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Guias e Dicas
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Tédio, Melancolia e Depressão na Modernidade: Um Estudo sobre a Experiência do Tempo, Notas de estudo de Psicologia

Este texto discute as experiências do tédio, melancolia e depressão na modernidade, enfatizando a importância da compreensão do tempo e da velocidade na vida contemporânea. O autor explora as diferenças entre esses conceitos e as implicações psicológicas e sociais de cada um.

Tipologia: Notas de estudo

2015

Compartilhado em 04/08/2015

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ana-carolina-schmidt-8 🇧🇷

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Baixe Tédio, Melancolia e Depressão na Modernidade: Um Estudo sobre a Experiência do Tempo e outras Notas de estudo em PDF para Psicologia, somente na Docsity! ADOLESCÊNCIA, VELOCIDADE E TÉDIO LUÍS GUILHERME COELHO BUCHIANERI Adolescência, Velocidade e Tédio O 2012 Editora Unesp Culiura Acadêmica Praça da Sé, 108 01001-900 - São Paulo - SP Tel.: (0611) 3242-7171 Fax: (Dx 11) 3242-7172 www.ediloraunesp.com.br feuDeditora.unesp.br CIP- Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ B934a Buchianeri, Luís Guilherme Coelho Adolescência, velocidade e tédio / Luís Guilherme Coelho Buchianeri. - São Paulo : Cultura Acadêmica, 2012. 128p. ISBN 978-85-7983-376-2 1. Psicologia do adolescente. 2. Emoções em adolescentes. |. Título. 12-9172. CDD: 155.5 CDU: 159.922.8 041591 Este livro é publicado pelo Programa de Publicações Digitais da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) exver (BEU Aocacin de Edtrhls Uniertatas Associação Brasileira de de América Latina y el Care Editoras Universitárias Ao Plácido que injetou em mim os genes atormentados que buscam o saber. À Maria José que me deu independência. À Isabella que, encolhendo os caminhos que trilhei, segue agora nas malhas das incertezas. Ao Justo que me ensinou o caminho da aprendizagem de desaprender. Sumário Introdução 11 1 2 5 Tédio, depressão e melancolia 17 Mutações e o pós-humano: a construção da subjetividade do sujeito contemporâneo 43 “Trauma contemporâneo: velocidade etédio 67 Adolescência da modernidade à pós-modernidade 77 Adolescência, tédio e contemporaneidade 95 Considerações finais 115 Referências 121 Introdução É consenso que vivemos um período no qual a sociedade e a cul- tura sofrem intensas mudanças de paradigma e de valores, as quais incidem fortemente na subjetividade. Os avanços tecnológicos e seu profundo impacto no cotidiano compõem uma faceta visível das metamorfoses pelas quais a vida passa atualmente — sem dúvi- da, isso faz com que o tempo acelere. O surgimento de computadores cada vez mais velozes faz auto- res como Kurzweil! afirmarem que, por volta de 2042, essa tecno- logia atingirá um estágio de desenvolvimento “mental” igual ao de seu criador e será funcionalmente mais capaz do que o próprio ho- mem, a ponto de torná-lo obsoleto. O físico Luiz Alberto Oliveira, pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, estima que “[...] em 25 anos, os chips de computadores serão milhões de vezes mais poderosos que os atuais, tornando-se comparáveis, em eficiên- cia, a setores do córtex humano” 2 Considerando essas projeções, a dúvida é saber se isso represen- taria ou não um recomeço e se faríamos parte de uma geração que 1 KURZNWEIL, Ray. A era das máquinas espirituais. São Paulo: Aleph, 2007. p.5 OLIVEIRA, L. A. O tempo é de caos? Revista Caros Amigos - Edição Espe- cial: pós-humano, o desconcertante mundo novo. São Paulo: Casa Amarela, n.36, p.17-18, ano XI, 2007. p.17-18 to 14 LUÍS GUILHERME COELHO BUCHIANERI vida, acompanhada por um esvaziamento do sujeito, uma sensação subjetiva a que poderíamos denominar tédio. Na verdade, podemos observar que o tédio tem sido um relato cada vez mais frequente. Antes do advento da modernidade e do romantismo, ele aparecia relacionado aos religiosos — afastado dos afazeres mundanos — e aos nobres, em seu ócio nada criativo. Até então um símbolo de status locado nos espaços sociais privilegiados, o tédio, na cultura contemporânea, espraia-se por diversos setores, por diferentes estratos sociais. Na atualidade, as atitudes de recuo e desligamento dos objetos mundanos, os sentimentos de tristeza e a palidez com relação à vida tendem a ser considerados um tipo de depressão, um dos grandes sintomas do nosso tempo. No entan- to, ao que parece, muito do que se considera depressão pode muito bem constituir manifestações do tédio derivadas das subjetivações da compressão do tempo. Os jovens, enquanto atores formados no cenário da contempo- raneidade, são portadores privilegiados das tendências que aí des- pontam. Sobre eles, incide radicalmente a experiência do tempo dado na atualidade, assim como as possibilidades de elaboração e de resposta à crescente aceleração da vida, entre outras condições que lhes são oferecidas. Neste livro, vamos discutir o modo como as profundas modi- ficações ocorridas em um mundo em constante mudança, no qual predomina a experiência da instantaneidade decorrente da acelera- ção do tempo, agem sobre a formação da subjetividade dos adoles- centes, fazendo que, paradoxalmente, eles vivenciem uma vida de baixa intensidade, desacelerados e entediados. Outro objetivo deste livro, embora secundário, é problematizar a centralidade da depres- são como figura de subjetivação da atualidade. Diante do consenso que existe acerca desse grande sintoma da atualidade, perguntamo- -nos se muito do que é diagnosticado como depressão não seria, de fato, manifestação do tédio. Nesse sentido, procuraremos demons- trar que o tédio sobressai em relação à depressão como a subjetivi- dade típica de um mundo acelerado e volátil. ADOLESCÊNCIA, VELOCIDADE E TÉDIO 15 Nosso percurso se inicia no Capítulo 1, com uma compreen- são do significado de tédio, delimitando seu conceito e diferen- ciando-o dos conceitos de depressão e melancolia. No Capítulo 2, pretendemos estudar o modo como a subjetividade do sujeito contemporâneo está se constituindo, tendo como balizamento o sujeito moderno e o que chamaremos de sujeito pós-moderno. Nes- se capítulo também vamos refletir sobre as mudanças rápidas e profundas que estão ocorrendo nos diversos setores da vida social, as quais alguns autores chamam de mutação. Apesar de não ser o objetivo deste livro, achamos pertinente apresentar uma breve re- flexão sobre o pós-humano, tema intimamente ligado às mutações, à aceleração do tempo e à obsolescência do homem. No Capítulo 3, analisaremos como as transformações ou mutações do mundo con- temporâneo, pós-moderno ou pós-humano, intensificam e aceleram o mundo externo e, paradoxalmente, desaceleram o mundo inter- no; para isso, faremos uma reflexão sobre o sujeito pós-traumático. Já no Capítulo 4 examinaremos as concepções de adolescência que surgem a partir da modernidade e as modificações nela provocadas pelas novas configurações de mundo na atualidade. No Capítulo 5, procuraremos mostrar que o adolescente enfastiado, despotenciali- zado, que não consegue acompanhar o ritmo frenético e acelerado do mundo atual, parece ser um fenômeno globalizado, e não apenas circunscrito a determinadas regiões do planeta. Por fim, nas Con- siderações finais, buscaremos salientar as estreitas conexões entre tédio e velocidade no mundo contemporâneo. ADOLESCÊNCIA, VELOCIDADE E TÉDIO 19 da fala, estado de apatia e letargia seguida de exaltação, além de uma atração irresistível pela morte, pelas ruínas, pela nostalgia e pelo luto. A melancolia poderia também diluir-se com outros humores e caminhar de mãos dadas com a euforia, a alegria e o riso do humor sanguíneo, com a inércia do humor fleumático e com o humor rai- voso, colérico, e, por meio dessas misturas, portanto, ele afirmaria sua presença em todas as formas de expressão humana. Daí nasce- ria a ideia da alternância cíclica entre um estado e outro (mania e depressão), características da nosologia psiquiátrica moderna. É consenso entre os autores que escrevem sobre a depressão e a melancolia que o sentimento depressivo e melancólico relaciona-se à perda de um objeto amado ou a um ideal não alcançado. Rou- dinesco e Plon! descrevem essa relação historicamente, já a partir dos gregos: Desde a descrição de Homero sobre a tristeza de Belerofonte, herói perseguido pelo ódio dos Deuses por ter querido escalar os céus, até a teorização do “espírito melancólico” por Aristóte- les, passando pelo relato mítico de Hipócrates sobre Demócrito, o filósofo “louco” que ria de tudo e dissecava os animais para neles encontrar a causa da melancolia no mundo, essa forma de deploração perpétua sempre foi, ao mesmo tempo, a expressão mais incandescente de uma rebeldia do pensamento e a manifes- tação mais extrema de um desejo de autoaniquilamento, ligado à perda de um ideal. Daí a ideia de Erwin Panofsky (1892-1968) de que a história da melancolia seria a história de uma transferência permanente entre o campo da doença e do espírito que contaria a intensa e sombria irradiação do sujeito da civilização às voltas com a defi: ência de seu desejo.? 1 ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.505 2 Ibid., p.505 (grifo do autor) 20 Luís GUILHERME COELHO BUCHIANERI Segundo Roudinesco e Plon,º cada época construiu sua pró- pria representação da doença. Em 1621, o filósofo Robert Burton (1577-1640) escreveu Anatomia da melancolia (2011), versão canô- nica de uma nova concepção da melancolia, já introduzida nos costumes; no século XVII, o médico inglês Thomas Willis (1621- -1675) foi o primeiro a abordar a mania da melancolia para defi- nir o ciclo maníaco-depressivo. Desde a Idade Média, com efeito, o termo tornou-se sinônimo de uma tristeza sem causa, e a antiga doutrina dos humores foi progressivamente substituída por uma causalidade existencial. No fim do século XVIII, às vésperas da Revolução Francesa, a melancolia surgiu como o grande sintoma do tédio; entretanto, com a instauração do saber psiquiátrico, no século XIX, a melancolia come- çou a se distanciar dos conceitos relacionados ao tédio e increveu-se na nosologia psiquiátrica, através de Jean-Étienne Esquirol (1722- -1840), Jean-Pierre Falret(1794-1870)e Emil Kraepelin (1856-1926), que, no final do século XIX, definiu a psicose maníaco-depressiva. De acordo com Roudinesco e Plon,* Sigmund Freud renunciou à abordagem da mania da depressão descrita na nosologia psiquiá- trica, preferindo revigorar a antiga definição de melancolia — não como doença, mas como um destino subjetivo. Ele abordou a me- lancolia do luto e, no texto Luto e melancolia,” fez do termo melan- colia uma forma patológica de luto. Para ele, no trabalho de luto, o sujeito consegue desligar-se progressivamente do objeto perdido; na melancolia, ao contrário, ele se supõe culpado pela morte ocorri- da, nega a si mesmo e julga-se possuído pelo morto ou pela doença que acarretou sua morte. “Em suma, o “eu” identifica-se com o ob- jeto perdido a ponto de ele mesmo se perder no desespero infinito de um nada irremediável”. 3 Ibid. p.505 4 Ibid. p.505 5 FREUD,S. Luto e melancolia. Rio de Janeiro: Imago, 2006. Edição standard das obras completas de Sigmund Freud. v. XIV. p.268-291 6 — ROUDINESCO; PLON, p.507. ADOLESCÊNCIA, VELOCIDADE E TÉDIO 21 Roudinesco e Plon utilizam o termo depressão como uma for - ma atenuada da melancolia, afirmando que, no final do século XX, a depressão “[...] parece ser a marca de um fracasso do pa- radigma da revolta, num mundo desprovido de ideais e domina- do por uma poderosa tecnologia farmacológica, muito eficaz no plano terapêutico”.” O paradigma da revolta a que se referem Roudinesco e Plon seria uma espécie de equivalente da histeria, definida por Jean Martin Charcot como uma revolta do corpo feminino à opressão patriarcal. A depressão estaria, então, rela- cionada à perda de um ideal em um mundo desprovido de uto- pias, aproximando-se talvez do conceito de tédio. Como é de conhecimento geral, tanto o luto quanto a melanco- lia são estados responsivos às perdas; todavia, para a Psicanálise, há um dado invariável na estrutura melancólica descrita por Freud, que reside na incapacidade permanente do sujeito, dominado pela culpa, de elaborar o luto pelo objeto perdido. Ao estudar as ideias de Freud, Teixeira” resume com clareza os conceitos psicanalíticos de luto e a melancolia. No luto, diante da perda de algo ou de alguém que amamos e admiramos, instala-se um processo de penoso sofrimento, e é necessário um tempo de ela- boração psíquica da perda, um tempo para a pessoa desvincular-se psiquicamente do objeto amoroso. Em princípio, há um sentimento de empobrecimento do mundo, uma sensação de vazio. Esse tem- po de elaboração é necessário para o desinvestimento psíquico do objeto amado. É necessário que o investimento libidinal seja reti- rado do objeto em questão e direcionado para outro. O trabalho de luto é lento, gradual e penoso, pois é necessário aceitar que o objeto amado deixou de existir na realidade, e a retirada dos investimen- tos pulsionais das representações ligadas àquele objeto é necessária para a elaboração do luto. Quando a realidade prevalece, o sujeito 7 Ibid. p.507 8 — TEIXEIRA,M. A. R.A concepção freudiana da melancolia. Elementos para uma metapsicologia dos estados de mente melancólicos. 