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Guias e Dicas
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Entre Kant, Filosofias, Manuais, Projetos, Pesquisas de Filosofia

Livro da autoria de Ana Monique Moura, sobre diversas filosofias da arte em diálogo crítico com o filósofo alemão Immanuel Kant.

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2013

Compartilhado em 21/01/2013

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alice-morgen-12 🇧🇷

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Baixe Entre Kant, Filosofias e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Filosofia, somente na Docsity! - 1 - Entre Kant, Filosofias & Arte Entre Kant, Filosofias & Arte - 2 - Monique Moura - 5 - Entre Kant, Filosofias & Arte ÍNDICE Platão e Kant: Discurso sobre a ausência da técnica .............................. 13 A beleza entre sublime, tragédia & trágico: Uma reflexão com Hume e Kant .................. 31 A influência de Kant no sentido de reflexão estética do Romantismo Alemão ............ 51 Distâncias e aproximações entre Kant e Nietzsche no momento da arte .................................................... 63 Arte & verdade em Kant e Heidegger ................................. 79 POST SCRIPTUM .............................. 107 Do mistério do mundo à tragédia do entendimento: Um pensamento sobre Kant e Fernando Pessoa - 6 - Monique Moura - 7 - Entre Kant, Filosofias & Arte Aquilo sobre o qual é lançando um pensamento estético recebe e expressa indeterminação.. . Mas isto não implica dizer que tudo o que abriga indeterminação também abrange necessariamente um pensamento estético. A autora - 10 - Monique Moura - 11 - Entre Kant, Filosofias & Arte Caro leitor ou leitora, Confesso que neste trabalho tento me apartar de algumas medidas canônicas do modo de se fazer filosofia institucional, para penetrar em um contato quase in natura com o pensamento de alguns filósofos, na tentativa de trazer uma compreensão muito mais própria da leitura exaustiva dos seus textos do que de artigos ou manuais sobre tais textos, sem fugir, no entanto, dos importantes sinais e direcionamentos sóbrios que o arcabouço das pesquisas realizadas em uma instituição, das quais também faço parte, francamente, nos fornece em geral. Portanto, não chamaria os textos que seguem de artigos científicos, pois eles se expressam muito mais como registro de leituras em movimento do que como uma produção rigorosamente acadêmica, embora minha intenção com este trabalho seja contribuir de alguma forma para a dinâmica do estudo em matéria de Estética Filosofia da Arte na academia. Concebo este livro como um pequeno “grão” que exibe alguns de meus estudos e reflexões, cujo andamento, se eu - 12 - Monique Moura fosse dar um tom rítmico a isto, chamaria ainda de “adagio”. Talvez o “allegro” me venha na velhice, ou talvez exista para ninguém... No fim, publicar estes pequenos textos não significa outra coisa que a razão de continuar, que eu denominaria, como Ingmar Bergman, “é ilimitada, nunca se satisfaz, renova-se constantemente...” Não quero, então, exibir um punhado de resultados pretensiosamente certos e felizes ou apenas uma reunião de explicações catalogadas, pois aqui faço um convite para discussões e incômodos capazes de contribuir a uma interpretação mais autêntica e ao mesmo tempo rigorosa da estética kantiana. Aos que esperam o oposto do que proponho, digo, com Dante: “Abandonai toda a esperança, vós, que aqui entrais”. Com gratidão e respeito, Monique Moura - 15 - Entre Kant, Filosofias & Arte A partir das reflexões destes dois filósofos, tento pensar sobre a inspiração na criação de uma obra, assim como sobre seu julgamento e sua recepção e como este tema nos conduz a uma estética que favorece a interpretação da atividade inspirada em detrimento da técnica. Ressalvo que Platão define a arte (arkhé) como todos os ofícios ou atividades do homem, sejam manuais ou intelectuais. Assim, o sentido de arte culmina por se aproximar com o sentido de técnica (tékhne).1 Em Kant, a arte (Kunst) do gênio se diferencia da ciência (Wissenschaft), uma vez que ele define que aquele tipo de arte não carece precisamente de uma identidade epistemológica e não é originada na técnica.2 Destes levantamentos retirei o material teórico para me referir ao texto em que Platão e Kant expõem uma espécie de apologia da inspiração. 1 Cf. PLATÃO, Íon. Diálogos, Tradução: Carlos A. Nunes, Belém, Universidade Federal do Pará, 1980, (534b, c-). 2Cf. Immanuel KANT, Crítica da Faculdade do Juízo, Tradução: Valerio Rohden e Antônio Marques, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2008, p. 155, §46. - 16 - Monique Moura I Kant distingue a arte geral (arte técnica) da arte original (arte bela). A arte original é erigida a partir da inspiração do gênio. Platão concebe a poesia (poíesis) como possessão dos Deuses, expressa pela inspiração poética que determina uma natureza divina (theía dýnamis) no poeta. Assim, a poesia, em Platão, por nascer de modo diferente dos ofícios técnicos, é denominada como uma arte distinta das outras artes, como ocorre em Kant. A arte do gênio kantiano é, dita, original, por receber da natureza as regras para a arte. O gênio se coloca como receptáculo de tais regras e as aplica na sua obra. Vale colocar aqui a citação tão corrente na nossa literatura filosófica:3 3 Até mesmo Kant a utilizou consideravelmente. Chegou a colocá-la tanto na Crítica da Faculdade do Juízo como na Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático (Antropologie in pragmatischer Hinsicht). - 17 - Entre Kant, Filosofias & Arte Gênio é o talento (dom natural) que dá regra à arte. Já que o próprio talento enquanto faculdade produtiva inata do artista pertence à natureza, também se poderia expressar assim: Gênio é a inata disposição de ânimo (ingenium) pela qual a natureza dá a regra à arte.4 São regras que o gênio não conhece, e as usa de modo indeterminado. Contudo, o gênio se sabe como reduto das regras da arte, não porque seu entendimento abarca o contexto das regras, mas porque sua arte nasce de modo original,5 ou seja, nasce diferente das artes técnicas, que se esforçam por um conceito de finalidade. A arte do gênio nasce de modo indeterminado e não procura uma finalidade. Ela promove o sentimento estético do belo, nomeadamente o gosto (der Geschmack), que se lança na obra enquanto disciplina do gênio e, no sujeito que contempla a obra dele, se configura como juízo. 