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Estilos de pensamento biológico sobre o fenômeno vida, Notas de estudo de Ciências da Educação

Artigo que aborda sobre a questão “O que é vida?”, a qual perpassa a história da humanidade e a mesma tem encontrado respostas a esta pergunta, cada uma no seu tempo histórico, no contexto sociocultural de cada época. O objetivo principal deste estudo é comunicar os estilos de pensamento biológico que historicamente predominaram no modo de explicar e ao mesmo tempo compreender o fenômeno vida. Ao investigar sobre estilos de pensamento biológico, realizamos um estudo exploratório do contexto nar

Tipologia: Notas de estudo

2012

Compartilhado em 08/11/2012

Aldair85
Aldair85 🇧🇷

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Baixe Estilos de pensamento biológico sobre o fenômeno vida e outras Notas de estudo em PDF para Ciências da Educação, somente na Docsity! p. 23-49 CONTEXTO & EDUCAÇÃO Editora Unijuí Ano 26 nº 86 Jul./Dez. 2011 Estilos de pensamento Biológico Sobre o Fenômeno Vida Danislei Bertoni1 Araci Asinelli da Luz2 Resumo A questão “O que é vida?” perpassa a história da humanidade e a mesma tem encontrado respostas a esta pergunta, cada uma no seu tempo histórico, no contexto sociocultural de cada época. O objetivo principal deste estudo é comunicar os estilos de pensamento biológico que historicamente predominaram no modo de explicar e ao mesmo tempo compreender o fenômeno vida. Ao investigar sobre estilos de pensamento biológico, realizamos um estudo exploratório do contexto narrativo histórico e sociocultural desde a antiguidade até a contemporaneidade e apontamos para a instauração, a extensão e a transformação de quatro estilos de pensamento biológico: descritivo, mecanicista, evolutivo e da manipulação genética. Nas considerações finais, apresentamos uma aplicação prática dessa sistematização dos estilos de pensamento biológico, a saber, uma proposta de reorganização curricular da disciplina de biologia no ensino médio. Palavras-chave: Fenômeno vida. Estilo de pensamento. Biologia. Ludwik Fleck. História da Biologia. StyLeS of BioLogicAL thought on the Phenomenon of Life Abstract The question, “what is life?” permeates the history of humanity, and the same has found answers to this question, each in its historical time, in the sociocultural context of each time. The main goal of this study is to report the styles of biological thought that historically were dominant in the way of explaining it and also understand the phenomenon of life. To inves- tigate styles of biological thought, we conducted an exploratory study of the historical and sociocultural narratives context from antiquity to contemporary times and we have pointed out to the instauration, extension and the transformation of four styles of biological thought: descriptive and mechanistic, evolutionary and genetic manipulation. The final thoughts section, we presented a practical application of this systematization of styles of biological thought, namely, a proposal for a High School Biology curriculum reorganization. Keywords: Phenomenon of life. Thought style. Biology. Ludwik Fleck. History of Biology. 1 Doutor em Educação pela UFPR e professor de Biologia da Rede Estadual (SEED/PR). 2 Doutora em Educação pela USP e professora do Departamento de Teoria e Prática de Ensino da UFPR. Danislei Bertoni – araci asinelli Da luz 24 conteXto & eDucAÇÃo Neste trabalho, corroboramos com o entendimento do fenômeno vida como objeto de estudo da Biologia (Brasil, 2000; Bertoni, 2007; Paraná, 2008). Destacamos que o objetivo principal deste estudo é comunicar os estilos de pensamento biológico que historicamente sobressaíram no modo de explicar e ao mesmo tempo compreender o fenômeno vida, desde a Antiguidade até a contemporaneidade. Também, contribuir para a divulgação da epistemologia evolucionária3 de Ludwik Fleck (1896-1961) e fazer valer o direito que tem o livro Gênese e desenvolvimento de um fato científico4 (Fleck, 2010), de ocupar uma posição original na história da teoria do conhecimento. Iniciaremos, ainda, as bases de discussão para a aplicabilidade da tese dos estilos de pensamento bioló- gico na organização curricular da disciplina de Biologia na Educação Básica. A demarcação de estilos biológicos decorreu de um estudo exploratório