261f. Dissertação (Mes- trado em Psicologia) - Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2007. p.52. 24 LUÍS GUILHERME COELHO BUCHIANERI sofrimento que julga ter causado no objeto amado — a reparação melancólica. No extremo das vicissitudes da melancolia estaria a disposição suicida. Alguns autores, como Elias M. da Rocha Barros, Aliri Dan- tas Jr. e Elizabeth. L. da Rocha Barros, procuram um elo entre a Psiquiatria e a Psicanálise e, dentro da perspectiva psicanalítica, definem a depressão como o resultado final da dificuldade de ela- boração da ansiedade depressiva pelo aparelho psíquico. Inicia-se aqui uma polêmica, pois esses autores relacionam a depressão ao es- tado esquizoparanoide de Melanie Klein. Eles se baseiam nas duas principais correntes que predominam nas concepções contemporá- neas da Psicanálise em relação à teoria da depressão: a concepção freudiana ea concepção kleiniana. Com base nessas correntes, tais autores tentam descrever o que seria um processo marcado por uma forma peculiar de organização da experiência emocional, em que é central a dificuldade de atribuir significado às angústias relacionadas à perda, num sentido amplo, incapacitando o self de preservar a integridade de suas relações e sua capacidade de reinvestimento. Na perspectiva freudiana, eles relacionam a depressão com os aspectos descritos por Freud, já ci- tados. Na perspectiva kleiniana, afirmam que as relações de objeto são definidas por duas posições: a posição esquizoparanoide e a po- sição depressiva. A posição esquizoparanoide caracteriza-se por uma ansieda- de relativa à sobrevivência do objeto diante de perseguidores que o ameaçam, e as defesas usadas são de caráter “esquizoide”, seja cindindo e projetando, para manter os “objetos bons” distantes e a salvo dos “objetos maus” (destrutivos), seja negando a persecuto- riedade, por meio de um processo de destituição de afetos. A posição depressiva caracteriza-se por uma ansiedade relativa a uma preocupação com a sobrevivência dos objetos de amor à pró- pria agressividade. Nessa posição, são produzidos “afetos depres- 15 BARROS, DANTAS e BARROS apud BENY, L. Depressão no ciclo da vida. Porto Alegre: Artmed, 2000. p.92 ADOLESCÊNCIA, VELOCIDADE E TÉDIO 25 sivos” que ainda não constituem, de nenhum modo, a depressão definida pela Psiquiatria. A depressão, sob o prisma psiquiátrico, seria a dificuldade crônica de elaboração desses “afetos depressi- vos” que mantêm o indivíduo permanentemente na posição esqui- zoparanoide, por usar defesas que têm por objetivo eliminar a dor mental, projetando-a depois de cindir os afetos correspondentes. Portanto, as denominações esquizoparanoide e depressiva não se referem às concepções psiquiátricas, já que a doença depressiva definida na clínica de Psiquiatria é típica de fenômenos esquizopa- ranoides e não de fenômenos depressivos. A Psiquiatria estabelece uma diferenciação entre as definições de depressão e de melancolia. Para ela, o termo depressão assume diferentes formas; pode significar desde um estado afetivo normal, um sintoma, uma síndrome, até uma doença depressiva. Já a me- lancolia distingue-se da depressão não somente pela intensidade de seus sintomas, como pontuam diversos autores da Psicologia e da Psicanálise, mas também por conter em sua gênese um forte cárater biológico, ligado à resposta terapêutica medicamentosa, a fatores genéticos, alterações bioquímicas e morfológicas cerebrais. Diz-se, frequentemente, que a pessoa está deprimida por causa da perda de um ente querido, de um emprego ou por qualquer outra situação que produza tristeza. Na maioria das vezes, é um senti- mento compreensível, normal, um estado de tristeza que não será foco de intervenção médica profunda. Enquanto sintoma, a depressão pode surgir nos mais variados quadros clínicos, nas diferentes especialidades médicas, como, por exemplo, na Clínica Médica, em decorrência de doença cardíaca ou diabetes; na Neurologia, em razão de neuropatias ou demências; na Psiquiatria, como resultado de esquizofrenias ou de alcoolismo, ou em resposta a situações estressantes da vida cotidiana. Seria uma al- teração do humor secundária a uma patologia de base, que tenderia a cessar com a melhora do quadro clínico ou a supressão do fator causador de estresse. A síndrome depressiva pressupõe alterações de humor e uma gama de outros aspectos, incluindo alterações cognitivas, psico- 26 LUÍS GUILHERME COELHO BUCHIANERI motoras e vegetativas, como alterações de sono e de apetite, tendo igualmente fatores causais nas patologias clínicas e da vida cotidia- na. Entretanto, não se enquadram nos critérios diagnósticos para depressão maior ou depressão classificada como doença. A depressão como doença encontra-se contemplada nos manuais classificatórios dos transtornos mentais da Associação Norte- - Americana de Psiquiatria (DSM-IV) e da Organização Mundial de Saúde (CID-10). Alguns exemplos são o transtorno depressivo maior, a distimia, a depressão integrante do transtorno afetivo bi- polar Le II, a depressão recorrente, entre outros. A Psiquiatria, na psicopatologia da depressão, recomenda como válida a existência de três sintomas depressivos básicos, os quais dão origem a variadas manifestações de sintomas: o sofri- mento moral (baixa autoestima, sentimento de desvalia), a inibição global (apatia e desinteresse) e o estreitamento vivencial (perda de prazer). A partir das definições de Jean-Pierre Falret (1794-1870), Emil Kraepelin (1856-1926) e Eugen Bleuler (1857-1939), Del Porto! faz uma descrição clínica dos aspectos gerais envolvidos nos con- ceitos de depressão e de melancolia, enumerando e definindo os sin- tomas clínicos, subdividindo-os em sintomas psíquicos, sintomas fisiológicos, evidências comportamentais e alterações dos ritmos circadianos. Pela concretude que os sintomas psíquicos adquirem quando são utilizados na prática médica, ao se referirem a diagnós- ticos da clínica psiquiátrica, resolvemos transcrevê-los aqui: Sintomas psíquicos + Humor depressivo: sensação de tristeza, autodesvalorização e sentimento de culpa. Os pacientes costumam aludir ao sentimento de que tudo lhes parece fútil ou sem real im- portância. Acreditam que perderam, de forma irreversível, a capacidade de sentir alegria ou prazer na vida. Tudo lhes 16 DELPORTOapud LAFER, B; ALMEIDA, O. P; FRÁGUAS JÚNIOR, R.; MIGUEL, E.C. Depressão no ciclo da vida. Porto Alegre: Artmed, 2001. p.20 ADOLESCÊNCIA, VELOCIDADE E TÉDIO 29 mais típico pode ser mascarado por queixas proeminentes de dor crônica (cefaleia, dores vagas no tórax, abdome, om- bros, região lombar etc.). A ansiedade está frequentemente associada. Em idosos, principalmente, as queixas de caráter hipocondríaco costumam ser muito comuns. Alterações dos ritmos circadianos Muitas funções circadianas encontram-se alteradas nos qua- dros de depressão, a exemplo da regulação da temperatura e do ritmo de produção do cortisol. Entre as alterações mais cons- pícuas estão aquelas relacionadas ao ritmo do sono. Segundo Akiskal, cerca de dois terços dos pacientes deprimidos têm di- minuição da latência para o início do sono REM (Rapid Eyes Movements). As formas ditas melancólicas da depressão carac- terizam-se, entre outros aspectos, pela piora matinal e pelo des- pertar precoce pela manhã. Melancolia O termo melancolia tem sido empregado, nas atuais classifica- ções psiquiátricas (como o DSM IV), para designar o subtipo anteriormente chamado de endógeno, vital, biológico, somático ou endogenomorfo de depressão. Considerado por muitos psiquiatras o “protótipo” ou síndrome nuclear das depressões, para eles, “a melancolia, ao contrário de outras formas de depressão, parece constituir-se em um grupo mais homogêneo, que responde me- hor a tratamentos biológicos e para o qual os fatores genéticos seriam os principais determinantes”. 7 Podemos notar que, na nosologia psiquiátrica, inserem-se os conceitos psicanalíticos associados à perda do objeto e à culpabi- lização, mas eles se esvaecem de significado, permanecendo como coadjuvantes no desencadeamento dos sintomas ligados à sensação subjetiva do estado depressivo e melancólico, adquirindo conteú- dos próprios de observação fenomenológica e biológica, com um continuum de sintomas que trafegam nos três vértices de um triân- 17 Ibid. p.21-23 30 LUÍS GUILHERME COELHO BUCHIANERI gulo: o tédio, que procuraremos definir nas páginas posteriores, o luto ea melancolia. Ao escrever sobre a depressão na contemporaneidade, fazendo uma crítica à medicalização na prática psiquiátrica e pontuando a importân- cia do estado depressivo para a reflexão e a criatividade, Kehl'* não se preocupa em diferenciar os conceitos de tédio, depressão e melancolia, fundindo conceitos filosóficos, psicanalíticos e psiquiátricos. Em seu texto, publicado no livro Mutações — ensaios sobre as novas configura- ções do mundo, º Kehl faz uma clara abordagem da depressão através dos conceitos psicanalíticos utilizados na construção da subjetividade ao afirmar que a “[...] a depressão é uma marca humana, porque remete à experiência inaugural do psiquismo”? e descreve o vazio das fases mais primitivas da formação do psiquismo como um núcleo de depressão: O psiquismo, acontecimento que acompanha toda a vida huma- na sem se localizar em nenhum lugar do corpo, resulta de um tra- balho de representação contra um fundo vazio, que poderíamos chamar, metaforicamente, de um núcleo de depressão. O núcleo de nada, de onde há de emergir um sujeito capaz de simbolizar o a objeto que lhe falta. Nesse mesmo texto, ao fazer uma crítica ao uso de antidepres- sivos e à indústria farmacêutica, aborda o conceito de depressão por meio do conceito de spleen: A depressão, forma contemporânea de spleen, tão em voga em nos- sosdias como foi a histeria nostemposde Freud, é uma expressãoda dor psíquica que desafia todas as pretensões da ciência de progra- mar a vida humana na direção de uma otimização de resultados.” 18 KEHLapud NOVAES, 2008, p.295-297 19 Ibid., p.297 20 Ibid., p.295 1º Ibid. p.295 22 Ibid., p.295 ADOLESCÊNCIA, VELOCIDADE E TÉDIO 31 Em outra publicação, a autora define spleen como uma aproxi- mação da melancolia renascentista: A melancolia renascentista, é importante dizer, tem menos pa- rentesco com a melancolia freudiana do que com o spleen que nos transmitem certos cães e certas gentes — suspirosos, pensativos, re- signados à espera de um afago, de uma ordem ou sabe-se lá o quê. À espera de um sinal do “outro” que lhe indique o desejo a que ele possa responder.” Como vimos, Kehl assinala a importância da depressão como núcleo da formação do psiquismo, também correlacionando a de- pressão contemporânea com o conceito de spleen, que seria a me- lancolia renascentista; assim, afasta-se dos conceitos psiquiátricos de depressão. Donald W. Winnicott (1896-1971), médico pediatra e psicana- lista britânico que, como podemos ver em seus textos iniciais, come- çou sua formação psicanalítica com uma forte influência Kleiniana, posteriormente distancia -se dessa linguagem e desenvolve uma que lhe seja própria, original, sempre afirmando ser a metapsicologia freudiana a principal inspiradora de seus conceitos. Ele utiliza a pa- lavra depressão nos mais variados contextos, com diversos enfoques e, muitas vezes, de maneira contraditória. As definições cobrem um vasto espectro, que vão desde a depressão saudável, como parte do desenvolvimento emocional normal, até a depressão como uma desordem patológica e afetiva, associada à interrupção do desenvol- vimento emocional. Esses diferentes e contraditórios enfoques são assinalados por Jam Abram: [...] exemplo disso é seu trabalho de 1954, The Depressive Position in Normal Emotional Development, onde afirma com muita clareza que a expressão posição depressiva está incorreta, já que depressiva implica que o desenvolvimento