4Op. cit, loc. cit. 5Ibd., p. 154, §46 - 20 - Monique Moura pintura -,usando uma fraseologia básica e clara: não para ser um fim, mas um meio.7 Esta questão sobre técnica e inspiração é objeto da estética filosófica e está presente desde a Antiguidade Clássica de Platão, que em seu diálogo Íon, coloca o filósofo-personagem Sócrates para discutir com um personagem homônimo do título sobre o processo de confecção da arte. Aqui, há a referência ao poeta, ao invés de a um gênio da arte, como ocorre com Kant. O poeta de Platão e o gênio de Kant são discutidos segundo a perspectiva de uma arte original, que não segue uma técnica. Em ambos, o artista se coloca como reduto de um sentimento estético que os impulsiona a criar. 7 É válido saber que a regra ainda quando transgredida ou dispensada por um artista é, até mesmo aí, utilizada como um meio, pois na medida em que é transgredida ela é referida e pensada. Eu diria que é um modo de executá- la invertidamente. Mas isto é tema para um próximo trabalho, o que não me deixará fazer prolongações e talvez evite um tom prolixo. - 21 - Entre Kant, Filosofias & Arte II Lembro-lhe que estou falando sobre dois autores, cujo princípio de filosofia tem identidades distintas. Já sob uma ótica moderna, e não nego, inspirada em Kant, digo que Platão é transcendente e Kant, um transcendental. O princípio transcendente permite a admissão de um conhecimento sem apoio de provas fenomênicas, enquanto que o transcendental concebe e apoia a razão como reguladora, ou limitadora, do conhecimento dos fenômenos. Assim, no transcendente de Platão, nós temos o poeta intérprete dos deuses, e no transcendental de Kant, o gênio inspirado pelo próprio ânimo. Os poetas, em Platão, são embebidos por uma inspiração obtida das Musas que se ligam aos Deuses. Esta inspiração é expressa em um êxtase, na qual os indivíduos inspirados têm o noûs (mente, intelecto) subtraído pelas Musas, significando que, - 22 - Monique Moura temporariamente, são destituídos de seu juízo habitual.8 Ora, em Platão, o fato da poesia não ter um caráter epistemológico, torna o poeta isento do julgamento do que faz, isto porque o juízo habitual tem caráter epistemológico, e a poesia não tem este caráter. “É por inspiração divina, exclusivamente, que cada um faz tão bem o que faz, conforme a Musa o incita: ditirambos, panegíricos, danças corais, epopéias ou lambos....”9 A inspiração da poesia marca a ausência da epistemologia, da técnica e do juízo. Sócrates, o personagem do Íon de Platão, se refere à metáfora da Pedra de Héracles referida por Eurípedes, uma pedra magnética que atrai outras pedras: Assim, o ferro representa o mais próprio do homem, seu aspecto intelectivo, é subjugado pela força 8Krishnamurti JARESKI, A Inspiração Poética no Íon de Platão, In: Kínesis, Vol. II, n° 03, Abril-2010, p. 289 9PLATÃO, Íon. Diálogos, Tradução: Carlos A. Nunes, Belém, Universidade Federal do Pará, 1980, (534c). - 25 - Entre Kant, Filosofias & Arte dois filósofos, referida a uma atividade distinta da técnica, mesmo tendo, Platão e Kant, identidades filosóficas distintas, a reflexão sobre a criação artística se nivela pelo pensamento que procura pensar o artista como reduto de algo, no caso de Platão, dos Deuses e no de Kant, da natureza. Assim Sócrates, no diálogo de Platão, afirma: As Musas deixam os homens inspirados, comunicando o entusiasmo destes a outras pessoas, que passam a formar cadeias de inspirados. Porque os verdadeiros poetas, os criadores das antigas epopeias, não compuseram seus belos poemas como técnicos, porém como inspirados e possuídos, o mesmo acontecendo com os bons poetas líricos.12 E Kant, ao mencionar as ideias do gênio para a confecção de sua arte, sob outros termos, ao se referir a uma 12 Ibd., 533 e. - 26 - Monique Moura imaginação própria do gênio em favor de um arte original, afirma que o gênio é o espírito peculiar, protetor e guia, dado conjuntamente a um homem por ocasião do nascimento, e de cuja inspiração aquelas ideias originais procedem.13 Em Platão não podemos pensar um poeta que cria solitariamente seus versos. Ele permanece, ao construir a obra, possuído pelos Deuses, e neste sentido, por uma natureza divina, cujo poder transcendente subjuga os mortais com um automatismo comparável àquele com que a pedra magnética atrai os anéis de ferro, privando-os da capacidade de deliberação.14 13Immanuel KANT, Crítica da Faculdade do Juízo, Tradução: Valerio Rohden e Antônio Marques, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2005, p.154, § 46. 14Krishnamurti JARESKI, A Inspiração Poética no Íon de Platão, In: Kínesis, Vol. II, n° 03, Abril-2010, p. 289. - 27 - Entre Kant, Filosofias & Arte No caso de Kant, o gênio se coloca como criador da sua obra mediante uma natureza que lhe concede a permissão e fornece-lhe as regras da arte. Enquanto a obra, uma vez concluída e sob a observação do indivíduo, é tanto em Platão, como em Kant, subjugada a uma interpretação, que não é uma deliberação pró-conhecimento, mas perceptiva, ou melhor, estética. A beleza é sentida na obra julgada por seu observador. Assim Íon fala: “Vale a pena ver, Sócrates, como eu sei embelezar o meu Homero”.15 O rapsodo fala da poesia e refere-se ao seu autor, de maneira a colocar na sua obra aquilo que a torna efetiva, e isto acontece mediante o juízo na obra, que corrobora a beleza já existente na poesia. O embelezamento do qual fala Íon, se trata, por assim dizer, do embelezamento de uma beleza que já existe. No caso de Kant, a obra chega ao sujeito indeterminada e lhe fomenta o sentimento do belo que se configura como um juízo reflexionante sobre a obra. O belo não existe aqui de 15 PLATÃO, Íon. Diálogos, Tradução: Carlos A. Nunes, Belém, Universidade Federal do Pará, 1980, (530 d). - 30 - Monique Moura distinta, contudo, a referência à inspiração como castradora da técnica em uma atividade inspirada culmina por dar sentido a uma reflexão filosófica sobre um impulso humano que atinge o belo de maneira singular, através de uma atividade, que não é, inteiramente, técnica.17 Isto, me parece, não é apenas um ponto ou aspecto do pensamento de ambos, pois culmina por ser algo um pouco mais forte, o que eu denominaria de uma apologia da inspiração. 