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Guias e Dicas
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Memórias do cárcere - Volume II, Notas de estudo de Filosofia

Literatura portuguesa

Tipologia: Notas de estudo

2015

Compartilhado em 01/12/2015

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Baixe Memórias do cárcere - Volume II e outras Notas de estudo em PDF para Filosofia, somente na Docsity! GRACILIANO RAMOS Nlemórias do Cárcere _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 1 GRACILIANO RAMOS MEMÓRIAS DO CÁRCERE Volume II Editora Record _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 4 me um travesseiro. Homem arrumado e previdente. Com o saco de lona parecia fazer mágicas: extraía dele os objetos necessários e requintes de luxo, até fronhas. Agora exteriorizava contentamento: achara meio de pendurar a rede entre duas grades. Sentou-se nela e acendeu o cachimbo. Tentei repousar, mas um burburinho confuso e as idéias fragmentárias impediam-me o sono. Impossível conservar-me em posição horizontal. Ergui o espinhaço, encostei-me à parede, entretive-me a examinar os companheiros; contei-os várias vezes, sem atinar com o número certo; mexiam-se demais, entregues à arrumação, e atrapalhavam-me a contagem. Findos os arranjos, atenuada a lufa-lufa, convenci-me afinal de que éramos dezessete pessoas, cinco nordestinos e doze paranaenses. Fixei a atenção nestes, quase todos rapagões fortes e brancos, já percebidos vagamente no andar térreo do Pavilhão dos Primários, envoltos em largos sobretudos espessos. Tinham prosódia esquisita, e sobrenomes exóticos feriam-me os ouvidos: Petrosky, Prinz, Zoppo, Garrett, Cabezon. A minoria, vulgar e mais ou menos cabocla, usava designações caseiras, expressas na fala arrastada, familiar no porão do Manaus, quatro meses atrás: Guerra, Macedo, João Rocha, José Gomes. _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 5 Entre os sujeitos ali reunidos, atentei num velho encorpado, vermelho, de óculos, muito sério, visto dias antes na fila, à hora da bóia. Conversamos essa noite, e descobri que ele se notabilizava por vários motivos: falava polaco, citava com abundância versículos da Bíblia e era danadamente reacionário. Precisava desabafar e segredou-me confidências: fora preso por engano; sim senhor, engano, calúnia de inimigos. Via em mim uma pessoa de consideração - e julgava por isso que não iríamos para a Colônia Correcional. Chamava-se apenas Eusébio. Tinha um cargo público (ou não tinha: provavelmente o haviam demitido) e era pequeno proprietário. Em desassossego, evitando convivências prejudiciais, buscava no ambiente insalubre um homem de posses, conservador, esforçava-se por segurar-se a ele e tranqüilizar-se. Iriam mandar-nos para a Colônia Correcional? E porquê? Francamente, seria possível que nos mandassem para lá? A viagem me parecia certa - e o velho Eusébio desesperava. Não senhor, grunhia aflito e encatarroado. Não nos fariam semelhante desacato. Arregalava os olhos, querendo enxergar em mim qualquer coisa além das aparências, elevar-me e salvar-se: - Uma pessoa de consideração. _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 6 Desenganei-o. Conhecendo-me a pobreza, desanimou, sentiu-se desamparado. Extinta a fugidia importância, em vão buscava em roda um sustentáculo, o ar de cólica, o sorriso mofino, uma longa tremura a envolver-se no capote. No descampado social nenhuma saliência. E a criatura infeliz continuou a chatear-me remoendo o seu caso, arrepiando-se em cochichos por ver-se misturado a indivíduos suspeitos. Vivera sempre longe de confusões, gemia fanhoso, terminando os períodos numa interjeição demorada e asmática - "An!" Explicava-se, defendia-se, pegando-se à religião, utilizando pedaços do Velho Testamento, como se isto lhe proporcionasse vantagem. Apesar da minha franqueza, teimava em não julgar-me inteiramente pobre. E afastou-se rosnando com segurança fraca: - Uma pessoa de consideração. Acha que mandam? L impossível. An! Essa despedida não me trouxe o isolamento necessário ao arranjo das idéias e ao sossego. As idas e vindas no cubículo, à toa, a ouvir palavras sem nexo, a procura de objetos miúdos na arrumação da bagagem, a dificuldade em amarrar a gravata e calçar- me, enfim a mudança de gaiola tinham-me fatigado em excesso. Que distância havíamos percorrido? Cem metros, duzentos, no máximo uns trezentos. Isso me _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 9 soltassem: à luz escassa dos cubículos, durante alguns meses as letras haviam dançado no papel. Falas vagarosas me arrastavam de chofre ao porão do Manaus, e três figuras ressurgiam: João Rocha, o pequeno dentista Guerra, José Gomes. De que modo iria comportar-se o pobre Guerra, dias antes acometido por um acesso de terror, a urinar-se e a tremer, querendo a presença de mamãe? Garrett e Petrosky, encostados ao muro, estavam silenciosos e carrancudos. Tinham esses nomes, sem dúvida, mas não consegui saber qual dos dois era Garrett, qual era Petrosky. Incomodavam-me as frases soltas, para mim vazias como tagarelar de papagaios. Descobri aos poucos sentido nelas: os operários arredavam preocupações contando anedotas escabrosas. José Gomes ria-se demais das próprias histórias, repisando minúcias, como se desconfiasse da inteligência dos outros. Não alcançando o resultado previsto, de nenhum modo se alterava: divertia-se imenso com as narrativas insípidas. A gente do sul procedia de igual maneira, pouco lhe importando o juízo do auditório. A ausência de espírito, a monotonia, a pobreza de concepção, a linguagem perra, tudo indicava falta de exercício mental, insinuava-me cautela, a precisão de acomodar-me ao conceito simples e direto: um paradoxo ali originaria incompatibilidades inevitáveis. Desagradável naquele meio o diálogo curto que tive _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 10 com um trabalhador. O homem falava-me nas vantagens da autocrítica. E eu, sem refletir: - "Exato. Devo conhecer os meus defeitos, para conservá-los todos com muito cuidado." Surpresa viva, interjeições - e este desgraçado remate incompreensível ao interlocutor honesto: - "Claro. Se os meus defeitos se sumirem, deixarei de ser eu, mudar-me-ei noutro. Quero guardá-los, não perder um." Opiniões desse gênero alarmariam as criaturas singelas ocupadas em remoer facécias estultas. Súbito uma pilhéria cheia de sal arrancou-me uma gargalhada, abriu-me os olhos, virou-me na esteira, ergueu-me sobre o cotovelo. Fora Cabezon que me provocara esses movimentos, o indivíduo a quem davam tal nome, com certeza um dos intelectuais mencionados pouco antes, amanuense oficial administrativo, ou funcionário pequeno de uma estrada de ferro. A situação dele era mais ou menos igual à minha. Revelava-se num trocadilho obsceno, mas isto não causou grande efeito na assistência. Os casos insulsos continuaram. O velho Eusébio tentava levar a conversa para assuntos graves. E Macedo, balançando-se na rede, cachimbava e sorria. _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 11 2 NO DIA seguinte pela manhã, Herculano trepou-se a uma janela e, agarrado aos varões, ficou lá de poleiro como papagaio, buscando entender-se com as outras celas. Gritos nos deram a notícia de que uma turma viera dias antes da Colônia e estava ali perto. Desejei saber os nomes dos recém-chegados; como a voz fraca me impedia comunicação, o estudante amarelo encarregou-se de transmitir a pergunta. Berraram-nos uma lista, abafada e incompleta; algumas pessoas reduziam-se a sílabas escassas, não havia meio de reconhecê-las; quatro ou cinco surgiam claramente, quase todas enviadas na primeira leva, naquela noite em que Desidério levantava o braço com raiva, entortando mais o bugalho vesgo, e Tamanduá se empavonava, metido no poncho vermelho. Trouxeram-nos o café, muito ralo, e um pão sem manteiga. Aí notaríamos uma advertência, se ela fosse precisa. O pão era exatamente igual ao fornecido no Pavilhão dos Primários, mas tiravam-nos o pouco de manteiga rançosa, obrigatória lá. Com certeza não _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 14 reconstituir-se, renascer, mas ali eram farrapos. Examinei-os. Bem. Aquele devia ser o Newton Freitas, o camarada alegre e ruidoso que no Pavilhão soltava risadas enormes, com ou sem propósito. Era ele, pensei descobrindo nos ossos do rosto lívido sinais do antigo Newton. Sem dúvida, lá vinha a gargalhada, uma fria gargalhada sem ânimo. E o sujeito baixo, de cuecas, barbudo em