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Guias e Dicas
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O CÉREBRO DE BROCACarl Sagan***O CÉREBRO DE, Notas de estudo de Astronomia

Astronomia

Tipologia: Notas de estudo

Antes de 2010

Compartilhado em 28/11/2009

kaio-felipe-12
kaio-felipe-12 🇧🇷

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Baixe O CÉREBRO DE BROCACarl Sagan***O CÉREBRO DE e outras Notas de estudo em PDF para Astronomia, somente na Docsity! O CÉREBRO DE BROCA Carl Sagan *** O CÉREBRO DE BROCA gradiva CIÊNCIA ABERTA A Aventura da Ciência CARL SAGAN O CÉREBRO DE BROCA A Aventura da Ciência Revisão de AntóNiO MANUEL HAPTISTA professor catedrático da Academia Militar gradiva Título original inglês: Broca Brain O by Carl Sagan Tradução de: Maria do Rosário Pedreira Revisão de texto: Manuel Joaquim Vieira Capa: Paulo Seabra Fotocomposição, paginação e fotolitos: Textype - Artes Gráficas, L.da Impressão e acabamento: Tipografia Guerra, Viseu Reservados os direitos para Portugal por: Gradiva - Publicações, L.da Rua de Almeida e Sousa, 21, r/c, esq. - Telefs.: 3 974067 / 8 Lisboa .' edição: Setembrol97 Depósito legal n." 115 396/97 Para Rachel e Samuel Sagan, meus pais, que me mostraram a alegria de conhecer o mundo, com gratidão, admiração e amor. Com o acordo do autor, foram suprimidos todos os capítulos da parte tII da edição original (caps. 10 a 16) e os capítulos 17, 19 e 21 da parte Iv. AGRADECIMENTOS Em relação a alguns assuntos específicos, agradeço a um grande número de amigos, correspondentes e colegas, incluindo Diane Ackerman, D. W. G. Arthur, James Bakalar, Richard Berendzen, Norman Bloom, S. Chandrasekhar, Clark Chapman, Sidney Coleman, Yves Coppens, Judy-Lynn Del Rey, Frank Drake, Stuart Edelstein, Paul Fox, D. Carleton Gajdusek, Owen Gingerich, Thomas Gold, J. Richard Gott III, Steven J. Gould, Lester Grinspoon, Stanislav Grof, J. U. Gunter, Robert Horvitz, James W. Kalat, B. Gentry Lee, Jack Lewis, Marvin Minsky, David Morrison, Philip Morrison, Bruce Murray, Phileo Nash, Tobias Owen, James Pollack, James Randi, E. E. Salpeter, Stuart Shapiro, Gunther Stent, O. B. Toon, Joseph Veverka, E. A. Whitaker e A. Thomas Young. Este livro deve muito, em todas as fases da sua produção, aos competentes e dedicados esforços de Susan Lang, Carol Lane e, em particular, aos da minha assistente Shirley Arden. Estou especialmente grato a Ann Druyan e Steven Soter pelo encorajamento desinteressado e pelos comentários estimulantes sobre a maioria dos temas tratados neste livro. Ann teve uma contribuição essencial na escolha do título e em muitos dos capítulos; a minha dívida para com ela é muito grande. @INTRODUÇÃO Vivemos numa época extraordinária. São tempos de mudanças espantosas na organização social, no bem-estar económico, nos preceitos éticos e morais, nas perspectivas filosóficas e religiosas e no autoconhecimento humano, bem como na compreensão do vasto universo em que estamos inseridos como um grão de areia num oceano cósmico. Desde que existem seres humanos que nos pomos questões mais profundas e fundamentais, ou seja, as que evocam surpresa e estimulam pelo menos a nossa consciência trémula e pouco experiente. Essas questões são as que se prendem com a origem da consciência, a vida no nosso planeta, o princípio da Terra, a formação do Sol, a possibilidade Deus"-, incluí um ou outro pormenor mais técnico; mas a compreensão desses pormenores não é necessária para a compreensão do essencial da questão. Algumas das ideias expostas nos caps. I e xv foram já apresentadas, na minha palestra no William Menninger Memorial, Lecture à Associação Psiquiátrica Americana, em Atlanta, na Jórgia, no mês de Maio de 1978. O cap. x tem por base a participação num simpósio que comemorou o primeiro voo de um foguetão com combustível líquido e teve lugar no Instituto Smithsoniano, em Washington DC, no mês de Março de 1976. O cap. xiII baseou-se numa palestra feita na Sage Chapel Convocation, Universidade de Cornell, em Novembro de 1977. E o cap. vii reflecte uma intervenção feita durante a