17 Para uma elucidação do tema referente à técnica e juízo, neste texto já esboçado, Cf. Immanuel KANT. Duas Introduções à Crítica do Juízo. Organização de Ricardo Ribeiro Terra. São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 75-79. - 31 - Entre Kant, Filosofias & Arte A beleza entre sublime, tragédia & trágico: Uma reflexão com Hume e Kant - 32 - Monique Moura - 35 - Entre Kant, Filosofias & Arte usado para se referir aos atores que faziam as performances de culto a Dionísio, vestidos com peles de cabra enquanto dançavam e bebiam vinho, cantando à alegria. Enquanto que sublime vem do latim sublíme, que significa alto, no sentido de admirável. Ao lado da diferença estrutural, pode parecer, por outro lado, ainda à primeira vista, que a direção do significado destes dois termos seja diferente. Pois a tragédia é, via senso comum e/ou fora da estética, concebida como uma conjuntura ou obra (se referida à arte) catastrófica e o sublime como algo suavemente belo ou prazeroso. Estes dois significados estão longe de fazer parte da tese feita, de um lado, em relação à tragédia, por David Hume e, de outro, em relação ao sublime, por Immanuel Kant. Passemos adiante com fins de elucidar nosso problema. - 36 - Monique Moura II A compreensão do que vem a ser tragédia em David Hume está, fundamentalmente, ligada à ideia do prazer e do desprazer humanos comuns à recepção de algo trágico tanto na natureza como na arte. O texto de Hume, intitulado Da tragédia disserta o modo como ela, segundo gênero, estilo ou mesmo acontecimento, se relaciona com a sensibilidade humana. Há a defesa do que se pode interpretar como confluência entre prazer e desprazer ou dor e deleite na relação com a tragédia. A frase basilar que identifica esta tese é a seguinte: “O coração gosta naturalmente de ser comovido e afetado. Aceita bem os objetos melancólicos, e mesmo os desastrosos e lamentáveis, desde que sejam suavizados pela mesma circunstância.” 1 1David HUME, “Da tragédia” In: Ensaios Morais Políticos e Literários. Coleção Os Pensadores. Tradução: João Paulo Gomes Monteiro e Armando Moura D’Oliveira. São Paulo: Abril Cultural, 1973,p.310. - 37 - Entre Kant, Filosofias & Arte Assim, para Hume, o prazer envolve o desprazer que, também, paradoxalmente, se deixa enlevar pelo prazer. De certa forma, há aqui uma tentativa de colocar a ideia d’uma força do prazer na recepção da tragédia. Afirmar que há sentimento de desprazer em relação ao trágico é algo de muita precisão e obviedade. Mas mencionar o prazer como inserido neste desprazer, ou mesmo, antes, como seu condutor, se mostrou uma tarefa teórica que pretendeu afirmar, na tragédia, uma mediação para o sujeito se lançar em um tipo de sentimento de identidade dicotômica, sem que, no entanto, os dois lados desta identidade estivessem capazes de se excluírem e, logo, impedirem qualquer identidade de sentimento na experiência da tragédia, ou fazer deste sentimento uma ideia aporética. Foi preciso, portanto, pensar como as forças do prazer e do desprazer se relacionavam; foi preciso Hume afirmar que, por exemplo, “É aparentemente impossível dar conta do prazer que os espectadores de uma tragédia bem escrita recebem - 40 - Monique Moura como prazer negativo ao invés de, apenas, um desprazer. O sublime, assim, culmina por ser uma espécie de prazer indireto, por abrigar em si, a possibilidade do sentimento de prazer comum à experiência do belo.3 É necessário que se traga aquilo que provoca a comoção, o horror e o medo da natureza para a arte. É na arte que o sujeito se colocará na experiência de fazer parte d’uma situação, sem, contudo, ser ela real. Assim, se, assistimos a uma tragédia, como a peça Medéia, ou mesmo um filme como Heavenly Creatures, apenas para citar exemplos básicos, e nos comovemos com o que ocorre ali, é porque aquilo se torna tão real para nós a ponto de nos conduzirmos à comoção provocada por este ato quando em realidade. Do mesmo modo ocorre com obras de arte sublime que nos 3Isto me incita invocar, como exemplo da realização do sublime no belo, o dizer seguinte de Stendhal: “Absorto na contemplação de tão sublime beleza, atingi o ponto no qual me deparei com sensações celestiais. Tive palpitações, minha vida parecia estar sendo drenada.” Esta descrição serviu como exemplo para identificar a chamada Síndrome de Stendhal, uma doença adquirida por um constante estado contemplativo do indivíduo diante da arte. - 41 - Entre Kant, Filosofias & Arte provocam medo, tanto como provocaria se a tragédia fosse expressa pela própria natureza.4 Ocorre aqui o que deve ocorrer com a obra de arte bela, que, neste caso, existe para, segundo Kant, tornar belo e aprazível o que na natureza é feio e desaprazível. Neste sentido, uma arte sublime transfere para uma obra o objeto de comoção de desprazer tal qual ocorre na natureza. No contexto do prazer negativo do sublime faz parte de seu caráter dinâmico assentar o sujeito na comoção distribuída no horror e no medo. Mas este horror e medo devem dar lugar a uma sensação de captura do belo. Algo só pode ser considerado como dinamicamente sublime se for objeto de medo, mas este medo se realiza em seu próprio fim. Este medo precisa ser superado pela resistência racional do homem em 4 A atenção de Kant para o sublime esteve direcionada com muito mais afinco à natureza do que à arte. A única passagem na sua analítica, em que se refere ao sublime na arte, diz que “o sublime da arte é sempre limitado às condições de concordância com a natureza” Immanuel KANT, Crítica da Faculdade do Juízo. Tradução: Valerio Rohden e Antônio Marques, Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2008, p.90, §23. - 42 - Monique Moura detrimento da imaginação que tende a viciar-se em ser livre ao lado do medo. Não há conclusão do sublime sem o medo superado, porque é aqui onde nascem as condições do prazer. O sublime é um sentimento estético e, também, neste sentido, possui uma expressão dialética. Esta resistência ao poder temível do sublime é necessária tanto na experiência estética com uma natureza sublime como com uma arte sublime.5 Na resistência estão as condições para o ideal do belo. O ser humano aqui arrefece a imaginação e a razão fornece-lhe resistência. Neste momento, a imaginação se deixa no livre jogo com o entendimento e esta relação interfacultária permite o sujeito lançar-se tanto na experiência do belo, como na experiência da moral, através da razão resistente. A razão salva a imaginação da comoção que a deixa por demais desesperada e, uma vez a imaginação segura e salva, é alimentado no sujeito o sentimento do belo para aquilo que outrora se apresentava como terrível e temível. 