproximam do relato sobre a simples empiria, esse poético de nenhum modo se reduz a um tal relato: ao desdenharem polemicamente o tom lírico e elevado, as proposições empíricas assumem, na sua transferência para a mónada estética e em contraste com ela, algo de dissemelhante. O aspecto antimelódico da tonalidade e o distanciamento dos factos captados são dois aspectos do mesmo estado de coisas. A metamorfose na obra de arte afecta também o juízo. As obras de arte assemelham-se-lhe enquanto sínte- se; esta, porém, é nelas sem juízo, nenhuma obra declara o que julga, nenhuma é o que se chama uma declaração (Aussage). Torna-se, pois, discutível se as obras de arte podem verdadeiramente ser empenha- das, mesmo quando põem em realce o seu engagement. Não é possí- vel formular um juízo sobre o ponto da sua vinculação, a fonte da sua unidade, nem sequer sobre o que elas exprimem nas suas palavras e proposições. Existe de Mõrike um pequeno poema sobre a ratoeira. Se nos contentássemos com o seu conteúdo discursivo, daí ressaltaria apenas a identificação sadista com o que o uso civilizado faz dos animais banidos como parasitas: A Ratoeira Três vezes a criança gira à volta da armadilha e diz: Hóspedes pequeninos, casinha. Querida ratinha, ou ratinho, Vá, mostra-te um pouquinho Esta noite, ao luar! Mas, fecha atrás de ti a porta, Estás a ouvir? Cuidado com o teu rabinho! Depois de comer iremos cantar Depois de comer iremos saltar E dançaremos: Vá, vá! O meu velho gato também connosco irá dançar. (57) (57) Eduard Mõrike, Sãmtliche Werke, ed. Perfahl, Munique, 1968, p. 855. O sarcasmo da criança em «O meu velho gato também connosco irá dançar», se é que isso deve ser sarcasmo e não a imagem involun- tariamente amistosa de uma dança comum da criança, do gato e do rato, com os dois animais alçados sobre as patas traseiras, deixa, uma vez absorvido pelo poema, de ser a última palavra. Reduzir o poema ao sarcasmo é não ver o conteúdo social juntamente com o poetizado. O reflexo sem juízo da linguagem relativamente a um rito abominá- vel, socialmente exercido, ultrapassa-o ao mesmo tempo que o incor- pora em si. O gesto, que o indica, como se nada mais fosse possível denuncia tal como ela é, através da evidência, a imanência sem falhas do rito e condena-o. Só pela abstenção do juízo (Urteil) é que a arte julga; é a defesa do grande naturalismo. A forma, que submete os versos ao eco de uma sentença mítica, supera o seu sentido. O eco reconcilia. Semelhantes processos no interior das obras de arte trans- formam-nas verdadeiramente em algo de infinito em si. Elas distin- guir-se-iam da linguagem significativa não por serem sem significa- do, mas porque, modificadas pela absorção, mergulham no acidental. Os movimentos pelos quais isto acontece são concretamente prefigurados por toda e qualquer obra estética. As obras de arte partilham com os enigmas a ambigüidade do determinado e do indeterminado. São pontos de interrogação, nem sequer unívocos através da síntese. Contudo, a sua figura é tão exacta que prescreve a transição onde a obra de arte se interrompe. Como nos enigmas, a resposta é silenciada e contrarigida pela estrutura. A isso se presta a lógica imanente, o elemento legal da obra, e tal é a teodiceia do conceito de finalidade na arte. A finalidade da obra de arte é a determinação do indeterminado. As obras são finais em si, sem finalidade positiva para além da sua complexão; mas o seu carac- ter de finalidade legitima-se como figura da resposta ao enigma. Mediante a organização, as obras tornam-se mais do que são. Em debates recentes especialmente sobre as artes plásticas, o conceito de écriture tornou-se relevante, debates suscitados por páginas de Klee que se aproximavam de uma escrita gatafunhada. Esta categoria da modernidade arroja como projector luz sobre o passado; todas as obras de arte são uma escrita, e não apenas as que aparecem como tais, e certamente hieroglíficas, para as quais se perdeu o código e para cujo conteúdo contribui acima de tudo a ausência de tal código. As obras de arte são linguagem só enquanto escrita. Se nenhuma é alguma vez juízo todas, porém, encerram em si momentos que promanam do juí- zo, exacto e errado, verdadeiro e falso. Mas a resposta reticente e de- terminada das obras de arte não se revela inopinadamente como nova imediatidade à interpretação, mas só através de todas as mediações, as da disciplina das obras, do pensamento, da filosofia. O caracter enigmático sobrevive à interpretação que obtém a resposta. Se o ca- racter enigmático das obras de arte não está localizado no que nelas se experimenta, na compreensão estética; se unicamente aparece na distância, então a experiência, que se absorve nas obras e é recompen- 144 145 sada pela evidência, integra-se também no enigmático; a possibilidade de tudo o que é plurivocamente devorado surgir como unívoco e como tal ser compreendido. Pois, como Kant descreve, a experiência imanente das obras de arte, onde quer que comece, é realmente neces- sária,\transparente até às mais sublimes ramificações. O músico, que compreende a sua partitura, segue os seus mínimos matizes e, no entanto, em certo sentido, ignora o que toca; com o actor as coisas não se passam de outro modo e é justamente aí que o poder mimético se manifesta mais drasticamente na práxis da representação artística, como imitação das curvas de movimento do representado; a experiên- cia imanente é a substância da compreensão aquém do caracter enig- mático. No entanto, logo que a experiência das obras de arte se exau- re, apresentam o seu enigma como caricatura. A experiência das obras de arte é constantemente ameaçada pelo caracter enigmático. Se ele desapareceu inteiramente na experiência, se esta pensa ter percebido totalmente a coisa (Sache), o enigma abre novamente os olhos; assim se conserva a seriedade das obras de arte, que se solidifica nas escul- turas arcaicas e se oculta na arte tradicional através da sua linguagem habitual para se reforçar até à total alienação. Se o processo imanente às obras de arte, algo que ultrapassa o sentido de todos os momentos singulares, constitui o enigma, então simultaneamente ele atenua-o logo que a obra de arte não é percebida como alguma coisa de fixo e, por conseguinte, em vão interpretada, mas é recriada na sua própria constituição objectiva. Nas representa- ções que não fazem isso, que não interpretam, o em-si das obras a que pretende servir uma tal ascese, torna-se presa do mutismo; toda a representação não-interpretativa é absurda. Se alguns tipos de arte, como a p^ça de teatro e, até certo limite, a música, exigem ser exe- cutados, interpretados, para se tornarem no que são - uma norma da qual não se deve afastar o familiarizado com o teatro e com o pódio e que conhece a diferença qualitativa entre o que ali é exigido e os textos e as partituras -, tais tipos de obras apenas trazem à luz do dia o comportamento de toda e qualquer obra de arte, mesmo quando não é executada: a repetição do seu próprio comportamento. As obras de arte são a identidade consigo mesmo liberta da coacção à identidade. O princípio peripatético de que apenas o semelhante conhece o seme- lhante, liquidado pela crescente racionalidade até se transformar num valor limite, distingue o conhecimento, que é a arte, e o conhecimento conceptual: o essencialmente mimético aguarda o comportamento mimético. Se as obras de arte nada imitam a não ser a si mesmas, só pode compreendê-las quem as imita. Só assim, e não como conjunto de indicações dadas aos intérpretes, é que importa considerar os tex- tos dramáticos e as partituras musicais: imitação petrificada das obras, a elas semelhante e, nesta medida, constitutivas, embora sempre im- buídas de elementos significantes. Em si é-lhes indiferente a sua exe- cução; mas não que a sua experiência, íntima e muda segundo o ideal, as imita. Semelhante imitação extrai o seu contexto significante dos signos das obras e segue-o, tal como segue as curvas em que a obra de arte aparece. Como leis da sua imitação, os meios divergentes encontram a sua unidade, a da arte. Se, em Kant, o conhecimento discursivo deve renunciar ao íntimo das coisas (Dinge), as obras de arte são, então, os objectos cuja verdade só pode ser representada como a verdade da sua interioridade. A imitação é o caminho que conduz a tal interioridade. As obras falam como as fadas nos contos: queres o incondicional (Unbedingtes), será teu, mas incognoscível. O verdadeiro do conhe- cimento discursivo está desvelado, mas nem por isso este o possui; o conhecimento, que a arte é, está na sua posse, mas de algo enquanto lhe é incomensurável. As obras de arte, pela liberdade que nelas tem o sujeito, são menos subjectivas do que o conhecimento discursivo. Kant, com uma medida infalível, colocou-as sob aquele conceito de teleologia cujo uso positivo não concedia ao entendimento. No entan- to, o bloco que, segundo a doutrina kantiana, fecha o em-si aos ho- mens, imprime-o sob forma de figuras enigmáticas nas obras de arte, seu domínio específico, em que já não deve existir nenhuma diferença entre o em-si e o para-nos: enquanto bloqueadas, as obras de arte são justamente imagens do ser-em-si. Em última análise, no caracter enig- mático pelo qual a arte se opõe mais bruscamente à existência inquestionável dos objectos da acção, sobrevive o seu próprio enig- ma. A arte torna-se enigma porque aparece como se houvesse resol- vido o que na existência é enigma, enquanto era esquecido o enigma no simples ente em virtude do seu próprio endurecimento poderoso. Quanto mais compactamente os homens cobriam o que é diferente do espírito subjectivo com a rede das categorias, tanto mais profunda- mente se desabituaram da admiração perante esse outro e, com fami- liaridade crescente, se frustaram da estranheza. A arte, como que numa gesticulação bem depressa fatigada, procura, debilmente, reparar isso. Leva a priori os homens à admiração, como outrora Platão exigia da filosofia, que se decidiu pelo contrário. O enigmático das obras de arte é o seu estar-separado. Se a trans- cendência nelas estivesse presente, seriam mistérios, não enigmas; são-no porque enquanto separadas desmentem o que, no entanto, querem ser. Só no passado recente é que isto se tornou temático nas parábolas mutiladas de Kafka. Retrospectivamente, todas as obras de arte se assemelham àquelas infelizes alegorias nos cemitérios, às colunas de vida partidas. As obras de arte, mesmo ao aspirarem à perfeição, são podadas; o não lhes ser essencial o que significam aparece nelas como se o seu significado estivesse bloqueado. A analogia com a supersti- ção astrológica, que tanto se apoia numa pretensa relação como a deixa impenetrável, é demasiado enfática para que dela seja fácil desembaraçar-se: a mácula da arte é a sua conexão com a superstição. Com demasiada facilidade, a arte converte-a irracionalisticamente na sua superioridade. A multi-estratificação acarinhada é o nome falsa- 146 147 mente positivo para o caracter enigmático. Possui, porém, na arte este aspecto anti-estético que Kafka desvelou de um modo irrevogável. Devido ao seu fracasso perante o próprio momento de racionalidade, as obras de arte ameaçam recair no mito, do qual se tinham precaria- mente libertado. Mediatizada, porém, para o espírito, para esse momento de racionalidade, a arte procede de modo a elaborar mimeticamente os seus enigmas - tal como o espírito inventa um enigma -, só que sem dominar a solução; o espírito da obra manifesta-se no caracter enig- mático, não em intenções. De facto, a práxis dos artistas importantes apresenta uma afinidade com o enigma; é disso testemunho o prazer que os compositores sentiram, durante séculos, na utilização de câno- nes enigmáticos. A imagem enigmática da arte é a configuração da mimese e da racionalidade. O caracter enigmático é algo que brota. A arte subsiste após a perda do que nela devia outrora exercer uma função mágica e, depois, cultuai. Perde o seu «para quê» - em termos paradoxais: a sua racionalidade arcaica - e transforma-o num momento do seu em-si. Torna-se assim enigmática; se já ali não está para o que ela imbuía de sentido como seu fim, então, que pode ela ser em si mesma? O seu caracter enigmático incentiva-a a articular-se ima- nentemente de tal modo que, através da configuração da sua absurdidade enfática, adquire um sentido. Sob este aspecto, o caracter enigmático das obras não é o seu ponto último, mas toda a obra autêntica propõe igualmente a solução do seu enigma insolúvel. Na instância suprema, as obras de arte são enigmáticas, não se- gundo a sua composição, mas segundo o respectivo conteúdo de ver- dade. A questão pela qual cada uma se liberta por si mesma desse conteúdo de verdade que a atravessa - questão que retorna infatiga- velmente - «para que serve tudo isso?» - transforma-se nesta - «É, pois verdadeiro?» - questão do Absoluto, à qual toda a obra de arte reage ao desembaraçar-se da forma da resposta discursiva. A última informação do pensamento discursivo permanece o tabu sobre a res- postja. Enquanto esforço mimético contra o interdito, a arte procura vpipporcionar a resposta e, no entanto, porque carece de juízo (Urteil), não a fornece; deste modo se torna enigmática, como o horror do mundo primitivo, que se modifica, mas não se esvanece; toda a arte permanece o seu sismograma. Para o seu enigma falta a chave, como igualmente falta para os escritos de muitos povos desaparecidos. A forma mais extrema em que se pode pensar o caracter enigmático é saber se existe ou não um sentido. Com efeito, nenhuma obra de arte existe sem o seu contexto, por mais que se tenha mudado no seu contrário. Esse contexto, porém, através da objectividade da obra, tem em si a pretensão à objectividade do sentido. Esta pretensão é não só inaceitável, mas a experiência a ela se contrapõe. O caracter enigmá- tico aparece diferente em cada obra de arte mas de modo que a res- posta, tal como a da esfinge, fosse sempre a