empreendido em um significativo recorte espaço-temporal do pensamento en- quanto processo genérico e habitual da vida humana, pois esses estilos represen- tam pontos de vista dominantes na produção e comunicação do conhecimento biológico e que marcam época. Buscamos compreender, a partir da própria história do pensamento humano, um modo particular de realizar esse processo, o modo científico. Como diz Rüsen (2001, p. 54), “o homem não pensa porque a ciência existe, mas ele faz ciência porque pensa” e “chamamos o pensamento de atividade social por excelência, que, de modo algum, pode ser localizada completamente dentro dos limites do indivíduo” (Fleck, 2010, p. 149). Ludwik Fleck e os estilos de pensamento Ludwik Fleck, pensador polonês da primeira metade do século 20, tem sua trajetória de vida marcada praticamente pelo trabalho na pesquisa e no ensino, entremeados com a produção e a comunicação de conhecimentos no 3 Usamos o termo epistemologia evolucionária pela proximidade das suas ideias com o evolucion- ismo darwiniano e de uma matriz epistemológica fundada nas ciências biológicas, como pode ser conferido em Parreiras (2006). 4 Esta obra de Fleck foi publicada originalmente em alemão no ano de 1935 sob o título Entstehung und Entwicklung einer wissenschaftlichen Tatsache. estilos De Pensamento Biológico soBre o Fenômeno ViDa 27Ano 26 • nº 86 • Jul./Dez. • 2011 • O estilo de pensamento consiste numa determinada atmosfera (atitude, contexto, situação) e sua realização (atitude que se realiza), com disposição para um sentir seletivo e para um agir direcionado e correspondente, a qual gera formas de expressão adequadas conforme a predominância de certos motivos coletivos (p. 149). O estilo de pensamento corresponde, portanto, a um conjunto de pressu- posições básicas, tácitas ou não, conscientes ou inconscientes, a partir das quais, em qualquer área ou disciplina, o conhecimento é construído (Bombassaro, 1995). O estilo de pensamento se caracteriza com as pressuposições com as quais construímos nossa visão de mundo. Fleck (2010) considera que o estilo de pensamento mantém três momen- tos até a sua mudança. Primeiro se complementa (instaura) e assim se desenvolve (amplia, estende), ao mesmo tempo em que se mantém até o momento em que o estilo passa a sofrer interferência do que ele considera serem complicações. Essas complicações, em Fleck (2010), podem ser consideradas “as situações oriundas de problemas de investigação que não são solucionados pelos conhe- cimentos e práticas contidos nos estilos de pensamento compartilhado” (Deli- zoicov, 2007, p. 82). Entendemos que tais complicações estão ligadas à forma de explicar a realidade até as condições para as quais o estilo inicia o processo de transformação. Assim, a transformação de um estilo de pensamento ocorreria por meio de uma sinergia envolvendo tanto a consciência de que o problema não pode ser solucionado pelo estilo de pensamento em questão, quanto uma flexibilização da coerção de pensamento, que dá certa unidade e estabilidade ao coletivo. Esta flexibilização propiciaria uma intensificação da interação com outros estilos, ou seja, o papel fundamental do que ele denomina de circulação intercoletiva de ideias para a transformação do estilo (Delizoicov, 2007, p. 82). No período de desenvolvimento do estilo, conforme Delizoicov (2007), é que vai se criando o coletivo de pensamento, permitindo que este seja com- partilhado entre os membros. São os conhecimentos e práticas compartilhadas, Danislei Bertoni – araci asinelli Da luz 28 conteXto & eDucAÇÃo propriamente o estado do conhecimento, que fazem a mediação entre sujeito e objeto na interação com a realidade. Para Delizoicov (2007, p. 76), “o coletivo é que dá os instrumentos para que um particular sujeito, com sua capacidade cognitiva, se aproprie da realidade” e é nessa triangulação (sujeito/estado do conhecimento/objeto) “que o sujeito aborda o real, aborda o objeto e produz conhecimento” (p. 76) Fleck (2010) apresenta em seu livro uma concepção de sujeito coletivo além da consideração de que este sujeito compartilha os conhecimentos do co- letivo ao qual pertence. Este sujeito não faz parte de um único coletivo e sim de vários coletivos de pensamento, que, na visão do autor, passa a ser uma espécie de interação sociocultural. Um cientista, ao mesmo tempo