5 Embora de outra ordem, a arte também é natureza. Não sendo a natureza primária, a arte é uma natureza posterior. - 45 - Entre Kant, Filosofias & Arte ética como instâncias fundamentais da experiência e se liga ao sentimento estético, imbuído da capacidade de, mediante o prazer e o desprazer, assentar- se sob uma relação com a natureza ou com a arte de modo transgressor, entenda-se aqui, capaz de fazer o homem se ver horrorizado e comovido por uma obra ou circunstância da natureza, e neste horror e comoção capturar as possibilidades de encontrar-se como ser humano e enxergar nisso o ideal da beleza. A tese, tanto de Hume, como de Kant, traz uma perspectiva que não aparta o prazer do desprazer, mas que, ao contrário, realiza a sua confluência. Assim, para Hume, “os objetos capazes de inspirar o maior terror e aflição são agradáveis na pintura, e mais agradáveis do que os mais belos objetos, que parecem calmos e indiferentes”,8 e para Kant, os horrores da natureza nos inspiram pensar sobre nossa 8 David HUME, “Da tragédia” In:Ensaios Morais Políticos e Literários. Coleção Os Pensadores. Tradução: João Paulo Gomes Monteiro e Armando Moura D’Oliveira. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 311. - 46 - Monique Moura impotência e pequenez. Contudo, não concluímos nossa experiência do sublime aqui. Precisamos ser resistentes e, ainda assim, vislumbrar uma equidade com a natureza trágica. Esta equidade humana à natureza é atingida quando nos comovemos ao lado de uma razão que nos condiciona a regozijarmos do humano dentro de nós, o humano que se dispõe a ver a beleza no sublime sem, contudo, convertê-lo em beleza. Reivindicamos, necessariamente, o belo, para apaziguarmos o sentimento de comoção imbuído do desprazer. A razão chega aqui para acalmar ou frear o curso da imaginação, e servir ao sujeito como resistência enquanto que ao sujeito cabe-lhe condicionar a razão ao ideal do belo, em outros termos, tornar a razão sensível. Daqui podemos vislumbrar, com Hume e Kant, uma aproximação do significado terminológico da tragédia e do sublime, referida no início deste ensaio. Ora, como foi dito, tragédia significava o canto dos atores gregos à alegria, e o termo - 47 - Entre Kant, Filosofias & Arte sublime significava admirável. E não seria coadunável estes significados com os fornecidos por Hume, em relação à tragédia e por Kant, em relação ao sublime? 9 Para Hume, a tragédia culmina por assentar-se numa recepção do prazer, sem o qual ela não teria serventia. Os atores gregos dançavam, cantavam odes à alegria e assumiam no trágico a resistência do prazer. Para Kant, o sublime, em especial na natureza, nos arrebata e nos faz sentirmos admirados por tamanha força e grandiosidade da experiência sublime e, ao mesmo tempo, nos tornamos admiráveis a nós próprios, por resistirmos o nosso medo ou comoção e nos permitirmos no vislumbre do prazer. Aqui resistimos à nossa sensação de pequenez e abraçamos 9 Para uma ulterior pesquisa, com maiores resultados, sobre sublime e trágico, indico uma leitura necessária em Friedrich Schiller. Os professores Pedro Süssekind e Vladimir Vieira trabalharam juntos em uma obra interessante para este tipo de pesquisa. Segue a referência: Pedro SÜSSEKIND (Org). Friedrich Schiller: do Sublime ao Trágico. Tradução: Vladimir Vieira. Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2011. - 50 - Monique Moura - 51 - Entre Kant, Filosofias & Arte A influência de Kant no sentido de reflexão estética do Romantismo Alemão - 52 - Monique Moura - 55 - Entre Kant, Filosofias & Arte uma beleza válida universalmente para seu objeto julgado. O belo aí reivindicado não é um conceito inerente ao objeto, mas um juízo.2 Ora, se é a reflexão uma faculdade estética que tem por função retirar o particular do universal, ela, portanto, é um juízo estético, reivindica universalidade, dá fins sem conceituá-los como determinantes e se mostra necessária ao sujeito se a ele lhe cabe ou lhe provém tomar um objeto fora da perspectiva epistemológica. II Walter Benjamin, ao interpretar os românticos, precisamente, na sua dissertação de 1973 O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão, nos traz a 2Discuti até agora sobre dois momentos do juízo estético, a saber, o de qualidade (todo o juízo de gosto é estético), o de quantidade (o sujeito reivindica universalidade do seu juízo). Kant menciona outros dois momentos, a saber, o de relação, que identifica os fins do objeto sem conceito e o de modalidade que identifica o julgamento estético enquanto uma necessidade do sujeito. Cf. Id.,Ibd., p.64,83. - 56 - Monique Moura ideia de reflexão como ponto identitário da crítica no primeiro Romantismo. Ora, e por que não falar nesta relação entre reflexão e crítica como um reflexo da tese kantiana acerca da faculdade reflexiva na Crítica da Faculdade do Juízo? Tanto em Kant, como nos românticos, podemos falar da perspectiva de uma obra de arte subsumida a uma reflexão. Isto significa dizer, estamos falando aqui de uma posição crítica do sujeito diante do aspecto formal da arte. O objeto chega ao sujeito vazio de conceito determinado, e, mediado pelo juízo reflexivo, ele é subjugado ao juízo subjetivo. O sujeito, embora se mostre o receptáculo da arte é aquele que a subjuga, na medida em que a recebe e lhe agarra. Mas, antes de prosseguir com este argumento, gostaria de delimitar que não é digno fazer aqui uma referência ao sentido de reflexão nos românticos, “estes autores de uma literatura de tendências filosóficas”,3 sem apontar a forte presença 3 Erwin THEODOR. Introdução à Literatura