mesma, embora só através da diversidade e não da unidade que o enigma promete, talvez de um modo ilusório. O enigma é saber se a promessa é fraude. O conteúdo de verdade das obras de arte é a resolução objectiva do enigma de cada uma delas. Ao exigir a solução, o enigma remete para o conteúdo de verdade, que só pode obter-se através da reflexão filosófica. Isto, e nada mais, é que justifica a estética. Enquanto que nenhuma obra de arte fica absorvida em determinações racionalistas nem no que por ela é julgado, todas se dirigem, no entanto, em virtude da indigência do seu caracter enigmático, à razão interpretativa. Ne- nhuma mensagem (Aussage) poderia ser extorquida do Hamlet; o seu conteúdo de verdade nem por isso é menor. Que grandes artistas, como o Goethe dos contos e Beckett em certa medida, nada tenham querido fazer com interpretações realça apenas a diferença existente entre o conteúdo de verdade e a consciência e a vontade do artista e, certamente, com a força da sua própria autoconsciência. As obras, sobretudo as de mais elevada dignidade, aguardam a sua interpreta- ção. Que nelas nada houvesse para interpretar e simplesmente ali estivessem, apagaria a linha de demarcação da arte. Em última aná- lise, mesmo os tapetes, o ornamento, tudo o que não é figurativo esperam impacientemente a decifração. Apreender o conteúdo de verdade postula a crítica. Nada é apreendido se a sua verdade ou falsidade não for compreendida, e isso é afazer da crítica. O desdobramento histó- rico das obras pela crítica e a manifestação filosófica do seu conteúdo de verdade encontram-se em interacção. A teoria da arte não pode situar-se para além desta, mas deve abandonar-se às leis do seu mo- vimento, contra cuja consciência as obras de arte se fecham hermeti- camente. As obras de arte são enigmáticas enquanto fisionomia de um espírito objectivo, que nunca é auto-transparente no instante da sua aparição. A categoria do absurdo, a mais recalcitrante à interpretação, reside no espírito, a partir do qual deve ser interpretada. Ao mesmo tempo, a necessidade de interpretação das obras enquanto necessidade da elaboração do seu conteúdo de verdade é o estigma da sua insuficiência constitutiva. Não atingem o que nelas é objectivãmente querido. A zona de indeterminação entre o inacessível e o realizável constitui o seu enigma. Têm e não têm o conteúdo de verdade. A ciência positiva e a filosofia dela derivada não o atingem. O conteúdo de verdade não é nem o fiasco das obras, nem a sua logicidade frágil que elas próprias são capazes de suspender. Também não é, como nisso se comprazeu a grande filosofia tradicional, a Idéia, por muito esticada que esteja como a do trágico, do conflito da finitude e da infinitude. Sem dúvida, uma tal idéia, na sua construção filosófica, brota de um pensado puramente subjectivo. Permanece, porém, indi- ferentemente da maneira como ela for revirada, exterior às obras de arte e abstracta. Mesmo o conceito enfático de Idéia próprio do idea- lismo reduz as obras de arte a exemplos da Idéia como algo de sempre idêntico. Isso introdu-lo na arte da mesma maneira que ele não resiste à crítica filosófica. O conteúdo não é solúvel na Idéia, mas extrapolação do insolúvel; dos estetas acadêmicos só Friedrich Theodor Vizcher parece ter pressentido tal coisa. A mais simples reflexão mostra 148 149 empiria a lembrança involuntária, revelando-se assim eles como ge- nuínos idealistas. Imputam à realidade o que querem salvaguardar e que existe na arte à custa da sua realidade. Procuram esquivar-se à maldição da aparência estética, ao transporem a qualidade desta para a realidade. - O non confundar das obras de arte é o limite da sua negatividade comparável àquela que está inserida nos romances do Marquês de Sade, quando mais nada lhe resta senão chamar aos mais belos gitons do Tableau beaux comme dês anges. Neste cume da arte, onde a sua verdade transcende a aparência, ela expõe-se do modo mais funesto. Ao afirmar, aliás de um modo que nada tem de humano, que não pode ser mentira, é obrigado a mentir. Não tem nenhum poder sobre a possibilidade de que, em última análise, tudo é apenas nada e o seu caracter fictício consiste em estabelecer, mediante a sua exis- tência, que o limite foi ultrapassado. O conteúdo de verdade das obras de arte, enquanto negação da sua existência, é por elas mediatizado, embora nem sempre o comuniquem. O meio pelo qual o conteúdo de verdade é mais do que o estabelecido por elas é a sua méthexis na história e a crítica determinada, que elas exercem através da sua for- ma. O que nas obras é história não é fabricado, e só a história o liberta da simples posição ou elaboração: o conteúdo de verdade não existe fora da história, mas constitui a sua cristalização nas obras. A sua designação vem-lhes do conteúdo de verdade não posto. O conteúdo de verdade, porém, é apenas algo de negativo nas obras. As obras de arte dizem o que é mais do que o ente, unicamente, ao porem em constelação comment c 'est, como é (wie es ist). A metafísica da arte exige a sua separação violenta da religião, da qual promana. Nem as obras de arte são em si um absoluto, nem este está nelas imediatamente presente. Pela sua méthexis nisso, são atacadas de uma cegueira que imediatamente obscurece a sua linguagem, linguagem da verdade: têm e não têm o absoluto. No seu movimento para a verdade, as obras de arte necessitam justamente da idéia que evitam em nome da sua verdade. Não depende da arte se a negatividade é o limite da arte ou, por sua vez, a verdade. As obras de arte são negativas a priori em virtude da lei da sua objectivação: causam a morte do que objectivizam ao arrancá-lo à imediatidade da sua vida. A sua própria vida alimenta-se da morte. Isso define o limiar qualitativo para a modernidade. As obras modernas abandonam-se mimeticamente à reificação, ao seu princípio de morte. Subtrair-se a este é o momento ilusório da arte de que ela, desde Baudelaire, tenta desembaraçar-se sem, no entanto, se tornar resignadamente numa coisa entre as coisas. Os arautos da modernidade, Baudelaire, Põe, foram como artistas os primeiros tecnocratas da arte. Sem a adição do veneno, virtualmente a negação do vivo, o protesto da arte contra a opressão da civilização seria uma consolação impotente. Se, após o começo da modernidade, a arte absorveu objectos estranhos à arte que se integram na sua lei formal não inteiramente modificados, a mimese da arte abandona-se até à montagem, ao seu contrário. A arte é forçada a isso pela reali- dade social. Embora se oponha à sociedade, não é contudo capaz de obter um ponto de vista que lhe seja exterior; só consegue opor-se, ao identificar-se com aquilo contra que se insurge. Tal era já o conteúdo do satanismo baudelairiano, muito além da crítica à moral burguesa do lugar que, ultrapassada pela realidade, se tornou puerilmente ab- surda. Se a arte quisesse elevar protestos directos contra a rede sem falhas, não faria mais do que contradizer-se: eis porque - tal como acontece exemplarmente em Fin de Partie de Beckett - ela deve eli- minar de si a natureza, a que se aplica, ou atacá-la. O único parti pris que ainda lhe é possível é o da morte; é ao mesmo tempo crítica e metafísico. As obras de arte promanam do mundo das coisas através do seu material pré-formado e também através dos seus procedimen- tos técnicos; nada nelas que também não lhes pertença e nada que não seja extraído do mundo das coisas ao preço da sua morte. Só em virtude do seu elemento mortal é que participam na reconciliação. Ao mesmo tempo, porém, continuam a depender do mito. Eis o caracter egípcio próprio de cada uma. As obras matam-no ao quererem fazer durar o transitório - a vida - e salvá-lo da morte. Com razão, busca-- se o aspecto reconciliador das obras de arte na sua unidade, no facto de elas, segundo o antigo topos, curarem as feridas com a lança que as infligiu. A razão, ao produzir a unidade nas obras de arte, onde ela apenas vê decomposição, ao renunciar à interferência na realidade e à dominação real, adquire algo de inocente, embora se ouça ainda nos grandes produtos da unidade estética o eco da violência social; mas, através da renúncia, também o espírito se torna culpado. O acto que liga e suspende o mimético e o difuso na obra de arte não prejudica apenas a natureza amorfa. A imagem estética é oposição à angústia da natureza em perder-se no caos. A unidade estética do diverso aparece como se lhe não tivesse feito qualquer violência, mas seria extraída do próprio diverso. Assim, hoje como sempre efectivamente, o ele- mento dividido, a unidade transforma-se em reconciliação. Nas obras de arte, a violência destruidora do mito atenua-se, no elemento parti- cular dessa repetição que o mito exerce na realidade e que impele a obra de arte à particularização pelo vislumbre da mais próxima pro- ximidade. Nas obras de arte, o espírito já não é o velho inimigo da natureza. Suaviza-se até se reconciliar. A natureza não significa re- conciliação, segundo a fórmula classicista: esta é o seu próprio com- portamento, que percebe o não-idêntico. O espírito não identifica este, identifica-se com ele. Devido a que a arte é acompanhada pela sua própria identidade, torna-se semelhante ao não-idêntico: eis o que constitui o grau actual da sua essência mimética. A reconciliação como comportamento' da obra de arte é, hoje, justamente exercitada quando a arte renuncia à idéia de reconciliação nas obras cuja forma lhes impõe a inflexibilidade. Contudo, semelhante reconciliação irre- conciliável na forma tem como condição a irrealidade da arte. Esta ameaça-a permanentemente com a ideologia. Nem a arte mergulha na irrealidade nem a ideologia é a condenação em virtude da qual a arte 154 155 seria banida de toda a verdade. Na sua própria verdade, na reconcilia- ção que a realidade empírica recusa, ela é cúmplice da ideologia e faz crer que a reconciliação já existe. As obras de arte, segundo o seu a priori ou, se se quiser, segundo a sua idéia, caem numa relação de culpa. Enquanto que toda e qualquer obra bem sucedida transcende a culpa, todas devem expiá-la e, por isso, a sua linguagem gostaria dej regressar ao silêncio: é, segundo uma expressão de Beckett, uma desacration of silence. A arte quer aquilo que não era; no entanto, tudo o que ela é, já era. É incapaz de ultrapassar a sombra do que foi. Aquilo que ainda não era é o concreto. O que mais profundamente radica o nominalismo na ideologia é ele tratar a concreção como dado, como indubitavel- mente «existente» (Vorhandenes), e enganar-se a si e à humanidade ao pretender que o curso do mundo impede aquela determinação pa- cífica do ente, que apenas é usurpada ao conceito do dado e é, por seu turno, qualificada de abstracção. As obras de arte só com dificuldade tratam o concreto de um modo que não seja negativo. Só mediante o caracter não-cambiável da sua própria existência, e não através de um conteúdo particular, é que a obra de arte suspende a realidade empírica enquanto contexto funcional abstracto e universal. Toda a obra é uto- pia tanto quanto, pela sua forma, antecipa o que ela, em última aná- lise, seria e isso viria ao encontro da pretensão de obliterar a proscri- ção do ser próprio (Selbstsein) disseminado pelo sujeito. Nenhuma obra de arte se pode transferir para outra. Isso justifica o momento sensível irredutível nas obras de arte que sustenta o seu hic et nunc, assim se preservando, apesar de toda a mediação, alguma autonomia; a consciência ingênua, que continuamente adere àquele momento, não é inteiramente a falsa consciência. Sem dúvida, o caracter não-cambiável assume a função de fortalecer a crença segundo a qual ele não seria universal. A obra artística deve mesmo absorver o seu mais mortal inimigo, a permutabilidade; em vez de se evadir na concreção deve, através da própria concreção, representar o contexto total de abstrac- ção e resistir-lhe. As repetições nas autênticas obras de arte modernas não correspondem sempre à coacção arcaica da repetição. Muitas denunciam-na e tomam partido pelo que Haag chamava o irrepetível; o Play de Beckett, com a triste infinidade da sua repetição, proporciona o exemplo mais perfeito. O negro e o cinzento da arte moderna, a sua ascese das cores é negativamente a sua apoteose. Quando, nos extraordinários capítulos biográficos de Selma Lagerlõf, Marbacka traz à criança paralisada uma ave do paraíso empalhada, o «nunca visto», a cura, o efeito de tal utopia emergente não diminui, mas não mais algo de semelhante seria possível: o seu substituto é a obscuri- dade. Mas, porque a utopia, o não-ente, se encontra para a arte velada de negro, permanece, em todas as suas mediações, como lembrança, a lembrança do possível contra o real que a reprime,, algo como a compensação imaginária da catástrofe da história do mundo, liberdade que, sob a influência da necessidade, não existiu e acerca da qual não se sabe se pode existir. Na sua tensão para a catástrofe permanen- te, a negatividade da arte está ligada à méthexis na obscuridade. Nenhuma obra de arte existente ou que aparece domina positivamente o não-- ente. Tal facto distingue as obras de arte dos símbolos religiosos, que pretendem possuir a transcendência da presença imediata no fenôme- no. O não-ente nas obras de arte é uma constelação do ente. As obras de arte são promessas através da sua negatividade até à negação total, da mesma maneira que o gesto pelo qual outrora se começava um conto, o primeiro som pulsado numa citara, prometia um «nunca ouvido», um «nunca visto», ainda que fosse o mais temível; e as capas de um qualquer livro, entre as quais o olho se perde no texto, são análogas à promessa da camera obscura. O paradoxo de toda a arte moderna é adquirir ao mesmo tempo o que rejeita, da mesma maneira que o início da Recherche de Proust, com o arranjo elaboradíssimo, introduz no livro sem o ruflar da câmara escura, sem o caleidoscópio do narrador omnisciente: renuncia ao encantamento mágico e só assim o realiza. A