em que compartilha os conhecimentos e práticas da comunidade à qual pertence, pode participar, por exemplo, de um partido político, de uma determinada religião, enfim, de outros grupos, científicos ou não (Delizoicov, 2007, p. 81). Para Fleck (2010), essa interação faz as pessoas se apropriarem do estado do conhecimento e, para Delizoicov (2007), isso tem tamanha importância uma vez que contribui na constituição desse sujeito. Desse modo é que Fleck (2010) estabelece a relação entre pensamento coletivo e epistemologia comparada, ou seja, compreender como os estilos de pensamento que se sucederam historicamente se cons- tituíram a partir das interações inter-coletivas e intra-coletivas de ideias compartilhadas por coletivos de pensamento no enfrentamento de problemas de pesquisa (Delizoicov, 2007, p. 81). Com o apoio nesse referencial teórico e epistemológico, estabelecemos um olhar histórico sobre o pensamento biológico. No nosso entendimento, tal abordagem epistemológica passa a ser mais coerente para a compreensão de como se deu o processo contínuo de produção e comunicação, pelo menos em parte, do conhecimento biológico. estilos De Pensamento Biológico soBre o Fenômeno ViDa 29Ano 26 • nº 86 • Jul./Dez. • 2011 Nesse sentido, demarcamos os estilos de pensamento biológico e os modos de entender como o fenômeno vida foi pensado desde a Antiguidade até a contemporaneidade no processo histórico de construção do conhecimento biológico. A seguir, apresentamos uma síntese desses estilos de pensamento biológico. Estilo de pensamento biológico descritivo Este estilo orienta a prática dos filósofos naturalistas em descrever as características dos seres vivos e, assim, a possibilidade de dispô-los hierarquica- mente em classes. A classificação era uma forma de limitar a variedade a grupos em que a totalidade das classes representasse a “grande cadeia dos seres”. Com a instauração e a comunicação desse estilo entre os pensadores gregos, a classi- ficação dos seres vivos passa a representar a harmonia da natureza, “na medida em que ela era expressa na scala naturae” (Mayr, 1998, p. 177). Pensar em descrição implica o envolvimento de toda a expressão da natu- reza imutável, fixista e contemplativa, e não somente a tentativa de classificação desses seres vivos a partir de características estruturais, anatômicas e comporta- mentais. Em uma forma mais sintetizada, o fenômeno vida é interpretado como uma das características do “ser vivo”. Mesmo este estilo tendo-se estendido com as sistematizações das ideias de muitos naturalistas como Anaximandro, Teofrasto, Aristóteles, Lineu, Hum- boldt, Cuvier, Buffon e muitos outros (Bertoni, 2007), desde a Antiguidade até por volta dos séculos 17 e 18, muitas foram as ações descritivas realizadas desde civilizações anteriores aos gregos, sob influência do estilo mítico. Um bom exemplo de apropriação de conhecimento das civilizações anteriores está contido nas ideias do grego Anaximandro sobre a origem dos seres vivos a partir do barro, que passa a compor também o mito de criação do livro bíblico Gênesis, e do homem a partir do peixe (Ronan, 1997a). Danislei Bertoni – araci asinelli Da luz 32 conteXto & eDucAÇÃo para a proposição de um método científico para compreender os fenômenos da natureza. O domínio do método indutivo como forma de investigação, controle e sistematização, permitiu aos médicos anatomistas e aos físicos mecânicos que sistematizassem, por volta do século 15 e posteriormente, proposições que pudessem contribuir para uma nova forma de pensar o fenômeno vida. O estilo mecanicista ganhou adeptos e se manteve fortalecido com as publicações de pensadores como Hipócrates, Galeno, Leonardo da Vinci, Ve- salius, Harvey, Malpighi, Descartes e Newton (Rossi, 2001; Bertoni, 2007). O modelo humano de movimento do sangue, proposto principalmente por Harvey, foi acolhido por Descartes como um dos elementos mais consistentes para explicar a natureza mecânica do fenômeno vida, a ponto de acreditarem que o sangue era o fluido portador do princípio vital. Apesar de ambos concordarem com o movimento do sangue pelo corpo humano, contexto em que Descartes referencia total crédito à Harvey (Rossi, 2001; Westfall, 2003), o filósofo não era adepto ao vitalismo defendido pelo anatomista Harvey, para quem o sangue é uma espécie de portador do princípio