Alemã. São Paulo, SP. Editora USP, Série Buriti, 1968, p. 97. - 57 - Entre Kant, Filosofias & Arte do sentido de reflexão colocada por Fichte, considerado um filósofo romântico e influenciado, em toda sua filosofia, por Kant. Fichte concede à capacidade reflexiva do sujeito kantiano o sentido de uma ação da reflexão. Assim, o sujeito fichteano toma a roupagem de um Eu Infinito, cuja reflexão é sua ação primeira, infinita.4 Esta infinitude será tomada pelos românticos Schlegel e Novalis segundo o sentido de conexão ao invés de um sentido de continuidade5 da reflexão através da posição do sujeito. Benjamin observa a reflexão infinita como marca de um voltar- se para o ser originário, que em Fichte trata-se do voltar-se para o Eu como uma unívoca intuição intelectual. Sobremaneira, 4A seguinte frase nos permite a compreensão do sentido cíclico ou infinito da reflexão: “ [...] pode-se refletir de novo sobre a sua própria reflexão, e assim por diante...” Johann Gottlieb FICHTE. Sobre o Conceito de Doutrina- da-Ciência ou da Assim Chamada Filosofia. Coleção Os Pensadores, Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 34. 5Cf. Walter BENJAMIN. O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão. Tradução: Márcio Seligmann-Silva, São Paulo, Iluminuras, 2002, p. 34. - 60 - Monique Moura Os românticos se permitiram, na literatura que fizeram, colocar sua obra voltada a uma espécie de apologia da crítica de arte. Postularam a junção da capacidade de refletir com a capacidade de crítica do sujeito e colocaram a tarefa da crítica como um médium-da-reflexão.9 Eis aqui o sentido de conexão do refletir romântico, como crítica presente na reflexão. A crítica enquanto conexão, portanto, ganhou o significado de engendrar a obra. “Os românticos – e Walter Benjamin na esteira deles perceberam logo as íntimas implicações entres esses dois conceitos kantianos de reflexão e de crítica e souberam explorá-las”.10 Não seria trabalho inútil, e também nem tampouco inovador, indicar a influência de Kant sobre as tendências filosóficas dos românticos. E, se Benjamin 9Id.,ibd., p. 46. “No médium-da-reflexão da arte formam- se novos centros de reflexão” Id.,Ibd., p.79. 10 Virginia Araujo FIGUEIREDO. “Kant: Liberdade da Forma e Forma da Liberdade”. In: HADDOCK-LOBO, Rafael (Org). Os Filósofos e a Arte. Rio de Janeiro: Rocco, 2010, p. 59-78. p. 65-66. - 61 - Entre Kant, Filosofias & Arte quis mostrar a importância do Romantismo para o surgimento da crítica enquanto reflexão, aqui eu quis reafirmar a sua tese, ao tentar ir mais aquém, em um processo regressivo que culminou na referência ao espólio do que a Crítica da Faculdade do Juízo anunciou como sentido de reflexão. Se em Kant a reflexão na estética é retirar do particular o universal,11 nos românticos a reflexão teve o papel de atingir, como afirma Schiller, “um caráter mais universal”12 da obra de arte, donde nasceu com isto o sentido da crítica da obra como constituinte de uma reflexão que, por nunca determinar o objeto, o cria infinitamente. Assim, a reflexão atinge no sentido de universalidade, não só o modo como juízo se propõe conseguir dar conta da obra em sua totalidade, na medida em que realiza o julgamento ou a crítica, mas também atinge o sentido do não 11Cf. Henry ALLISON, Kant‘s theory of taste: A Reading of the Critique of Aesthetic. Cambridge: University Press, 1002, p.128. 12Cf.Friedrich von SCHILLER. Über die ästhetische Erzehung des Menschen in einer Reibe von Briefen. München: Carl Hanser Verlag, 1989. N. XXII a XXIV, p.636-651. - 62 - Monique Moura plenamente quantificável, e com isso, a negação de uma totalidade, com o fim de se propor enquanto infinitude da obra de arte. E este ganho só se torna possível através da reflexão. - 65 - Entre Kant, Filosofias & Arte Infelizmente, ainda para alguns interessados em filosofia, com leituras e compreensão vulgatas, parece uma estranheza tratar de posições similares entre o pensamento de Kant e Nietzsche, se partimos do lugar comum de que Nietzsche se mostrou um crítico ferrenho de Kant. Contudo, digo aos que não aceitam a relação Kant-Nietzsche que eu não gostaria de interpretar Nietzsche de modo kantiano, ou Kant de modo nietzschiano, mas levantar uma leitura destes filósofos como expositores das relações entre o sentimento de perda da metafísica e pensamento sobre a arte, temas estes que, embora com certas distinções entre os dois filósofos, nutrem- se de perspectivas plenamente copuláveis. Portanto, o que parece sensato pontuar, neste sentido, a título de problema da minha análise, é como cada um construiu seu pensamento sobre o lugar da arte segundo o sentimento de uma ruptura inevitável com a metafísica tradicional. - 66 - Monique Moura I A publicação da Crítica da Razão Pura (Kritik der Reinen vernunft, 1789) de Kant divulgou, como sabemos, um programa de crítica à metafísica clássica, ao julgar a pretensão de conceber o objeto enquanto envolto de uma essência dada, i.e., enquanto reduto da uma certa verdade imutável, em relação a qual o sujeito estaria subsumido às condições de verdade do objeto, ao invés do objeto estar subsumido às condições da possibilidade do conhecimento já anteriormente existentes: as condições a priori no sujeito. Kant nega que esforços filosóficos por conceitos supra fenomênicos tenham de fundamentar o sentido da experiência. Desta forma, Kant nem se mostrou cético, nem tampouco dogmático. Com efeito - e o que aqui fica dito já é um lugar comum no tema da filosofia, porém nunca irrelevante de se pontuar – Kant tentou instaurar na filosofia o método criticista para a teoria do conhecimento, posto que buscou avaliar, não como fizera a metafísica, o conhecimento do objeto em si, mas as - 67 - Entre Kant, Filosofias & Arte condições de possibilidade para o conhecimento.1 A pergunta filosófica deixou de ser feita ao objeto, para ser feita ao sujeito. Esta tarefa só pode ser realizada por meio da crítica oriunda de uma razão disposta a afirmar a capacidade do sujeito de se colocar enquanto crítico e legislador do seu conhecimento. Kant, neste sentido, colocou a epistemologia e a metafísica no terreno de uma razão denominada pura, guiadora de uma nova metafísica denominada transcendental, uma vez que a