saudável relaciona-se a uma “de- sordem de humor” que não toma parte do desenvolvimento nor- 3 KEHL,M. R.O tempo e o cão. São Paulo: Boitempo, 2009. p.17 12 34 LUÍS GUILHERME COELHO BUCHIANERI que muda é a intensidade ou a predominância de certos proces- sos. A própria depressão e a melancolia podem ser tomadas como exemplos. As duas envolvem processos depressivos e melancó- licos. A experiência de perda está em pauta nesses processos: nos primeiros, como a capacidade de sentir perda; nos segundos, como a capacidade de autoacusar-se pela perda. Os processos depressivos e melancólicos são fundamentais e imprescindíveis para a existência humana. Os processos depressivos possibilitam o reconhecimento da separação entre sujeito e objeto, da depen- dência em relação ao mundo externo e aos outros, a reflexão so- bre si mesmo e sobre o mundo, além de tantas outras realizações anímicas valiosas. Os processos subjacentes à melancolia, por sua vez, propiciam um rigoroso autoexame; despertam sentimentos éticos e morais, na medida em que predispõem à avaliação das consequências das ações e dos desejos do sujeito; contribuem para a convivência social ao regular erefrear impulsões desagregadoras e estimular condutas reparadoras. Por conseguinte, não se trata de procurar uma “doença psíqui- ca” numa presumível deformidade mental, mas de entender como os mesmos processos podem gerar resultados diferentes, sobretu- do quando são intensificados e tornam-se hegemônicos. Em ou- tras palavras, poderíamos dizer que, segundo a lógica dialética, é preciso procurar entender como a quantidade se transforma em qualidade. Não bastasse a confusão criada em torno dos conceitos de depressão e melancolia, ainda resta uma nuvem maior, que inclui o conceito de tédio. À semelhança da depressão e da melancolia, ele também traz consigo manifestações comuns, como a apatia, o can- saço em relação à vida, o desinteresse e outras condutas de retração no que se refere ao mundo. Resta saber se é mais uma peripécia ter- minológica, uma variante da depressão ou da melancolia, ou, então, um fenômeno que mantém com ambos semelhanças de expressão, mas diferenças substanciais quanto a processos psicológicos e sub- Jetivações de um tempo marcadamente diferente daqueles que fus- tigaram suas companheiras próximas. ADOLESCÊNCIA, VELOCIDADE E TÉDIO 35 Tédio “Não vivo, mal vegeto, duro apenas, Vazio dos sentidos porque existo; Não tenho infelizmente sequer penas E o meumal é ser alheio (alheio Cristo) Nestas horas doridas e serenas Completamente consciente disto.” (Fernando Pessoa. “Tédio")* Não parece haver uma sintomatologia específica para o sen- timento de tédio, por isso é difícil distinguir precisamente entre tantos estados dessa condição, mas poderíamos ressaltar que ele abrange tudo, desde um ligeiro desconforto até uma profunda per- da de ânimo e de sentidos para a vida. É interessante notar o pouco interesse da Psicologia, da Psi- canálise e da Psiquiatria no estudo do tédio, talvez por faltar-lhe a gravidade da depressão e da melancolia, que necessitam de uma abordagem terapêutica, seja ela psicoterápica, seja medicamentosa. O interesse fica restrito a outras áreas das Ciências Humanas e So- ciais, como a Filosofia e a Sociologia. Abbagnano,” ao descrever o tédio, afirma que Giacomo Leopardi via nessa condição a experiência da nulidade de tudo o que existe, uma falta de intensidade. O tédio assim se defini- ria, para Leopardi: Nenhum mal, nenhuma dor particular (aliás, a ideia e a natureza do tédio excluem a presença de qualquer mal ou dor particular), mas a simples vida plenamente sentida, experimentada, conheci- da, plenamente presente para o indivíduo, e a ocupá-lo.” 25 PESSOA, F. Novas poesias inéditas. Lisboa: Ática, 1973. p.465. 26 ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p.1.109. 27 Ibid., p.1.109 36 LUÍS GUILHERME COELHO BUCHIANERI Nesse sentido, segundo Abbagnano, * o tédio está bem próximo da náusea a que se refere Jean-Paul Sartre, que é a indiferença em relação às coisas em sua totalidade. Svendsen? destaca que, antes do Romantismo, o tédio não era objeto de reflexão em extensão considerável — parece ter sido um fenômeno marginal, reservado aos monges e à nobreza. Du- rante muito tempo, foi símbolo de status, como prerrogativa dos altos escalões da sociedade, uma vez que esses eram os únicos que possuíam a base material necessária para ele. Com o advento do Romantismo, ele foi, por assim dizer, democratizado e encontrou amplas formas de expressão. À medida que se espalhou por todos os estratos sociais, o fenômeno perdeu sua exclusividade. Para Svendsen,* o tédio da modernidade tem amplo efeito e pode ser encarado como um fenômeno relevante para praticamente todos os habitantes do mundo ocidental; segundo ele, o que muitos chamam de depressão não é senão um sentimento de tédio em rela- ção à vida cotidiana: Afirma-se, muitas vezes, que cerca de 10% das pessoas sofrem de depressão no curso da vida. Qual é a diferença entre tédio profun- do e depressão? Meu palpite é que há considerável superposição. Eu diria também que quase 100% da população sofre de tédio alguma vezao longo da vida. O tédio não pode ser compreendido simplesmente como idiossincrasia pessoal. É um fenômeno am- plo demais para ser satisfatoriamente explicado dessa maneira. Não é apenas um estado mental interior; é também uma carac- terística do mundo, pois participamos de práticas sociais que estão saturadas de tédio.” Ele enfatiza que é perfeitamente possível estar entediado sem ter consciência disso, sem ser capaz de apontar qualquer razão ou 28 Ibid., p.1.109 29 SVENDSEN, L. Filosofia do tédio. Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 2006. p.22. 30 Ibid., p.22 31 Ibid., p.16 ADOLESCÊNCIA, VELOCIDADE E TÉDIO 39 da morte incerta, a gravata enforca o sapato aperta, o país exporta E na minha porta, ninguém quer ver Uma sombra morta, pois é, pra quê? Que rapaz é esse, que estranho canto Seu rosto é santo, seu canto é tudo Saiu do nada, da dor fingida desceu a estrada, subiu na vida A menina aflita ele não quer ver A guitarra excita, pois é, pra quê? A fome, a doença, o esporte, a gincana A praia compensa o trabalho, a semana O chope, o cinema, o amor que atenua O tiro no peito, o sangue na rua A fome, a doença, não sei mais por que Que noite, que lua, meu bem, pra quê? O patrão sustenta o café, o almoço O jornal comenta, um rapaz tão moço O calor aumenta, a família cresce O cientista inventa uma flor que parece A razão mais segura pra ninguém saber De outra flor que tortura, pois é pra quê? No fim do mundo há um tesouro Quem for primeiro carrega o ouro A vida passa no meu cigarro Quem tem mais pressa que arranje um carro Pra andar ligeiro, sem ter por que Sem ter pra onde, pois é, pra quê? Na composição, Miller contrasta a velocidade e o excesso de estímulos com a lentificação, o vazio, o desinteresse por uma vida despotencializada — enfim, com o tédio —, finalizando as paradoxais frases coma emblemática e entediante pergunta: “Pois é, pra quê?”. Vimos, desse modo, que o tédio tem certa complexidade e ex- tensão. Se, de um lado, a lentidão, a calmaria podem incitar a rapi- dez e a euforia, de outro, a aceleração pode promover a paralisação. Entretanto, uma situação especial de tédio que se faz presente nas 40 Luís GUILHERME COELHO BUCHIANERI relações afetivas da contemporaneidade é o aborrecimento diante do “outro”, ou seja, um mundo tão facilitador de contatos acaba promovendo um enfastio pelo excesso da presença do “outro”. O ser humano parece ser traído por aquilo que lhe é mais essen- cial. Sua constituição singular lhe dá a capacidade de pensar, sim- bolizar, agir de maneira criativa e transformadora, modificar a si próprio e o ambiente em que vive, enfim, dá-lhe a possibilidade de fazer história. No amplo espectro das possibilidades das realizações humanas está justamente a construção da sociedade, do seu mundo, a edificação do tipo de associatividade, a criação de formas de rela- cionamento entre os próprios homens — isso tudo é essencial para a sobrevivência da humanidade e para seus destinos. Se o homem, porém, se diferencia substancialmente dos demais seres vivos por sua capacidade de fazer história, podendo condu- zir seu destino, ele continua encontrando sérias dificuldades para concluir uma das principais obras que podem garantir a sustenta- bilidade de seu mundo e sua sobrevivência: o arranjo do coletivo, a articulação e a sintonia entre os indivíduos. Embora possua as condições e os recursos necessários para rea- lizar essa tarefa primeira da existência humana — a organização do coletivo —, continua falhando nesse projeto ou encontrando sérias dificuldades para lapidar a convivência e a coexistência em qual- quer dimensão, desde os relacionamentos dualistas até aqueles que envolvem contingentes enormes, como o relacionamento entre po- vos e nações. Paradoxalmente, no caso da humanidade, a associa- tividade e a convivência passam a significar ameaça e a despertar temor, mais do que proteção, confiança e potência. No universo humano, a presença do “outro” é problemática, e, pela inexistência de padrões de relacionamento instintivos e her- dados, o homem precisa construí-los. O psiquismo se constrói num permanente trabalho de estabelecimento de laços que susten- tam o sujeito perante o “outro” e a si mesmo. Não obstante, para a construção desses laços afetivos que alicerçam a construção da subjetividade humana, é fundamental dispor de tempo e espaço. A contração do espaço e a aceleração do tempo, na atualidade, pro- ADOLESCÊNCIA, VELOCIDADE E TÉDIO 41 movem fissuras importantes na constituição do sujeito, levando- -o ao encapsulamento narcísico e ao embotamento afetivo, sendo que qualquer situação que venha a promover uma possibilidade de rompimento dessa bolha egossintônica poderá mobilizar defesas mais primitivas. Sob esse viés, a presença do “outro” passa a ser, a princípio, ameaçadora e, posteriormente, entendiante, como já as- sinalava Simmel,* ao analisar a nascente cidade moderna depois do século XIX. Simmel enfatiza as diferenças entre a construção da subjetivida- de e a produção de sentidos nas grandes cidades, contrastando-as com as das pequenas cidades. Ele afirma ainda que a intensificação da vida nervosa, nas grandes cidades, resulta na mudança rápida e ininterrupta de impressões interiores e exteriores. A velocidade e as variedades da vida econômica, profissional e social, a intensidade e a alternância de estímulos, assim como uma vida desmedida de pra- zeres, levam o indivíduo a assumir um caráter blasé: [...] porque excita os nervos por muito tempo em suas reações mais fortes, até que por fim eles não possuem mais nenhuma reação, também as impressões inofensivas, mediante a rapidez e antagonismo de sua mudança, forçam os nervos a respostas tão violentas, irrompem de modo tão brutal de lá para cá, que extraem dos nervos sua última reserva de forças e, como eles permanecem no mesmo meio, não têm tempo de acumular uma nova. A incapacidade, que assim se origina, de reagir aos novos estímulos com uma energia que lhes seja adequada é precisamen- te aquele caráter blasé, que na verdade se vê em todo filho da ci- dade grande...” Simmel sustenta que a essência do caráter blasé é o embotamen- to diante da distinção das coisas, mas não no sentido de que elas não 36 SIMMEL, G. As grandes cidades e a vida de espírito. [Texto original: Die Grofstâdte und das Geistesleben]. In: Gesamtausgabe, v.7. Trad. Leopoldo Waizbort. Frankfurt: M. Suhrkamp, 1995 37 SIMMEL, 1995, p.581 44 LUÍS GUILHERME COELHO BUCHIANERI e político. Nos séculos XVIL e XVIII, tal mudança foi acompanha- da pelo advento da ciência e da filosofia modernas, que tiveram Newton e Descartes como figuras mestras. Configuraram-se, nesse período, os ideários da Revolução Francesa de 1779 e o pensamento Iluminista, com Spinoza, Descartes, Kant e Comte, em oposição ao pensamento teológico da Idade Média. Esgotaram-se as con- cepções teocentristas características da época medieval, que foram substituídas por uma nova visão antropocêntrica de mundo. Isso corresponde à vigência das concepções de tempo e história como progressão linear, que nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento que não são pautadas por seus princípios epistemoló- gicos e suas regras metodológicas. Esses princípios foram desenvolvidos, inicialmente, no domínio das ciências naturais, e, no século XIX, estenderam-se para as de- mais ciências, sob a influência do positivismo de Augusto Comte. A partir de então, pode-se falar de um modelo global de racionali- dade científica em que só há duas formas de conhecimento cientí- fico: as disciplinas formais da lógica e da matemática e as ciências empíricas. De acordo com o modelo mecanicista das ciências na- turais, as ciências humanas e sociais nasceram para ser empíricas. No paradigma moderno, a verdade somente pode ser confir- mada pelos olhos da razão — ela precisa ser vista, palpada, medida. O rigor científico afere-se pelo rigor das medições. As ideias que presidem à observação e à experimentação são claras e simples, e por meio delas pode-se ascender a um conhecimento mais profun- do e mais rigoroso da natureza. Trata-se do mecanicismo da física newtoniana, em que o mundo é matéria e o passado repete-se no futuro. São ideias de ordem e de estabilidade, em que tudo se pode comprovar por meio das leis da Física e da Matemática. Desse lugar central da Matemática, Santos? assinala duas consequências principais: 1) conhecer significa quantificar, e o rigor científico afere-se pelo rigor das medições, desqualificando as qua- SANTOS, B. S. Um discurso sobre as ciências. 