vital do qual depende a vida. A teoria cartesiana é coerente com o estilo meca- nicista e não com a crença vitalista, por meio da qual Harvey atribui o princípio vital a algo não material, invisível, porém essência que poderia fluir pelo sangue. Como afirma Mayr (2008, p. 30), tal perspectiva vitalista sustenta que “o agente vital foi caracterizado com mais frequência como um fluido (não um líquido), em analogia com a gravidade de Newton e com o calórico, o flogisto e outros fluidos imponderáveis”. A teoria da combustão do flogisto, elaborada pelo mé- dico alemão Georg Stahl no final do século 17, exime o maior florescimento do vitalismo em oposição ao princípio mecanicista da vida (Mayr, 2008). No entendimento de Descartes, tanto o corpo humano quanto os ani- mais são máquinas e, sem alma, são simplesmente autômatos, não mais que isso. São máquinas construídas pelas mãos de Deus e incomparavelmente mais bem-organizadas, com movimentos bem mais admiráveis do que as máquinas estilos De Pensamento Biológico soBre o Fenômeno ViDa 33Ano 26 • nº 86 • Jul./Dez. • 2011 que eram inventadas pelas mãos humanas (Capra, 1997). Na visão mecanicista, essas máquinas “funcionam com base em princípios mecânicos que regulam seus movimentos e suas relações” (Reale; Antiseri, 2004b). Nesse primeiro momento do mecanicismo, que emerge nos séculos 15 e 16, a preocupação está com a visão de mundo medieval, fortemente marcada pela teologia cristã e pela filosofia aristotélica. A noção de mecanização da natureza tem em si o conhecimento do mundo como máquina e “a máquina do mundo tornou-se a metáfora dominante da era moderna” (Capra, 1997, p. 34) em contraposição a um Universo espiritual e “vivo”. Assim, é importante escla- recer que, nesse momento histórico, o mecanicismo se pautava pela necessidade do estudo dos fenômenos, que podiam ser medidos e quantificados, isto é, a máquina humana, e a dos animais, governada por princípios mecânicos e por leis matemáticas exatas. Por essa razão, Harvey se aproximou mais do princípio vital como explicação do fenômeno vida, do que ao princípio mecânico, “pois os fenômenos que os fisiologistas tentaram explicar envolviam processos quí- micos que eram desconhecidos na época e não podiam ser descritos em termos mecânicos” (Capra, 1997, p. 35). Diferentemente de Harvey, que adere ao princípio vital como um fun- damento não material (ou como substância especial que não podia ser encon- trada na matéria inanimada) para explicar o movimento do sangue pelo corpo, Descartes se aproxima do princípio mecânico pautado na existência material, invisível porém não sobrenatural, de uma causa que considerava ser a respon- sável pelos batimentos cardíacos, o “fogo cardíaco” (Donatelli, 2003). O que causa estranheza em Descartes é que elabora uma explicação mecanicista para o funcionamento do coração, mas ao mesmo tempo se aproxima do princípio vital do fogo cardíaco defendido por Aristóteles e Galeno, na Antiguidade grega. Segundo Donatelli (2003), para sustentar seu posicionamento mecanicista Descartes necessitou explicar sobre a existência de um motor que possibilitasse todas as funções fisiológicas. Esse motor, conforme Donatelli (2003, p. 328), “tem por base o fogo cardíaco que, por um processo semelhante à fermentação, faz com que o sangue entre em ebulição e distribua-se pelo corpo por meio das Danislei Bertoni – araci asinelli Da luz 34 conteXto & eDucAÇÃo artérias”. Lembramos que este posicionamento de Descartes, da fermentação pelo fogo cardíaco como base do movimento do coração e do sangue, é mais flexível ainda se compararmos com mecanicistas mais extremos que acreditavam não haver diferença entre os organismos e a matéria inanimada, isto é, de que não existem processos específicos da vida (Mayr, 2008). Para os mecanicistas, as propriedades da matéria podem ser explicadas pelas propriedades físicas das partes muito pequenas (corpúsculos) que compõem o organismo, assim como pelo movimento que provocam e as interações entre essas pequenas partes materiais, que correspondem ao princípio mecânico das transformações. Desse modo, Descartes explicou a rarefação do sangue quando o fogo cardíaco entrava em contato com o ar (Donatelli, 2003). Diante dessa explanação do contexto histórico de embates entre essas duas concepções contrárias, a do vitalismo de Harvey