experiência estética é a de algo que o espírito não teria nem do mundo nem de si mesmo, a possibilidade prometida pela sua impos- sibilidade. A arte é a promessa da felicidade que se quebra. Embora as obras de arte não sejam conceptuais nem formulem juízos, são lógicas. Nada nelas seria enigmático, se a sua logicidade imanente não confluísse no pensamento discursivo, cujos critérios, no entanto, ela regularmente decepciona. É no pensamento concreto que elas se aproximam mais da forma do raciocínio e do seu modelo. Nas artes temporais, o seguir-se isto ou aquilo de outra coisa dificilmente é uma metáfora; que este acontecimento seja numa obra causado por outro deixa, pelo menos, entrever claramente a relação causai empírica. Uma coisa deve provir de outra, e não apenas nas artes temporais; as artes visuais têm necessidade de igual rigor lógico. A obrigação de as obras de arte se identificarem consigo mesmas, a tensão em que caem e que as liga ao substrato do seu contrato imanente e, por fim, a idéia tradicional da homeóstase a conseguir precisam do princípio de con- seqüência lógica: tal é o aspecto racional das obras de arte. Sem a sua obrigação imanente, nenhuma seria objectivada; o seu impulso anti- mimético, tirado do exterior, associa-as a um interior. A lógica da arte, paradoxal segundo as regras da outra lógica, é um processo raciocinante sem conceito e juízo. Tira as conseqüências de fenôme- nos já naturalmente mediatizados pelo espírito e, em certa medida, logicizados. O seu procedimento lógico move-se num domínio de dados extralógicos. A unidade, que as obras de arte assim obtêm, põe-nas em analogia com a lógica da experiência, tanto quanto os seus proce- dimentos, os seus elementos e as suas relações se afastam dos da empiria prática. A relação com a matemática, que a arte entabulou na época da sua emancipação incipiente e que hoje, na época da decom- posição dos seus idiomas, novamente emerge era a autoconsciência da arte da sua dimensão lógica. Também a matemática é aconceptual, devido ao seu caracter formal; os seus símbolos nada designam e, tal 156 757 como a arte, também não profere juízos existenciais; muitas vezes se falou da sua natureza estética. Sem dúvida, a arte extravia-se logo que, estimulada ou intimidada pela ciência, hipostasia a sua lógica rigorosa, compara directamente as suas formas às formas matemáti- cas, sem se preocupar com o facto de a elas se opor também constan- temente. Contudo, a logicidade da arte é uma lógica abaixo das suas forças, que a constitui da maneira mais expressiva como um ser sui generis, como uma segunda natureza. Contraria toda a tentativa de compreender as obras de arte a partir do efeito que provocam: medi- ante o rigor lógico, as obras de arte tornam-se objectivamente deter- minadas, sem consideração pela sua recepção. No entanto, a sua logicidade não deve tomar-se à Ia léttre. A observação de Nietzsche - que, sem dúvida, subestima diletantemente a logicidade da arte - aponta para o facto de, nas obras de arte, tudo aparecer apenas como se houvesse de ser assim e não pudesse ser de outro modo. A lógica das obras revela-se imprópria ao conferir a todos os acontecimentos particulares e às soluções uma margem de variação muito maior do que acontece na lógica formal; não deve excluir-se a evocação impor- tuna da lógica onírica, na qual o sentimento da conseqüência constrangente se associa a um momento de contingência. Pela sua renúncia aos fins empíricos, a lógica adquire na arte um caracter obscuro* ao mesmo tempo contido e folgado. Deveria revelar-se tanto mais laxa quanto mais obliquamente os estilos pré-ordenados produzem por si mesmos a aparência da logicidade e aliviam a obra particular da sua execução. Enquanto que, nas obras clássicas, segundo a ex- pressão corrente, a logicidade reina imperturbavelmente, elas toleram sempre algumas e, por vezes, numerosas possibilidades: assim, por exemplo, no seio de uma típica dada, como a da música com baixo contínuo ou da Commedia deli'arte, improvisa-se com mais segurança do que, ulteriormente, em obras individualmente de todo organizadas. Estas são superficialmente mais alógicas, menos transparentes a esquemas e fórmulas geralmente pré-estabelecidos e com afinidade conceptual; contudo, na profundidade, são mais lógicas, subordinam-- se mais rigorosamente à consistência lógica. Mas, ao aumentar a logicidade das obras de arte, as suas pretensões são cada vez mais tomadas à letra até à paródia das obras totalmente determinadas, de- duzidas a partir de um material mínimo, desnuda-se o «como se» da logicidade. O que hoje parece absurdo é função negativa da logicidade integral. Retribui-se à arte a não existência de quaisquer raciocínios sem conceito e sem juízo. Essa lógica, enquanto inadequada, dificilmente se pode separar da causalidade porque, na arte, esvanece-se a diferença entre as for- mas puramente lógicas e as formas que se abrem à objectividade; na arte, hiberna a inseparabilidade arcaica de lógica e causalidade. Os principia individuationis schopenhauerianos, o espaço, o tempo, a causalidade, intervém uma segunda vez na arte, domínio do individua- lizado até ao extremo, mas refractados; e uma taí refracção, forçada pelo1 caracter de aparência, confere à arte o aspecto de liberdade. Mediante, esta se inflectem o contexto e a série dos acontecimentos, graças à intervenção do espírito. Na inseparabilidade do espírico e da necessidade cega, a lógica da arte evoca novamente a legalidade da seqüência real na história. Schõnberg pôde falar da música como his- tória dos temas. A arte não possui em si, sem qualquer mediação, o espaço, o tempo e a causalidade, nem se mantém, segundo o filósofo idealista, como esfera ideal muito além das suas determinações; influ- enciam-na como que de longe e imediatamente se tornam nela algo de diverso. Assim, por exemplo, o tempo na música é evidente enquanto tal, mas de tal modo afastado do tempo empírico que, numa audição concentrada, os acontecimentos temporais fora do contínuo musical lhe permanecem exteriores e dificilmente o afectam; se um executante interrompe para repetir ou retomar uma passagem, o tempo musical fica por um instante indiferente, totalmente intacto, de certo modo detém-se para só prosseguir quando o curso musical continua. O tem- po empírico, quando muito, altera o tempo musical devido à sua he- terogeneidade; não se confundem. Além disso, as categorias formativas da arte não são, sem mais, qualitativamente diferentes das categorias externas, mas transpõem a sua qualidade para o médium qualitativa- mente diverso, apesar da sua modificação. Se essas formas são na existência externa as formas determinantes da dominação natural, são, por sua vez, dominadas na arte; lida-se com elas livremente. Através da dominação do dominante, a arte revê profundamente a dominação da natureza. A utilização dessas formas e da sua relação com os materiais torna evidente o seu caracter arbitrário, perante a aparência de ineluctabilidade, que lhes cabe na realidade. Se uma música compri- me o tempo, se um quadro redobra o espaço, concretiza-se a possibi- lidade de conseguir algo de diverso. Sem dúvida, estas categorias tornam-se fixas, o seu poder não é negado, mas desapossadas da sua obrigação. Sob este aspecto, a arte paradoxalmente, segundo o pró- prio ponto de vista dos seus constituintes formais que a libertam da empiria, é menos aparente, menos cegada pelas leis subjectivamente ditadas, do que o conhecimento empírico. A lógica das obras de arte deriva da lógica formal, mas não se identifica com ela: eis o que se revela no facto de as obras - e a arte aproxima-se assim do pensamento dialéctico - suspenderem a própria logicidade e poderem, no fim, fazer desta suspensão a sua idéia; para aí aponta o momento de disrupção em toda a arte moderna. As obras de arte que manifestam uma pro- pensão para a construção integral renegam a logicidade com o vestí- gio da mimese que lhes é heterogêneo e indelével; a construção a isso está destinada. A lei formal autônoma das obras exige ainda o protes- to contra a logicidade, a qual define, no entanto, a forma como prin- cípio. Se a arte não tivesse absolutamente nada a ver com a logicidade e a causalidade, passaria por alto a relação com o seu outro e a priori funcionaria em vão; se as tomasse à letra, dobrar-se-ia ao constrangi- mento; só graças ao seu duplo caracter, que suscita um conflito per- 158 759 daquilo em que se manifesta a actividade subjectiva, como é produto da actividade subjectiva. Esteticamente, a forma nas obras de arte é essencialmente uma determinação objectiva. Habita precisamente onde a obra se separou do produto. Não deve, pois, procurar-se na ordena- ção de elementos pré-dados, como isso correspondia, por exemplo, à concepção da composição pictural, antes de o impressionismo a ter posto fora de circulação; que, apesar de tudo, tantas obras justamente aprovadas como clássicas se revelem ao olhar insistente como seme- lhante estrutura, constitui uma objecção mortal contra a arte tradicio- nal. O conceito de forma de nenhum modo é redutível a relações matemáticas como se pensou, por vezes, na estética antiga, por exem- plo, Zeising (59). Tais relações, quer como princípios explícitos na Renascença, quer de modo latente e associadas a concepções místicas como talvez esporadicamente em Bach, desempenham o seu papel nos procedimentos, não são porém a forma, mas o seu veículo, o meio de preformação do sujeito, pela primeira vez liberto e entregue a si mesmo, enquanto material concebido como caos e sem qualidade. A escassa coincidência entre a organização matemática ou tudo o que lhe é afim e a forma estética tornou-se recentemente sensível no dodecafonismo, que preforma realmente o material mediante relações quantitativas - séries em que nenhum som deve ocorrer antes que outro apareça, e que se permutam. Depressa se descobriu que esta preformação não influía sobre a forma como esperava o programa formulado por Erwin Stein (60), cujo título era justamente «Novos princípios formais». O próprio Schõnberg distinguia quase mecanica- mente a disposição dodecafónica e o acto de compor e, por causa desta distinção, não se satisfez com a técnica engenhosa. Contudo, o maior rigor da geração seguinte, que anula a distinção entre o serialismo e a composição propriamente dita, obtém a integração não só à custa de uma auto-alienação musical, mas também de uma carência de ar- ticulação que se não pode abstrair da forma. É como se a coerência imanente da obra, que se abandona sem intervenção a si mesma, e o esforço para isolar a totalidade formal do heterogêneo recaíssem na grosseirice e na insensibilidade. De facto, as formas perfeita e total- mente organizadas da fase serial abandonaram praticamente todas o meio de diferenciação, a que eram devidas. A matematização como método de objectivação imanente da forma é quimérica. A sua insu- ficiência pode explicar-se por se tentar aplicá-la em fases em que a tradicional evidência das formas se esvanece, e em que nenhum cânone objectivo é de antemão imposto ao artista. Este apela, em seguida, para a matemática, que combina a situação de razão subjectiva, em que se encontra, com a aparência de objectividade segundo categorias como a universalidade e a necessidade; aparência, porque a organiza- (59) Cf. Adolf Zeising, Aesthetische Forschungen, Francoforte 1855. (60) Cf. Erwin Stein, «Neue Formprinzipien», in: Von neuer Musik, Colônia 1925, p. 59 ss. cão, a relação recíproca dos momentos que constitui a forma, não promana da estrutura específica e fracassa perante a particularidade. Daí que a matematização tenda justamente para as formas tradicio- nais, que ela ao mesmo tempo contradiz como irracionais, Em vez de representar a legalidade básica do ser, tal como a si mesma se inter- preta, o aspecto matemático da arte esforça-se desesperadamente por garantir a sua possibilidade no interior de uma situação histórica, em que a objectividade do conceito de forma é exigida e igualmente ini- bida pela situação da consciência. O conceito de forma revela-se muitas vezes limitado por, tal como isso acontece, deslocar a forma para outra dimensão sem tomar a outra em consideração, por exemplo, na música, a sucessão temporal, como se a simultaneidade e a polifonia contribuíssem menos para a forma, ou na pintura, onde a forma é atribuída às proporções de es- paço e de superfície, à custa da função formadora da cor. Em oposição a tudo isso, a forma estética é a organização objectiva de tudo o que, no interior de uma obra de arte, aparece como linguagem coerente. É a síntese não violenta do disperso que ela, no entanto, conserva como aquilo que é, na sua divergência e nas suas contradições, e eis porque ela é efectivamente um desdobramento da verdade. Unidade estabele- cida, suspende-se sempre a si mesma, enquanto posta; é-lhe essencial interromper-se através do seu outro, não se harmonizar com a sua consonância. Na sua relação com o seu outro, cuja estranheza atenua e, no entanto, mantém, ela é o elemento anti-bárbaro da arte; através da forma, a arte participa na civilização, que ela critica mediante a sua existência. Lei da transfiguração do ente, representa perante ele a liberdade. Ela seculariza o modelo teológico da imagem à semelhança de Deus, não criação mas comportamento objectivado dos homens, que imita a criação; não se trata, certamente, de criação a partir do nada, mas do criado. O giro metafórico impõe-se segundo o qual a forma seria nas obras de arte tudo aquilo em que a mão deixa o seu vestígio, em que ela intervém. É o selo do trabalho social, fundamen- talmente diferente do processo de configuração empírica. O que aos olhos dos artistas surge como forma deve antes explicar-se e contra- rio, pela aversão contra o elemento não filtrado da obra de arte, contra o complexo das cores que simplesmente lá está, sem em si mesmo ser articulado e animado; contra a seqüência musical tirada do repertório, do