12. ed. Porto: Afrontamento, 1987, p.142 ADOLESCÊNCIA, VELOCIDADE E TÉDIO 45 lidades intrínsecas do objeto e relegando tudo o que não possa ser quantificável, considerando-o irrelevante; 2) o método científico assenta-se na redução da complexidade. Conhecer significa dividir e classificar, para depois poder determinar relações sistemáticas entre o que se separou. Todavia, conforme Kuhn,” se a ciência é a reunião de fatos, teo- rias e métodos sintetizados nos textos atuais, logo, os cientistas são homens que, com ou sem sucesso, empenharam-se para contribuir com um ou outro elemento para essa constelação específica. Enten- de, por conseguinte, que a ciência moderna não se desenvolveu por acumulação de conhecimentos, mas por meio de um processo de adição de conhecimento e técnica adequados aos paradigmas domi- nantes, e inibição e supressão daquilo que os cientistas consideram erro ou superstição. As teorias obsoletas não são acientíficas, em princípio, somente porque foram descartadas. O estudo atual da ciência exige o regis- tro tanto do acúmulo de conhecimentos adquiridos pela ciência mo- derna como dos obstáculos que inibiram seu desenvolvimento. É a isso que Kuhn denomina “revoluções científicas”, que são [...] os episódios extraordinários nos quais ocorre uma alteração de compromissos profissionais. As revoluções científicas são os complementos desintegradores da tradição à qual a atividade da ciência normal está ligada.* Cada revolução científica altera a estrutura histórica da comu- nidade que a experimenta, de sorte que essa mudança de perspec- tiva afeta a estrutura das publicações de pesquisa e dos manuais do período pós-revolucionário. A ciência não se limita a crescer; ela se transforma. A ciência não só evolui progressiva e seletivamente, mas também revolucionariamente nos níveis dos princípios de explicação ou 3 KUHN, 1998, p.20, 4 Ibid, p.20 46 LUÍS GUILHERME COELHO BUCHIANERI paradigmas que comandam nossa visão do mundo; não é a visão do mundo que se alarga mais, masa própria estrutura da visão do mundo que se transforma. A crise do modelo de racionalidade, inserido no paradigma mo- derno, iniciou-se justamente nas áreas do conhecimento que mais a solidificavam: as ciências naturais. A revolução científica na Fí- sica, com Einstein e a teoria da relatividade e da simultaneidade; na Mecânica Quântica, com o princípio da incerteza de Heisenberg, que demonstra a interferência estrutural do sujeito no objeto ob- servado; as transformações que estão se operando na Biociência, na Neurociência e na Engenharia Genética; as reviravoltas nos procedimentos metodológicos e nos processos de legitimação da ciência; a velocidade das mutações econômicas e políticas; as mu- danças de paradigmas na produção de imagens e sons por meio da informática; as profundas mudanças sociais e culturais — tudo isso nos mostra a fragilidade, a crise e até mesmo a superação do para- digma moderno. No entanto, apesar das evidências de transformações profundas nas matrizes econômicas, sociopolíticas, culturais e psicológicas da modernidade, ainda restam dúvidas e grandes divergências sobre a avaliação da extensão de tais transformações, sobretudo no que diz respeito a tomá-las como sinal do advento de uma nova era. É possível que estejamos vivendo um novo tempo, em que se mudam paradigmas e conceitos tanto da ciência quanto de outras esferas da vida, uma época de esgotamento de tudo o que significa- va moderno, ou seja, a crença no valor do novo, no positivismo cien- tífico, nas utopias idealistas. A essa nova época alguns filósofos e sociólogos, como Baudrillard, Bauman, Giddens, Harvey, Lyotard, Jameson, Huyssens, entre outros, chamam de pós-moderna e pós- -modernidade. Não obstante, há também os que preferem não utilizar essa designação, como Edgar Morin, que, se, de um lado, concorda em que há uma crise nos paradigmas da modernidade, de 5 KUHN apud MORIN, E. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996. p.149. ADOLESCÊNCIA, VELOCIDADE E TÉDIO 49 caos, a geometria dos fractais); o ressurgimento de preocupação na ética, na política e antropologia, com a validade e a dignidade do outro.” A exaltação da diferença, a promoção da mixagem e a renúncia à postura de controle absoluto do ideário pós-moderno confronta- ram-se com o ideário moderno de ordem e pureza, que influenciou profundamente a ciência, a política e o cotidiano. Ordem e pure- za, segundo Bauman, 2 foram dois valores-chave da modernidade, amplamente espraiados e sustentadores das grandes realizações e utopias desse tempo. Ainda que a modernidade tenha surgido apre- goando a revolução, a ruptura com o antigo e a exaltação do novo, visando soterrar as estruturas econômicas, políticas e ideológicas anteriores, acabou impondo uma nova ordem autoproclamada como solução final para os problemas do mundo e da humanidade. Enfim, a “liberdade, a ordem e o progresso”, alavancados pela ciên- cia, realizariam o sonho de felicidade. Tratava-se, portanto, de reorganizar o mundo, colocando tudo no seu devido lugar, com mapeamentos precisos de tempo e espaço. À cronometria e a geometria passaram a imperar, delimitando fron- teiras rígidas e criando lugares específicos e momentos apropria- dos, sem deixar escapar de categorizações e classificações qualquer elemento da natureza ou da mundaneidade. Foi o período áureo das instituições (hospitais, presídios, manicômios, escolas, família nuclear, fábricas, sindicatos e tantas outras), cujo propósito era en- caixar cada coisa em seu lugar e obter o controle e a eficiência do funcionamento da nova ordem. A obsessão pela ordem trouxe como correlativo o expurgo da sujeira. O que não estivesse encaixado em algum lugar, manchando a pureza pretendida, deveria ser varrido para algum canto, para evitar qualquer possibilidade de desarran- jo ou produção de desordem. As medidas higienistas e profiláticas afloraram nesse período e foram amplamente aplicadas no campo 1H Ibid,po123 12 BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p.15 50 LUÍS GUILHERME COELHO BUCHIANERI da saúde, da educação e da política. Grandes utopias sociais desse período, como o nazismo e o comunismo, cada qual a seu modo, alimentaram-se desse sonho de pureza, imaginando uma sociedade livre das pragas que julgavam corroer o mundo. A ciência moderna, invadida pelo ideário de ordem e pureza, não poupou esforços no sentido de procurar medir, classificar, ordenar, isolar elementos perturbadores, desfazer o caos, “descobrir” leis e princípios de funcionamento das coisas, mapear toda a cadeia cau- sal que regeria o mundo, e assim por diante. Ela própria seguiu os preceitos desse tempo, organizando-se rigidamente em áreas de co- nhecimento, disciplinas, especialidades, correntes teóricas, escolas e muitas outras segmentações. O purismo científico, dentre outras tantas manifestações, fez-se presente — como ainda ocorre — na rígi- da adesão a uma escola de pensamento ou teoria, não comportando desvios ou heresias. Por exemplo, a própria Psicanálise e Freud le- varam às últimas consequências o ideal de pureza. Freud expulsava da Psicanálise todos os que via como hereges — os impuros. O sonho messiânico de ordem, pureza e racionalidade técnica, como caminho seguro da humanidade rumo à felicidade, porém, está mostrando sua inviabilidade. A realidade está se revelando mais emaranhada, instável, caótica e embrenhada no próprio homem do que previam o reducionismo e o objetivismo da ciência moderna. A acumulação flexível do capitalismo atual e a compressão tempo- -espaço, conforme Harvey, forçam processos de mobilidade cada vez maiores, inviabilizando práticas concentradoras, verticalizado- ras, sedentárias e segregadoras típicas da modernidade clássica. De acordo com Justo, o próprio debate sobre se há ou não novos paradigmas despontando — ou seja, se há ou não mudanças significativas que possam delimitar outra fase da história — é uma prova dessa dificuldade de compreender os acontecimentos, o fun- cionamento do mundo atual e suas feições: 13 HARVEY, D. A condição pós-moderna. 17 ed. São Paulo: Loyola, 2008. 14 JUSTO, ].S, Criatividade no mundo contemporâneo. In: VASCONCELOS, M.S. (Org). Criatividade, São Paulo: Moderna, 2001. p.61 ADOLESCÊNCIA, VELOCIDADE E TÉDIO 51 Surgem conceitos e denominações diferentes para designar períodos da história recente. Modernidade, Pós-modernidade, Sociedade Pós-Industrial, Sociedade de Controle, Sociedade do Espetáculo, Sociedade Pós-histórica, e assim por diante. O que exatamente designaria cada uma dessas nomeações? Elas demar- cariam períodos distintos da economia, da organização social, da cultura ou simplesmente seriam modismos passageiros ou expressões de diferentes estágios do capitalismo? Essas são algu- mas questões que alimentam a polêmica, tão candente, que faz muitos fugirem até mesmo do emprego desses termos. Para o autor, a questão principal não é apenas o conjunto de transformações ou mutações que caracteriza a contemporaneida- de, pois, há muito tempo, o homem descobriu que o Universo, seu mundo e ele mesmo encontram-se em constante mutação. A ques- tão principal é a velocidade com que as mudanças se processam: Nada está inerte, paralisado e eternizado; ao contrário, tudo existe em movimento, em processo de mudança. Portanto, a constatação de que o mundo atual encontra-se em estado de me- tamorfose não traz nenhuma novidade. Porém, é difícil não se deixar tomar por alguma perplexidade diante da velocidade com as quais as mudanças se processam na atualidade. 'º Pela velocidade das transformações, Justo salienta que se tor- na difícil compreender o que se passa no nosso tempo: “[...] e mais difícil ainda é vislumbrar as possibilidades do presente e as perspectivas do futuro. Com efeito, nunca é fácil elaborar uma avaliação crítica de uma situação avassaladoramente presente”. As dificuldades assinaladas por Justo no tocante às definições para estabelecimento de novos conceitos talvez estejam na ten- dência de ainda encararmos a ciência sob o prisma da ciência 15 Ibid., p.60. 16 Ibid., p.59. 17 HARVEY apud JUSTO, 2001, p.60. 