transcendência seria o exercício do sujeito de reconhecer suas possibilidades de conhecimento sem necessitar ir além destas condições e cair no dogmatismo ou apegar-se aos fenômenos e cair em um ceticismo. A crítica kantiana à metafísica abriga uma estética, mas, preciso ressaltar: 1 Sabemos que o anseio de Kant por realizar uma filosofia plenamente criticista não atingiu de fato os seus resultados esperados. Um dos exemplos de avaliação desta incapacidade da filosofia kantiana é o pensamento de Husserl, que desenvolve uma análise das aporias kantianas, com a consideração de que o pensamento de Kant, mesmo tendo apelado para os fenômenos, ao lado dos princípios a priori, construiu apenas mais um discurso formalista na história do pensamento. - 70 - Monique Moura Kant e Nietzsche criticaram a metafísica clássica4 e escreveram sobre a relação entre filosofia e arte,5 ao colocarem a experiência com a arte como distinta da filosofia e da ciência, isto é, como independente da necessidade de conhecimento, um sentimento que agrada sem conceito. No entanto, Nietzsche vai um pouco mais além que Kant no tema da experiência com a arte. A ausência do conhecimento definitivo da arte não significa tão somente uma separação da arte com a epistemologia, significa que a arte dá conta de um saber 4Me parece uma empreitada delicada tratar de um Nietzsche metafísico ou não metafísico. Corremos um sério risco de pensarmos um Nietzsche inteiramente metafísico. Mas, devemos, além disso, considerar que Nietzsche criticou a metafísica grega e, neste sentido, foi anti-metafísico. Em relação aos gregos, Nietzsche lamenta a metafísica aspirante da verdade universal, e em relação à Kant, ele lamenta o fim da possibilidade de uma metafísica em que mencione a essência da coisa (coisa- em-si), posto que para Nietzsche é possível falar sobre essência sem falar em verdade universal, o contrário do que pensou Kant. 5É mais viável falar em filosofia da arte do que, prontamente, uma estética no pensamento de Nietzsche. Isto é perceptível pelo próprio modo como ele escrevia e defendia suas teses. - 71 - Entre Kant, Filosofias & Arte que a ciência não consegue abarcar. Trata- se de um saber difícil, porque é, ao mesmo tempo, como um nada saber. Assim, não se trata de conhecimento por conceito, nem tampouco por hipóteses ou fórmulas científicas, não busca resposta, nem tampouco as contém. É neste sentido que a beleza expressa na arte e na natureza “é a força de um instinto de conhecimento que se tornou mais difícil”,6 porque reinventado. A arte, tanto em Kant, como em Nietzsche, não tem a função epistemológica da filosofia, no entanto, eles tenham se utilizado da filosofia para abordá-la. Afirma Nietzsche: “o filósofo reconhece a linguagem da natureza e diz: “necessitamos de arte”7 e, também, “só nos falta uma parte do saber.”8 O que seria este saber senão o filósofo ter a sabedoria de relacionar-se de modo novo com o belo e a arte na natureza? Trata-se de um saber que nada pode conhecer epistemologicamente, porque se executa na 6 Id., Ibd., p. 149, §43. 7 Id., Ibd., p. 15, §51. 8 Id. Ibd., loc. cit. - 72 - Monique Moura arte, neste sentido, trata-se de uma genialidade estética. A separação entre arte e filosofia, contudo, em Kant, é bem mais forte do que em Nietzsche. Para Kant, o terreno da arte é tacitamente distinto da filosofia. Em Nietzsche, a distinção entre arte e filosofia existe não só como forma de potencializar a arte em relação à filosofia, mas como manifesto de uma transfiguração da própria finalidade da filosofia.9 Nietzsche chega, neste sentido, a colocar a arte no domínio completo da filosofia, do ponto de vista da erradicação da necessidade epistemológica do filósofo diante do objeto. 9Temos exemplos de filósofos que cultivaram seu pensamento não através de textos rigidamente discursivos, mas artísticos. Não é novidade para nós as obras de Albert Camus, de Sartre e de Ayn Rand, filósofos que fizeram, em verdade, literatura, para atingir o tom filosófico do que escreviam. - 75 - Entre Kant, Filosofias & Arte IV O cenário da estética de Kant e da metafísica da arte de Nietzsche nos exporia como a angústia da impossibilidade de uma metafísica prontamente isolada do sujeito filosófico os conduzem para a inspiração que afirma uma necessidade de uma arte original, cujo apoio e teorização encontre seus fundamentos no filósofo, seja para construir o sistema estético (Kant), seja para fazer-se necessidade da própria arte (Nietzsche). O filósofo “sente tragicamente que perdeu o campo da metafísica, todavia o torvelinho enovelado das ciências não pode satisfazê-lo”. O vislumbre da ausência da verdade eterna na filosofia garante a tragédia da metafísica. Filósofos como sacerdotes da verdade? Não mais. E como agora expressar a necessidade de uma metafísica? Nietzsche diz “em meio a este fervilhar, [o filósofo]12 tem que ressaltar o problema da existência e, acima de tudo, o 12 Grifo meu. - 76 - Monique Moura problema do eterno”.13 Este problema do eterno não é mais algo proposto por uma metafísica separada da arte, mas pela plena arte capaz de dar conta, inclusive, de uma metafísica e representar toda a existência humana desde sua organicidade. Embora Kant tenha realizado uma crítica à metafísica ao se basear no que ele concebia como um caminho seguro para o rumo das ciências,14 não foi para as ciências que a sua filosofia se inclinou ou que o seu pensamento favoreceu. Kant não apenas inaugurou uma crítica da razão, mas, simultaneamente, uma crise da razão. Com a publicação da Crítica da Faculdade do Juízo, esta crise ficou ainda mais sólida, por abrir um caminho vasto para o cenário do discurso estético e/ou sobre a arte. Com a superação da metafísica proclamada sistematicamente por Kant, nasce a atenção para a estética e para a arte, como novos domínios para a filosofia. Isto seria gratuito? Da parte deste ensaio, 13Id., Ibd., p. 5, §7. 