excesso, a mexer as mandíbulas com jeito de caititu? Seria o Pessoa? Com os diabos! Anastácio Pessoa, tipo neutro, alheio à questão social, posto em liberdade, supúnhamos. Inofensivo e discreto. - Você também, Pessoa? Recordei-me dele, vi-o na fila, manejando um romance inglês, à espera da comida, num apuro escandaloso. Não se decidia a vestir pijama, nivelar-se aos outros, pois ia de morar pouco entre nós. Um equívoco, tinham-no agarrado por engano. Com certeza iam chamá-lo, explicar-se, mandá-lo embora, com desculpas. E nesta convicção isolava-se, de meias, sapatos lustrosos, calça de casimira, suspensório, camisa de seda e gravata. Havia de ficar ali sem saber porquê? Saíra - e por isto recebera abraços e parabéns. Agora voltava da Colônia Correcional sujo, magro, hirsuto, de cueca e tamancos. No risinho insignificante e nos modos encolhidos logo distingui Bagé. O nome dele me _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 15 surgira pela primeira vez na galeria. Distraía-me a olhar as paredes e o teto, um dos poucos meios de encher o tempo ali. As paredes estavam cobertas de inscrições e desenhos; no teto oscilavam penduricalhos feitos com essas lâminas finas de metal usadas em carteiras de cigarros. No meio dos letreiros, alto, onde não chegava braço de homem, uma lista de presos, em tinta azul. Embaixo, uma data e o motivo da prisão. Alguns indivíduos expostos no rol tinham- me aparecido mais tarde. Numerosas voltas e viravoltas arbitrárias - e diante de nós se achavam dois: Bagé e Medina. Também reconheci Agrícola Baptista, o Tamanduá, que, em briga da Coluna Prestes, recebera uma bala na perna e claudicava. Um guarda veio abrir a porta, reunimo-nos à sombra de uma árvore no pátio. E as notícias choveram, em pedaços, de cambulhada. - Bichos, exclamou Tamanduá. Vivemos como bichos. Um Tamanduá diferente, sórdido e escuro, sem a cabeleira arrepiada. E o poncho, que fim levara o poncho vermelho, afrontoso e ostensivo como bandeira de guerra? - Num curral de arame farpado, como bichos, prosseguiu Tamanduá. _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 16 Disse mais coisas a respeito de latrinas, banheiros, disenteria e falta de papel, mas o rebanho de criaturas humanas em curral de arame farpado buliu comigo e afastou o resto da exposição. As minúcias embaralhavam-se, perdiam-se. - Para onde vão mandar vocês? perguntou Medina. Para a Colônia, evidentemente; isto me parecia claro. Medina espalhou a vista em redor, analisou-me a cara, refletiu e moveu a cabeça discordando: não nos meteriam na Colônia. Aborreci- me. Quereria tapear-nos com emolientes? De nenhum modo; interpretei mal as disposições do moço: não nos enviariam à ilha Grande, infelizmente. Procurou exibir-me a vantagem de permanecer lá umas semanas. - Não digo meses, que você não agüentaria. Algumas semanas apenas. Muito instrutivo. Era um rapaz frio, risonho, desdentado. No Pavilhão dos Primários tinha uma cabeleira vasta e barba longa, mas isto desaparecera. A boca murcha dava-lhe um ar insignificante e avelhantado. - Boa experiência, creia; material abundante. Seria magnífico você estudar aquilo. Em seguida à estridência e aos arrepios de Tamanduá, não me entusiasmei com as palavras de _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 19 não me deixavam sossegar. Aquilo merecia ser visto, pelo menos serviria para indicar a nossa resistência, de algum modo fortalecer-nos. Havia nesse desejo mórbido quase um desafio aos maus tratos, às humilhações, e se de repente nos largassem na rua, nem sei se me consideraria em liberdade ou vítima de um logro. O velho Eusébio veio trazer-me a sua camaradagem mofina, entrou a passear comigo, a voz bamba a sumir-se na pergunta ansiosa mastigada na véspera. Estivera no pátio, debaixo da árvore, os olhos e os ouvidos atentos, e os molambos de esperança guardados preciosamente iam-se esgarçando. - Nós vão mandar para a Colônia? Será possível? Novamente a confusão pronominal, observada no Pavilhão, me chocou; não havia de acostumar-me ao diabo da sintaxe encrencada. Isso jugava-se aos receios e à moleza da criatura, aos gestos ambíguos, às citações do Velho Testamento, e uma forte repulsa me enchia o coração. Impacientei- me, acho que fui grosseiro; nenhuma piedade me levava a minorar os sustos do menino grisalho. Respondi com monossílabos ásperos, continuando a absorver-me nas impressões de Tamanduá, na extravagância de Medina. Restar-me-iam forças para agüentar-me na piolheira infame? Essa pergunta já me _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 20 viera ao pensamento ao aniquilar-me no porão do Manaus, respirando a custo, andando sobre porcarias, meio desfeito em suor no calor de fornalha. Na primeira noite julgara-me perto de enlouquecer; depois me habituara: uma semana a ver as algas pela vigia, trepado numa costela do cavername; a fumar na rede presa à boca da escotilha; a redigir notas a lápis no camarote do padeiro. A gente se acostuma depressa às mais inesperadas situações. O que me alarmava era ter vivido muitos dias em jejum. Provavelmente ia agora suceder o mesmo; enjôo à comida, a língua seca, os beiços a rachar; o estômago já se entorpecia, como a bordo. Certamente me acabaria de inanição. - Sim. É. Claro. O senhor tem dúvida? Essas concisões faziam brechas na arrepiada lengalenga do paranaense, queriam destruí-Ia, mas o esguicho de lamúrias não cessava, atingia-me, dissolvendo-me a estranha demência. Idiota. Nenhum sujeito normal deseja rebaixar-se e arriscar-se a morrer de fome. Que me importavam as figuras tristes consumidas no curral de arame? Preferível não conhecê-las. Para quê? Ladrões, vagabundos, malandros. Tinha-me arrastado mais de quarenta anos longe deles, sem cogitar da existência deles, e surgia- me de chofre a necessidade besta de uma aproximação inútil. Idiota. Injuriava-me por dentro, mas a zanga _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 21 exterior convergia para o velho Eusébio, revelada nas sílabas cortantes: -- Isso. Pois não. Claro, claro. Todos. Não está vendo? Receava exceder-me, engolia impropérios. Afastei-me, a arrasada personagem me seguiu ronronando o seu caso, inocentando-se. Desculpava-se usando o plural, envolvendo-me na justificação. Havia qualquer suspeita contra nós? Não havia. Tínhamos entrado em desordem? Não tínhamos. Éramos inimigos de barulhos. E então? Porque estávamos ali? Hem? E porque essa história de Colônia Correcional? Os lamentos enfureciam-me, atazanava-me por evitá- los; a maneira hostil e as passada largas frustravam- se: em qualquer parte achava-se ao pé de mim a sombra queixosa. Essa convivência de naturezas inconciliáveis, prolongando-se, chega a ser tortura, e explica brutalidades, rompantes de que não nos julgamos capazes e nos envergonham. Afinal, depois de muitos ziguezagues nas duas salas, refugiei-me num vão de porta, busquei distrair- me olhando o pátio, jogando miolo de pão às aves residentes na árvore próxima. Eram pardais sem conta e devoravam tudo com rapidez enorme. Algum tempo isolei-me; o rumor das asas, os chilros e o verde-claro dos ramos na manhã luminosa acalmaram-me. Vencidas as idéias malucas, resolvi descansar na _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 24 baixo da camisa, enfaixar as pernas com elas; necessitava barbante para amarrá-las. Escapariam à revista? Os diálogos em roda iam-me descobrindo alguns indivíduos. Petrosky era o sujeito louro, grande, forte, de rosto severo. O moço de cabeça redonda e fala doce e engrolada chamava-se Zoppo. Como se arranjaria na viagem desgraçada o pequeno dentista Guerra? Um dia caíra da cama, esperneara gritando por mamãe. Coitado. Iam arrasá-lo. Agora havia sossego no pátio; o calor e a claridade recolhiam entre ás folhas os pássaros mudos. Um guarda de olhar manhoso destrancou a porta e os faxinas entraram com o almoço Fugi, um aperto na garganta, examinei o exterior deserto, para não ver a comida, não podia evitar o cheiro dela, e a náusea me atormentava. Sensação igual à experimentada meses atrás, no porão do Manaus. A língua seca, os beiços iam rachar-se, a ponta do cigarro se colaria à pele sangrenta. Agachados nas esteiras, diversos homens sentiam prazer em mastigar, e o apetite deles me causava uma estranha indignação. O som das colheres nas marmitas feria-me os ouvidos, era insuportável. _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 25 4 PASSOU-SE o dia, outros dias se passaram, quatro ou cinco, talvez mais. Uma notícia entrou a circular: embarcaríamos para o sul. Os paranaenses, em maioria, admitiram logo o boato, sem procurar saber quem o trouxera. Ninguém, provavelmente; originara-se ali, mas o curso, a repetição, complementos anônimos, davam-lhe prestígio, mudavam-no quase em certeza, e Petrosky, Zoppo, Cabezon, Garrett esperavam ler num jornal impossível a passagem de um navio para o sul. Guerra, José Gomes e Rocha tinham a certeza de que viajaríamos para o norte. Esforçava-me por fechar os ouvidos e isolar-me, e não conseguia deixar de contaminar-me, ver nos desejos ambientes realidades possíveis, aceitar a informação chegada a nós sem veículo, atravessando muros. Essa credulidade me desgostava; busquei afastá-la pensando em Sebastião Félix, mudo e sombrio, ausente do mundo, em contato com os espíritos num cubículo do Pavilhão dos Primários. Deixava-me levar, contra vontade; as fisionomias mostravam convicção, e por minutos incorporava-me a um dos grupos. Em seguida reagia, certamente por não querer deslocar-me para cima ou para baixo. Não _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 26 me tentava o regresso à minha terra. E que diabo iria fazer no Paraná? Livre do contágio, Macedo sorria e cachimbava na rede, falava sobre a permanência na Colônia, sereno, como se isto figurasse nos seus planos. Continuava a servir-me do travesseiro dele, macio, de penas, mas tão miúdo que, para erguer a cabeça, tive de colocá-lo em cima da valise. A calça e o paletó, dobrados, formando um volume pequeno, ficaram sobre o chapéu de palha, junto à parede. Não me incomodava a aspereza da esteira, mas, na friagem da noite, enrolando-me no lençol curto, adormecia, acordava, as orelhas e as mãos geladas. Arrepios, desânimo na carne. A apatia sexual, notada meses atrás, depois esquecida, novamente me causava surpresa. Tentei vencê-la enchendo as horas de insônia com cenas lúbricas; isto se convertia depressa num exercício mental penoso, e era como se me faltassem partes do corpo. A lembrança das mulheres não me dava nenhum prazer. Porque me havia aparecido aquilo de repente? Chegara-me a impotência completa. Bem; se fosse definitiva, não valia a pena mortificar-me; iria talvez eximir-me de excessivos tormentos, da horrível necessidade insatisfeita, que me perturbava o trabalho. Iria comportar-me direito, como um frade, relacionar _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 29 Para o diabo. Não se explicariam, não dariam a impressão de recuar; dispunham-se a assumir responsabilidade por uma falta inexistente. Isso manifestava-se em pedaços de frases, em gestos desabridos; e havia também um mudo assombro, dificuldade em compreender a exigência impertinente. O guarda insistia na pergunta, mas falava a dezessete indivíduos; e nenhum se julgava na obrigação de responder. Ouvido em particular, cada homem diria sem esforço a verdade: ausência de apetite, apenas. No conjunto a confissão esmorecia, quase se desagregava, era difícil alguém arriscar-se à iniciativa de expor intuitos alheios. Agüentaríamos as conseqüências, iam mandar-nos para as galerias, provavelmente. Em situação normal temíamos isso; agora se atenuava o perigo, dividido por muitas pessoas. Com certeza ainda pensávamos nele; mais grave, porém, seria uma afirmação irrefletida, em desacordo talvez com os sentimentos do grupo. Com as melhores intenções, engendramos ali dentro incompatibilidades insolúveis, em vão tentamos explicar-nos, e isto é pior que todos os vexames causados pela polícia. E temeroso arvorar-se um homem, sem mandato, em representante de uma sociedade fluida, a vacilar entre opiniões e interesses opostos, ora pelo pés, ora pela cabeça. Um momento julgamos interpretá-la, decidimos por conta própria _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 30 enfeixar as aspirações coletivas, e sucede esvaírem-se os desencontros, uma súbita unanimidade surgir contra nós; imaginamos ser úteis - e somos imprudentes. Não refleti nisso. Indispensável uma consulta rápida, supus. O guarda, amolado, esperava a resposta, uma sílaba apenas. Sim ou não? Houvera bagunça, intuito subversivo? Se a questão se formulasse de outro modo, permitisse delonga, recursos, os meus companheiros não se engasgariam, a sílaba atravessada na garganta, como um osso. Mas o diretor exigia uma dificuldade: sim ou não? Achamos resistência, o guarda se dispunha a retirar- se. - Um instante. Veio-me a tentação de lançar-me ao jogo, exatamente como quando, no bacará, arrojava todas as fichas numa cartada: - Vamos resolver isto. Vocês estavam no propósito de esculhambar a administração? Se estavam, porque havemos de calar-nos? É arriar a trouxa e esperar. Se não estavam, parece bobagem mostrarmos uma valentia que não tivemos. Penso haver falado pouco mais ou menos assim. Em redor _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 31 me afirmaram disposições pacíficas. Bem. E dirigi-me ao funcionário de rosto manhoso: - Diga ao diretor que não tencionamos fazer revolução aqui dentro. O jantar voltou porque era demais. É impossível, deitados, sem exercício, digerirmos tanta carne, tanta farinha: não temos estômagos de jibóia. Ignoro se a comida é ruim, nunca toquei nela, a minha parte sempre foi devolvida intacta. Não é protesto, é que não posso engolir isso. A intervenção produziu bom efeito. Arrancando exíguas palavras, limitara-me ao essencial: os companheiros conservavam-se dignos, um diretor invisível recebia explicação razoável. Depois refleti na inquirição. Iam tratar-nos com dureza, submeter- nos a uma justiça diversa da usada no Pavilhão dos Primários. Lá rebentáramos a louça toda, e ninguém se lembrara de indagar motivos; em conseqüência tínhamos recebido talheres e pratos novos. Agora tencionavam descobrir malevolência em ninharias Pesos e medidas diferentes. Queriam talvez desforrar- se, obrigar-nos a ajustar contas com dois meses de atraso. Na verdade os paranaenses estavam alheios à bagunça. Mas isso não tinha importância. Rigor para todos. _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 34 renovam, terrivelmente claras. Um berro nos chega aos ouvidos: - "Polícia." E uma voz trêmula desmaia: - "Não agüento mais. Vão matar-me." Foram esses, creio, os piores momentos que vivi no Pavilhão dos Militares, agachado na esteira ou refugiando-me perto da grade, olhando o vôo dos pardais. Realmente nunca me supus arriscado aos lanhos, a sapecar-me no fogo do maçarico; achava-me livre disso, estupidamente livre, até rebentando a louça do governo, por insinuação de Agildo. No íntimo devia julgar-me uma espécie de Anastácio Pessoa, pequenino e invulnerável. A desgraça era indeterminada, uma desgraça fluida e abstrata, influenza sentimental. Essa impossibilidade de isolamento, a obrigação de sentir a miséria alheia, é imposta lá dentro. Inútil espalmar as mãos nas orelhas: o chilro das aves próximas não abafa o alarido contínuo. Além dos gorjeios, destacavam-se, nos dois ou três dias de celeuma, as conversas de Zoppo e as cantigas de Herculano. Zoppo era excelente camarada, ingênuo, simples, uma criança. Falou-me de parentes revolucionários perseguidos pelo fascismo e tentou ensinar-me a extração do ouro nas minas. ótimo tipo. A cara redonda iluminava-se, a voz doce, lenta, engrolada, _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 35 narrava projetos de mineração e os tios que Mussolini prendeu e matou. Os cantos me enjoavam. Ao chegar ao Pavilhão dos Primários, ainda sentia o gosto do café torpe bebido na galeria, tinha debaixo dos pés a oscilação das pranchas do Manaus, e o Hino do Brasileiro Pobre me endireitara o espinhaço derreado. Essa composição, que os jornais da polícia confundiam de propósito com a Internacional, dera-me alguma confiança em meu país chinfrim. Ou talvez a confiança fosse em mim mesmo. De fato precisava dela: uma semana de jejum, os beiços a sangrar, o interior em cacos, a hemorragia súbita. O Hino do Brasileiro Pobre me servira bastante. A correção de alguns versos maus fizera dele coisa menos ordinária que a arranjada para imbecilizar a infância nas escolas. As repetições me haviam fatigado e logo exasperado. Amolava-me sobretudo este pedaço, anterior à emenda: "Brasil, que lembra o fogo e lembra a árvore." Altas vozes em prisão vizinha: um infeliz a pedir água. Os berros e o hiato roubavam-me o sono. Todos os dias, à mesma hora, ecoava a insipidez morna das canções, alternando-se a marchas de carnaval, sambas, e isto era uma espécie de morfina, afastava-nos do espírito a viagem provável à _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 36 Colônia. Vinha o silêncio, findava a anestesia, chegava-nos a depressão. Agora não nos podíamos iludir: receios esparsos juntavam-se, engrossavam, e debalde nos esforçaríamos por amortecê-los. Contudo Herculano trepava à janela, segurava-se às traves de ferro e ordenava que todos cantassem. Donde lhe vinha aquela autoridade? O velho Eusébio fungava, ia encolher-se na outra sala. Insensíveis à exigência ruidosa, nem nos mexíamos nas esteiras, quase todos macambúzios, alguns a expandir-se em conjeturas desagradáveis. O tumulto não findava no Pavilhão dos Primários. Durante um minuto era balbúrdia enorme; em seguida esmorecia, ficava um rumor surdo: com certeza havia gente escalada para deitar lenha na fogueira sonora, não deixá-la apagar-se. Que estaria sucedendo? Herculano deixava a janela, indignado, como se assistisse a uma deserção. O canto devia ter para ele a importância de um rito, e a nossa indiferença o molestava. _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 39 aparecer e desaparecer continuadamente. Palavras soltas indicavam que alguns tipos se orientavam chegando-se aos buracos e ainda queriam enganar-se examinando o exterior: imaginavam pisar num cais, embarcar em navio para longe, muito longe, da Colônia Correcional. Essas fantasias não me pareceram absurdas, teimamos em pegar-nos a ilusões, sabendo perfeitamente que eram ilusões. Virei-me a custo, e as marteladas no pé da barriga cessaram. Consegui levantar-me, romper a massa compacta, avizinhar-me dos orifícios, enxergar uma esteira de asfalto molhado. Nesse instante um prazer inexplicável e uma idéia esquisita me assaltaram. Devia ser delírio, mas depois esse pensamento doido me importunou com freqüência. Tentava libertar-me, vencer o despropósito, horrorizava-me sentir prazer em tal situação, mas o asfalto molhado e os farrapos de luz me fascinavam. Quando me decidisse a escrever, em futuro remoto, produziriam bom efeito numa página. Como nos entram na cabeça maluqueiras semelhantes? Queremos extingui-Ias, voltar a ser viventes normais, e as miseráveis insistem. Em períodos vagos, num livro distante, surgiriam de novo o asfalto molhado e a deslocação vertiginosa das réstias. Queria convencer-me de que isso não tinha nenhuma importância, zangava-me por estar satisfeito, e a leseira permanecia. _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 40 O carro parou, rolamos uns por cima dos outros, esbarrando nas trouxas e pacotes. Abriu-se a porta, descemos. Quando saí, já diversos companheiros se moviam entre duas filas de soldados. Espantou-me conservar na mão a valise, guardá-la inconscientemente naquela balbúrdia. Na claridade ambígua da manhã nascente focos elétricos desfaleciam. Avancei tonto, um homem de farda e fuzil à direita, outro à esquerda. Marchávamos num corredor estreito, renques de polícias a isolar-nos, e por detrás das cercas móveis curiosos embasbacavam para nós. Essa indiscrição me aborreceu. Estúpidos. Baixei a cabeça, e escaparam-me os arredores. Na barafunda mental a indignação transferiu-se. Estúpidos. Havia esquecido os basbaques; impressionava-me a inútil exposição de força. Bobagem, fanfarrice besta. Para vigiar um doente bambo e trôpego - dois sujeitos armados. Mergulhamos numa estação de estrada de ferro, mas só percebi isto ao entrarmos no carro de segunda classe. Arriei no banco estreito, ladeado pelos tipos que me custodiavam desde o tintureiro, espalhei a vista em roda, colhi fragmentos de miséria em gestos moles, em fisionomias decompostas. Criaturas arrasadas; provavelmente devia achar-me assim. O trem moveu- _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 41 se. Para onde iríamos? Naquele momento a Colônia se tornava bastante duvidosa, não sei porquê. Dos soldados próximos um esteve em silêncio durante a viagem. O outro, um rapaz magro, puxou conversa em voz baixa: - Ordem política e social? Atrapalhei-me e confessei: - Não entendo. - Pergunto se é preso político, insistiu o rapaz. - Ah! sim. Porque pergunta? - Porque ladrão não é. Admirei a sutileza do moço, desejei experimentá-la- E se eu quiser dizer que sou ladrão? Assustou-se, deu uma espiadela em torno, examinou-me fixo, cochichou: - Não diga. Isso prejudica. Mas se dissesse, ninguém acreditava. O senhor pode ser assassino. Também não é. Se fosse, tinha ficado. Para lá só vão presos políticos e ladrões. Ladrão não é. - Está bem. Vejo que tem muita prática. - Não, pouca, às vezes me engano. Os da polícia civil conhecem os ladrões de longe, na rua, pelo andar. - Está bem. Para onde vamos? _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 44 mostrado a conveniência de narrar a vida na cadeia; a tarefa imposta me esfriava, em horas de aborrecimento vinha-me a tentação de berrar que não tinha deveres, estava longe da terra e imbecilizado. Os buracos do tintureiro e as réstias movediças continuavam a perseguir-me. De quando em quando me apalpava, tocava os papéis escondidos nos bolsos do paletó. Se fosse revistado, atira-los-ia pela janela do vagão. Sobressaltava-me, as figuras de Tamanduá, Newton Freitas e Medina apareciam-me nítidas. Um curral de arame farpado, um rebanho a definhar. As réstias deslocando-se no tintureiro. Punha-me a esfregar as mãos de rijo, depois tateava o manuscrito dividido, inquiria de esguelha se ele estava muito visível. No caso de revista, joga-lo-ia fora. Em que estariam pensando o velho Eusébio, Guerra, Herculano, Zoppo, Macedo? Ignoravam talvez a minha presença, absorviam-se como eu, faziam gestos inconsiderados e tentavam emendar-se. Na ratoeira que andava em cima de trilhos, sem decidir-se a parar, na verdade éramos bichos bem mesquinhos. Todos bichos. Mencionei a prorrogação do estado de guerra, desdisseram-me com azedume; exibi o jornal, repeliram a nota agoureira: a unanimidade alienaria provisoriamente o sucesso aziago. _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 45 Dessa viagem realizada fora do tempo, armas e fardas a enchê-la, a guardar as portas, ligeiros traços hoje se esfumam. Página meio branca Avultam nela contudo as palavras do soldadinho Convenço-me de ter sido fiel reproduzindo o nosso diálogo; ao cabo de tantos anos, as perguntas e as respostas vêm nítidas, parecem recentes; não preciso enxertos, pelo menos julgo isto. A magreza e a palidez do moço ainda se conservam. O resto era confusão. O jornal, armas e fardas, os meus dedos úmidos e frios, as mãos inquietas esfregando-se, metendo-se nos bolsos, os companheiros a recusar indignados a notícia ruim. Nada mais. Uma janela inútil. _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 46 7 O TREM parou, desembarcamos em Mangaratiba. Aí me chegaram algumas idéias claras, fui capaz de observar qualquer coisa; agora as recordações avultam e se articulam. Achara-me num sorvedouro; ou antes, não me deslocara em sentido horizontal, mas para cima e para baixo, a subir e a descer nas roscas de um parafuso. Estávamos em Mangaratiba. Vi este nome na placa da estação. Bem. Chegávamos enfim a um canto da terra, e isto nos dava consistência. Roláramos fora dela, ausentes da realidade. Ao sair da caixa móvel, José Gomes, o velho Eusébio, Guerra, Zoppo, deixavam de ser sombras, ganhavam corpo: lembro-me deles. Mangaratiba é um lugar miúdo, que pro curo fixar na memória para não me esquecer dos companheiros. Uma povoação triste e abafada, com montes em redor. É, parece que tem montes em redor. Nada mais. Deixando o vagão, marchamos em frente, pisamos num tablado sobre água: com certeza íamos embarcar. Faltavam-me cigarros. Como embarcar sem cigarros? Talvez não tivesse fumado no trem, mas ali, _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 49 Duas idéias me perseguiam: o soldado preto não voltava com os cigarros, e nós éramos bagatelas, cisco em cima das tábuas, pontas de cigarros. Os meus vinte mil-réis estavam perdidos. E se uma daquelas senhoras quisesse mijar? Esse pensamento burlesco um minuto me agravou os arranhões da goela, o desejo de rir. Nenhum motivo para acanharem-se, mijariam facilmente na rede de Macedo, no capote do Zoppo, na minha valise. Tão grandes e afastadas, assim próximas e miúdas, em cadeiras de vime! Estávamos em pé, as nossas misérias, os nossos embrulhos, no chão. O soldado preto não regressava. Uma lancha avizinhou-se, atracou. Saltamos para ela, houve confusão de passageiros no transbordo, gente a entrar, sair. Fizeram-nos descer uma escada que levava ao porão. No primeiro degrau ouvi