e a do mecanicismo de Descartes, ressaltamos que aos vitalistas cabia o reconhecimento da grande diversidade de explicações para o fenômeno vida. Segundo Mayr (2008, p. 23), “esse contramovimento é geralmente descrito sob o termo guarda-chuva vitalismo”. Aos mecanicistas cabia o domínio de conhecimentos físicos sobre a conservação da quantidade de movimento, porém faltavam conhecimentos científicos desenvolvidos em tempo histórico posterior, que permitiam criar mo- delos atômicos mais coerentes para explicar as propriedades dessas minúsculas porções da matéria, em superação ao modelo atomista dos quatro elementos, e também sobre a conservação da massa e do conceito de energia e sobre a conservação da energia. Mayr (2008), a respeito dessa discussão sobre o princípio vital ou princípio mecânico, assegura que “desde Galileu até os tempos modernos, tem havido na biologia um movimento de gangorra entre explicações estritamente mecanicistas da vida e as mais vitalistas” (p. 23). De fato, várias formas vitalistas que acondi- cionam o princípio vital representam extensões bastante legítimas do programa cartesiano na biologia mecanicista com meios newtonianos, como pode ser confe- rido pelo conceito “força vital” atribuído por Johannes Müller em substituição ao de “fluido vital”, sendo, para ele, “indispensável para explicar as manifestações estilos De Pensamento Biológico soBre o Fenômeno ViDa 37Ano 26 • nº 86 • Jul./Dez. • 2011 Estilo de pensamento biológico evolutivo O estilo evolutivo emerge por volta do século 18, a partir da transforma- ção do estilo de pensamento biológico descritivo e se caracteriza por apresentar proposições consistentes advindas da teoria da evolução dos seres vivos, em contrapartida com a ideia de um Universo geocêntrico, imutável e estático. Com o estilo evolutivo é possível, num primeiro momento, olhar de modo diferenciado para a diversidade dos seres vivos que compõem a natureza. Nesse contexto histórico de emergência do estilo de pensamento bioló- gico evolutivo, entra em cena nova visão de mundo, a organicista. Esse modo de pensar considera o fenômeno vida em diferentes níveis de organização e enfatiza, em particular, as características que compõem os sistemas ordenados altamente complexos (Mayr, 2008). Nesse sentido, na perspectiva organicista, os processos no nível molecular que poderiam ser explicados exaustivamente por mecanismos físico-químicos, são vistos quase como desprezíveis em outros níveis de integração, pois “são substituídos pelas características emergentes dos sistemas organizados” (p. 38). Essas características emergentes dos organismos vivos “não se devem à sua composição, e sim à sua organização” (p. 38). No entendimento de Jacob (1983, p. 93), “a instauração do conceito de organização no centro do mundo vivo acarreta muitas conseqüências” e basicamente ele trabalha com três ideias. A primeira diz respeito à totalidade do organismo, como em um conjunto integrado de funções. A outra conduz ao desenvolvimento da ideia de que o ser vivo não é estrutura isolada no vazio, mas se insere na natureza, com a qual estabelece diferentes relações. A terceira, um modo diferenciado de organizar os objetos do mundo. Nessa terceira ideia, Jacob (1983) sintetiza a proposição de mudanças na organização das coisas animadas e inanimadas, até então tradicionalmente em três reinos: animal, vegetal e mineral. Nessa perspectiva, o que diferencia o ser inanimado do ser animado está implícito na presença da alma que anima este último e o diferencia na forma que esta atribui substancialmente à poten- cialidade da matéria. Danislei Bertoni – araci asinelli Da luz 38 conteXto & eDucAÇÃo Naturalistas como Lamarck e outros contribuíram no final do século 18 para a organização das ideias em torno da redistribuição das coisas da natureza em dois grupos: seres inorgânicos, considerados corpos compostos de matéria bruta que se expande pela justaposição das substâncias que os formam e não pelo efeito de um “princípio vital” interno; e seres orgânicos, que dispõem de um “princípio vital” muito acentuado e da capacidade de reproduzir os seme- lhantes (Jacob, 1983, p. 23). Nos seres orgânicos, é a presença desse princípio vital que assegura vitalidade para as funções orgânicas, o que permite juntar os defensores dessa concepção e nominá-los de vitalistas, como