14 Cf. Immanuel KANT. Crítica da Razão Pura. Prefácio à segunda edição, B VII. - 77 - Entre Kant, Filosofias & Arte não é preferível dizer que sim, nem em relação a Kant na sua estética, nem a Nietzsche em seu discurso sobre a metafísica da arte. Fica, então, a pergunta, que guarda já o desfecho ou incômodo da minha micro-tese: Por que será que Kant, após levantar a crítica à metafísica e tentar nos fornecer o programa de uma filosofia segura, conclui seu sistema deixando-nos uma obra que versa sobre estética, não para o conhecimento, como fizera na crítica da razão pura, mas para a arte?15 E por que Nietzsche, em um livro que fala sobre a relevância da arte, intitula-o como “O Livro do Filósofo”? Não, não parece gratuito. Assim, para Nietsche é preciso dar direção da genialidade à arte, como aplicação da força humana e símbolo de sua 15 Há uma obra de Kant, a qual alguns tem denominado como o que seria uma possível quarta crítica, intitulada, Reflexões sobre Antropologia (Reflektionen zur Anthropologie), na qual ele escreve por meio de fragmentos, um tipo de escrita incomum nos seus trabalhos, e expõe um opulente conjunto de comentários sobre aspectos de sua estética, como o problema do gênio e da arte. Infelizmente, ainda permanece como uma obra menor nas academias brasileiras. - 80 - Monique Moura - 81 - Entre Kant, Filosofias & Arte “Schönheit ist Freiheit in der Erscheinung” Friedrich Schiller Kant, na Crítica da Faculdade do Juízo (Kritik der Urteilskraft, 1790), concebe a estética como um sistema no qual a experiência do sujeito com a arte é movida por um juízo estético e por um sentimento de prazer que atribui ou impõe a beleza no objeto, assim, o belo não lhe é essencial. O belo não se configura como conceito, mas como juízo, portanto, o belo da arte, em Kant, não está atrelado à função da filosofia, a saber, de lidar com as condições de possibilidade do conhecimento. Heidegger, em A Origem da Obra de Arte (Der Unsprung des Kunstwerks, 1977), nega que a arte tenha de ser referida como objeto de estética, posto que isto implica numa coisificação do objeto artístico e na perda do seu caráter ontológico, isto é, do reconhecimento do ser. Assim, Heidegger constrói um discurso por uma ontologização da arte em detrimento de sua estetização. Esta - 82 - Monique Moura querela me incita agora a pensar a estética segundo a problemática de como conceber a arte no moderno Kant e a arte como desvelamento ou origem do ser no nosso contemporâneo Heidegger. Assim, estes dois filósofos deixam por ora uma inquieta reflexão, a saber: a estética enquanto a favor da arte e em seguida (também) contra a arte, se pensada frente a uma ontologia. E este tema perpassa uma certa busca de sentido por uma verdade ou não verdade na relação com a arte. I Para Kant, é o sujeito o elemento capaz de dominar a arte no sentido de decidir sobre o que ela deva ser dentro de sua capacidade perceptiva.1 Isto marca uma defesa do que ele chama de crítica do 1Embora saibamos que houve uma descentralização do sujeito no discurso filosófico e para alguns contemporâneos parece algo obsoleto evidenciar a subjetividade, eu não posso deixar de evidenciar aquilo que se mostrou como o principal “tijolo” do pensamento kantiano e fundou todo o sentido da filosofia passada e atual. - 85 - Entre Kant, Filosofias & Arte colocado numa atitude consciente, se vê em pazes com o sublime, isto é, ele se encontra não mais fragilizado pela comoção (Rührung) provada pelo sublime. É neste momento em que o belo chega como instante do sublime, ou diria, como uma conclusão do sublime4. A razão chega ao sujeito como um território favorável ao ideal do belo, isto significa dizer, o ideal de uma harmonia como substituição de uma desarmonia das faculdades. Eis aqui, portanto, um papel moral do sentimento estético do sublime, porque o ideal do belo é exigido na razão que, em Kant, ocupa um papel fundamental para a moral. Portanto, o ideal do belo é o mesmo que ideal de uma alma boa. A arte seria, então, aqui, uma espécie de reduto de julgamento, seja advindo do sentimento de belo ou do sublime. Kant se esforça por colocar em sua estética o valor da contemplação ao lado de uma reflexão (Überlegung) crítica capaz de conceber a arte enquanto um 4É neste sentido, portanto, que se fala em arte bela como algo que também abrange a arte sublime. - 86 - Monique Moura objeto estético. O cenário do objeto estético é a natureza. É à natureza que Kant concede todo o sentido da arte. E acho necessário pontuar que, se falo em natureza nesta perspectiva, não me refiro apenas ao sentido meramente paisagístico, se assim fosse este texto seria uma abordagem de uma suposta teoria impressionista em Kant e eu estaria com toda certeza burlando sua tão rica estética. A natureza aqui é uma referência tanto a uma natureza paisagística ou circundante (árvores, flores, montanhas, tempestades) como a uma natureza subjetiva imbuída de ânimo e dom para a criação da arte, neste caso trata-se, em acordo com Kant, de uma natureza do gênio. Esta natureza é capaz de fornecer o aspecto formal de uma outra natureza, a saber, o objeto estético, oriundo da relação entre as duas naturezas anteriormente ditas. A natureza revela-se como uma forma a ser inspirada na arte. Não são as flores, as tempestades, ou qualquer outro produto da natureza que o gênio copia tacitamente para criar a arte, mas a forma como tais produtos se revelam na - 87 - Entre Kant, Filosofias & Arte imaginação criadora do gênio. Esta forma é desinteressada e aparece como se fosse algo natural. “As coisas se passam, portanto, como se o belo da natureza fosse um penhor dado a nós pela própria natureza [...]”.5 Assim, o objeto estético se apresenta como algo natural, no sentido de exprimir-se sem exigir um conceito epistemológico do que ele deva ser. Ele apenas reivindica do sujeito o julgamento crítico e sua apreciação estética. No entanto, todos os que julgam o objeto estético em geral falam da arte como algo capaz de abrigar certezas universais, isto porque a arte se revela em um como se (als ob) fosse uma verdade. Embora Kant distinga a arte do gênio, como arte bela, e as demais artes, como arte mecânica (utensílio e demais utilidades) e arte agradável (entretenimento), ele não quer aqui afirmar tais características como classificações para assumir uma verdade da 5Jens KULEMKAMPFF. “A Lógica Kantiana do Juízo Estético e o Significado Metafísico do Belo na Natureza”. IN: ROHDEN, Valério (Coordenador). 