54 LUÍS GUILHERME COELHO BUCHIANERI trução da subjetividade na modernidade gasosa ou na pós-moder- nidade, com a vaporização de vínculos decorrentes da aceleração do tempo e da ampliação dos espaços. É preciso aqui fazer novamente alguns esclarecimentos quanto à periodização da História, sempre sujeita a contestações e polêmi- cas. Quanto à diferenciação de períodos distintos dentro da chama- da modernidade, estou me pautando pela proposição de Berman,” que a divide em três momentos. Um primeiro, que iria do século XVI até meados do século XVIII, que ele caracteriza como um período no qual há uma percepção e um sentimento de que gran- des mudanças estão em curso nos planos econômico, político, social e na subjetividade, mas tais mudanças ainda não teriam mostrado plenamente suas feições. Já a segunda metade do século XVII e o século XIX, período chamado por ele de Modernismo, teria marcado um momento de grande ebulição, no qual o homem teria vivido uma experiência de “desmanche”, de derretimento dos sólidos que carac- terizavam seu mundo; e, na sequência, a partir do século XX, período denominado modernização, o homem teria vivido a experiência da modernização do mundo, isto é, uma época de expansão e assenta- mento dos ideários da modernidade e suas instituições. Dessa forma, a modernidade teria desmanchado os sólidos do antigo regime, sobretudo no período do Modernismo, para depois instituir seus próprios sólidos. Por isso, Bauman,? abdicando do conceito de pós-modernidade, enfatizou o retorno ao estado de ligui- dificação na modernidade atual, considerando-o um estado que lhe é típico, mesmo tendo ocorrido um período solidificador, não ha- vendo, por conseguinte, necessidade de cunhar outra denominação para o momento atual vivido pelo homem. De minha parte, não vejo problema na utilização do conceito de pós-modernidade para designar uma diferença substancial dos tem- pos atuais para o tempo da modernidade clássica, especialmente em 24 BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar: aaventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.85 25 BAUMAN,2001, p9. ADOLESCÊNCIA, VELOCIDADE E TÉDIO 55 sua fase de modernização. Ainda que a modernidade, depois deum soluço solidificador, tenha retomado sua verve liquidificadora, é mister reconhecer que os tempos atuais propiciam uma experiência da fluidez e do desmanche do próprio sujeito e do mundo diferente daquela do período do modernismo. Como enfatiza Harvey: Começo com o que parece ser o fato mais espantoso sobre o pós-modernismo: sua total aceitação do efêmero, do fragmen- tário, do descontínuo e do caótico que formavam uma metade do conceito baudelairiano de modernidade. Mas o pós-moder- nismo responde a isso de uma maneira bem particular; ele não tenta transcendê-lo, opor-se a ele e sequer definir os elementos “eternos e imutáveis” que poderiam estar contidos nele, O pós- -modernismo nada, e até se espoja, nas fragmentárias e caóticas correntes da mudança, como se isso fosse tudo o que existisse. Assim, o fato primordial do contemporâneo não é tão somente a compressão tempo-espaço ou a aceleração da vida, mas a incorpo- ração ou a naturalização dessa experiência. Não se trata mais, como sublinha Harvey, de se posicionar diante um acontecimento es- pantoso, até porque ele já não causa qualquer sentimento de estra- nhamento ou de perplexidade. É tratado como um fato, como algo dado e, além disso, como algo precioso que precisa ser cultivado e potencializado. Se as imagens de aceleração, como a célebre cena de um trem projetando-se sobre o público nas primeiras exibições ci- nematográficas em Paris, em 1895, causavam preocupação, temor, desconfiança e reações de susto e vertigem, hoje são rotineiras e le- vadas ao extremo como experiência de gozo. Os chamados esportes radicais mostram bem essa atração pela velocidade, pelo risco, pelo imprevisto, pela incerteza, enfim, pela volatilidade — propriedade dos gasosos. O volúvel é caracterizado pela inconstância, bem à feição da vida hoje — vida que ultrapassa a plasticidade e a mobi- lidade do líquido, que, embora seja capaz de escoar, de abandonar posições estáveis e pontos de fixação, mantém o grau de coesão das 26 HARVEY, 2008. p.49. 56 LUÍS GUILHERME COELHO BUCHIANERI partículas que o compõem, preservando marcas identitárias e certos assentamentos. A vida gasosa é muito mais etérea, elevada, desco- lada de superfícies, desprendida de ancoragens. Nem poderia ser de outra forma, ou melhor, não poderia proceder de outro estado da matéria, que não o gasoso, uma vida cuja aceleração a desprende cada vez mais de espaços determinados, de lugares tais como são definidos por Augé: Se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histó- rico, um espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico definirá um não lu- gar. A hipótese aqui defendida é a de que a supermodernidade é produtora de não lugares, isto é, de espaços que não são em si lugares antropológicos e que, contrariamente à modernidade baudelairiana, não integram os lugares antigos: estes, repertoria- dos, classificados e promovidos a “lugares de memória”, ocupam aí um lugar circunscrito e específico. Um mundo onde se nasce numa clínica e se morre num hospital, onde se multiplicam os pontos de trânsito e as ocupações provisórias (as cadeias de hotéis e os terrenos invadidos, os clubes de férias, os acampa- mentos de refugiados ou a perenidade que aparece), onde se desenvolve uma rede de transportes que são também espaços ha- bitados, um mundo assim prometido à individualidade solitária, à passagem, ao provisório e ao efêmero, propõe ao antropólogo, como aos outros, um objeto novo cujas dimensões inéditas con- vém calcular antes de se perguntar a que olhar ele está sujeito.” A vida produzida nos “não lugares” da atualidade é aquela evapo- rada, à moda da transformação do estado líquido em gasoso. É uma vida em estado de suspensão, que se desprende de territórios, de lu- gares identitários, se eleva da crosta terrestre e se movimenta como se estivesse flutuando no ar. Uma vida “livre, leve e solta”, como se diz quando se quer falar de algo à deriva. 27 AUGÉ,M. Não lugares: introdução aumaantropologiada supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994. p.73-74 ADOLESCÊNCIA, VELOCIDADE E TÉDIO 59 desses cirurgiões reconhecendo como parte de seu corpo os braços mecânicos ligados a um computador conectado à internet. Em edição especial, a revista Caros Amigos” trata de um tema no mínimo instigante: “Pós-humano — O desconcertante mundo novo”. Já no editorial, a revista cita um texto de Max More escrito em 1997: Nos próximos cinquenta anos, a inteligência artificial, a nano- tecnologia, a engenharia genética e outras tecnologias permitirão aos seres humanos transcender as limitações do corpo. O ciclo da vida ultrapassará um século. Nossos sentidos e nossa cognição serão ampliados. Ganharemos maior controle sobre nossas emo- ções e memória. Nossos corpos e cérebros serão envolvidos e se fundirão com o poderio computacional. Usaremos essas tecnolo- gias para redesenhar a nós e nossos filhos em diversas formas de pós-humanidade.** Fundador do Extropy Institute, uma entidade que defende “[...] o uso da tecnologia para melhorar a saúde do homem, aumentar sua inteligência e aperfeiçoar sistemas sociais”,* Max More não estaria otimista demais quanto ao futuro do ser humano? Será que realmente uma nova geração, que se caracterizaria pela velocidade de ação, por meio da ampliação dos sentidos e da cognição, estaria em um desenvolvimento desenfreado? Seria uma evolução necessá- ria para que se possam manipular e controlar máquinas altamente sofisticadas com uma rapidez não somente motora, mas também cognitiva? Se olharmos para o comando de direção de um carro de Fórmula 1, é quase impossível imaginarmos como um jovem piloto pode comandar, ao mesmo tempo, com extrema rapidez e eficiên- cia, uma parafernália de botões, luzes de alerta e comunicações com engenheiros nos boxes. Estaríamos diante da formação de uma ge- 32 MANERA, R. Máquinas comonós? Revista Caros Amigos - Edição Especial: pós-humano, o desconcertante mundo novo. São Paulo: Casa Amarela, n.36, p.5, ano XI, 2007. p.3. 33 Ibid,p3 34 MANERA, R. Onde vamos parar? Revista Caros Amigos - Edição Especial: pós-humano, o desconcertante mundo novo. São Paulo: Casa Amarela, n.36, p.3, ano XI, 2007. 60 Luís GUILHERME COELHO BUCHIANERI ração apta a pilotar naves espaciais e a viver em estações espaci: Seria Max More um visionário? Não há dúvidas de que o tempo vem ganhando velocidade cres- cente. Como destacamos, Raymond Kurzweil” afirma que o com- putador atingirá um estágio de desenvolvimento “mental” igual ao de seu criador e será funcionalmente mais capaz do que o próprio homem, a ponto de torná-lo obsoleto. Ao fazer a estimativa de que os chips de computadores poderão ser milhões de vezes mais pode- rosos que os atuais, Oliveira” salienta também uma artificialização generalizada, produzida pelas três grandes promessas de inovação tecnológica: a robótica (produção de sistemas capazes de comporta- mentos autônomos), a biotecnologia (manipulação de componentes dos seres vivos, incluindo o código genético) e a nanotecnologia (fa- bricação de dispositivos moleculares), que seriam capazes de pro- duzir híbridos de humano e inumano.” À medida que aumenta o poder de manipular objetos em es- cala molecular, a tendência é de haver uma crescente integração entre componentes orgânicos, gerados biologicamente, e compo- nentes eletrônicos, fabricados artificialmente. Sínteses de carbono e de silício, essa fusão se daria por uma real mescla de formas, pela interpenetração entre terminais nervosos orgânicos e semicondu- tores; a perspectiva, por conseguinte, é a de que nosso devir seja nos tornar cyborgs, híbridos de células e chips. Jair Ferreira dos Santos, autor do livro Breve, o pós-humano,* concorda que vivemos hoje uma revolução artificial em queastecno- logias de informação estão redefinindo a natureza humana. “Acabou a revolução natural do homem. A interação maior do ser humano 35 Ibid, ps 36 OLIVEIRA, L. A. O tempo é de caos? Revista Caros Amigos - Edição Especial: pós-humano, o desconcertante mundo novo. São Paulo: Casa Amarela, n.36, p.17-18, ano XI, 2007. p.17. 37 Ibid, p17 38 SANTOS, J. F. Breve, o pós-humano. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2003. p.19. ADOLESCÊNCIA, VELOCIDADE E TÉDIO 61 não é mais com a natureza e sim com as máquinas inteligentes. O que vivemos agora é a revolução artificial do homem [...]”.*º Apesar de afirmar que as linhas de força estão orientando para uma nova era — a era pós-humana —, Santos acredita que a ecologia vá chegar primeiro: “Trata-se do que defino como a 'reanimaliza- ção” do homem, que é o contrário do pós-humano. Se o homem não voltar a ser animal, não haverá saída”. Para Santos,*! vivemos num tempo em que a ficção científica deixou de ser um sinônimo de fantasia para tornar-se cifra de uma nova era: “[...] éa expressão de uma realidade potencial, que é parte de nossa realidade e que se manifesta ao mesmo tempo como ficção da ciência e ciência da ficção”. Para sustentar sua afirmação, cita John More: A ficção científica é o presente, Nós vivemos numa sociedade de ficção científica, e não me refiro apenas à tendência da sociedade de se cercar de aparelhos de alta tecnologia. O que quero dizer é que a projeção no futuro, outrora o território do escritor de ficção cientí- fica, setransformou na modalidade dominante de pensamento. Esta é a influência da ficção científica no pensamento moderno. A aceleração econômica global e, consequentemente, a acelera- ção tecnocientífica promovem uma intensa tecnologização da vida humana e social. Com efeito, vem crescendo nas últimas décadas a percepção de que estamos no limiar de uma nova era, no que concerne ao indi- víduo e à espécie, em virtude do modo como a aceleração econô- mica do capitalismo global engatou na aceleração tecnocientífica, 39 SANTOS, ]. F. Ciência e ficção. Revista Caros Amigos - Edição Especial: pós-humano, o desconcertante mundo novo. São Paulo: Casa Amarela, n.36, p.19, ano XI, 2007. p.19. 40 Ibid., p.20 41 SANTOSapud NOVAES, 2008, p.45 42 Ibid. p.45 64 LUÍS GUILHERME COELHO BUCHIANERI Para Olgária Matos, * desde os séculos XVI e XVII, com o ad- vento da crença moderna num universo infinito, prenuncia-se o fim do cosmos fechado grego e da transcendência medieval. Dissipa- -se a ideia de mundo perfeito de universo finito, proveniente do mundo grego com o conceito de cosmos, limitado em um espaço e tempo fechados, em que cada coisa ocuparia seu lugar, assim como se esvai a ideia — originada na Idade Média — do tempo regido por uma criação divina. Entra em cena o universo infinito, e o limite passa a ser entendido como barreira, como privação. Modernização significa, assim, a passagem de um mundo com regras conhecidas para um mundo instável e incerto. De acordo com Matos, * o tédio é contemporâneo da filosofia do progresso, do pensamento que ba- niu os milagres da Bíblia e das transformações culturais, e da visão de mundo mecanicista de estilo cartesiano: Se a compreensão religiosa grega e escatológica cristã dos fins úl- timos da vida e do Universo, em que são limitados os horizontes de expectativas — o futuro vinculando-se ao passado -, não pre- vinem essas sociedades de disfunções e conflitos, elas não apre- sentam, porém, um mal-estar próprio à modernidade: o tédio e o vazio de sentido não parecem ter sido um problema maior para essas sociedades ** Como já pontuamos anteriormente, para Olgária Matos, o ca- pitalismo produz carência, cria necessidades infinitas e valoriza os excessos. O tempo de consumo, o tempo concreto, objetivo, é que determina o tempo interno. É um tempo de satisfação imediata dos desejos; não pode haver frustrações nem adiamentos. Como conse- quência, não há tempo para a elaboração do pensamento. O tempo da subjetividade, necessário para qualquer tipo de mediação, é abo- lido pela busca do gozo instantâneo, e “[...] todas as experiências humanas que necessitam de tempo, da longa duração, ficam com- 54 Ibid, p.12 55 Ibid, p.13 56 Ibid., p.236 ADOLESCÊNCIA, VELOCIDADE E TÉDIO 65 prometidas: amizades, relação entre pais e filhos, amor”.” A ideia de futuro não é mais a de um tempo longo e que vai acontecer. O imediatismo da gratificação compromete essa ideia, impondo a ação direta, principalmente sobre a juventude, cujo psiquismo ainda em formação a torna mais maleável às influências da celeridade do mundo, embora sejam exatamente os jovens que mais precisam de tempo para a edificação de sua já precária identidade psíquica, social e cultural. Eles necessitam de tempo para desejar um futuro, cons- truir um projeto, o que gera insegurança e medo, abrindo caminho para um sentimento de vazio, para a falta de um “ideal de espírito”: Então, quando se fala “os jovens não tem expectativas de futu- ro” — não têm um monte de coisa porque não têm expectativas de futuro e não sabem o que fazer com o tempo. Porque esse capitalismo produz uma cultura e uma educação cuja atividade cerebral é próxima de zero... Aí quer que a juventude faça o quê? Vira delinquente ou vira entediado. Porque o tempo que lhe é imposto como forma por excelência da vida é o consumo de bens materiais. Sem nenhum ideal de espírito ** Com a aceleração do tempo, o excesso de informações não possibilita uma vida intelectual e afetiva, pois, segundo Matos, “[...] secada vez mais se dispõe de informações, isso não significa ter informações a mais, porque o tempo para transformá-las em com- preensão e experiência não aumenta proporcionalmente” .