abordado an- teriormente neste texto. Mesmo com os avanços nas pesquisas sobre célula no século 19, muitos pesquisadores defenderam o vitalismo como modo de explicar as manifestações da vida, agora observadas em uma célula. Sem ainda compreender a organização interna da célula, esses estudos permitiram a elaboração da tese da existência de uma substância especial, o protoplasma, não encontrada nos seres inorgânicos, na matéria inanimada. No ponto de vista de Jacob (1983), não há uma única organização do ser vivo, mas sim “uma série de organizações encaixadas umas nas outras como bonecas russas. (...) A cada nível de organização evidenciado corresponde uma nova maneira de abordar a formação dos seres vivos” (p. 23). Tal constituição, na visão dele, se deu historicamente por meio dos avanços nas pesquisas cien- tíficas. A partir do século XVI, vê-se aparecer, em quatro momentos, uma nova organização, uma estrutura de ordem cada vez mais elevada: primeiro, com o começo do século XVII, a articulação das superfícies visíveis, o que pode chamar estrutura de ordem um; depois, no final do século XVIII, a “orga- nização”, estrutura de ordem dois que engloba órgãos e funções que acaba transformando-se em células; em seguida, no começo do século XX, os cromossomos e os genes, estrutura de ordem três oculta no interior da célula; enfim, no meio do século [XX], a molécula de ácido nucléico, estrutura de ordem quatro em que se baseiam hoje a conformação de todo organismo, suas estilos De Pensamento Biológico soBre o Fenômeno ViDa 39Ano 26 • nº 86 • Jul./Dez. • 2011 propriedades e sua permanência através das gerações. A análise dos seres vivos é realizada sucessivamente a partir de cada uma destas organizações (Jacob, 1983, p. 23). Nessa mesma perspectiva, o físico teórico e filósofo da ciência Fritjof Capra, em A teia da vida – uma nova compreensão científica dos sistemas vivos (1997), defende a ideia da existência de diferentes níveis de complexidade e, em cada nível “os fenômenos observados exibem propriedades que não existem no nível inferior” (p. 40). Compartilhando dessa ideia, o filósofo da ciência Charlie Dunbar Broad, no começo da década de 20, cunhou o termo “propriedades emergentes” para as propriedades que emergem num certo nível de complexi- dade, mas não existem em níveis diferentes (Capra, 1997, p. 40). Capra (1997) acentua à luz desse novo modo de pensar a vida que “as propriedades essenciais de um organismo, ou sistema vivo, são propriedades do todo, que nenhuma das partes possui. Elas surgem das interações e das relações entre as partes. (...) a relação entre as partes e o todo foi revertida. Na abordagem sistêmica, as propriedades das partes podem ser entendidas apenas a partir da organização do todo” (p. 40-41). Nesse contexto, cada nível de organização não pode ser pensado como blocos funcionais ou “montando” uma totalidade limitada como peças de um quebra-cabeça; pelo contrário, cada nível está em constante interação com os demais e eles só se mantêm devido a estas interações. Esse mesmo autor (Capra, 1997) nos ajuda a compreender que a visão complexa é contextual na medida em que a análise limita, isola, fragmenta o todo em partes para entendê-lo fora do seu contexto. Para compreensão do estilo de pensamento biológico evolutivo, evidencia-se a necessidade de inserir as partes no contexto de um todo mais amplo. De modo contrário ao modelo contextual e próximo ao analítico, o estilo biológico descritivo assumia tal postura ao retirar a espécie do ambiente para poder analisar suas características e classificá-la de acordo com o seu estado de perfeição. Do momento de transformação ao estilo evolutivo em diante, o estilo Danislei Bertoni – araci asinelli Da luz 42 conteXto & eDucAÇÃo No Quadro 3, a seguir, apresentamos uma síntese com a concepção de vida no sentido abrangente do estilo de pensamento biológico evolutivo. Quadro 3 – Conceito de vida a partir do estilo de pensamento biológico evolutivo ESTILO CONCEPÇÃO DE VIDA SINGULARIDADE CONCEPÇÃO ABRANGENTE CONCEITO Evolutivo Contextual, organicista e complexa: célula ↔ organismo ↔ biosfera Propriedade emer- gente Integração Conceito emer- gentista de vida Fonte: Elaborado pelos autores. Estilo de pensamento biológico da manipulação genética O estilo da manipulação genética se caracteriza por apresentar, a