alguém chamar-me familiarmente e dei de cara com um sujeito desconhecido, alegre e ruidoso. Quem diabo seria? Reparando bem, julguei-o, pelos modos, um tipo encontrado meses antes, no Pavilhão dos Primários, buscando entender-se com Birinyi num italiano incompreensível. Vinha num grupo da Colônia e saía do porão. Criaturas indefinidas. A nossa escolta apoderou-se deles, a que os havia trazido encarregou-se de nós e ficou lá em cima, a vigiar em torno da escotilha. _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 50 Descemos. Em meio do caminho ouvi um grito e, levantando a cabeça, distingui o soldado preto a acenar-me. Subi ao convés, recebi vários maços de cigarros e caixas de fósforos. Ao metê-los nos bolsos, encontrei as folhas de papel cobertas de letras miúdas e joguei-as na água. Representavam meses de esforço, nenhuma composição me fora tão desigual e custosa, mas naquele momento experimentei uma sensação de alívio. Não me ocorreu o prejuízo. O certo era que as notas significavam culpa, e se fossem descobertas isto me renderia aborrecimentos. Haviam escapado às fogueiras inevitáveis nos cubículos do Pavilhão quando nos anunciavam revista. Imprudência conservá-las naquele tempo. Agora isto era absurdo: não entrariam na Colônia. Perda escassa: estavam pessimamente redigidas, e longos anos tantas vezes me sucedera queimar prosa ordinária que não me abalava a destruição de mais algumas páginas. De certo modo aquilo desculparia o desânimo e a preguiça, serviria de pretexto para furtar-me à obrigação cacete. Iam-se diluindo na água as minhas lembranças esparsas; não me seria possível reconstituir com segurança os cubículos povoados de percevejos, a sala escura da galeria, as redes oscilantes e o camarote do padeiro no porão do Manaus. Tornei a descer a escada curta, penetrei na _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 51 jaula que nos reservavam, fui sentar-me a um canto, sobre a maleta. A lancha desatracou e partiu, algumas pessoas entraram a enjoar. Como era grande o calor, tirei o paletó e a gravata, afrouxei o colarinho. A perna encrencada aperreava-me em excesso. Ao embarcar atrevera-me a um passo comprido - e a dor crescera, muito aguda. Isto me alegrava. Se me inutilizasse, com certeza me deixariam morrer num hospital. A perna doía. E cultivei a dor, imaginei acabar-me depressa fora do curral de arame descrito por Tamanduá. Macedo estabeleceu-se junto a mim e começou a realizar uma operação minuciosa e lenta. Despiu-se, tirou o dinheiro, enrolou as notas em longos pavios e meteu-as no cós do pijama. Em seguida substituiu a cueca pelo pijama, vestiu a calça e aconselhou-me a fazer o mesmo. Restavam-me cento e poucos mil-réis e não julguei preciso escondê-los. A barca jogava muito. E em redor olhos compridos enlanguesciam, fechavam-se, abriam-se, fechavam-se de novo. Lembrei-me do pavor de Guerra, no Pavilhão. Batia com a cabeça nos ferros da cama e gritava, injuriando o governo, atirando à polícia nomes sujos. Como iria agüentar-se? Esquisito: Guerra se comportava bem, ria, pilheriava. Estaria a fingir-se alegre por _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 54 coisas sem pressa, e Guerra, agitado e falador, com estridências na voz e ameaças na ponta do bigodinho, um Guerra muito diferente do que rolava na cama, aos gritos. Do velho Eusébio restavam depressões. Por cima das nossas cabeças, ladeando a entrada, viam-se as perneiras, as fardas, os bonés e os fuzis da polícia. Petrosky, o homenzarrão silencioso e louro, arriava-se a um canto, invisível no escuro, entre caixões. Se tentasse erguer-se, não conseguiria aprumar-se. Sentado na valise, arrimado à tábua, pouco a pouco me entorpeci, achei-me longe do porão da lancha, do carro de segunda classe, do tintureiro. Todos ali eram desconhecidos, meses antes não me havia chegado o nome de nenhum deles. Eu mesmo era um desconhecido agora, diluía-me, tentava debalde encontrar-me, perdido entre aquelas sombras. Uma frase repetida, que se despojara de significação, martelava-me: o estado de guerra ia ser prorrogado. Isto me aborrecia. Para o diabo o estado de guerra. Imaginei-me em país distante, falando língua exótica, ocupando-me em coisas úteis, terra onde não só os patifes mandassem. Logo me fatiguei dessas divagações malucas e dei um salto para trás, vi-me pequeno, a correr num pátio branco de fazenda sertaneja, a subir na porteira do curral, a ouvir os bodes bodejarem no chiqueiro. De qualquer forma, _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 55 enveredando no futuro ou mergulhando no passado, era um sujeito morto. Necessário esquecer tudo aquilo: o porão, o carro de segunda classe, o tintureiro, os cubículos, a recordação da infância, o país distante e absurdo, refúgio impossível. Não sei quem me tirou dessa horrível apatia, alguém que me pediu um cigarro ou ofereceu qualquer coisa. Regressei à realidade, enxerguei fisionomias sucumbidas, invadiram-me palavras soltas, o riso estridente de Guerra, a fala engrolada de Zoppo, o laconismo, a resignação bovina de Petrosky. José Gomes estava abatido. Lembrei-me do Manaus. A noite José Gomes fazia com as mãos uma corneta, erguia a voz imitando um locutor: - "Rádio Clube do Porão. Vamos ouvir Paulo Pinto, rei do samba." E Paulo Pinto, negro, rei do samba, cantava; com amores, tolices, onomatopéias, reduzia o calor da fornalha, o cheiro de amoníaco, os vômitos, o arquejar penoso, as cascas de laranja atiradas da coberta sobre as nossas redes. Agora Paulo Pinto estava na Colônia, e José Gomes se imobilizava no silêncio. Em redor, nos cantos sombrios, caixas, bagagens, sacos. E pelas frestas que separavam as tábuas grossas e sujas, víamos a água escura lá embaixo. As minhas folhas se desagregavam nela, a plumbagina se diluía, perto do embarcadouro de _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 56 Mangaratiba. Amizades rápidas, casuais, um instante a fixar-se e logo a estremecer nos sacolejos dos navios, dos carros, seriam em breve partículas indecisas no mar, partículas indecisas na minha memória. Na Colônia, iriam mexer-me nos bolsos, despojar-me, recolher-me fraco e desarmado. Resolvi guiar-me pelo juízo de Macedo, homem cauteloso, em geral entregue a minúcias razoáveis; imitei-lhe a prudência. Retirei da valise a calça do pijama e introduzi no cós dela o dinheiro de papel que me restava; deixei no porta-níqueis uma cédula de cinqüenta mil-réis. Despi-me, vesti a peça fraudulenta, a roupa de cima, com a aprovação tácita do meu companheiro meticuloso. Bem. Agora me alentava um pouco; as notas amarradas à barriga davam-me a esperança de conseguir mexer-me, não perder a iniciativa. Ergui-me, fui até a abertura por onde havíamos descido, subi os degraus inferiores da escada curta. Entre as perneiras dos soldados, vi o mundo lá fora, o sol, água, ilhas, montes, uma terra próxima a alargar- se. _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 59 bagagem. O sargento volumoso e escuro tinha carranca selvagem, mas o instinto me levou a entender-me com ele. A primeira leva desembarcara ali em noite de chuva, subira montes e descera montes, às carreiras. Lembrei-me do relatório de Chermont. Se um infeliz escorregava no barro molhado e caía, obrigavam-no a levantar-se com pancadas. Agora os caminhos estavam enxutos, o dia claro. Infelizmente a perna me atormentava e não me seria possível correr. Declarei isto ao sargento. Examinou-me, talvez procurando no meu rosto sinais de mentira. - Que é que o senhor tem? perguntou áspero. - Fui operado. Não consigo viajar depressa. Refletiu, decidiu: - Vou pedir um cavalo. Isto me aborreceu: desagrada-me incomodar alguém. - Talvez não seja preciso. Qual é a distância? - Doze quilômetros de serra. - Que horas são? - Dez. - A que hora devo chegar? - A tarde. Chegando às seis chega bem. - Obrigado, sargento. Não é necessário o cavalo. Vou a pé. _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 60 Voltou-se para os dois policiais: - Este senhor está doente, não pode acompanhar os outros. Andem muito devagar com ele, parando para descansar. Afastei-me capenga, disposto à marcha penosa; no fim do tablado recuei, vexado por não me ocorrer um agradecimento razoável. Afinal a criatura nada tinha com os meus desastres. Atentei na fisionomia agreste: - Aquilo é horrível, hem, sargento? Alongou o beiço grosso, resmungou: - Não. Para o senhor, não. - Ora essa! Porquê? - Em qualquer parte o senhor está em casa. A observação me chocou. Ter-me-ia acanalhado? Comportar-me-ia