topos; contra o pré-crítico. Forma e crítica convergem. Nas obras de arte, a forma é aquilo mediante o qual elas se revelam críticas em si mesmas; o que na obra se revolta contra o resto de relevo é verda- deiramente o suporte da forma, e a arte é negada quando nela se cultiva a teodiceia do não-formado, em nome, por exemplo, do diletantismo musical e do charlatanismo. Pela sua implicação crítica, a forma aniquila as práticas e as obras do passado. A forma contradiz a concepção da obra como algo de imediato. Se ela é nas obras de arte aquilo mediante o qual se tornam obras de arte, eqüivale então à sua mediatidade, à sua objectiva reflexão em si. A forma é mediação 164 765 enquanto relação das partes entre si e com o todo e enquanto plena elaboração dos pormenores. A ingenuidade enaltecida das obras de arte revela-se sob este aspecto como o elemento hostil à arte. O que, em rigor, nelas aparece como evidente e ingênuo, a sua constituição como algo que se apresenta em si coerente, por assim dizer, sem falhas e, portanto, imediatamente, é devido à sua mediação em si. Só assim elas se tornam significantes e os seus elementos se transfor- mam em signos. Nas obras de arte, tudo o que se assemelha à lingua- gem se condensa na forma, convertendo-se deste modo em antítese da forma, em impulsos miméticos. A forma procura fazer falar o porme- nor através do todo. Tal é, porém, a melancolia da forma, sobretudo nos artistas em que predomina. Ela limita sempre o que é formado; de outro modo, o seu conceito perderia a sua diferença específica rela- tivamente ao formado. Isto confirma o trabalho artístico do formar que incessantemente selecciona, amputa e renuncia: nenhuma forma sem recusa. Assim se prolonga nas obras de arte o elemento domina- dor pernicioso, de que elas gostariam de se desembaraçar; a forma é a sua amoralidade. Fazem mal ao formado, ao segui-lo. A antítese da forma e da vida, continuamente repetida pelo vitalismo desde Nietzsche, pressentiu pelo menos a este respeito alguma coisa. A arte cai no pecado do vivo, não só porque testemunha, pela sua distância, da sua própria culpabilidade mas, mais ainda, porque recorta o vivo a fim de o trazer à linguagem, e o mutila. No mito de Procusto conta-se em parte a pré-história filosófica da arte. Mas daí não se segue uma con- denação da arte como também não a partir da culpabilidade parcial no seio da culpabilidade total. Quem invectiva contra o pretenso formalismo - contra o facto de a arte ser a arte - advoga aquela inumanidade, de que ele acusa o formalismo: em nome de cliques que, para melhor segurarem as rédeas dos indivíduos dominados, exigem a adaptação a tal inumanidade. Sempre que se acusa a inumanidade do espírito, é contra a humanidade que se insurge; apenas o espírito respeita os homens, o qual, em vez de a eles se dobrar tais como foram feitos, imerge na coisa (Sache) que, sem que os homens saibam, lhes é pró- pria. A campanha contra o formalismo ignora que a forma, a qual é devida ao conteúdo, é em si mesma um conteúdo sedimentado; isto, e não a regressão à conteudalidade pré-artística, confere o seu objecto ao primado do objecto ria arte. As categorias estéticas formais como a particularidade, o desenvolvimento e a resolução da contradição, e mesmo a antecipação da reconciliação pela homeóstase, são transparentes ao seu conteúdo, mesmo e com maior razão quando se desligaram dos objectos empíricos. A arte assume a sua posição perante a empiria precisamente pela sua distância a seu respeito; as contradições são nela imediatas e excluem-se simplesmente uma à outra; a sua media- ção, contida em si na empiria, torna-se no para-si da consciência só mediante o acto de recuo, que a arte leva a cabo. É, sob este aspecto, um acto de conhecimento. As características da arte radical, por causa das quais ela foi ostracizada como formalismo, provêm sem excepção do facto de o conteúdo nelas palpitar de um modo vivo, e de não ter sido antes talhado a medida pela harmonia em vigor. A expressão emancipada, em que surgiram todas as formas da arte nova, protestou contra a expressão romântica através do seu elemento protocolar, que reage contra as formas. Isso trouxe-lhes a sua substancialidade; Kandinsky forjou o termo de acto cerebral. Filosófico-historicamente, a emancipação da forma tem geralmente o seu momento conteudal ao desdenhar atenuar a alienação no interior da imagem, ao incorporar unicamente assim o elemento alienado que ela define enquanto tal. As obras herméticas exercem muito mais a crítica do estado de coisas existente do que aquelas que, por mor de uma crítica social mais compreensível, se esforçam por uma conciliação formal e reconhecem implicitamente o tráfico em toda a parte florescente da comunicação. Na dialéctica da forma e do conteúdo, e contra Hegel, o envólucro tende igualmente por isso para o lado da forma, porque o conteúdo, que a sua estética tenta sobretudo salvar, se perverte entretanto em moldagem daquela reificação contra a qual, segundo a doutrina hegeliana, a arte protesta por uma realidade (Gegebenheit) positivista. Quanto mais profundamente o conteúdo experimentado se transforma, até deixar de ser reconhecível, em categoria formal, tanto menos os materiais não sublimados são comensuráveis ao conteúdo das obras de arte. Tudo o que aparece na obra de arte é virtualmente conteúdo tal como forma, ao passo que esta permanece, no entanto, o meio de definição do que aparece e o conteúdo permanece o que se define a si mesmo. Tanto quanto a estética se concentrou num conceito mais enérgico de forma, procurou legitimamente, contra a concepção pré-artística da arte, o elemento especificamente estético apenas na forma e nas suas modificações enquanto mudanças do comportamento do sujeito esté- tico; para a concepção da história da arte como história do espírito isto era axiomático. Mas o que promete reforçar o sujeito no sentido da emancipação enfraquece-o ao mesmo tempo mediante a sua dissociação. Hegel tem razão ao afirmar que os processos estéticos possuem sempre o seu lado conteudal, como também na história das artes plásticas e da literatura continuamente se revelaram, descobri- ram e assimilaram novos estratos do mundo exterior, enquanto outros morreram, perderam a sua capacidade artística e nem sequer estimu- lam o último borrador de hotel a eternizá-los por breve tempo na tela. Lembrem-se os trabalhos da Escola de Warburgo, dos quais alguns se introduzem no centro do conteúdo artístico graças à análise dos mo- tivos; na poetologia, o livro de Benjamin sobre o Barroco revela uma tendência análoga suscitada certamente pela recusa da confusão das intenções subjectivas com o conteúdo estético e, finalmente, pela recusa da aliança entre a estética e a filosofia idealista. Os momentos conteudais são suportes do conteúdo contra a pressão da intenção subjectiva. A articulação, graças à qual a obra de arte adquire a sua forma, concede em certo sentido também incessantemente o seu declínio. Se a unidade sem falhas e não violenta da forma e do formado fosse bem 166 167 sucedida, como ela figura na idéia de forma, seria então realizada a identidade do idêntico e do não-idêntico perante cuja irrealizabilidade, porém, a obra de arte se empareda no imaginário da identidade sim- plesmente «ente para-si». A disposição de um todo segundo os seus complexos conserva inteiramente um fundamento de articulação, a sua insuficiência, quer como divisão de uma massa de lava em peque- nos jardins, quer por um resto de elemento externo na unificação do divergente. Prototípica para tal caso é a contingência indomada da seqüência dos movimentos de uma sinfonia integral, à maneira de uma suite. Do grau da articulação de uma obra depende o que se chama o seu nível formal - segundo um termo usual em grafologia, desde Klages. O conceito de nível formal põe fim ao relativismo do «querer artístico» de Riegl. Há tipos de arte e fases da sua história em que a articulação não é nem procurada nem impedida por procedimen- tos técnicos convencionais. A sua adequação ao querer artístico, à concepção de forma objectiva e histórica, que os veicula, nada se modifica na sua subalternidade: sob o constrangimento de um a priori que os abarca não decidem o que, segundo a própria logicidade, de- veriam decidir. «Não deve ser assim»; como empregados, cujos ante- passados foram artistas de nível formal inferior, o seu inconsciente sussurra-lhes que o extremo não ocorre aos pequenos homens que eles são; mas o estremo é a lei formal daquilo para onde eles se deixaram arrastar. Na crítica, também raramente se cai na conta de que, indivi- dual ou colectivamente, a arte não procura o seu próprio conceito que nela se desdobra; assim, por exemplo, como os homens que costu- mam rir mesmo quando nada existe de cômico. Numerosas obras de arte começam por uma resignação inexpressa e são por isso elogiadas, ao mesmo tempo que têm êxito, junto dos historiadores da arte e junto do público, graças à fraca pretensão dos seus produtos; deveria um dia analisar-se até que ponto este momento contribuiu, desde as épo- cas mais recuadas, para a separação entre arte superior e arte inferior que, sem dúvida, tem a sua razão determinante no facto de a cultura dever o seu fracasso à humanidade que a produziu. Em todo o caso, uma categoria aparentemente tão formal como a de articulação tem também o seu aspecto material: o da intervenção na rudis indigestaque moles do que se sedimentou na arte, para lá da sua autonomia; mesmo as suas formas tendem historicamente a tornar-se materiais de segun- do grau. Os meios, sem os quais a forma não existiria, minam-na. As obras que renunciam a grandes totalidades parciais, para não porem em perigo a sua unidade, esquivam-se apenas à aporia: eis a objecção mais convincente contra a intensidade sem extensão de Webern. Em contrapartida, os produtos medianos deixam intactos, sob o frágil envólucro da sua forma, as totalidades parciais, preferem o ocultamento destas à sua fusão. Isso quase se poderia erigir em regra e testemunha, dada a profunda imbricação do conteúdo e da forma, que a relação das partes ao todo, um aspecto essencial da forma, se estabelece indirec- tamente e por desvios. As obras de arte perdem-se para se encontra- 168 rem: a categoria formal para isso é o episódio. Numa série de aforismos publicados antes da I Guerra mundial e datando da sua fase expressionista, Schõnberg salientou que não existe nenhum fio de Ariana que sirva de guia no interior das obras de arte (6I). Mas tal não condiciona nenhum irracionalismo estético. Para as obras de arte es- tão tão ocultos a sua forma, o seu todo e a sua logicidade como os momentos, o conteúdo aspiram à totalidade. A arte de elevada preten- são tende a ultrapassar a forma como totalidade, e desemboca no fragmentário. A indigência da forma deveria expressamente .acabar de se fazer sentir na dificuldade da arte temporal; na música, no chamado problema do final; na poesia, na questão do deselance que se torna, até Brecht, cada vez mais crítico. Uma vez desembaraçada da conven- ção, nenhuma obra de arte pode já manifestamente concluir de modo convincente, enquanto que os desenlaces tradicionais apenas proce- dem como se os momentos singulares se associassem com o ponto final no tempo para constituir a totalidade da forma. Em numerosas obras da modernidade que, entretanto, foram objecto de ampla recep- ção, a forma manteve-se habilmente aberta, porque queriam provar que a unidade da forma já não lhes era garantida. A má infinitude, o não-poder-concluir, torna-se princípio livremente escolhido de proce- dimento e expressão. Nas suas peças, ao repetir literalmente um excerto em vez de o interromper, Beckett reage a tal fenômeno; há quase cinqüenta anos, Schõnberg procedeu de modo semelhante na marcha da serenata: após a supressão da repetição, retorno desta por desespe- ro. O que Lukács chamou outrora a «descarga do sentido» designava a força que permitia à obra de arte - ao ter de confirmar a sua defi- nição imanente - terminar segundo o modelo daquele que morre de velhice e de saturação vital. Que isso seja recusado às obras de arte, que também não possam morrer como o caçador Gracchus, é por elas imediatamente integrado como expressão do horror. A unidade das obras de arte não pode ser o que ela deve ser, a unidade da variedade: ao sintetizar, ela viola o sintetizado e prejudica nele a síntese. As obras sofrem tanto na sua totalidade mediatizada, como nas suas imediatidades. Contra a divisão pedante da arte em forma e conteúdo, é preciso insistir na sua unidade e, contra a concepção sentimental da sua indi- ferença na obra de arte, insistir no facto de a sua diferença subsistir ao mesmo tempo na mediação. Se a identidade perfeita dos dois é quimérica, não acontece, por sua vez, em benefício das obras: por analogia com a expressão kantiana, elas seriam vazias ou cegas, jogo auto-suficiente ou empiria grosseira. Do ponto de vista conteudal, o conceito de material é o que mais satisfaz à distinção mediatizada. Segundo uma terminologia finalmente adoptada de um modo quase geral nos gêneros artísticos, chama-se assim ao que é formado. Não (61) Cf. Arnold Schõnberg, «Aphorismen», in: Die Musik IX 9 (1909/10), p. 159 ss. 169 tensão relativamente ao conteúdo, ao poetizado. O sentido de um poema como Clair de Lune de Verlaine não deve fixar-se como algo de significado; contudo, ele ultrapassa a incomparável tonalidade dos versos. Aqui, a sensualidade é também intenção: a felicidade e a tris- teza que acompanham o sexo, logo que ele imerge em si e nega o espírito como ascese, são o conteúdo; a idéia impecavelmente repre- sentada de uma sensualidade do sentido afastada do sentido. Nesta característica, central para toda a arte francesa do final do século xix e do princípio do século xx, e também de Debussy, oculta-se o poten- cial da modernidade radical; os laços de ligação histórica não faltam. Inversamente, o facto de saber se a intenção se objectiva