partir do século 20, uma nova geração de pesquisadores da área da Biologia, da Física e da Química, que confirmaram os trabalhos sobre a hereditariedade e construíram novos modelos explicativos para compreender o fenômeno vida vinculados dire- tamente ao material genético. Dentre esses modelos, destacamos o da estrutura do DNA em dupla hélice inserido em uma visão genecêntrica. Com as necessidades de se realizar atividades cada vez mais especializa- das, a Biologia evolutiva perde forças diante da possibilidade de se conhecer o mundo microscópico dos mecanismos biológicos (Paraná, 2008). Tal especiali- zação distancia e/ou impossibilita o conhecimento da totalidade e, consequente- mente, de prever os resultados de uma ação restrita sobre as partes acerca dessa totalidade, o que demonstra a fragilidade do modelo reducionista.7 7 Como exemplo de superação dessa visão reducionista por uma visão mais complexa, destacamos a necessidade de compreensão de que o mesmo animal integra as relações com os demais seres vivos, é estudado as partes e o todo dos sistemas que o compõe e as relações dinâmicas entre os componentes homogêneos nos estágios iniciais de desenvolvimento embrionário que, eventual- mente, geram um organismo inteiro integrado em condições de se reproduzir. Noutros termos, o mesmo animal pode ser visto sob a perspectiva da organização dos seres vivos, dos sistemas biológicos, da biodiversidade e da manipulação genética (Paraná, 2008). estilos De Pensamento Biológico soBre o Fenômeno ViDa 43Ano 26 • nº 86 • Jul./Dez. • 2011 Nesse contexto, ainda, ao mesmo tempo em que a emergência das pesquisas moleculares propicia o desenvolvimento da biotecnologia, os estilos mecanicista e evolutivo passam a sofrer complicações por conta da manipulação genética, com a aplicabilidade da técnica de DNA recombinante. O problemático conceito de espécie biológica, por exemplo, sofre complicações nos anos de 70/80 em diante, pois uma espécie que passa pelo processo de modificação da sua base genômica (organismo geneticamente modificado) deixa de pertencer à espécie descrita e passa a constituir outra espécie? Nos tempos atuais essas mudanças provocadas na estrutura genética geram conflitos filosóficos, científicos, teológicos e sociais, bem como, colo- cam em discussão o fenômeno vida sob a perspectiva da bioética. Esse estilo da manipulação genética fortalece suas bases de instauração num período em que os estilos de pensamento biológico predominantes em outros momentos históricos não se extinguem, mas permanecem sujeitos à interferência dessa nova forma de pensar em uma nova ordem discursiva. Este estilo da manipulação genética, ainda em processo de organização inicial, exige um novo modelo explicativo que demarca a condição do ser hu- mano em compreender o fenômeno vida a partir da estrutura físico-química dos seres vivos, os mecanismos celulares, as consequentes alterações biológicas, e as novas relações e interações. Na perspectiva da manipulação genética, o ser humano pode interferir na vida, nos mecanismos celulares, nos fenômenos naturais e na natureza do planeta. Formulam-se, assim, possibilidades de intervenção humana nos “processos de vida” (Mayr, 2008), caminhando para discussões a respeito da manipulação genética, com os avanços da ciência e da tecnologia, refletidas na Biologia molecular da metade do século 20. Dessa forma, o entendimento do fenômeno vida e, consequentemente, do conceito atual de vida, implica novos estudos sobre a tecnologia do DNA recombinante e suas possíveis influências na complexidade dos sistemas vivos, intervindo e alterando na evolução natural do fenômeno vida. Os desafios deste Danislei Bertoni – araci asinelli Da luz 44 conteXto & eDucAÇÃo estilo de pensamento biológico parecem ser infindáveis, porém estes procedimen- tos envolvendo a manipulação genética se encontram num momento histórico de consolidação do processo de desenvolvimento, procurando se sustentar pela sintonia com a visão complexa de mundo do final do século 20. Também pela forma de observar, pensar, agir e enfrentar as pressupo- sições que se formam, une e mantém os membros do coletivo de pensamento formado pelos que pertencem ao círculo esotérico de pesquisa na Biologia molecular e genética molecular, em torno de técnicas que possibilitam ao ser humano a manipulação do material