direito em excesso, buscando captar a benevolência da força? Um rápido exame interno sossegou-me: ti nha-me expressado conciso e frio, apenas manifestara a impossibilidade completa de mexer-me depressa. Antes de me retirar, o homem se avizinhou, segredou uma pergunta inesperada: - Tem dinheiro? Surpreendi-me. Contudo não senti desejo de fechar-me: - Tenho, pouco, mas tenho. _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 61 - Não caia na tolice de entregá-lo. Só lhe consentem levar cinco mil-réis. Guarde o resto. Vai passar fome, sabe? Há de comprar comida fora. Súbito revelei ao sujeito o esconderijo das notas, e não julguei ser imprudente. Estavam no cós do pijama, entre as calças e a cueca. - Acha que vão descobri-Ias na revista? Balançou a cabeça negativamente: - Não há perigo, a busca é formalidade. Referiu-se de novo à falta de alimento e repetiu o conselho de aferrolhar o dinheiro, economizar: ser- me-ia indispensável prover-me em negócios clandestinos. Falava rápido e baixo, a conversa durou talvez dois minutos. Ainda avancei uma interrogação: qual era o meio de obter coisas no exterior? Alguns rapazes da polícia arriscavam-se a esses favores, afirmou. - Quer apresentar-me a um dos seus homens? - Não. O senhor será procurado, com certeza. Duas ou três vezes introduziu no diálogo esta observação intempestiva: - Não lhe acontecerá nada ruim. Uma pessoa inteligente nunca se aperta. - Agradecido, sargento. _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 64 ziguezagueantes, que haviam batizado a Colônia. A luz forte do sol feria montes escuros e nus; em certos pontos árvores esguias disfarçavam a calvície da terra pedregosa. Veio-me o desejo de perguntar como se chamavam essas plantas, mas a curiosidade morreu logo. Ao calor do meio-dia, estazei-me. Horríveis picadas na perna; vencer alguns metros de rampa custava-me esforço enorme. Respiração curta, suor abundante, falhas na vista. Procurei dominar a fraqueza atentando na paisagem. Inutilmente. A cabeleira escassa dos morros já não me interessava. As dores no pé da barriga avivavam lembranças insuportáveis do hospital. Meses compridos vira-me forçado a amparar-me a uma bengala; esse arrimo agora me fazia grande falta, e os passos arrastavam-se trôpegos, indecisos, parando a cada instante. Os soldados começaram a impacientar-se, e isto agravou a dificuldade. Tentei elastecer a carne entanguida, propensa à imobilidade; experimentei a sensação de ter um dreno de borracha metido no ventre. Mordia os beiços queimados e arfava. Impossível continuar. Pus a valise em cima de uma pedra e sentei-me, indignando os condutores presos ao cambalear penoso, recusei-me a prosseguir. Inútil a insistência, arquejei. Não viam que estavam exigindo o _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 65 impossível? Contudo inclinava-me a julgar aquilo um achaque passageiro; nenhuma preocupação. Iria restabelecer-me quando me surgissem de novo as mesas e as camas, objetos remotos, improváveis. Ergui-me, reencetei a caminhada bamba, detive-me ao cabo de cem metros, joguei-me outra vez para a frente. Rês cansada; nenhum aguilhão me apressaria. Inquietava-me a posição do sol, e uma pergunta me vinha com freqüência: ainda estávamos longe? Com certeza. Afligia-me causar transtorno aos dois homens. Um deles puxou conversa. Era de Palmeira dos índios, em Alagoas. E inteirando-se de que eu vivera ali muitos anos, pediu notícias de personagens locais, perguntou como iam de saúde seu Aureliano Wanderley e seu Juca Sampaio. Achei graça na curiosidade e afirmei: - Vão muito bem. Nas escarpas da ilha Grande, a esfalfar-me, a aproximar-me vagaroso da Colônia Correcional, papagueava com um matuto fardado sobre gente do interior, meio esquecida. O rapaz me interrogava como se eu tivesse a obrigação de conhecer Juca Sampaio e Aureliano Wanderley. Palmeira dos índios é uma cidadezinha, os habitantes andam lá em contato _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 66 forçado. Apartara-me deles, mas não hesitava em referir-me às duas pessoas mencionadas. Estavam bem. Pelo menos deviam estar melhor que eu. Essa tagarelice aplacou o trajeto ronceiro. As estações espaçaram-se. O terreno ia ficando menos íngreme, o calor diminuía. Era certo chegarmos antes da noite e não precisava agitar-me em excesso. As punhaladas no ventre esmoreceram; o que agora me incomodava era o torpor na coxa direita. A dormência crescia, chegava ao joelho, dava-me a impressão nova de mexer-me com uma perna artificial. A voz lenta do sertanejo escorregava-me nos ouvidos, trazia-me ao espírito as largas campinas da minha terra, os cardos pujantes na seca, as flores amarelas das catingueiras. Em redor, coisa muito diversa dessas evocações familiares: sombras, matas, as estranhas árvores delgadas a vestir a peladura negra dos montes. No fim da tarde alcançamos um pátio branco. Ao fundo, enorme galpão fechado, e junto a ele cercas de arame, certamente o curral onde nos confinariam. A vista fixa nas paredes baixas, na cobertura de zinco, durante algum tempo não percebi as casas alinhadas no terreiro. Surgiram-me de chofre, como se se tivessem construído naquele instante, sem dúvida residências de funcionários, repartições, cozinhas, e _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 69 9 LEVARAM-ME a uma das formalidades inevitáveis na burocracia das prisões, num dos edifícios baixos, limites do pátio branco. Sala estreita, acanhada; homens de zebra a mexer-se em trabalhos aparentemente desnecessários. Porque me encontrava ali? Devo ter feito essa pergunta, devo tê-la renovado. Impossível adivinhar a razão de sermos transformados em bonecos. Provavelmente não existia razão: éramos peças do mecanismo social - e os nossos papéis exigiam alguns carimbos. A degradação se realizava dentro das normas. Que me iriam perguntar? Não disseram nada. Os homens de zebra exigiram apenas que lhes entregasse a roupa. Ora essa! Queriam então que me retirasse dali nu? Não era bem isso. Tinham aberto a valise, arrolado os troços, achavam possível despojar-me da indumentária civilizada. Estava certo. Era preciso despir-me em público ou havia lugar reservado para isso? Não havia. Perfeitamente. Despojei-me da casimira. E como tinha por baixo a calça do pijama, com o dinheiro minguado no cós, vesti apenas o casaco. Achava-me regulamentar, tanto ou quanto regulamentar e ridículo, a prendei a camisa nas virilhas, sujeitando o pano à carne _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 70 resistente. Achei-me coberto enfim deste jeito: camisa úmida, colarinho, gravata, pijama bastante amarrotado, os pés coagidos nos sapatos duros, poeirentos. Os tamancos deixados no cubículo 50, no Pavilhão dos Primários, faziam-me falta. É estúpido mencionar isso; contudo não conseguimos prescindir lá dentro de tais insignificâncias. De fato não eram insignificâncias. Os sapatos duros e estreitos magoavam-me os calos; seria bom juntar aos pés inchados pedaços de madeira presos com tiras de pano. Os tamancos me dariam folga, relativa liberdade. Antes de largar os trapos ao funcionário de zebra, recolhi os cigarros, enchi os bolsos do pijama, fiquei obeso. Para emagrecer um pouco, recolhi o cinto, apertei-o à barriga, avancei dois ou três furos além do ponto normal: a ausência de comida facilitava-me a operação: a magrém forçada compensava a gordura exterior. Em relativo equilíbrio, tentei conservar a carteira, onde havia alguns papéis isentos de valor. Um sujeito de zebra tomou-a. Reclamei. - Para que é que o senhor quer isso? São fotografias. Veja. Não interessam. O homem fez orelhas moucas e guardou a carteira, sem me deixar nenhum vestígio da subtração. _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 71 Depois me conduziram às cercas de arame, ao galpão temeroso. Numa saleta, os meus companheiros de viagem, com certeza chegados horas antes, amolavam-se à espera de formalidades rotineiras, mais ou menos indecifráveis. Em torno de uma banca figuras se moviam, davam-me a impressão de mexer- se em densa neblina: a minha vista se turvava, era-me impossível notar minúcias. Na imobilidade, reapareceram-me as dores, ferrões me atravessaram a carne entanguida. Não me agüentei de pé, fui encostar-me a uma parede, curvo, derreado para a direita, a mão no pé da barriga. Nunca pude saber como, em tais situações, nos chegam notícias precisas. De que modo se transmitem? Parecem adivinhação. Estamos cercados, vigiados; alguém nos sussurra algumas palavras, e