em poetizado constitui o ponto de partida, se é que também não o telos da crítica; as linhas de ruptura entre aquela intenção e o que é alcançado, que dificilmente faltam numa obra de arte contemporânea não são menos cifras do seu conteúdo do que o que foi alcançado. Mas, uma crítica superior, a crítica da verdade ou inverdade do conteúdo torna-se muitas vezes crítica imanente mediante o conhecimento das relações entre a intenção e o poetizado, o pintado e o composto. Ela nem sempre fracassa na fraqueza da configuração subjectiva. A falsidade da inten- ção transtorna o conteúdo de verdade objectivo. Se o que deve ser conteúdo de verdade é falso em si, então inibe a consonância imanen- te. Semelhante falsidade costuma ser mediatizada pela falsidade da intenção: ao nível formal mais elevado, O Caso Wagner. - Para a tradição da estética, em grande parte também segundo a arte tradicio- nal, a definição da totalidade da obra de arte era como a de uma coerência de sentido. A interacção do todo e das partes deve de tal modo marcá-la como uma plenitude de sentido que a substância de semelhante sentido coincide com o conteúdo metafísico. Porque a coerência de sentido se constituiu através da relação dos momentos, não de um modo atomístico em qualquer dado sensível, deve nele ser apreensível o que, com razão, se poderia chamar o espírito das obras. Que o elemento espiritual de uma obra de arte seja tanto como a configuração dos seus momentos não seduz simplesmente, mas é verdade relativamente a toda a reificação ou materialização grosseiras do es- pírito e do conteúdo das obras. Para tal sentido contribui mediata ou imediatamente tudo o que aparece, sem que tudo o que aparece deva ter necessariamente o mesmo peso. A diferenciação dos pesos foi um dos meios mais eficazes de articulação: por exemplo, a distinção entre o episódio tético principal e as transições e, sobretudo, entre o essen- cial e os acidentes, por mais necessários que sejam. Tais diferencia- ções foram na arte tradicional em grande parte dirigidas por esque- mas; com a crítica que lhes foi feita, tornaram-se problemáticas: a arte tende para tipos de procedimento, nos quais tudo o que acontece, se aproxima muito do ponto central onde todo o elemento acidental sus- cita a suspeita de um ornamento supérfluo. Eis uma das mais consi- deráveis dificuldades da articulação da arte nova. A autocrítica irresistível da arte, o imperativo de uma configuração sem falhas, parecem con- trapor-se-lhe e fomentar em toda a arte, como sua condição, o mo- mento caótico que a espreita. A crise da possibilidade de diferencia- ção suscita freqüentemente, mesmo nas obras de altíssimo nível for- mal, um elemento indiferenciado. As tentativas de defesa perante tal fenômeno devem quase sempre sem excepção, se bem que muitas vezes de modo latente, contrair empréstimos no fundo a que se opõem: também aqui convergem o domínio total do material e o movimento para o difuso. Que as obras de arte, segundo a fórmula altamente paradoxal de Kant, sejam «sem fim» (ohne Zweck), isto é, separadas da realidade empírica, e não persigam nenhuma intenção útil para a autoconservação e a vida, impede qualificar o sentido como fim, apesar da sua afini- dade com a teleologia imanente. Mas, torna-se cada vez mais difícil às obras de arte constituirem-se como coerência de sentido. Respon- dem a isso, finalmente, com a recusa da idéia de tal coerência. Quanto mais a emancipação do sujeito demole todas as representações de uma ordem pré-dada e doadora de sentido, tanto mais problemático se torna o conceito do sentido como refúgio da teologia declinante. Já antes de Auschwitz era uma mentira afirmativa, relativamente às experiências históricas, o atribuir um sentido positivo à existência. Isso tem conseqüências na forma das obras de arte. Se elas nada mais têm fora de si mesmas a que possam aderir sem ideologia, de nenhum modo se pode estabelecer por um acto subjectivo o que lhes falta. Tal carência foi suplantada pela sua tendência à subjectivização e esta não é um acidente da história do espírito, mas é conforme ao estado da verdade. A auto-reflexão crítica, tal como é inerente a toda a obra de arte, agudiza a sua sensibilidade contra todos os momentos que nela reforçam tradicionalmente o sentido; mas assim também contra o sentido imanente das obras e as suas categorias fundadoras de sen- tido. Pois o sentido, em que a obra de arte se sintetiza, não pode ser apenas algo que lhe incumbe elaborar, nem também a sua substância. Ao apresentá-lo e produzi-lo esteticamente, a totalidade da obra re- produz o sentido. Só é legítimo nela na medida em que ele é objec- tivamente mais do que o seu sentido próprio. Ao esgotarem sempre impiedosamente a coerência fundadora de sentido, as obras de arte voltam-se contra essa coerência e contra o sentido em geral. O traba- lho inconsciente do gênio artístico no sentido da obra enquanto algo de substancial e fundamental suprime tal sentido. A produção vanguardista dos últimos decênios tornou-se autoconsciência deste estado de coisas, transformou-o em sua temática e transpô-lo para a estrutura das obras. É fácil convencer o neo-dadaísmo da sua falta de referência política e de o rejeitar como absurdo e sem finalidade, nos dois sentidos da palavra. Mas, a esse respeito, esquece-se que os produtos manifestam o que lhes advém do sentido, sem consideração por si mesmos enquanto obras de arte. A obra de Beckett pressupõe já esta experiência como evidente, impele-a contudo mais longe do que a negação abstracta do sentido ao fazer entrar, mediante a sua 174 775 factura, esse processo nas categorias tradicionais da arte, ao suprimi- las concretamente e ao extrapolar outras do nada. A inversão, que aí tem lugar, não é evidentemente do estilo de uma teologia que já re- toma o fôlego quando se discute o seu domínio, da mesma maneira que incide o juízo, como se, no fim do túnel da absurdidade metafí- sica, da representação do mundo como inferno, aparecesse a luz; com razão Günther Anders defendeu Beckett contra os que dele fazem um autor afirmativo (64). As peças de Beckett são absurdas, não pela ausência de todo e qualquer sentido - seriam, então, irrelevantes -, mas porque põem o sentido em questão. Desenrolam a sua história. Assim como a sua obra é dominada pela obsessão de um nada posi- tivo, assim também o é pela obsessão de uma absurdidade por assim dizer merecida, sem que no entanto esta possa ser reclamada como sentido positivo. Contudo, a emancipação das obras de arte relativa- mente ao seu sentido torna-se esteticamente rica de sentido logo que se realiza no material estético: precisamente porque o sentido estético não se confunde imediatamente com o sentido teológico. As obras de arte, que se despojam da aparência de todo o aspecto significante, nem por isso perdem a sua semelhança com a linguagem. Exprimem com a mesma precisão que as obras tradicionais o seu sentido positivo como sentido da sua absurdidade. A arte encontra-se, hoje, para isso capacitada: pela negação conseqüente do sentido, presta justiça aos postulados que outrora constituíam o sentido das obras. As obras de mais elevado nível formal, desprovidas de sentido ou a ele alheias, são, pois, mais do que simplesmente absurdas, porque o seu sentido cresce na negação do sentido. A obra que nega rigorosamente o sen- tido está obrigada, por tal lógica, à mesma coerência e unidade, que outrora devia presentificar o sentido. As obras de arte, mesmo contra sua vontade, tornam-se contextos de sentido ao negarem o sentido. Enquanto que a crise do sentido radica numa problemática de toda a arte, na sua recusa perante a racionalidade, a reflexão não consegue eludir a questão de se a arte, mediante a demolição do sentido e o que justamente parece absurdo à consciência quotidiana, se lança nos braços da consciência reificada, do positivismo. Mas, o limiar entre uma arte autêntica, que assume em si a crise do sentido, e uma arte resignativa, consiste em proposições protocolares, no sentido literal e figurado do termo, de modo que, nas obras importantes, a negação do sentido se constitui como elemento negativo, e nas outras se reproduz obstina- damente de uma maneira positiva. Tudo depende de se o sentido é inerente à negação do sentido na obra de arte ou se tal negação se adapta às contingências; de se a crise do sentido está reflectida na obra ou se ela permanece imediata e, por isso, estranha ao sujeito. Fenómenos-chave podem também ser certas obras musicais como o Concerto para piano de John Cage, que se impõem como lei uma (64) Cf. Günther Anders, Die Antiquiertheit dês Menschen. Über die Seele im Zeitalter der zweiten industriellen Revolution, 2.a ed., Munique 1956, p. 213 ss. contingência impiedosa e, portanto, algo que se assemelha ao sentido: recebem a expressão do horror. No entanto, em Beckett, a unidade paródica de lugar, tempo e acção age, por episódios habilmente cons- truídos e pensados e pela catástrofe, que consiste no simples facto de ela não aparecer. Verdadeiramente, um dos enigmas da arte e teste- munho do poder da sua logicidade é que todo o rigor lógico radical, mesmo a que se chama absurda, termina em algo de semelhante ao sentido. Mas, isso não é tanto a confirmação da sua substancialidade metafísica que se apodera de toda a obra completamente elaborada quanto a confirmação do seu caracter de aparência: a arte é finalmente aparência por não poder esquivar-se à sugestão de sentido no seio do absurdo. No entanto, as obras de arte que negam o sentido devem também ser deslocadas na sua unidade; eis a função da montagem, que tanto desaprova a unidade pela disparidade evidente das partes como, enquanto princípio formal, contribui para a sua restauração. É conhecida a relação entre a técnica de montagem e a fotografia. Aquela tem no cinema o lugar que lhe é adequado. Justaposição sacudida e descontínua de seqüências, o corte de imagens, utilizado como meio artístico, quer estar ao serviço das intenções, sem que seja afectada a ausência de intenções da simples existência, que o filme visa. O prin- cípio de montagem de nenhum modo é um truque para integrar na arte a fotografia e os seus derivados, apesar da sua dependência redutora relativamente à realidade empírica. A montagem ultrapassa antes imanentemente a fotografia, sem a infiltrar de magia fácil, mas tam- bém sem sancionar como norma a sua coisalidade: autocorrecção da fotografia. A montagem apareceu como antítese de toda a arte carre- gada de atmosfera e, em primeiro lugar, como antítese do impressionismo. Este decompunha os objectos em elementos mais pequenos que, depois, ressintetizava, elementos predominantemente tirados do âmbito da civilização técnica ou da sua amálgama com a natureza para as atribuir, sem rotura, ao contínuo dinâmico. Ele queria salvar esteticamente o elemento alienado, heterogêneo, na reprodu- ção. Esta concepção revelou-se tanto menos sólida quanto mais au- mentava a preponderância do elemento prosaico coisal sobre o sujeito vivo: a subjectivização da objectividade regrediu em romantismo, tal como foi sentida flagrantemente não só no Jugendstil, mas também nos produtos tardios do autêntico impressionismo. Contra tal subjectivização protesta a montagem, descoberta na colagem dos cortes de jornais e coisas semelhantes, nos anos heróicos do cubismo. A aparência da arte, mesmo se esta mediante a configuração da empiria heterogênea com ela está reconciliada, deve romper-se, enquanto a obra introduz em si as ruínas literais e não fictícias da empiria, reco- nhece a rotura e a transforma em efeito estético. A arte quer confessar a sua impotência perante a totalidade do capitalismo tardio e inaugu- rar a sua supressão. A montagem é a capitulação intra-estética da arte perante o que lhe é heterogêneo. A negação da síntese torna-se prin- cípio de configuração. A montagem, além disso, deixa-se guiar in- 776 777 conscientemente por uma utopia nominalista: a de não mediatizar pela forma ou pelo conceito os factos puros e de se alienar irremediavel- mente da sua facticidade. Sobre eles importa chamar a atenção pelo método que a teoria do conhecimento chama o método deíctico. A obra de arte quer traze-los à linguagem, enquanto eles próprios nela falam. Assim inicia a arte o processo contra a obra de arte enquanto coerência de sentido. Pela primeira vez na evolução da arte, os resí- duos da montagem assinalam o sentido de cicatrizes visíveis. Isso coloca a montagem num contexto muito mais considerável. Toda a modernidade após o impressionismo, e também as manifestações ra- dicais do expressionismo, renegam a aparência de um contínuo cria- dor na unidade subjectiva da experiência, no «fluxo de vivências». Rompe-se o entrelaçado, a imbricação organicista, destrói-se a crença de que um se molda vivo ao outro, a menos que a imbricação não seja tão compacta e enovelada que, por isso mesmo, se feche ao sentido. O princípio de construção estética, o primado radical da totalidade sistemática sobre os pormenores e a sua relação na micro-estrutura constituem o complemento disso; segundo a micro-estrutura, toda a arte nova se deveria chamar montagem. Os elementos não integrados são comprimidos pela instância superior do todo, de maneira que a totalidade força a coerência inexistente das partes e se transforma assim novamente em aparência de sentido. Semelhante unidade outor- gada regula-se pelas tendências dos pormenores na arte nova, pela «vida instintiva dos sons» ou das cores, e conforma-se tão musical- mente com as exigências harmônicas e melódicas que se faz um uso mais completo de todos os tons disponíveis da escala cromática. Sem dúvida, esta tendência em si mesma também é derivada da totalidade do material, do espectro, de modo mais sistemático do que verdadei- ramente espontâneo. A idéia de montagem e de construção com ela profundamente ligada torna-se incompatível com a da obra de arte radical e totalmente constituída, com a qual, por vezes, se sabia