** Quando tomamos nosso mundo como sendo essencialmente hipercinético, não temos dúvida quanto a situá-lo como um mundo traumático por excelência, conforme a acepção de trauma que o entende como a incidência de uma profusão de estimulações sobre o psíquico. Para- doxalmente, o mundo atual tende ao esmaecimento do trauma e seu deslocamento como experiência fundante do sujeito e do mundo. A remoção ou o abrandamento de barreiras e filtros para a passagem 57 Ibid, pé 58 Ibid, p.14 59 Ibid., p.245 66 LUÍS GUILHERME COELHO BUCHIANERI das superestimulações do mundo geram atitudes de recepção, bai- xa resistência e assentimento passivo, necessárias para os propósi- tos da sociedade imediatista e consumista. Evitar confrontos é uma tendência atual, pós-moderna e pós-humana. Não se concebe mais a construção do mundo como feita por embates, por experiências fortes e contundentes, como se concebia e se fez a modernização do mundo. Sequer se compreende, hoje, a relação do homem com a na- tureza como um relacionamento áspero e beligerante, destinado a torná-lo soberano e autônomo com a criação de um mundo artificial. Isso posto, seria o mundo contemporâneo um mundo pós-trau- mático, produtor de uma geração de indivíduos que se despotencia- lizam, se tornam vazios e obsoletos ao se fundirem com a máquina? A fusão carbono/ silício, na concepção pós-humana, representaria o fim do homem tal como o conhecemos hoje? Se aceitássemos essa afirmação, o tédio apareceria como um sentimento humano derradeiro, prenunciando o advento de um mundo pós-humano e pós-traumático? ADOLESCÊNCIA, VELOCIDADE E TÉDIO 69 e as perturbações que tais vivências deflagraram posteriormente, quando evocadas ou revividas em outros cenários. Ainda que consideremos as experiências traumáticas forma- doras de núcleos imantados que atuam como uma grande força de gravidade sobre os demais conteúdos psíquicos, eles ficam sujeitos a receber contragolpes capazes de produzir neles alguma modifi- cação. O trauma não é estático — ele se encontra em movimento, realizando catálises espaçotemporais e se modificando com elas, incorporando outros sentidos e ganhando novas traduções. Pode se enrijecer, quando as catálises reforçam seus núcleos mais duros, ou se flexibilizar, quando os novos conteúdos amolecem os registros mais sólidos. O fundamental, aqui, é ter presente que o trauma não se defi- ne apenas por quantidades, mas também por qualidades. Quando Freud refere-se ao trauma como resultado de uma forte estimula- ção ou de uma variedade de estimulações que o Ego não consegue dominar, está enfatizando um critério quantitativo. Porém, quando ressalta a importância do conteúdo ou do sentido da estimulação (ameaçadora, assustadora, invasiva, e assim por diante), está des- tacando um critério qualitativo. Evidentemente, teríamos que levar em consideração ambos os critérios e entender que o trauma de- pende tanto da força ou da diversificação dos estímulos, quanto do sentido que eles adquirem quando afetam o sujeito. Aliás, a pro- priedade de um afeto ser intenso ou diverso não lhe é intrínseca, mas depende da maneira como o sujeito o apreende. A intensidade ea variedade dos afetos não são fatos objetivos, mas subjetivos, su- bordinados à linguagem, da maneira como o sujeito os apreende, reage a eles e os registra. O fenômeno da “banalização”, comum na atualidade e enfatizado por muitos autores, é um bom exemplo de como acontecimentos acompanhados de fortes intensidades objeti- vas podem ser apreendidos com baixas intensidades subjetivas, isto é, podem não afetar o sujeito e ser incapazes de gerar algum trauma ou evocar outros já estabelecidos. A noção de trauma pode ser compreendida dentro da lógica de um tempo no qual o mundo, o homem, a natureza e tudo o mais 70 Luís GUILHERME COELHO BUCHIANERI eram concebidos como estando imersos num universo de conflitos e contradições. A modernidade, sobretudo no seu período áureo, como foram o século XIX e o início do século XX, cravou fortemen- te a ideia de conflito — tudo era percebido como sendo constituído por contradições. Não foi à toa que a própria lógica dialética fru- tificou nesse período. O mundo moderno, ele próprio em profun- do embate com o antigo regime, teve como um de seus principais signos a destruição do antigo para a criação do novo.” Tratava-se de pôr abaixo as antigas estruturas sociais, políticas, econômicas e o próprio modelo de homem antigo para colocar no lugar um novo mundo e um novo homem. A modernidade carrega consigo um espírito belicista, guerreiro, que marcará profundamente a subjetividade. O homem moderno é o homem determinado, empreendedor, corajoso, disposto a en- frentar até Deus para se colocar como sujeito de si e de seu mundo. Freud foi sensível a esse espírito moderno ao conceber a subjetivi- dade, o aparelho psíquico e seu funcionamento como sendo carac- terizados por conflitos. Um rápido olhar sobre as concepções de Freud revelam um ho- mem psicológico constituído por conflitos e contradições. Ao in- consciente opõe-se a consciência; ao processo primário opõe-se o processo secundário; ao princípio do prazer opõe-se o princípio da realidade; ao Ego opõem-se o Id e o Super-Ego; às pulsões de vida opõem-se as pulsões de morte, e assim por diante. O sujeito freu- diano é o sujeito do conflito — e não poderia ser de outra forma esse sujeito nascido da histeria. O trauma insere-se nessa concepção mais ampla do psiquismo como sendo formado por conflitos e contradições, por forças opos- tas, contrastantes e em rota de colisão. A traumatologia da nascente modernidade alojou-se no centro do mundo e do sujeito e foi exa- tamente isso o que Freud captou ao conceber o psíquico como um campo de forças em conflito e a relação entre indivíduo e sociedade como uma relação de embates, confrontos, lutas e renúncias. HARVEY, 2008, p.26 ADOLESCÊNCIA, VELOCIDADE E TÉDIO 71 A noção de trauma fez bastante sucesso na época de Freud, e não somente no campo da Psicologia. A própria sociedade e a nature- za eram vistas como constituídas por conflitos. Marx e Darwin são dois ilustres representantes desse tipo de visão da realidade. Toda- via, ainda que possamos reconhecer nosso tempo como um estágio avançado da modernidade, cabe a pergunta: Ainda vivemos sob o signo do trauma? Sob o signo do conflito? Sob o signo do embate? Desaceleração subjetiva e despotencialização do trauma na contemporaneidade Quando tomamos nosso mundo como sendo essencialmente hi- percinético, não temos dúvida quanto a situá-lo como um mundo traumático por excelência, segundo a acepção de trauma que o en- tende como a incidência de uma profusão de estimulações sobre o psíquico. No entanto, num olhar amplo sobre nosso tempo, não são aquelas imagens modernas de um mundo em ebulição e “guerra” que se realçam, mas as de um mundo em harmonia ou, pelo menos, de um mundo não tomado por embates constantes. É certo que a violência e a guerra continuam existindo, mas, no plano dos valores, não é isso que se deseja. Além do enfraquecimento das imagens de colisão, o mundo atual não se afigura por imagens de concretude, sendo experimentado predominantemente de forma abstrata ou imaterial. A experiên- cia da imaterialidade se realiza, especialmente, pela substituição da coisa por sua imagem, a saber, uma imagem que se impõe por si mesma, rompendo radicalmente com a referência exterior a ela, com qualquer princípio de representação, o que Debord* aponta como sendo o pilar-mestre da sociedade do espetáculo. A linguagem assume uma importância fundamental no proces- so de desprendimento do homem da experiência direta e automática da materialidade do mundo. Pela linguagem, as materialidades são 4 DEBORD, G.A sociedade do espetáculo. São Paulo: Contraponto, 1997. p.28 74 LUÍS GUILHERME COELHO BUCHIANERI -psicológicas desenvolvidas para instrumentalizar e administrar a experiência do nascimento, suavizando sua tragicidade. O mundo atual tende para o esmaecimento do trauma, para seu deslocamento como experiência fundante do sujeito e domundo. Não se concebe mais a construção do mundo como feita por embates, por experiências fortes e contundentes, como se entendia e se fez a mo- dernização do mundo. Seguer se entende, hoje, a relação do homem com a natureza como algo áspero e beligerante, destinado a tornar o homem soberano e autônomo com a criação de um mundo artificial. O pensamento ecológico expressa bem essa busca de harmonização e evitação de confrontos como uma tendência atual ou pós-moderna. Aquilo que antes, na modernidade clássica, era visto como o motor da vida, do mundo e da história caiu em descrédito, como a luta de classes, o conflito entre as gerações, a dominação da natureza, as dis- putas territoriais, as guerras, e assim por diante. Resta saber se as célebres oposições entre consciência e incons- ciente, entre desejo e interdição, processo primário e processo se- cundário, princípio do prazer e princípio da realidade também estão ajustadas ou contemporizadas, de forma a não representar mais fonte de preocupações ou de ocorrências traumáticas. Estará o trauma, re- gido pelo princípio do conflito, norteador da modernidade clássica do século XIX, em franco declínio na pós-modernidade? Estaríamos vivendo uma sociedade ou um mundo pós-traumático? Seria o su- Jeito contemporâneo um sujeito pós-traumático, compreendendo, por isso, um sujeito que não tem mais o conflito, o sofrimento, os choques, os embates como cerne de sua constituição? Será que a edi- ficação do pós-humano tira de cena o principal fator de discórdias e conflitos: o próprio homem? A propósito, uma leitura mais ampla do trauma permite situá- “lo tanto como força de paralisação e imobilização do sujeito, quanto como força de impulsão, de mobilização do ser humano, por conse- guinte, como elemento constituinte fundamental do sujeito e do pro- cesso de produção de subjetividade. O trauma instiga, põe o aparelho psíquico em funcionamento, mesmo que o perturbe e o amedronte. Funciona, além disso, como um código de leitura das experiências, ADOLESCÊNCIA, VELOCIDADE E TÉDIO 75 mediante o qual elas ganham significação, ainda que estigmatizadoras e monossêmicas. O trauma remete a enfrentamentos, a uma vida vi- rulenta e intensa, mesmo que o resultado seja desfavorável ao sujeito. Juntoà velocidade paralisante, tem-se o sentido despotencializado, light, sem propriedades fundamentais ou capazes de gerar impactos fortes, assim como os alimentos dietéticos. A vida vai assumindo sa- bores atenuados, estímulos domesticados, amortizados, que acabam gerando pouco impacto. A noção de trauma se enfraquece ao mesmo tempo que se dá enfraquecimento do sujeito, da subjetividade tercei- rizada para os sistemas abstrato-peritos que estabelecem o que sentir e como agir. Mais uma vez, os saberes e práticas que instruem as expe- is da vida — mas não só elas, evidentemente — podem ser tomados como grandes exemplos. Profissionais especializados pres- crevem os cuidados com a gestação, o parto e as experiências iniciais em detalhes. Chegam ao requinte de recomendar às mães que olhem carinhosamente para seus bebês enquanto os amamentam. Pesquisas várias encarregam-se de demonstrar cientificamente como tal prática é saudável para a criança e importante para seu futuro. Com tanto cuidado e sofisticação tecnológica, os traumas esta- riam condenados, não fosse a presença do inconsciente, sempre ar- redio aos ditames da racionalidade e disposto a aplicar seus golpes derebeldia. Novamente, a produção de sentido entra em cena como elemento fundamental da subjetividade. A velocidade do mundo contemporâneo, que a priori é vista como um impulso, um estímulo para levar o ser humano ao crescimento, paradoxalmente, torna-se paralisante, como num estupor psicótico, comportando-se como um dos agentes do antitrauma. Um bombar- deio tão intenso e dirigido a um sujeito deveras despotencializado e desguarnecido, que ultrapassa o limiar de percepção ou, como sa- lienta Virilio, gera a inércia pelo extremo esgotamento do tempo. Simmel em 1903!" e Baudelaire em 1896!! já visualizam, na modernidade do século XIX, o efeito paralisante, entediante e des- riências ini 9 VIRILIO, 1993, p.108. 