genético das espécies, inclusive sua própria espécie, assegurando as bases que sustentam a emergência do estilo de pensa- mento biológico da manipulação genética. No Quadro 4, a seguir, apresentamos uma síntese com a concepção de vida no sentido abrangente do estilo de pensamento biológico da manipulação genética. QUADRO 4 – Conceito de vida a partir do estilo de pensamento biológico da manipulação genética ESTILO CONCEPÇÃO DE VIDA SINGULARIDADE CONCEPÇÃO ABRANGENTE CONCEITO Manipulação Genética Relacional (relações de causa- lidade), reducionista-genecên- trica , manipulação das bases físico-químicas da vida Propriedade gené- tica Intervenção e al- teração da evo- lução natural do fenômeno vida Conceito relacio- nal de vida Fonte: Elaborado pelos autores. Considerações finais Neste trabalho delineamos uma síntese de como se configura cada estilo de pensamento biológico, sem pretender esgotar o assunto. Cada um dos estilos de pensamento biológico traz expressões e uma linguagem que se tornam pró- prias dos sujeitos que compartilham tais ideias. Consideramos outro fundamento importante, em que cada estilo de pensamento se compõe a partir de ideias e de conhecimentos anteriores, os quais Fleck (2010) entende como as protoideias estilos De Pensamento Biológico soBre o Fenômeno ViDa 47Ano 26 • nº 86 • Jul./Dez. • 2011 O professor de Biologia, inserido nesse processo permanente de forma- ção a partir da compreensão histórica das concepções de vida, amplia sua visão quanto à seleção de conteúdos, de contextualização e integração conceitual, de potencialização do material didático, mas também suas responsabilidades com o processo de mediação e formação dos estudantes para valorização da vida. A inclusão dessa perspectiva dos estilos de pensamento biológico e a relação com os modelos interpretativos no processo de formação inicial e conti- nuada de professores, permitirá que os mesmos possam ampliar seus referenciais e, ao longo do trabalho docente, os conteúdos sejam mais bem-selecionados e organizados. Desse modo, tal prática assume um encaminhamento mais inte- grado e relacionado com as demandas culturais, sociais, éticas e políticas, com implicações diretas na abordagem desses conteúdos em sala de aula. Acredito que o professor com esta formação histórica e a compreensão de como emergiu o conceito atual de vida, possa assegurar um ensino melhor contextualizado do conhecimento biológico, contribuindo para que os estudantes possam estabelecer relações com a vida prática, com o cotidiano, com as decisões na pesquisa, no consumo, na tecnologia, do uso ou não de alimentos transgênicos, do saber lidar com as questões de sexualidade e gênero, dos acontecimentos micro e macroambientais, da valorização do corpo e da vida, das implicações bioéticas, enfim, do envolvimento sociocultural dos avanços do conhecimento biológico na vida cotidiana das pessoas. Nesse caminho, acredito no ensino público mais qualificado, em que a aprendizagem dos conceitos biológicos terá significado e será mais relevante para todos. Para tal, este texto vem se somar aos esforços no sentido de qualificar o ensino de Biologia relativo aos estudos do fenômeno vida e de transformações na forma de pensamento de professores de Biologia em relação ao conhecimento biológico sobre esse fenômeno. Sendo assim, ao demarcarmos os estilos de pensamento biológico e as concepções de vida decorrentes, contribuímos para a compreensão de como emergiu o conceito atual de vida e as implicações e contribuições diretas no Danislei Bertoni – araci asinelli Da luz 48 conteXto & eDucAÇÃo processo de formação do professor de Biologia, na organização curricular da disciplina de Biologia para a Educação Básica e na produção de material didático no que diz respeito à organização, seleção e abordagem de conteúdos nos livros didáticos de Biologia e seu intenso diálogo com as áreas correlatas. Afinal, a vida é um direito de todos. Referências BERTONI, D. Um estudo dos estilos de pensamento biológico sobre o fenômeno vida. Curitiba, 2007. 183 p. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Paraná. Disponível em: <www.ppge.ufpr.br/teses/M07_bertoni.pdf>. Acesso em: 27 jul. 2010. BOMBASSARO, L. C. Ciência e mudança conceitual: notas sobre epistemologia e história da ciência. 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