idên- tica. O princípio da montagem, enquanto acção contra a unidade or- gânica obtida subrepticiamente, estava fundada no choque. Depois de este se ter suavizado, as montagens tornam-se de novo uma simples matéria indiferente; o procedimento já não basta para operar por con- tacto a comunicação entre o estético e o extra-estético, o interesse neutraliza-se em interesse histórico-cultural. Mas, se ele se atem, como no cinema comercial, às intenções da montagem, então transforma-se em intenção que soa a falso. A crítica do princípio de montagem transborda para o construtivismo, no qual tal princípio se disfarça, precisamente porque a configuração construtivista é conseguida à custa dos impulsos individuais, em última análise, do momento mimético e, assim, ameaça falhar o seu objectivo. O próprio funcionalismo, tal como o representa o construtivismo no seio da arte não-funcional, cai sob a crítica da aparência: o que se comporta de um modo puramente adequado não o é na medida em que, pela configuração, isso corta a via desejada pelo que há a estruturar; pretende uma finalidade imã- nente que não o é: a crítica da aparência atrofia a teleologia dos momentos singulares. O funcionalismo revela-se ideologia: a unidade sem falha que como tal se apresenta a obra de arte funcional ou téc- nica não é atingida. Nas lacunas - mínimas - entre todo o elemento particular nas obras construtivistas escancara-se o uniformizado, de modo semelhante aos interesses particulares socialmente reprimidos sob a administração total. O processo entre o todo e o singular é, depois do fracasso da instância superior, remetido para o inferior, para os impulsos dos pormenores, em conformidade com o estádio nominalista. A arte em geral só pode conceber-se sem esta usurpação de um elemento englobante pré-dado. As manchas indeléveis nas obras puramente expressivas e orgânicas oferecem uma analogia com a práxis anti-orgânica da montagem. Esboça-se uma antinomia. As obras de arte, que são comensuráveis à experiência estética, seriam de tal modo ricas de sentido que sobre elas vela um imperativo estético: é o que importa e, na obra de arte, daí tudo depende. Em sentido oposto vai a evolução que foi desencadeada por esse ideal. A determinação ab- soluta que exprime que tudo acaba por possuir a mesma importância, que nada subsiste fora do contexto, converge, segundo a opinião de Gyõrgy Ligeti, com a contingência absoluta. Retrospectivamente, isso corrói simplesmente a legalidade estética. A ela está sempre ligada um momento de legalidade, da regra lúdica, de contingência. Se, depois do início dos tempos modernos, e drasticamente na pintura holandesa do séc. xvn e nos começos do romance inglês, a arte absorveu em si momentos contingentes da paisagem e do destino como momentos não construíveis a partir da idéia, não pertencentes a nenhum ordo de vida superior, para nesses momentos insuflar a partir da liberdade um sentido no interior do contínuo estético, a impossibilidade da objec- tividade do sentido, oculta primeiramente no longo período da ascen- são burguesa, acabou também por transferir, em virtude do sujeito, a própria coerência de sentido para a contingência, que outrora a figu- ração teve a pretensão de designar. A evolução para a negação do sentido torna-a semelhante a este. Enquanto que esta é inevitável e tem a sua verdade, ela é acompanhada, numa escala diferente, por um elemento inimigo da arte, simplesmente mecânico, e que reprivatiza a tendência evolutiva, esta transição vai a par com a exterminação da subjectividade estética, em virtude da sua própria lógica; ela tem de pagar pela inverdade da aparência estética que produziu. Também a chamada literatura absurda compartilha, nos seus representantes mais elevados, a dialéctica, ao exprimir enquanto coerência de sentido, em si Ideologicamente organizada, que não existe nenhum sentido e que, assim, conserva na negação determinada a categoria do sentido; eis o que torna possível e exige a sua interpretação. Categorias como a unidade e mesmo a harmonia não se esvanecem, mediante a crítica do sentido, sem deixar vestígios. A antítese deter- minada de toda a obra de arte à simples empiria exige a sua coerência. De outro modo, através das lacunas da estrutura, penetraria, como na 178 779 a obra mais descontraída é o resultado de uma tensão dominadora, que se vira contra o próprio espírito dominador, o qual fica encadeado à obra. O conceito de clássico é disso o protótipo. A experiência do modelo de toda a classicidade, da plástica grega, deveria retrospecti- vamente abalar a confiança que nela se tinha, bem como a de épocas ulteriores. Esse arte perdeu a distância relativamente à existência empírica, distância em que se mantinham as culturas arcaicas. Segun- do a tese estética tradicional, a escultura clássica baseava-se na iden- tidade do universal ou da idéia e do particular ou da individualidade: razão por que, no entanto, lhe era impossível contar com a aparência sensível da idéia. Se ela houvesse de aparecer sensivelmente, tinha então de integrar o mundo da aparência empiricamente individualizado em si e o seu princípio formal. Mas isso acorrenta ao mesmo tempo a plena individuação; provavelmente, a classicidade grega ainda não a experimentara; isso só aconteceu, em concordância com a tendência social, no mundo das imagens helenísticas. A unidade do universal e do particular, organizada pelo classicismo, já não era con- seguida no período ático, menos ainda nas épocas posteriores. Daí que as esculturas clássicas olhem com aqueles olhos vazios, que mais aterrorizam - arcaicamente - do que irradiam aquela nobre simplici- dade e serena grandeza que a época romântica sobre elas projectava. O que hoje impressiona na Antigüidade é fundamentalmente diferente da correspondência com o classicismo europeu na era da Revolução Francesa e de Napoleão e mesmo na época baudelairiana. Quem não estuda como filólogo ou arqueólogo a Antigüidade - estudos dos mais estimáveis feitos depois do humanismo - para ele, a exigência normativa da Antigüidade reduz-se a nada. Dificilmente algo fala mais sem a assistência a longo prazo da cultura (Bildung); a qualidade das próprias obras de nenhum modo está acima de toda a dúvida. O que domina é o nível formal. Dificilmente algo de vulgar, de bárbaro, aparece como transmitido pela tradição, nem sequer pela época imperial, onde no entanto são evidentes os inícios da produção de massa manufactu- radâ. Os mosaicos no chão das casas de Óstia, presumivelmente des- tinadas ao arrendamento constituem uma forma. A barbárie real na Antigüidade: a escravatura, as execuções, o desprezo da vida humana, deixou, desde a classicidade ática, poucos vestígios na arte; a maneira como esta arte permaneceu intacta, mesmo nas «culturas bárbaras», não é o seu título de glória. A imanência formal da arte antiga pode, sem dúvida, explicar-se pelo facto de que, para ela, o mundo sensível não estava ainda rebaixado pelos tabus sexuais que se estendem muito para além do seu domínio imediato; era precisamente aí que se pren- dia a nostalgia classicista de Baudelaire. Tudo o que, na arte, sob o capitalismo, pactua com a vulgaridade contra a arte é não só função do interesse comercial, que explora a sexualidade mutilada, mas igual- mente o lado nocturno da interiorização cristã. Na precariedade con- creta do clássico, porém, que Hegel e Marx não conheceram, manifes- ta-se a precariedade do seu conceito e das normas dele decorrentes. Ao dilema do classicismo insípido e da exigência de consonância da obra parece esquivar-se o contraste entre a classicidade verdadeira e a má reprodução. Ele é tão pouco frutuoso como, por exemplo, o de moderno e modernista. O que se exclui, em nome de uma pretensa autenticidade como sua forma de decomposição, está quase sempre contida nela como seu fermento e o corte incisivo torna-a ainda mais estéril e inofensiva. No conceito de classicidade deve fazer-se uma distinção: ele é absolutamente inútil enquanto puser pacificamente lado a lado a Ifigênia, de Goethe e o Wallenstein de Schiller. No uso lingüístico popular significa a autoridade social quase sempre adqui- rida pelos maquinismos econômicos de controlo. Brecht não foi, jus- tamente, estranho a este uso lingüístico. Tal classicidade fala antes contra as obras, é-lhes sem dúvida tão exterior que pode ser, por toda a espécie de mediações, creditada a obras autênticas. Além disso, falar do clássico é referir-se à criação estilística sem que, de resto, seja possível distinguir tão conclusivamente entre o modelo, a corres- pondência legítima e a vã pseudomorfose, como quer o common sense, que lança a classicidade contra o classicismo. Mozart não seria con- cebível sem o classicismo do fim do séc. xvm e a sua atitude antiquante; no entanto, o vestígio das normas aduzidas não funda nenhuma objec- ção válida contra a qualidade específica do Mozart clássico. Final- mente, a classicidade significa tanto como o êxito imanente, a recon- ciliação não violenta, por mais frágil que seja, do uno e do múltiplo. Nada tem a ver com o estilo e as tendências, e tudo a ver com o sucesso; a tal classicidade aplica-se a sentença de Valéry de que toda a obra romântica é clássica mediante o seu êxito (67). Este conceito de classicidade está tenso no mais elevado grau; só ele é digno da crítica. No entanto, a crítica da classicidade é mais do que a crítica dos prin- cípios formais, que ela exercia quase sempre na história. O ideal for- mal que se identifica com o classicismo deve retraduzir-se em conteú- do. A pureza da forma é copiada pela do sujeito que se constitui, se torna consciente da sua identidade e elimina o não-idêntico: uma re- lação negativa com o não-idêntico. Implica, porém, a distinção de forma e conteúdo que mascara o ideal classicista. A forma só se constitui como algo de diferente, como diferença relativamente ao não-idêntico; na sua própria significação, prolonga-se o dualismo que ela faz desaparecer. A reacção contra o mito, que o classicismo par- tilha com a acme da filosofia grega, era a antítese imediata do impul- so mimético. Ela substituiu-o pela imitação objectivante. Subsumiu assim a arte sem mais na Aufklarung grega, proibiu-lhe aquilo por cujo intermédio ela representa o elemento oprimido contra a domina- ção do conceito imposto ou o que escorrega entre as suas malhas. Enquanto que, no classicismo, o sujeito se erige esteticamente, faz-se-- Ihe violência, a ele, sujeito, particular eloqüente contra o mutismo do universal. Na universalidade tão admirada das obras clássicas perpe- (67) Cf. Paul Valéry, Oeuvres, éd. J. Hytier, Vol. 2, Paris 1966, p. 565 s. 184 185 tua-se a universalidade funesta dos mitos, a inflexibilidade do sorti- légio, como norma da configuração. No classicismo, na origem da autonomia da arte, esta nega-se pela primeira vez a si mesma. Não é por acaso que todos os classicismos foram, desde então, aliados da ciência. Até hoje, o espírito científico alimenta uma antipatia contra a arte, que não se submete ao pensamento da ordem, aos desideratos de uma nítida separação. É antinómico o que procede como se não houvesse nenhuma antinomia e que degenera naquilo para que o palavriado burguês tem pronto o termo de perfeição formal (formtvollendet), que diz tudo sobre o assunto. Não é a partir de um espírito irracionalista que os movimentos qualitativamente modernos correspondem muitas vezes, no sentido baudelairiano, a movimentos arcaicos, pré-clássicos. Não estão, sem dúvida, menos expostos à reacção do que o classicismo, por causa da ilusão segundo a qual a atitude que se manifesta nas obras arcaicas e a que se esquivou o sujeito eman- cipado deveria de novo ser assumida, sem atender à história. A sim- patia da modernidade pela arte arcaica só não é repressivamente ideo- lógica quando se vira para o que resta na senda do classicismo, quando não cede à pressão perniciosa de que se libertou o classicis- mo. Mas dificilmente se pode ter um sem o outro. Em vez daquela identidade do universal e do particular, as obras clássicas dão ao seu âmbito abstractamente lógico uma forma, por assim dizer, oca, que em vão aguarda a especificação. A fragilidade do paradigma pune a sua posição paradigmética com mentiras e, deste modo, o próprio ideal classicista. A estética contemporânea é dominada pela controvérsia sobre a sua forma subjectiva ou objectiva. Os termos são aqui equívocos. Por um lado, pensa-se no resultado das reacções subjectivas às obras de arte, em oposição com a intentio recta a elas concernente, que, segun- do um esquema corrente da crítica do conhecimento, seria pré-crítico. Por outro, ambos os conceitos podem referir-se ao primado do mo- mento objectivo ou subjectivo nas próprias obras de arte, por exem- plo, segundo o modo da distinção das ciências do espírito entre clás- sico e romântico. Finalmente, levanta-se a questão sobre a objectivi- dade do juízo do gosto estético. Há que distinguir as significações. No tocante à primeira, a estética de Hegel era objectivamente orientada ao passo que, sob o aspecto da segunda significação, relevou a sub- jectividade de um modo talvez mais decisivo do que os seus predeces- sores, nos quais a parte do sujeito no efeito sobre um contemplador, ideal ou transcendental, era limitada. Em Hegel, a dialéctica sujeito-- objecto produz-se na coisa. Deve também pensar-se na relação do sujeito e do objecto na obra de arte, tanto quanto ela tem a ver com objectos. Esta relação modifica-se historicamente e subsiste, no en- tanto, também nas obras não-figurativas, que adoptam uma posição perante o objecto, ao proibirem-no. Contudo, o começo da Crítica da Faculdade de Julgar não era unicamente hostil a uma estética objec- tiva. Tirava a sua força do facto de ela não se instalar confortavelifüfl* te, como geralmente acontece com as teorias kantianas, nas posiçÔei traçadas de antemão pelo plano do estado-maior do sistema. Na me- dida em que, segundo a sua doutrina, a estética é essencialmente