10 SIMMEL, 1995, p.116-131 11 BAUDELAIRE, C, O spleen de Paris. Rio de Janeiro: Relógio d'Água, 2007 76 LUÍS GUILHERME COELHO BUCHIANERI mobilizador das superexcitações produzidas pelas urbes em estado de crescimento e ebulição. Tal efeito torna-se ainda mais intenso quando a superexcitação incide sobre um sujeito despotencializa- do, como acontece na atualidade. Diante das situações descritas, o refúgio à solidão, o desinteres- se pelo coletivo, o desapreço pelo “outro” tornam-se manifestações várias de condutas antissociais, as quais são indicativas do fracasso do homem em edificar uma associatividade ampla e irresistivel- mente atraente e vantajosa para seus partícipes. Poderíamos, então, inferir que um dos principais sintomas de- correntes da destraumatização do contemporâneo é o tédio, que pode ser traduzido como a apatia e o desinteresse pelo “outro”, como uma dificuldade de constituir vínculos fortes e duradouros. Trata-se de forma de subjetivação mais corrosiva do que a delin- quência e a agressividade, porque a indiferença, como sublinhava Freud, é o verdadeiro oposto da atração, seja ela amorosa ou des- trutiva, e é ela que revela a desesperança, diferentemente da agres- sividade, que revela esperança, a busca de algo, o desejo do “outro”, ainda que concretizado em formas sádicas. 12 FREUD, 2006, p.139-143 ADOLESCÊNCIA, VELOCIDADE E TÉDIO 79 Alguns autores contemporâneos, como Jurandir Freire Costa” e Joel Birman,* tendem a utilizar o termo juventude para referir- -se a uma fase da vida constituída num processo sociocultural que visa à preparação dos indivíduos para assumir o papel de adultos na sociedade, no plano familiar e no plano profissional. Já o termo adolescência é usado de acordo com o que estabelece a OMS, que tem como principal referencial os conceitos médicos e as teorias psi- canalíticas clássicas, como as definições de Arminda Aberastury. Existem, ainda, autores que criticam radicalmente qualquer crité- rio cronológico, advogando que a juventude é um estado de espírito ou um modo de vida que pode estar presente em qualquer idade. Em razão disso, neste livro empregarei o termo adolescência como sinônimo de juventude, entendendo-o, porém, como um período de mudanças com forte presença das chamadas “influências sociais” no funcionamento psicológico e na constituição do sujeito. A experiência do tempo e do espaço percorre, evidentemente, todas as fases da vida, mas é na adolescência que ela se constitui de forma mais contundente. É um período no qual nossa cultura reser- va para o jovem o descortinamento do mundo, abrindo-lhe espaços vários à frente, permitindo, e até estimulando, a experimentação de relações emocionais e sociais diversas. O tempo é outra experiência marcante da nossa juventude, tanto por ser colocada num ritmo de vida acelerado, quanto por ser posicionada entre o passado e o fu- turo. Talvez não exista melhor forma de caracterizar essa posição do adolescente no tempo do que aquela utilizada por Arendtº para abordar a historicidade do homem, emprestando uma parábola de Kafka, para dizer que ele, o homem, é acossado por duas forças: uma que o empurra para a frente (o passado) e outra que o empurra 3 COSTA,J.F. Entrevista com Jurandir Freire Costa: Marta Rezende Cardoso (Org.). In: CARDOSO, M. R. etal. Adolescentes. São Paulo: Escuta, 2006. 4 BIRMAN, ]. Tatuando o desamparo: a juventude na atualidade, In: CARDOSO, M. R. et al. Adolescentes. São Paulo: Escuta, 2006, 5 ABERASTURY, A. Adolescência. 6. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. p. 15 6 ARENDT, H. Avida do espírito: o pensar, o querer, ojulgar. A. Abranches, €. Augusto, H. Martins (trads. ). Rio de Janeiro: Relume- Dumará, 2002, p.153. 80 Luís GUILHERME COELHO BUCHIANERI para trás (o futuro). Complementa seu raciocínio afirmando que ele tem que lutar contra essas duas forças para construir seu próprio ca- minho, como uma linha diagonal criada a partir do ponto de atrito entre as forças oposta advindas do passado e do presente. De acordo com Jurandir Freire Costa,” o adolescente começa a imaginar o futuro como um horizonte no qual os ideais dos pais são apenas uma entre muitas outras formas de realização possíveis: É importante, portanto, que eles tenham à disposição um acervo de experiências históricas que os ajudem a seguir em frente com segurança, mesmo quando aspiram a mudar as visões de mundo eos padrões de condutas dominantes.* Astransformações sociais, quando revolucionárias, com quebras de padrões dominantes de mundo, deveriam proporcionar o cresci- mento e aperfeiçoamento da sociedade, tendo o jovem e o adoles- cente como agentes transformadores, por meio da transgressão e da não aceitação de um mundo preestabelecido, como assinala Becker: [...] o jovem que se rebela contra determinados valores, estigmas, preconceitos e (con)tradições que lhe tentam impor não significa necessariamente que ele está doente ou atravessando uma crise psicológica normal. Podemos explicar esse fenômeno como a pas- sagem de uma atitude de simples espectador para uma outra ativa questionadora que vai gerar revisão, autocrítica e transformação que será fundamental tanto para o desenvolvimento da sua própria personalidade como para o aperfeiçoamento da sociedade em que ele vive? Durante muito tempo, vivemos amparados na ilusão de que, com o avanço da ciência e da razão, o futuro do homem se ergueria. A identidade cultural, promovida pelas experiências históricas, seria 7 COSTA, 2006, p.17 8 Ibid,p7 9 BECKER, D. Oque é adolescência. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.9 ADOLESCÊNCIA, VELOCIDADE E TÉDIO 81 a garantia de uma transgressão adolescente com limites bem estabe- lecidos. É a célebre frase de Che Guevara que norteia a educação dos filhos: “Hay que endurecer, pero sin perder la ternura jamás”, ou seja, flexibilidade com regras e limites. Entram em cena as concepções de adolescência da modernidade, sendo o jovem potencializado, viril, transgressor, mas que, de certa forma, teria a segurança da identida- de paterna/familiar, para a qual poderia retornar. A música “Como nossos pais”, de Belchior, 'º retrata bem essas afirmações: Não quero lhe falar, Meu grande amor, Das coisas que aprendi Nos discos... Quero lhe contar como eu vivi E tudo o que aconteceu comigo Viver é melhor que sonhar Eu sei que o amor É uma coisa boa Mas também sei Que qualquer canto É menor do que a vida De qualquer pesso: Por isso cuidado meu bem Há perigo na esquina Eles venceram co sinal Está fechado pra nós Que somos jovens. Para abraçar seu irmão E beijar sua menina na rua É que se fez o seu braço, O seu lábio e a sua voz... Você me pergunta Pela minha paixão 10 Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, compositor e cantor brasileiro. BELCHIOR. Como nossos pais. In: Alucinação. [s.1.]: Polygram, 1976.1LP. 84 LUÍS GUILHERME COELHO BUCHIANERI Helenira Resende de Souza Nazareth, codinome Fátima na guer- rilha do Araguaia, era militante do PCdoB e morreu entre 28 e 29/9/1972. Foi metralhada nas pernas e torturada até a morte, segundo de- poimento da ex-presa política Elza de Lima Monnerat. O jornal A Voz da Terra, da cidade paulista de Assis — onde ela cresceu -, publicou extensa reportagem a seu respeito na edição de 8/2/1979, contando que a coragem da jovem irritou a tropa. No livro À lei da selva, Hugo Studart relata sua morte como ocor- rendo na localidade Remanso dos Botos (Manaus, AM), em cho- que com uma patrulha de fuzileiros navais. Ao ser questionada sobre o paradeiro dos companheiros, Helenira teria respondido que poderiam matá-la, pois nada diria. Nascida em Cerqueira César, no interior paulista, era filha de um médico conhecido e respeitado por suas tendências humanistas. Aos quatro anos, mu- dou-se para Assis, onde cresceu. Já residente na capital paulista, cursou Letras na Faculdade de Filosofia da USP, sendo eleita pre- sidente do Centro Acadêmico. Tornou-se importante liderança no Movimento Estudantil, onde ganhou o apelido de “Preta”. A primeira prisão de Helenira aconteceu em junho de 1967, quando escrevia nos muros da Universidade Mackenszie: “Abaixo as leis da ditadura”, Voltou a ser presa mais duas vezes, uma delas em Ibiúna (SP) durante o 30º Congresso da UNE, entidade da qual era vice-presidente. Passou pelo Presídio Tiradentes, pela sede do DOPS e pelo Presídio de Mulheres do Carandiru. A família con- seguiu libertá-la mediante habeas-corpus na véspera da edição do AT-5. A partir de então, já militante do PCdoB, passou a atuar na clandestinidade, até mudar-se para o Araguaia (GO). Outros exemplos podem ser encontrados fartamente na cultura. Na música “E vamos à luta”, do álbum De volta ao começo” Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior, conhecido como Gonzaguinha, faz uma clara referência ao adolescente como esperança de mudanças: 12 NASCIMENTO JÚNIOR, L. G. E vamos à luta. In: De volta ao começo. [5.1]: Odeon, 1980 ADOLESCÊNCIA, VELOCIDADE E TÉDIO 85 Eu acredito é na rapaziada que segue em frente e segura o rojão Eu ponho fé é na fé da moçada que não foge da fera E enfrenta o leão Eu vou à luta com essa juventude Que não corre da raia a troco de nada Eu vou no bloco dessa mocidade que não tá na saudade E constrói a manhã desejada Aquele que sabe que é negro o coro da gente E segura a batida da vida o ano inteiro Aquele que sabe o sufoco de um jogo tão duro E apesar dos pesares ainda se orgulha de ser brasileiro Aquele que sai da batalha entra no botequim pede uma cerva gelada E agita na mesa uma batucada aquele que manda o pagode E sacode a poeira suada da luta e faz a brincadeira Pois o resto é besteira e nós estamos pelaí... Acredito é na rapaziada que segue em frente e segura o rojão Eu ponho fé é na fé da moçada que não foge da fera E enfrenta o leão Eu vou à luta é com essa juventude Que não corre da raia a troco de nada, Eu vou no bloco dessa mocidade que não tá na saudade E constrói a manhã desejada... O adolescente, como portador da bandeira da rebeldia nas dé- cadas de 1970 e 1980, também se inspirava na música contestadora latino-americana, com Héctor Roberto Chavero (1908-1992) — cujo pseudônimo era Atahualpa Yupangui —, Victor Jarra (1932-1973), Violeta Parra (1917-1967) e, no Brasil, como grande ícone, o cantor e compositor paraibano Geraldo Vandré. Um dos maiores contes- tadores do regime militar em nosso país, Vandré compôs e gravou inúmeras canções que se tornariam verdadeiros textos panfletários de inconformismo naqueles tenebrosos anos das décadas de 1960 a 1980. A contestação foi a marca da rebeldia adolescente, e não se permitiam outras formas de comportamento, consideradas subser- vientes ao poder dominante. Prova disso é um episódio contado pelo cantor e compositor Caetano Veloso, em seu livro Verdade tropical, no 86 LUÍS GUILHERME COELHO BUCHIANERI qual Geraldo Vandré teria contestado o próprio Caetano e a cantora Gal Costa, inconformado com a gravação da música “Baby”, no disco Tropicália! — que deu nome ao movimento Tropicália (1967-1968). Vandré os teria acusado de serem condescendentes com a cultura estadunidense e com o cantor Roberto Carlos, na época visto como porta-voz da Ditadura Militar. Diz a letra da canção de Caetano: Você precisa saber da piscina, da Margarina, da Carolina, da gasolina Você precisa saber de mim Baby, baby, eu sei que é assim Você precisa tomar um sorvete Na lanchonete, andar com gente Me ver de perto. Ouvir aquela canção do Roberto Baby, baby, há quanto tempo Você precisa aprender inglês Precisa aprender o que eu sei E o que eu não sei mais E o que eu não sei mais Não sei, comigo vai tudo azul Contigo vai tudo em paz Vivemos na melhor cidade Da América do Sul Você precisa, você precisa Não sei, leia na minha camisa Baby, baby, love you Não pretendo dar um cunho político-ideológico a essas observa- ções, mas pontuar as diversas formas de manifestação adolescente, que têm como características a combatividade, o inconformismo, a necessidade do confronto com as figuras que representam os pode- res constituídos, tendo como objetivo a diferenciação, a individua- lização, a busca identitária. 