reunião anual da Associação Americana para o Avanço da Ciência, em Fevereiro de 1974. Este livro foi escrito precisamente antes -penso que, no máximo, alguns anos ou algumas décadas antes- de as respostas para muitas daquelas incómodas e mais ou menos aterrorizadoras perguntas sobre as origens e os destinos se terem libertado do cosmo. Se não nos destruírmos, a maioria de nós aqui estará para conhecer as respostas. Se tivéssemos nascido há cinquenta anos, podíamos ter julgado, ponderado e até especulado sobre estes temas, mas nada mais podíamos ter feito. E, se nascêssemos daqui a cinquenta anos, creio que já saberíamos as respostas. A maioria dos nossos filhos aprendê-las-ão ainda antes de terem tido a ocasião de formular as perguntas. A mais excitante, satisfatória e agradável altura para viver é, de longe, aquela em que passamos da ignorância ao conhecimento destas questões fundamentais: a era em que começamos por nos espantar e acabamos por compreender. Nos quatro mil milhões de anos de história que tem a vida deste planeta, nos quatro mil milhões de anos de história que tem a família humana, há uma geração apenas à qual foi dado o privilégio de viver através desse único momento transitório: essa geração é a nossa. Ítaca, Nova Iorque Outubro de 1978 @PARTE I @A CIÒNCIA PREOCUPAÇÃO HUMANA @CAPÍTULO I O CÉREBRO DE BROCA - Ainda ontem eram macacos. Dêem-lhes tempo. - Macaco uma vez, macaco sempre! - Não, vai ser diferente... Volta daqui a uma ou duas gerações e verás. . . Os deuses falando da Terra na versão cinematográfica do livro de H. G. Wells O Homem Que Fazia Milagres (1936). Este Musée de 1'Homme (Museu do Homem) era de certa forma como outro qualquer. Estava situado numa agradável colina e tinha um restaurante nas traseiras com vista para a Torre Eiffel. Estávamos lá para falar com Yves Coppens, director associado do Museu e um conceituado paleantropólogo. Coppens estudara os antepassados do homem através dos fósseis encontrados em Olduvai Gorge, no lago Turkana, no Quénia, na Tanzânia e na Etiópia. Há dois milhões de anos existiram criaturas com cerca de 1,20 m de altura, a quem chamamos Homo habilis, que viviam no Leste de África, lascando, aparando e raspando ferramentas de pedras e talvez também construindo pequenas habitações e cujo cérebro se foi desenvolvendo de forma espectacular, conduzindo àquilo que somos hoje. As instituições deste tipo têm um lado público e um lado privado. O lado público inclui as exposições etnográficas ou de antropologia cultural: o vestuário mongol ou os couros pintados pelos nativos americanos, muitas vezes com o propósito específico de os venderem aos voyageurs' ou a um qualquer antropólogo francês mais aventureiro. Mas nos meandros do local há outras coisas: pessoas empenhadas na produção de documentos e na construção de objectos; vastos armazéns plenos de artigos inadequados, pelo seu tema ou pelo seu tamanho, à maioria das exposições e áreas de pesquisa. Fomos conduzidos através de um corredor de salas escuras e bolorentas e percorremos desde cubículos a enormes câmaras circulares. O equipamento e os materiais de pesquisa amontoavam-se pelos corredores: a reconstrução do chão de uma gruta paleolítica, indicando para onde haviam sido atirados os ossos do antílope depois de ter sido comido; estátuas priápicas de madeira da Melanésia; talheres delicadamente pintados; máscaras grotescas para rituais; lanças como as assagai vindas da Oceânia; um cartaz meio rasgado de um xamã africano; um armazém húmido e sombrio cheio de instrumentos musicais de sopro feitos de madeira, tambores de pele, flautas de cana e outros inumeráveis testemunhos do indomável desejo do homem de fazer música. Aqui e ali podíamos encontrar algumas pessoas verdadeiramente empenhadas na pesquisa. Mas o seu comportamento recatado e plácido era completamente diferente do relacionamento amável e bilingue de Coppens. Muitas das salas eram evidentemente utilizadas para o armazenamento de objectos antropológicos, que vinham sendo recolhidos há mais de um século. Tinha-se a sensação de se estar num museu