200 anos da Crítica da Faculdade do Juízo de Kant. Porto Alegre: Editora da UFRGS; Instituto cultural brasileiro alemão Goethe Institut, 1992, p. 09 – 23/ p. 22. - 90 - Monique Moura [...] não pode haver nenhum fim subjetivo como fundamento do juízo do gosto. Mas também nenhuma representação de um fim objetivo, isto é, da possibilidade do próprio objeto segundo princípios da ligação a fins, por conseguinte nenhum conceito de bom pode determinar o juízo de gosto.7 O recurso à razão é o que torna capaz a confluência entre estética e moral. Mas esta finalidade não é originária, ela é colocada posteriormente, porque a experiência estética não precisa da razão (como o seu grande fundamento) para ser plenamente uma experiência estética, mas sim, reitero, do subjetivo e do sensível. Aqui, em outros termos, um gosto é aguçado não pela razão, mas pela reflexão crítica sensível. Neste caso, a razão chega depois, porque cede abrigar em si um ideal de belo, como parte de ideal de uma boa alma. A razão aqui se permite ao sensível8 e isto favorece sua união com a estética. A 7Id.,Ibd., p. 67, §11 8 Assim como o entendimento se permite a participar do jogo das faculdades para a promoção do sentimento do belo. - 91 - Entre Kant, Filosofias & Arte verdade, portanto, não é uma verdade estética ou da arte, mas uma verdade de ordem prática. II Heidegger reivindica uma ontologia para a compreensão do que seja arte e seu criador. Aqui, a estética é descartada como compreensão possível da arte. Heidegger quer compreender a arte enquanto obra ontológica, ao invés de um objeto estético. Uma obra ontológica revela algo linear sobre o ser, i.e, sua verdade, ao passo que o objeto estético parece tergiversar o ser, porque implica numa percepção estética de um objeto, isto significa dizer, trata-se de algo que, com Kant, abraça apenas a sensibilidade (Sinnlichkeit) e a crítica (Kritik). A arte não deve, portanto, exigir uma análise crítica sensível, mas uma experiência do ser, isto significa assumir um saber do sendo (Wissen von Seienden) da obra de arte. Como consegui-lo? Heidegger aponta para a apreensão do Mundo (Welt) que a arte nos abre. Este Mundo é a arte em seu sendo, em seu - 92 - Monique Moura acontecimento. Em suma, para apreender a arte enquanto obra, deve-se não capturá- la enquanto apenas coisa, do contrário a experiência aqui consistiria numa objetificação da arte. Heidegger nega tal objetificação para assumir a necessidade de uma des-objetificação da arte, ou seja, uma abertura para o Mundo, cujo significado refere-se àquilo que é o outro da terra, o abrigo das experiências comuns e habituadas. O Mundo, portanto, é um para além da Terra (Erde), um para além da arte enquanto, por exemplo, a mecânica dos utensílios. É o revelar do ser sem determinação de qualquer conceito comum e linguagem pronta e/ou lógica. “A obra dá a conhecer abertamente um outro, manifesta outro.”9 Para estar aberto em apreender isto é necessário retirar a obra de arte de uma pretensa coisificação (Verdinglichung) para colocá-la sob uma abertura ontológica. 9Martin HEIDEGGER. A Origem da Obra de Arte. Tradução: Idalina Azevedo e Manuel António de Castro. Edição Bilíngue. São Paulo: Edições 70, 2010, p. 43. - 95 - Entre Kant, Filosofias & Arte calçado. Estaríamos mergulhados na interpretação mediante uma confiabilidade do uso do utensílio adquirido pelo camponês ou camponesa. A confiabilidade é o costume com o ser do utensílio. Aqui, a confiabilidade do utensílio “assegura à Terra a liberdade de sua constante afluência”.10 No calçado, o camponês ou camponesa guarda todo o sentido de seu Mundo na sua Terra. Este é o ser do utensílio, a sua verdade. Certamente, a pintura não nos chega agora para fazer compreendermos apenas isto, mas para nos trazer algo de outro, algo que seja o próprio ser desta pintura e não apenas o ser do utensílio observado. No entanto, o mundo desencoberto nesta pintura assenta-se no ser do utensílio, porque a Terra sustenta o Mundo. [...] as coisas de uso, à nossa volta, são as mais próximas e propriamente coisas. Deste modo, o utensílio é, em parte, coisas, porque determinado pela sua natureza da coisa, e, 10 Id. Ibd., p. 83. - 96 - Monique Moura contudo, mais ainda; ao mesmo tempo é, em parte, obra de arte e, contudo, menos, porque sem a auto-suficiência da obra de arte.11 Se falamos da obra repousada em si, significa que ela repousa na terra. O si da obra é a Terra. Mas como, mesmo diante desta compreensão, ainda atingirmos o algo de outro que a arte nos mostra? Este algo de outro é o tomar o repouso da obra como algo novíssimo, algo de originário que salta aos nossos sentidos pela primeira vez: não nos perdermos na confiabilidade do ser da coisa, nem nos perdermos, tampouco, na coisa enquanto coisa. Significa nos colocarmos para o outro disto tudo. Eis o sentido do repouso da obra como condição para a alethéia, posto que aquilo que já foi visto, é que devemos, de fato, ver. Para poder ver é preciso já ter visto. Para haver Mundo é preciso haver Terra. O repouso não é estagnação, mas é “o pôr-se em obra da verdade do sendo”,12 ou ainda, 11 Id., Ibd., p. 67. 12Id.,Ibd., p.87 - 97 - Entre Kant, Filosofias & Arte o próprio pulsar do movimento rumo ao acontecimento do ser.13 III A preocupação de Heidegger refere- se à relação entre coisa e obra de arte. Aqui, a postura de Kant fica comprometida com uma coisificação da arte, o que culmina por significar, para Heidegger, a impossibilidade da arte. A arte para Heidegger tem de acontecer como verdade, e se ela foge do modo original como se apresenta, então, ela deixa de ser uma verdade para constituir um equívoco. Assim, Kant, se o colocamos sob a ótica heideggeriana, se mostra um falsificador da compreensão da arte. Este problema é 13Heidegger tenta explicar isto ao conceber, também, um templo como ilustração para o seu pensamento. “Graças ao templo, o deus se faz presente no templo... Não é nenhuma cópia para que nela se tome conhecimento mais facilmente de como o deus parece, mas é uma obra que deixa o próprio deus se presentificar e, assim, o deus propriamente, é.” (Martin HEIDEGGER, A Origem da Obra de Arte. Tradução: Idalina Azevedo e Manuel António de Castro. Edição Bilíngue. São Paulo: Edições 70, 2010, p. 103, 105).
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