13 VELOSO, €. Tropicália ou Panis Et Circenses, Universal, 1997. Distribuido- ra Philips. 1 LP/CD. ADOLESCÊNCIA, VELOCIDADE E TÉDIO 89 poesias que ela mesma escreveu. No final do documentário, João Jar- dim solicita aos estudantes que se reúnam para tirar uma fotografia com as pessoas que têm grande “importância” em suas vidas, ou seja, pelas quais eles tenham mais afeto. Enquanto os estudantes de outras escolas e regiões reúnem os amigos mais próximos, a estudante nor- destina reúne sua família, que vai desde seu bisavô, o mais velho na estrutura familiar, até os irmãos mais novos e os animais de estimação. Há, por conseguinte, duas situações a serem observadas: a pri- meira é a busca de identificações fraternais nos grandes centros urbanos, ou seja, os amigos como fortes referências de segurança e estabilidade, visto que na contemporaneidade a sociedade pa- triarcal se esvaece nos grandes centros urbanos e surgem múltiplas possibilidades de construção familiar; a segunda é a situação criada principalmente em cidades pequenas e isoladas, em que as identifi- cações predominantes ainda seriam as da família patriarcal. Para Outeiral,'º as questões relacionadas às perdas de vínculos passaram a ser muito importantes, com a função paterna tornan- do-se cada vez mais decadente nos grandes centros urbanos e as crianças trazendo em seus relacionamentos sociais uma experiência cultural familiar própria. A família nuclear como célula básica da sociedade moderna, constituída pelas figuras do pai, da mãe e dos filhos, perdeu sua hegemonia. Os pais passaram a ter projetos pes- soais, independentes do campo familiar. O desenvolvimento tecnoló- gico apontou muitas possibilidades para a concepção de um bebê, abrindo caminho, por exemplo, para as questões derivadas das fa- mílias homoparentais. A mulher obtém, por desejo e/ou necessida- de, uma inserção definitiva no mercado de trabalho, de modo que o tempo de convivência com os filhos, hoje, é menor do que nas gerações anteriores. Berçários, creches e escolas infantis tornam-se necessários para pais que “terceirizam”, cada vez mais, os cuidados parentais, transformando radicalmente as relações com os filhos. Surgem novas configurações familiares, com famílias reconstituí- das, filhos de casamentos anteriores e do novo casamento. A con- 16 OUTEIRAL, 2003, p.103. 90 Luís GUILHERME COELHO BUCHIANERI sequência disso é que estamos vivendo uma crise de futuro com o fim das sociedades utópicas, que sempre prometeram estabilidade. Na sociedade contemporânea, também conhecida como sociedade pós-moderna, seguir corretamente as aspirações e os hábitos sociais, ainda que alicerçados na modernidade, como o estudo, o trabalho e o comportamento moral, não dá garantias de futuro. Há um estrei- tamento de horizontes para os jovens, que, sem muitas perspecti- vas, ficam impossibilitados de sair da casa dos pais. Na melhor das hipóteses, o adolescente oriundo de classes mais favorecidas procura aceitação social prolongando seus estudos para viabilizar sua inserção no disputado mercado de trabalho, e os de classes menos favorecidas buscam trabalhar em pequenos empregos, geralmente mal remunera- dos. Entretanto, não é o que ocorre com frequência, já que se observa, nessa faixa etária, um aumento de condutas antissociais, da crimina- lidade, do consumismo voraz. Há uma superficialidade nas relações afetivas, com ausência de compromissos e preocupação com o “ou- tro”. A presença avassaladora da televisão e dos jogos eletrônicos faz que o jovem conviva ativamente com personagens virtuais, o que in- terfere na construção de sua já precária identidade. É de consenso que na atualidade, sobretudo nas camadas mais favorecidas, existe um alongamento da adolescência, que começa bem mais cedo do que outrora e prolonga-se, invadindo o mundo adulto. Nas sociedades urbanas contemporâneas, temos a adolescên- cia tanto como um período de desenvolvimento, quanto como um estilo de vida. Para Jurandir Freire Costa, [...] a dificuldade em se falar de “juventude” é que ela própria tornou-se ícone da moral e do espetáculo. Ou seja, de condição de mudança, a “juventude” passou a ser “um objetivo de mu- dança”. A cultura somática é marcada pelo empenho encarniça- do da maioria das pessoas em permanecer jovem para continuar 117 “sendo e permanecendo jovem”. 17. COSTA, 2006, p.19. ADOLESCÊNCIA, VELOCIDADE E TÉDIO 91 Ao tratar dessa cultura, Outeiral a define como adultescência, contração das palavras adulto e adolescência, conceituando também os kidults, adultos que abandonam sua posição e passam a agir de forma infantil, instituindo, portanto, uma confusão geracional: Assim, poderemos considerar, fazendo uma brincadeira, que os adultos correm o risco de se transformarem em uma espécie em extinção, assim como o tamanduá-bandeira e o boto-rosa... Observo, por exemplo, e não é raro, nas escolas, o “desapare mento” dos adultos. A falência das funções de adulto origina, é óbvio, severos problemas ao desenvolvimento das crianças e dos adolescentes e profundas transformações nos papéis familiares.'* Birman!” alerta igualmente para as transformações que estão acontecendo com a juventude na contemporaneidade, atribuindo os sentimentos de abandono e desamparo à fragilização dos relacio- namentos e vínculos sociais, particularmente aqueles estabelecidos com as figuras parentais. O autor afirma que “[...] a economia de cuidados foi, então, afetada de forma significativa, incidindo ine- quivocamente nas novas formas de subjetivação da juventude”? Ressalta, também, que a explosão da violência urbana promoveu a restrição e o “engaiolamento espacial”, isto é, restringiu no jovem o imperativo de ir e vir, fazendo-o permanecer ilhado nas escolas e nos ambientes familiares, o que incide no registro da liberdade e promove uma fragilização psíquica: Privados e fragilizados pelo excesso de proteção, os jovens não podem aprender a se virar. Em decorrência disso, a infantiliza- ção de sua condição se prolonga, de forma que a adolescência se arrasta além dos limites desejáveis e invade a idade adulta [...].* 18 OUTEIRAL, 2003, p.10. 19 BIRMAN, J. In: CARDOSO, 2006. p.39. 20 Ibid,, p.37 21 Ibi, p.39 94 LUÍS GUILHERME COELHO BUCHIANERI cias que despontam na contemporaneidade. Assim é que, além de itinerante, o adolescente torna-se a expressão do aumento do ritmo de vida, da plasticidade e da multiplicidade, constituindo-se como um sujeito móvel em todos os sentidos: não apenas tem facilidade para se deslocar no espaço geográfico, como também o faz nos planos social e psicológico. A itinerância exige plasticidade afetiva, capaci- dade para o estabelecimento de vinculações transitórias e abreviadas, adaptações de hábitos e rotinas, renovações de ideias e valores — en- fim, exige uma maleabilidade em todos os planos da vida: A volatilidade do sujeito expandido para além das fronteiras locais de seus assentamentos primevos, à feição do que exige a globalização, desestimula qualquer processo de produção de identidades ou de estabilização. Sem dúvida, um mundo que se apresenta móvel, caótico, fragmentado, inflacionado de signos, informação e linguagens, um mundo em constante movimento, produção e consumo que nada acaba ou completa, um mundo que interconecta os seus habitantes, deslocando-os ou inserindo- -os em redes de comunicação, que os introduz em todo tipo de sistema on-line, um mundo assim constituído não pode ser o lu- gar de personagens fixas, cristalizadas, unidirecionais nas ações, pensamentos, afetos, sentimentos e formas de expressão e comu- nicação. Mais do que um sujeito sedentário e sedimentário capaz de acumular, fixar, reproduzir, unificar, universalizar, o mundo contemporâneo solicita um sujeito capaz de multiplicar-se, fracio- nar-se, viver nomademente no plano intelectual, afetivo e social, um sujeito que não pare, mas que continue deslizando constante- mente por espaços e tempos indefinidos.” Esse mundo, que exige da juventude uma atitude rápida e po- tencializada, uma disposição para enfrentamentos, mudanças e revoluções, é paradoxalmente o mesmo mundo que despotenciali- za, promove, como já assinalado, uma fragilização psíquica, tendo como uma das principais manifestações sintomáticas o tédio. 26 JUSTO apud VASCONCELOS, 2001. p.73 5 Adolescência, tédio e contemporaneidade Há bastante controvérsia em relação às subjetividades descritas na atualidade, principalmente quando se discute se elas seriam ou não resultado de novos processos psicológicos ou sintomas subs- tancialmente diferentes daqueles de outros tempos recentes, como a histeria, a neurose obsessiva, as fobias e assim por diante. Surgem novas denominações, como pânico, transtorno bipolar, borderline, TDAH, estresse, Síndrome de Bournout, entre outras, para descrever sintomatologias específicas ou subjetivações tidas como transtornos psicológicos ou sofrimento psíquico típicos da atua- lidade. No entanto, há quem entenda que tais subjetividades são apenas novas roupagens para velhos problemas e estruturas psicoló- gicas, e quem, diferentemente, acredite que são formas outras de funcionamento psicológico, decorrentes das condições de vida iné- ditas dadas na atualidade, ou dos modos de vida e de subjetivação próprios da pós-modernidade. Não é nosso propósito discutir aqui essa questão, mas não po- demos deixar de pontuar que boa parte do que hoje se descrevem como quadros de sintomas ou de sofrimento psíquico emergentes aludem claramente à aceleração do tempo e à trajetividade humana no espaço, como é o caso do TDAH, estresse, burnout e borderline. 96 LUÍS GUILHERME COELHO BUCHIANERI No caso do tédio, não temos dúvida em relacioná-lo às experiên- cias contemporâneas do tempo, da velocidade, do ritmo acelerado da vida. Embora suas manifestações fossem bem conhecidas no período áureo da modernidade, no século XIX, é na pós-moderni- dade ou na sociedade hipercinética da atualidade que ele se finca como uma subjetividade típica. Tomarei a adolescência e a juventude como subjetividades nas quais o tédio infiltra-se com mais facilidade e torna-se mais visível, porque a adolescência e os jovens, de modo geral, são portadores privilegiados das tendências de uma cultura, de uma sociedade, de determinado tempo. São formados e arrastados pelas correntes mais fortes e hegemônicas que se fincam em determinados tempo e lugar. Ainda que em outras etapas da vida as ressonâncias de um dado momento histórico sejam também efetivas, é entre os mais jo- vens que se fazem de modo mais intenso e virulento. Por isso mes- mo tomarei as manifestações atuais do tédio na adolescência. As gerações adolescentes do mundo atual são multifacetadas e respondem diferentemente aos excessos de estímulos ou, ainda, à falta deles. Se, de um lado, podemos observar a agitação dos jovens no cenário das cidades, como mostram as baladas, as raves, os en- contros ruidosos em certos pontos das ruas, de outro, são muitas as preocupações com as condutas de acomodação e paralisação do curso da vida, no âmbito do trabalho, dos estudos, do estilo de vida e, sobretudo, no clássico âmbito da crítica e da insurgência social que lhes eram típicas. A imobilização do jovem já está sendo assinalada com preocu- pação pela imprensa mundial. Na Espanha, em artigo do jornal El País, a socióloga Elena Rodriguez salienta: ;Ha surgido una generación apática, desvitalizada, indolente, mecida en el confort familiar? Los sociólogos detectan la apa- rición de un modelo de actitud adolescente y juvenil a de los ni-ni, caracterizada por el simultáneo rechazo a estudiar y a tra- bajar. “Ese comportamiento emergente es sintomático, ya que basta ahora se sobrentendía que si no querías estudiar te ponías a trabajar. Me pregunto qué proyecto de futuro puede haber de-
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