recebemos num instante esclarecimentos indispensáveis. Uma cadeia se forma, conjugam-se reminiscências, o aviso se amplia; quando nos referimos a ele, notamos apêndices, interpolações, acréscimos rápidos, anônimos. Nesse trabalho coletivo a memória e a imaginação cooperam de tal jeito que nos é impossível saber se o informe decisivo é falso ou verdadeiro: entrosam-se nele os pacientes exames rigorosos e a credulidade excessiva ordinária nas cadeias. Em torno divisei homens fardados, mas a _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 74 isto é suposição. Qual deles me cochichara o nome do anspeçada e me avivara passagens do relatório de Chermont? Uma balbúrdia, pensamentos a debandar. Tentava expressar-me direito, não me custava fingir calma. Aspecto normal, a voz ordinária; convencia- me de que nas minhas palavras não havia incongruências, e esta certeza me parecia insensata. _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 75 10 FINDA a vistoria achei-me no pátio, sobraçando a valise, a andar sob as árvores de grandes folhas invisíveis agora. Entramos num salão estreito e escuro. Pendiam lâmpadas do teto baixo, vidros fuscos, fios incandescentes, a espalhar uma luzinha frouxa e curta; a alguns metros delas os objetos mergulhavam na sombra. Distingui duas alas de mesas compridas; eram duas, se não me engano, ladeadas por bancos. Tombei num deles, cansado. Reparando bem, notei que as mesas se formavam de tábuas soltas em cima de cavaletes. O ar estava nauseabundo e empestado, havia certamente nas proximidades um bicho morto a decompor-se. Juntei os cotovelos às pranchas, segurei a cabeça fatigada, comprimi as narinas com os polegares, fiquei um minuto a arfar, respirando pela boca. Um sujeito se avizinhou, manso, quase invisível na escuridão. Arriei os braços, ergui os olhos inúteis: impossível enxergar as feições do homem. O cheiro de carniça invadiu-me os gorgomilos, trouxe-me enjôo, lágrimas, embrulho no estômago. Outra vez levantei as mãos, apertei o nariz, receando vomitar, cerrei as pálpebras. _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 76 Tocaram-me num ombro. Sacudi o torpor, abri os olhos, vi um prato junto a mim. - Obrigado. Nos arredores vultos indecisos, provavelmente os meus vizinhos da lancha, do carro de segunda classe, do tintureiro, matavam a fome. Depois de tantos abalos, nordestinos e paranaenses tinham apetite naquela situação. Repugnava-me, inquiria mentalmente se o olfato deles se embotara ou se o fedor horrível era uma criação dos meus nervos excitados. Inclinei-me a supor isto. Difícil admitir a insensibilidade estranha em várias pessoas; o defeito estava em mim, um sentido me enganava. Tocaram- me de novo no ombro, da figura indistinta veio um conselho doce e lento: - Coma. Soltei a cabeça, aspirei um pouco de ar; estupidez negar as emanações torpes. - Obrigado. Não posso. - A comida está boa, foi preparada para os senhores. Acendi um cigarro, pus-me a fumar depressa, buscando vencer a infeliz sensação. No prato havia manchas escuras, talvez pedaços de carne. _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 79 - Meu amigo, não se preocupe. Vai muito bem. Continue o seu trabalho. - Está incomodando muito? - De forma nenhuma. Vai muito bem. O infame instrumento arrancava-me os pêlos, e isto me dava picadas horríveis no couro cabeludo. A operação findou, ergui-me, passei os dedos no crânio liso, arrepiado na friagem da noite. Diabo. Estávamos no inverno, a cabeleira ia fazer-me falta. Um burburinho extenso anunciava multidão. _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 80 11 ALGUÉM me chamou, perto, avizinhei-me da grade interior, percebi no outro lado uma figura indistinta. Reconheci-a pela voz mansa, dormente. Depois, habituando os olhos à luz mortiça, divisei as feições de Vanderlino, o moço calmo, vagaroso, que no Pavilhão dos Primários gastara semanas destruindo um cabo de vassoura, talhando peças de xadrez a canivete. Parecia à vontade, como se estivesse em casa, e manifestava um prazer absurdo ao ver-me ali. Ficou um minuto a falar oferecendo qualquer coisa, mas não consegui entendê-lo: a minha atenção fixava- se no lugar sombrio onde ele se achava. Através das barras de ferro uma turba confusa me surgia de chofre, corpos indecisos a mexer-se, em pé, de cócoras, estendidos, espalhando o surdo rumor já notado enquanto me raspavam a cabeça. Nenhuma particularidade, som ou visão, se destacava nessa balbúrdia. Apenas o novelo animado a desdobrar-se no escuro e o burburinho a rolar. Um cheiro desagradável, complexo, indeterminado, provocava tosse. Abriu-se a porta, avancei, num instante me vi mudado em partícula da massa heterogênea. _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 81 Achavam-se ali provavelmente os bichos curiosos expostos no relatório de Chermont. Perdiam-se naquele fervilhar de cortiço a zumbir, e a minha curiosidade minguava no alvoroço. Capotes e redes indicaram-me os companheiros de viagem, num grupo. Haviam entrado antes ou depois de mim? Vanderlino prosseguia na conversa. Levou- me para o centro do galpão, e só aí compreendi a oferta muitas vezes repetida: era-me possível dormir ali. Reuniu a esteira dele à do vizinho e conseguiu arranjar o espaço necessário a três indivíduos. Sentei- me na urdidura gasta de pipiri, fiz da valise travesseiro, pus-me a fumar, não distinguindo bem as palavras de Vanderlino. Surgiram-me de relance caras já vistas, umas conhecidas, outras duvidosas. Cansava-me fazendo perguntas mudas: - "Onde terei visto esse tipo?" A dois passos alguns sujeitos nos examinavam fixos, indiscretos; julguei-os espiões, interessados em descobrir um movimento, ou olhar suspeito, avisar a polícia. Joguei fora a ponta do cigarro, os homens se lançaram sobre ela, empurrando-se. Levantaram-se. A ponta do cigarro tinha desaparecido. Com um estremecimento, recordei-me do aviso do soldado, no pátio; a inesperada vileza dizia claro o valor do fumo na prisão. Desejei distribuir cigarros aos infelizes; _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 84 figuras nubladas, os óculos medrosos do velho Eusébio. Inútil pensar em defender-me. Certo a criatura nanica era débil, mas fortificava-se por detrás de barras de ferro, as armas do governo a protegiam, davam-lhe empáfia segura. No desarranjo momentâneo o que mais me impressionou foi sentir- me inteiramente só. Havia em torno um milheiro de homens, com certeza, mas a horrível sensação de isolamento empolgava-me. Cruzei os braços, aniquilei-me. A vontade sumira-se, o meu corpo infeliz era um conjunto de trapos bambos. Vendo-me assim, vazio e inerte, o anspeçada Aguiar disse-me que as esteiras viriam no dia seguinte; aquela noite dormiríamos na terra nua. Está bem. Ia retirar-me, um guarda me deteve com esta decisão incompreensível: - Na formatura reúna os seus homens lá no fundo. - Os meus homens? gaguejei atarantado. - Os seus companheiros. Mande que eles formem lá na porta. Sucumbido, fui apontar aos recrutas o lugar onde nos alinharíamos. Isto me rebaixava mais que a _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 85 atitude humilde na presença do anspeçada. Um momento me anulara, incapaz da mínima reação, meio cadáver. Pretendiam agora infamar-me, transformar- me em vigia dos meus amigos. O terror me obrigaria a mantê-los na disciplina e, sendo preciso, denunciá-los. Um instrumento dos verdugos enxameantes além da grade. Cabo de turma, com horror senti-me cabo de turma. Chegaria a conseguir bastante vileza para desempenhar esse papel? Enquanto me dirigia ao grupo e indicava a extremidade obscura do galpão, atenazava-me a pergunta ansiosa; e a resposta se esboçava no rosto zombeteiro de João Rocha. O mulatinho parecia felicitar-me com um risinho encolhido e enviava-me espiadelas de soslaio, exibindo respeito burlesco. Patife. Os outros, glaciais, começavam talvez a desprezar-me. Tencionava amparar-me neles, e a dura reserva feria-me, pior que bofetada. Esses desentendimentos originam fundos rancores, ódios, e não nos surpreendemos se uma criatura hoje se inflama a cantar hinos revolucionários e amanhã cochicha pelos cantos, envia cartas à autoridade. Reunindo a custo indecisos fragmentos de energia, julguei-me incapaz de chegar a isso - e a desconfiança tácita flagelava-me. Novamente a solidão me envolveu, aqueles homens se distanciavam, como se ainda estivessem no Rio Grande, no Paraná, terras desconhecidas. Separei-me _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 86 