constituída pelo juízo de gosto subjectivo, este torna-se necessaria- mente não só constituinte da obra objectiva, mas arrasta consigo, enquanto tal, uma necessidade objectiva, por pouco que esta se refira a conceitos universais. Kant visava uma estética subjectivamente mediatizada e, no entanto, objectiva. O conceito kantiano de juízo, numa ulterior investigação de sentido subjectivo, aplica-se ao centro da estética objectiva, à qualidade, boa e má, verdadeira e falsa, na obra de arte. Mas a interrogação subjectiva é esteticamente mais do que a intentio oblíqua epistemológica, porque a objectividade da obra de arte é qualitativamente diferente e mais especificamente mediatizada pelo sujeito do que, aliás, a objectividade do conhecimento. É quase tautológico afirmar que a decisão de se uma obra de arte é uma de- pende do juízo a seu respeito, e que o mecanismo de tais juízos - de um modo muito mais verdadeiro do que o juízo enquanto «faculdade» - constitui o tema da obra. «A definição do gosto, que aqui se põe como fundamento, é que ele é a faculdade de julgar do belo. Mas o que, além disso, é exigido para chamar belo a um objecto é a análise dos juízos de gosto que o deve descobrir.» (68) O cânone da obra é a validade objectiva do juízo de gosto, que não garante e, no entanto, é rigoroso. Preludia-se a situação de toda a arte nominalista. Kant gostaria, em analogia com a crítica da razão, de fundar a objectividade estética a partir do sujeito, e não substituir aquela por este. Impli- citamente, o momento de unidade do objectivo e do subjectivo é, para ele, a razão, uma faculdade subjectiva e, no entanto, em virtude dos seus atributos de necessidade e de universalidade, o arquétipo de toda a objectividade. Também a estética se encontra em Kant sob o primado da lógica discursiva: «Os momentos, a que esta faculdade de julgar presta atenção na sua reflexão, procurei julgá-los segundo as directri- zes das funções lógicas (pois, no juízo de gosto está sempre contida uma relação ao entendimento). Considerei, em primeiro lugar, os momentos concernentes à qualidade, porque o juízo estético sobre o belo tem primeiramente este em conta.» (69). O apoio mais poderoso da estética subjectiva, o conceito de sentimento estético, resulta da objectividade, e não vice-versa. O sentimento estético diz que algo é assim; Kant só o teria atribuído, enquanto «gosto», ao que na coisa é capaz de distinção. Não se define aristotelicamente pela compaixão e pelo terror, pelas emoções suscitadas no espectador. A contaminação do sentimento estético com as emoções psicológicas imediatas pelo conceito de excitação desconhece a modificação da experiência real pela experiência artística. De outro modo, seria inexplicável porque (68) Kant, op. cit., p. 53 (Crítica da Faculdade de Julgar), § I ) . (69) Op. cit. 186 187 é que os homens em geral se expõem à experiência estética. O sen- timento estético não é o sentimento excitado; é mais o espanto perante o que se contempla do que o que está em questão; o ser totalmente dominado pelo ininteligível e, no entanto, definido, e não a emoção subjectiva libertada é, na experiência estética, o que se pode chamar o sentimento. Polariza-se na coisa (Sache), é o sentimento que dela se tem, não é nenhum reflexo do contemplador. Resta distinguir estrita- mente a subjectividade que contempla do momento subjectivo no objecto, da sua expressão e da sua forma subjectivamente mediatizada. Mas o que uma obra de arte é e não é não se deixa decidir pelo juízo, pela questão do bom ou do mau. O conceito de uma má obra de arte tem algo de absurdo: quando se torna má, quando fracassa a sua constitui- ção interna, falha o seu conceito e mergulha sob o a priori da arte. Na arte, os juízos de valor relativos, a referência à equidade, a admissão do que foi medianamente conseguido, todas as desculpas do são en- tendimento humano, e também da humanidade, são errôneas: a sua indulgência prejudica a obra de arte ao liquidar implicitamente a sua exigência de verdade. Enquanto não for apagada a fronteira da arte relativamente à realidade, a tolerância pelas más obras, transplantada irredutivelmente a partir da realidade, é um crime contra a arte. Dizer com razão porque é que uma obra de arte é bela, porque é que é verdadeira, exacta e legítima não significaria reduzi-la aos seus conceitos universais, mesmo se esta operação, como Kant o deseja e contesta, fosse possível. Em toda a obra de arte, não apenas na aporia da faculdade de julgar reflexiva, ata-se o nó do universal e do parti- cular. A compreensão de Kant aproxima-se dele pela definição do belo como definição do «que agrada universalmente sem conceito» (70). Tal universalidade, apesar do esforço desesperado de Kant, não deve separar-se da necessidade; que algo «agrade universalmente» é equivalente ao juízo segundo o qual isso deve agradar a cada um; de outro modo, é apenas uma constatação empírica. No entanto, a univer- salidade e a necessidade implícita permanecem incondicionalmente conceitos e a sua unidade kantiana, o «agradar», é exterior à obra de arte. A exigência de subsumpção numa unidade distintiva transgride desde dentro aquela idéia de apreensão que, mediante o conceito de finalidade nas duas partes da Crítica da Faculdade de Julgar, deve corrigir o procedimento classificador, renunciando expressamente ao conhecimento íntimo do objecto, procedimento próprio da razão «teorética», isto é, da razão científico-natural. Nesta medida, a esté- tica kantiana é ambígua e exposta irremediavelmente à crítica de Hegel. E preciso emancipar o seu passo do idealismo absoluto; eis a tarefa diante da qual se encontra hoje a estética. A ambivalência da teoria de Kant é, contudo, condicionada pela sua filosofia, na qual o conceito de finalidade apenas prolonga a categoria em regulativo, da mesma (70) Op. cit., p. 73 (Crítica da Faculdade de Julgar), § 9). maneira que a restringe. Kant sabe o que a arte tem de comum com o conhecimento discursivo; mas não aquilo em que ela qualitativa- mente diverge; a diferença torna-se a diferença quase matemática do finito e do infinito. Nenhuma das regras particulares sob as quais se deveria subsumir o juízo de gosto, e também não a sua totalidade, afirma algo sobre a dignidade de uma obra. Enquanto o conceito de necessidade, como constituinte do juízo estético, não se reflectir em si, repete simplesmente o mecanismo de determinação da realidade empírica, que unicamente retorna como sombra e modificado nas obras de arte; mas a satisfação universal supõe um assentimento que, sem o confessar, está submetido às convenções sociais. Se, porém, os dois momentos estão tensos no inteligível, a doutrina kantiana perde o seu conteúdo. São concebíveis, mas de nenhum modo apenas segundo a possibilidade abstracta, as obras de arte que bastam para os seus momentos do juízo de gosto e que, apesar de tudo, não são suficien- tes. Outras - provavelmente, toda a arte nova - opõem-se àqueles momentos, não agradam universalmente sem que, por isso, se encon- trem desqualificadas objectivamente. Kant atinge a objectividade da estética, a que aspira, como a objectividade da ética, mediante uma formalização conceptual universal. Esta opõe-se ao fenômeno estético enquanto constitutivamente particular. Não é essencial a nenhuma obra de arte o que cada uma deve ser, segundo o seu puro conceito. A formalização, acto da razão subjectiva, rejeita a arte precisamente para aquela esfera puramente subjectiva, por fim, para a contingência a que Kant gostaria de a arrancar e que se opõe à própria arte. As estéticas subjectiva e objectiva enquanto pólos contrários expõem-se igualmente à crítica de uma estética dialéctica: aquela, porque é ou abstracta e transcendental ou contingente segundo o gosto do indiví- duo - esta, porque desconhece a mediatização objectiva da arte pelo sujeito. Na obra, não é sujeito nem o contemplador, nem o criador, nem o espírito absoluto, mas antes o que está ligado à coisa (Sache), por ela é pré-formado e que, por seu turno, é mediatizado pelo objecto. Para a obra de arte e, portanto, para a teoria, o sujeito e o objecto constituem os seus próprios momentos; são dialécticos por os compo- nentes das obras - o material, a expressão e a forma - estarem sempre associados dois a dois. Os materiais são elaborados pela mão daque- les de que a obra de arte os recebeu; a expressão objectivada na obra e objectiva em si penetra como emoção subjectiva; a forma deve, segundo as necessidades do objecto, ser elaborada subjectivamente, tanto quanto ela não deve comportar-se de modo mecânico relativa- mente ao formado. Analogamente à construção de um dado na teoria do conhecimento, o que se apresenta tão objectivamente impermeável aos artistas como muitas vezes acontece com o seu material, é ao mesmo tempo sujeito sedimentado; o que segundo a aparência é mais subjectivo, a expressão, é também objectivo de tal maneira que a obra de arte aí se esgota e em si a incorpora; por fim, é um comportamento 188 189 alguma coisa, deveria separar-se daquela comparação grosseira com o sujeito criativo que, por uma exuberância presunçosa, transforma a obra de arte em documento do seu criador e assim a diminui. A ob- jectividade das obras, um espinho para os homens na sociedade de troca, porque esperam erradamente da arte que atenue a alienação, é retransposta para o homem individual que se encontraria por detrás da obra; quase sempre ele é apenas a máscara dos que querem vender a obra como artigo de consumo. Se não se deseja apenas liquidar o conceito de gênio como sobrevivência romântica, é preciso relacioná-- lo com a sua objectividade filosófico-histórica. A divergência do su- jeito e do indivíduo, pré-formada no antipsicologismo de Kant, regis- tada em Fichte, afecta igualmente a arte. O caracter do autêntico, do vinculatório e a liberdade do indivíduo emancipado divergem entre si, O conceito de gênio é uma tentativa de reunir os dois por um toque de varinha mágica, de atestar imediatamente no indivíduo, no domínio específico da arte, a capacidade para o autêntico englobante. O con- teúdo de experiência de semelhante mistificação é que realmente na arte a autenticidade, o momento universal, já não é possível senão pelo principium individuationis, como inversamente a liberdade bur- guesa universal deveria ser a liberdade para o particular, para a individuação. Mas esta relação é transferida cega e adialecticamente pela estética do gênio para aquele indivíduo que, ao mesmo tempo, deve ser sujeito; o intellectus archetypus, expressamente a idéia na teoria do conhecimento, é tratado no conceito de gênio como um facto da arte. O gênio deve ser o indivíduo cuja espontaneidade coincide com a acção do sujeito absoluto. É muito justo neste caso que a individuação das obras de arte, mediatizada pela espontaneidade, é nelas o meio de se objectivarem. Mas o conceito de gênio é falso, porque as obras não são criações e os homens criadores. Isso condi- ciona a inverdade da estética do gênio que suprime o momento do fazer final, da gregu nas obras de arte, em favor da sua absoluta originalidade, quase da sua natura naturans e assim dá à luz a ideo- logia da obra de arte como algo de orgânico e de inconsciente, ideo- logia que em seguida se amplia em corrente turva do irracionalismo. Desde o início, a deslocação do acento da estética do gênio para o indivíduo, por muito que também se oponha à má universalidade, desvia-se da sociedade ao absolutizar o particular. Apesar de todo o abuso, porém, o conceito de gênio lembra que o sujeito, na obra de arte, não deve reduzir-se completamente à objectivação. Na Crítica da Faculdade de Julgar, o conceito de gênio era o lugar de refúgio de tudo o que o hedonismo tirava à estética kantiana. Kant reservou a genialidade unicamente ao sujeito - com incalculáveis conseqüências - , indiferente à estranheza do eu justamente própria desse momento, que mais tarde foi ideologicamente explorada no contraste do gênio com a racionalidade científica e filosófica. A feiticização incipiente em Kant do conceito de gênio enquanto feiticização da subjectividade separada - abstracta, segundo a linguagem de Hegel -, assumiu já nos quadros votivos de Schiller traços grosseiramente elitários. O COncel* to de gênio torna-se potencialmente inimigo das obras de arte; COIH um olhar de lado na direcção de Goethe, o homem por detrás das obras deve ser mais essencial do que elas próprias. No conceito de gênio, a idéia de criação do sujeito transcendental é consentida, com uma hybris idealista, ao sujeito empírico, ao artista produtivo. Isso quadra bem à consciência vulgar burguesa, tanto por causa do ethos do trabalho na glorificação da pura criação do homem sem conside- ração pela finalidade, como em virtude de ao contemplador ser sub- traído todo o esforço: alimenta-se com a personalidade e, em última análise, com a biografia kitsch dos artistas. Os produtores de obras importantes não são semideuses, mas homens falíveis, muitas vezes neuróticos e martirizados. Mas a mentalidade estética, que faz tabula rasa do gênio, degenera em artesanato oco e dogmático, em pincelada rotineira. O momento de verdade no conceito de gênio deve buscar-- se na coisa (Sache), no que é aberto, não no que é prisioneiro da repetição. De resto, o conceito de gênio, quando começou a entrar em voga no final do séc. xvm, não era ainda carismático; segundo a idéia desta época, cada um devia poder ser um gênio, contanto que se exprimisse inconvencionalmente como natureza. O gênio era atitude, «ímpeto genial», quase disposição; só mais tarde, talvez também perante a insuficiência da simples disposição nas obras, se torna uma graça. A experiência da servidão real destruiu a exaltação da liberdade sub- jectiva, enquanto liberdade para todos, e reservou-a para o gênio como ramo. O gênio transforma-se tanto mais em ideologia quanto menos o mundo é humano e mais neutralizado é o espírito, consciência desse mundo. Atribui-se como substituto ao gênio privilegiado o que a rea- lidade recusa geralmente aos homens. O que importa salvar no gênio é instrumental para a coisa. A categoria do genial é o que mais facil- mente se justifica quando acerca de uma passagem se diz com razão que é genial. O genial é um nó dialéctico: o não rotineiro, o não repetido, o que é livre, o que simultaneamente traz consigo o senti- mento do necessário, a pirueta paradoxal da arte e um dos seus crité- rios mais fidedignos. Genial significa tanto como o encontro de uma constelação, subjectivãmente algo de objectivo, o instante em que a méthexis da obra de arte na linguagem abandona a convenção como contingente. A assinatura do genial na arte é que o novo, em virtude da sua novidade, aparece como sempre lá tivesse estado; no roman- tismo, anotara-se tal facto. O trabalho da fantasia é menos a creatio ex nihilo em que crê a religião da arte estranha à arte do que a ima- ginação de soluções autênticas no interior do contexto por assim dizer preexistente das obras. Artistas experimentados gostam, por troça, de dizer de uma passagem: aqui, ele torna-se genial. Estigmatizam uma irrupção da fantasia na lógica da obra que de novo aí se não integra; momentos deste tipo não existem simplesmente em gênios que o pro- clamam bem alto, mas ainda ao nível formal de Schubert. O genial permanece paradoxal e precário, porque o que é livremente inventado 194 795 e o que é necessário jamais podem fundir-se inteiramente. Sem a possibilidade presente da catástrofe, nada é genial nas obras de arte. Por causa do momento do que ainda não existira foi o genial associado ao conceito de originalidade: «gênio original». É de todos sabido que a categoria da originalidade, antes da época do gênio, não exercia nenhuma autoridade. Para a justificação do não-específico e do rotineiro e para a denúncia da liberdade subjectiva, é fácil abusar do facto de que, no séc. xvn e no início do séc. xvm, os compositores reutilizavam nas suas obras passagens inteiras, quer das suas próprias obras, quer das de outros músicos, ou de que os pintores e arquitectos confiavam a execução dos seus projectos aos seus alunos. Isso prova pelo menos que antes não se reflectia criticamente sobre a originali- dade, mas de nenhum modo prova que nada disso estivesse presente nas obras de arte; basta um olhar sobre a diferença entre Bach e os seus contemporâneos. A originalidade, a essência específica da obra determinada, não se opõe arbitrariamente à logicidade das obras, que implica algo de universal. Ela afirma-se muitas vezes numa completa organização lógica da qual são incapazes os talentos médios. Sem dúvida, a questão da originalidade relativamente a obras mais antigas, ou mesmo arcaicas, é absurda, porque a coacção da consciência co- lectiva, na qual se entrincheira a dominação, era tão grande que a originalidade, que pressupõe algo como o sujeito emancipado, seria anacrônica. O conceito de originalidade enquanto algo de primigénio evoca não tanto alguma coisa de primitivo quanto o que, nas obras, ainda não foi, o vestígio utópico. O original poderia chamar-se o nome objectivo de cada obra. Mas se a originalidade surgiu historica- mente, então está igualmente implicada na injustiça histórica: na prevalência burguesa dos bens de consumo no mercado que, enquanto bens sempre idênticos, devem fazer crer na sua novidade para atrair clientes. Contudo, com a autonomia crescente da arte, a originalidade voltou-se contra o mercado, no qual ela nunca se permitiu ultrapassar um valor liminar. Entrincheirou-se nas obras, na falta de consideração da sua plena elaboração. Permanece dependente do destino histórico do indivíduo, de que ela derivou. A originalidade deixa de obedecer àquilo com que era associada desde que sobre ela se reflectia, com o chamado estilo individual. Enquanto que os tradicionalistas se lamen- tam entretanto da decadência desse estilo, ao defenderem nele bens convencionalizados, o estilo individual, por assim dizer arrancado às necessidades construtivas, assume nas obras progressivas algo da mancha, da carência, pelo menos do compromisso. Eis porque a pro- dução avançada aspira menos à originalidade da obra particular do que à produção de novos tipos. A originalidade começa a converter-- se na sua invenção. Modifica-se em si qualitativamente sem, contudo, desaparecer. Esta sua modificação que distingue a originalidade da inspiração, do pormenor específico em que ela parece possuir a sua substância, lança luz sobre a fantasia, o seu órganon. Sob a influência da crença no sujeito como sucessor do criador, era considerada como igual à capacidade de produzir um determinado ente artístico como que a partir do nada. O seu conceito vulgar, o da invenção absoluta, é O correlato exacto do ideal científico da era moderna enquanto ideal da reprodução estrita de algo de já existente; neste lugar, a divisão bur- guesa do trabalho cavou um fosso que separa tanto a arte de toda a mediação relativamente à realidade como corta o conhecimento de tudo o que de qualquer modo transcende essa realidade. Aquele con- ceito de fantasia nunca foi essencial às obras de arte importantes; a invenção, por exemplo, de seres fantásticos em toda a arte plástica mais recente é secundária; a inspiração musical súbita, inegável como momento, é impotente enquanto não sobrevoa, mediante o que dela provém, a sua pura existência. Se tudo nas obras de arte, e mesmo o mais sublime, está encadeado ao existente a que elas se opõem, a fantasia não pode ser a simples faculdade de se subtrair ao existente ao pôr o não-existente como se existisse. A fantasia rejeita antes o que as obras de arte absorvem no existente, em constelações, medi- ante as quais elas se tornam o outro do existente, mesmo que seja apenas através da sua negação determinada. Se se procurar, como dizia a teoria do conhecimento, fazer uma idéia, numa ficção fantasiante, de um qualquer objecto puramente não existente, nada se produzirá que, nos seus elementos e mesmo nos momentos do seu contexto, não seja reduzível a um ente qualquer. Só sob a influência da empiria total é que aparece o que a esta se opõe qualitativamente, mas apenas como um existente de segunda ordem conforme ao modelo do primeiro. Somente mediante o ente é que a arte se transcende em não-ente; de outro modo, ela torna-se a projecção impotente do que de qualquer modo é. Por conseguinte, a fantasia nas obras de arte não está de modo nenhum limitada à visão súbita. Assim como a espontaneidade não pode ser dela separada, tão pouco, ela é o mais próximo da creatio ex nihilo, o uno e o todo das obras de arte. Da fantasia pode, em primeiro lugar, irradiar um elemento concreto, sobretudo nos artistas cujo processo de criação conduz de baixo para cima. A fantasia, porém, actua igualmente numa dimensão que parece abstracta ao preconceito, num esboço quase vazio, que em seguida será cheio e completado pelo «trabalho», contrário à fantasia segundo esse preconceito. Tam- bém a fantasia especificamente tecnológica não existe hoje: assim, no estilo de composição do Adágio do quinteto de cordas de Schubert c nos jogos de luz dos lagos de Turner. A fantasia é também essencial- mente a utilização ilimitada das possibilidades de solução que se cristalizam no seio de uma obra de arte. Não está apenas contida no que aparece a alguém como ente e ao mesmo tempo como resto de um ente, mas mais talvez na sua modificação. A variante harmônica do tema principal na coda do primeiro andamento da Appassionata, com o efeito de catástrofe do acorde de sétima diminuta, não é menos o produto da fantasia do que o tema do acorde perfeito na estrutura expectante, que abre o andamento; não se deve excluir geneticamente 796 797 que essa variante, decisiva para o todo, foi a inspiração originária e que o tema na sua forma primária, agindo por assim dizer retrospectivamente, dela foi derivado. Nenhuma realização mais medíocre da fantasia que consistiria, nas partes subsequentes da longa execução do primeiro movimento da Heróica, em passar a períodos harmônicos lapidares, como se, doravante, não houvesse mais tempo para um trabalho de diferenciação. Com o primado crescente da construção teve de diminuir a substancialidade da inspiração particular. O trabalho e a fantasia estão intimamente unidos - a sua divergência é sempre índice de fracasso -, como testemunha a experiência dos artistas \ de que a fantasia se deixa comandar. Eles experimentam o arbitrário do não voluntário como aquilo que os distingue do diletantismo. Mesmo subjectivamente, a imediatidade e o mediato são tanto no plano estético como no conhecimento, mediatizados um pelo outro. A arte é do ponto de vista genético, mas segundo a sua constituição, o argumento mais drástico contra a separação teórico-cognoscitiva entre a sensibilidade e o entendimento. A reflexão é capaz, ao mais alto nível, de fantasia: a consciência determinada daquilo de que uma obra de arte precisa em determinado lugar é disso a prova. Que a consciência mata é na arte, que para tal deve ser o testemunho principal, um clichê tão reles como corrente. Mesmo o elemento dissociante da reflexão, o seu momento crítico, torna-se frutuoso como auto-reflexão da obra de arte, que elimina ou modifica o insuficiente, o informe, o incoerente. Inversamente, a categoria do esteticamente absurdo tem o seu fundamentum in ré, a carência de obras com reflexão imanente, contendo, por exemplo, repetições que desprezam efeitos embrutecedores. E má, nas obras de arte, a reflexão que as governa a partir do exterior, lhes faz violência, mas a direcção para onde querem ir por si mesmas só pode seguir-se subjectivamente através da reflexão, e a força que para aí conduz é espontânea. Se toda e qualquer obra de arte envolve um conjunto de problemas - provavelmente aporéticas -, daí não decorre a mais medíocre definição de fantasia. Enquanto faculdade de desco-brir.na obra de arte começos e soluções, ela pode chamar-se o dife- rencial da liberdade no meio da determinação. A objectividade das obras de arte não é, como qualquer que seja a verdade, uma determinação residual. O neoclassicismo enganou-se ao imaginar um ideal de objectividade, que se lhe apresentara em estilos passados de cariz obrigatório, ao negar abstractamente num procedimento, por sua vez, decretado e realizado subjectivamente, o sujeito na obra e ao preparar a imago de um em-si sem sujeito, que caracteriza o sujeito não mais eliminável por nenhum acto voluntário, apenas por deteriorações. A limitação por um rigor que imita as for- mas heterónomas há muito passadas obedece precisamente ao arbitrá- rio subjectivo que ela deve domar. Valéry esboça este problema, mas não o resolve. A forma simplesmente escolhida e posta, que o próprio Valéry às vezes defende, é tão contingente como o caótico e o «vivo» por ele desprezado. A aporia da arte não pode resolver-se hoje por uma vinculação voluntária à autoridade. No estado do nominalismo radical, é evidente como se chegaria sem violência a alguma coisa como a objectividade da forma; ela é impedida por um fechamento organizado. A tendência era sincrónica com o fascismo político cuja ideologia fingia precisamente que podia esperar-se da demissão do sujeito um estado desembaraçado da miséria e da insegurança dos sujeitos sob o liberalismo tardio. De facto, ela deu-se sob a égide de sujeitos mais poderosos. Nem sequer na sua falibilidade e fraqueza o sujeito contemplador tem de ceder simplesmente à exigência de ob- jectividade. Em seu favor fala um argumento muito convincente: de outro modo, o alérgico à arte, o filisteu que, como tabula rasa, deixa a obra de arte actuar sobre si, seria o mais qualificado para a compre- ender e julgar; o amusical seria o melhor crítico da música. Tal como a arte se realiza a si mesma, também o seu conhecimento se efectua de um modo dialéctico. Quanto mais o contemplador se entrega tanto maior é a energia com que penetra na obra de arte e a objectividade que ele percebe no interior. Participa na objectividade quando a sua energia, mesmo a sua «projecção» subjectiva desviada, se extingue na obra de arte. O desvio subjectivo pode totalmente passar ao lado da obra de arte mas, sem tal desvio, nenhuma objectividade é visível. - Cada passo para a perfeição das obras de arte é um passo para a sua auto-alienação e isso produz sempre de novo aquelas revoluções que se caracterizam, ainda que superficialmente, como rebelião da subjec- tividade contra o formalismo de qualquer tipo. A crescente integração das obras de arte, a sua exigência imanente, é também a sua contra- dição imanente. A obra de arte que resolve a sua dialéctica imanente reflecte-a ao mesmo tempo como reconciliada na solução: eis o que existe de esteticamente falso no princípio estético. A antinomia da reificação estética é também uma antinomia entre a pretensão meta- física das obras, por desiludida que seja, de escapar ao tempo e a transitoriedade de tudo o que no tempo se apresenta como permanen- te. As obras de arte tornam-se relativas porque devem afirmar-se como absolutas. A isso alude a expressão de Benjamin, que foi tema de colóquio: «não há redenção para as obras de arte». A revolta perene da arte contra a arte tem o seu fundamentum in ré. Se é essencial às obras de arte ser coisas (Dinge), não menos essencial lhes é negar a própria coisalidade e assim a arte se vira contra a arte. A obra de arte plenamente objectivada consolidar-se-ia em simples coisa que, esqui- vando-se à sua objectivação, regrediria para a emoção subjectiva impotente e mergulharia no mundo empírico. Que a experiência das obras de arte é unicamente adequada como experiência viva diz muito sobre a relação entre contemplador e con- templado, sobre a cathéxis psicológica enquanto condição da percep- ção estética. A experiência estética é viva a partir do objecto, no instante em que as obras de arte, sob o seu olhar, se tornam vivas. 198 799
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