deles, voltei ao meu pouso, sentei-me na valise; o esquisito abandono pouco a pouco se sumiu. Não valia a pena atormentar-me com a opinião alheia. Era enorme o alojamento, sem dúvida estava ali um milheiro de pessoas. Vanderlino me interrompeu cálculos difíceis e apresentou uma delas, rapagão espadaúdo, simpático, o olho vivo, de gavião. Uma curiosa madeixa de cabelos brancos enfeitava-lhe a testa e o lábio superior se erguia, descobrindo os dentes, num sorriso sarcástico. Fisionomia aberta, ar decidido. Admirou- me a franqueza de Vanderlino ao dizer o nome e o ofício da personagem. - Gaúcho, ladrão, arrombador. Um insulto. Como se ofendia um homem daquele jeito, cara a cara, sem metáforas? Examinei os dois um instante, reconsiderei. No Pavilhão dos Primários, Vanderlino era um sujeito de excessiva delicadeza; a voz calma não se alteava; nunca melindraria ninguém. E Gaúcho nem de longe parecia injuriar-se. Tinha a aparência de uma ave de rapina. Estendeu-me a garra larga, acocorou-se junto à esteira, pôs-se a conversar naturalmente. Apertando- lhe a mão, declarei ter muito prazer em conhecê-lo. Tinha. Não era apenas curiosidade. Finda a surpresa, confessei a mim mesmo que poderia tornar-me sem _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 89 empertigou-se na fileira, os braços cruzados, impassíveis. Todos em roda estavam assim, firmes, de braços cruzados, impassíveis. Nenhum sinal de protesto, ao menos de compaixão. Também me comportara com essa horrível indiferença, como se assistisse a uma cena comum. Éramos frangalhos; éramos fontes secas; éramos desgraçados egoísmos cheios de pavor. Tinham-nos reduzido a isso. Qual a razão daquela ferocidade? A cabeça fervia-me; as dores no pé da barriga tornavam difícil a posição vertical: debalde tentava aprumar-me, inclinava-me para a direita. Precisava descansar. Já nem me importava saber a causa da sevícia imprevista. Falta ligeira: algum descuido, gesto involuntário, cochicho a perturbar o silêncio. Estávamos reduzidos àquilo. Derreava-me tanto que julguei perder o equilíbrio, estender-me na terra. O cafuzo viria levantar-me com a biqueira do sapato. Estávamos reduzidos a isso. Não sei quanto durou o suplício. Debandamos, houve uma lufa-lufa no arranjo das camas. Andei a capengar na multidão, em busca de Vanderlino. Alcancei a nesga de esteira, pude sentar-me, fumar. Os sucessos do longo dia misturavam-se, pesavam demais. Impossível dizer qualquer coisa. Estirei-me, caí num sono de pedra. _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 90 12 UM toque de corneta ergueu-me, e ouvi o grito da véspera: - Formatura geral. Ainda quase a dormir, vi-me arrastado pela multidão que fervilhava com rumor, dobrando cobertas, enrolando esteiras. Andei à toa, maquinal, ignorando o motivo da agitação; acordei, a memória funcionou, o grito adquiriu sentido Pela primeira vez me sucedia levantar-me durante o sono e despertar caminhando. Lá fora havia trevas. Porque nos vinham perturbar tão cedo, roubar-nos alguns minutos de repouso? Essa pergunta inexeqüível juntava-se a outra, formulada com certeza no meio da confusão: onde me deveria colocar? Os meus companheiros de viagem sumiam-se dispersos, eram fragmentos na balbúrdia. Novamente cantaram números, uma longa tabuada. Na inconsciência e na atarantação, achei-me numa fila, não longe da porta. Felizmente ocupava o quarto ou quinto lugar, podia ocultar-me, não ver a tromba e os olhos vermelhos do soldado cafuzo que tanto me havia perturbado na véspera. Dois ou três _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 91 passos atrás de mim o velho Eusébio se aniquilava, e alguns capotes na vizinhança indicaram-me a dissolução do nosso grupo. Isto me sossegou, vi-me livre do humilhante dever imposto horas antes. Não me deixariam no cargo infame, decerto, mas surpreendeu-me notarem tão depressa a minha incapacidade. Bem. Ia tornar-me invisível, acabaria acostumando-me à vida no formigueiro. - Já estão na bagunça! exclamou alguém com estridência arrepiada. Virei-me, enxerguei um tipinho de farda branca, de gorro branco, a passear em frente às linhas estateladas. Era vesgo e tinha um braço menor que o outro, suponho. Não me seria possível afirmar, foi impressão momentânea. Um sujeito miúdo, estrábico e manco a compensar todas as deficiências com uma arenga enérgica, em termos que me arrisco a reproduzir, sem receio de enganar-me. Um bichinho aleijado e branco, de farda branca e gorro certinho, redondo. Parecia ter uma banda morta. O discurso, incisivo e rápido, com certeza se dirigia aos recém- chegados: - Aqui não há direito. Escutem. Nenhum direito. Quem foi grande esqueça-se disto. Aqui não há grandes. Tudo igual. Os que têm protetores ficam lá fora. Atenção. Vocês não vêm corrigir-se, estão _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 94 impossível reclamar, e todas eram mais ou menos assim. Um tipo de fisionomia repulsiva, manejando enorme bule de folha, vazou nelas uma beberagem turva. Baixei a cabeça, vi um pãozinho redondo sobre a tábua; no líquido frio boiavam cadáveres de moscas. Não percebendo em roda sinal de nojo, tentei vencer a repulsa, mastigar a comida insuficiente. Em vão busquei dividi-Ia: a massa obstinou-se, pegajosa, mole: tinha a brandura resistente de borracha. Soltei-a, fiquei algum tempo a olhar as moscas mortas. Enfim me decidi: retirei-as, bebi o caneco de água choca. Seria mate? Veio-me a idéia extravagante de que a miserável insipidez era uma infusão de capim seco. Nada me levava a supor isto, mas a idéia permaneceu. O rumor de centenas de corpos em movimento deu sinal de regresso. Ergui-me, saltei o banco, ia enfileirar-me quando um vizinho me bateu no ombro, indicou o pão elástico abandonado sobre a mesa: - Vai deixar isso? - Claro. No rosto do homem havia espanto e censura: - Guarde. Vai precisar depois. O enjôo me impedia aceitar o conselho prudente; murmurei a recusa maquinal jogada à noite _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 95 diante das manchas quase invisíveis num prato invisível: - Obrigado. Não tenho fome. O sujeito, rápido, meteu o pão no bolso. Entramos em forma, voltamos, cabisbaixos e de braços cruzados. Houve uma azáfama no alojamento: desfizeram as camas, espalha ram-se no curral, estenderam lençóis e esteiras ao sol. Deixei-me arrastar, sem perceber direito porque nos mexíamos, achei-me sentado junto a uma cerca de arame. Lembro-me de ter lançado esta pergunta várias vezes: quantos éramos? As respostas divergiam, mil, novecentos, e obstinava-me na indagação, como se tivesse grande interesse em fixar o número exato. Convenci-me enfim de que éramos novecentas pessoas; a curiosidade esfriou e derramou-se. Na leve neblina da manhã uma sombra vermelha passou perto de mim; atentei nela, distingui nos ombros de um rapaz moreno o poncho revolucionário de Tamanduá. Nas idas e vindas, no interminável borbulhar de espuma, os objetos deslocavam-se, em trocas, em ofertas. Surpreendeu- me ver muitos indivíduos com as roupas pelo avesso, os bolsos para dentro. Era desnecessário explicarem- me a razão dessa cautela: a singular sociedade permitia o furto e resguardava-se, nem sequer fingia _________________________________________ Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere – Vol. II 96 dissimular os receios. Talvez o rapaz moreno houvesse abafado o poncho rubro. Novecentos homens num curral de arame. Pensei na estridência, nos arrepios de Tamanduá: - "Bichos, vivíamos como bichos." A grade tinha ficado aberta. Além dela passavam criaturas meio nuas, varrendo a prisão. Que nome tinham as plantas esguias do monte próximo? Novo esclarecimento me chegou: piteiras. Bem. O guarda vesgo de roupa branca se excedera: ainda me restava o direito de informar-me. Estavam ali novecentas pessoas e as árvores finas se chamavam piteiras. Vi organizarem-se as filas do trabalho e incorporei-me numa, ao acaso: mandar-me-iam com certeza carregar tijolos, pois me faltava habilidade para o serviço na horta ou na cozinha. No transporte de tijolos ocupava-se a maioria dos presos. Avizinhamo-nos pouco a pouco de um tenente de polícia, alto, de beiço rachado, que fazia a distribuição O companheiro da retaguarda sussurrou-me a alcunha dessa figura: Bicicleta. Procurei o motivo do apelido curioso, nada vi semelhante ao objeto da comparação: um homem atento, grave, de rosto inexpressivo. Ao chegar a minha vez, examinou-me de relance e determinou conciso: - Volte.
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