de segunda categoria, em que se guardavam, não tanto os materiais que poderiam ter algum interesse, mas os que noutros tempos o tinham tido. Podíamos imaginar-nos em presença de directores de sobrecasaca num museu do século xix, empenhados na goniométrica e na craniologia, coleccionando, medindo e pesando azafamadamente, na esperança de que a simples quantificação conduzisse ao entendimento das coisas. Mas havia uma outra área do Museu ainda mais remota, uma estranha mistura de pesquisa activa e de estantes e armários completamente abandonados: um esqueleto articulado e reconstruído de um orangotango; uma grande mesa coberta de crânios humanos, todos criteriosamente identificados; uma gaveta cheia de fémures empilhados como as borrachas de reserva no armário de uma escola zelosa; uma zona dedicada à memória de Neanderthal, ouvir a minha amiga Ann Druyan, se tivesse vivido nesse tempo, dizer: "As pessoas que matamos à fome e torturamos têm uma tendência natural para roubar e matar. Cremos que isso acontece porque as suas sobrancelhas são demasiado inclinadas." A verdade é que os cérebros dos criminosos e dos sábios -os restos do de Albert Einstein flutuam lividamente num frasco em Wichita- são indistintos. É, pois, bem provável que seja a sociedade, e não a hereditariedade, a causa da existência de criminosos. Enquanto olhava mais de perto a colecção entre estas ruminações, a minha vista foi atraída por um rótulo de um dos muitos pequenos contentores cilíndricos. Tirei o recipiente da prateleira e examinei-o cuidadosamente. O rótulo dizia P. Broca. Tinha nas minhas mãos o cérebro de Broca. Paul Broca foi um cirurgião, neurólogo e antropólogo que desempenhou um papel importante tanto no desenvolvimento da medicina como no da antropologia nos meados do século xix. Levou a cabo um trabalho considerável na patologia do cancro e no tratamento de aneurismas e deu uma contribuição essencial para a compreensão das origens da afasia - uma diminuição da capacidade de articular ideias. Broca foi um homem brilhante e compassivo. Preocupou-se com os cuidados médicos a prestar aos mais desfavorecidos. Encoberto pela escuridão, e arriscando a vida, conseguiu desviar de Paris, numa carroça, milhões de francos, enrolados em sacos de serapilheira escondidos debaixo de batatas, dinheiro que constituía o tesouro da Assistance Publique e que ele, por qualquer razão, acreditava estar a salvar da pilhagem. Foi o fundador da neurocirurgia moderna. Estudou a mortalidade infantil. No fim da sua carreira chegou a senador. Broca gostava acima de tudo, como disse um biógrafo, de calma e tolerância. Em 1848 fundou uma sociedade de "livres pensadores". Isolado entre os intelectuais franceses do seu tempo, solidarizou-se com a ideia de Charles Darwin sobre a evolução por selecção natural. O livro de T. H. Huxley O Bulldog de Darwin sublinha que uma só referência ao nome de Broca era capaz de o encher de gratidão e Broca foi citado nele como tendo dito: "Eu prefiro ser um macaco transformado a ser um filho degenerado de Adão." Por esta e outras afirmações, foi publicamente acusado de "materialista" e, como Sócrates, de corromper a juventude. De qualquer forma, chegou a senador. No início, Broca encontrou muitos obstáculos para fundar em França uma sociedade de antropologia. O ministro da Instrução Pública e o chefe da Polícia acreditavam que a antropologia devia ser, tal como a busca do conhecimento sobre os seres humanos, naturalmente subversiva para o estado. Quando, por fim -e mesmo assim com alguma relutância-, foi concedida a Broca autorização para falar de ciência com oitenta colegas, o chefe da Polícia tornou Broca pessoalmente responsável por tudo o que nesses encontros fosse dito "contra a sociedade, a religião ou o governo". Ainda assim, o estudo dos seres humanos foi considerado um acto tão perigoso que a Polícia contratou um espião, que aparecia vestido à paisana durante as reuniões e que tinha ordens para interromper de imediato a sessão se se sentisse ofendido por qualquer coisa que fosse dita. A Sociedade de Antropologia de Paris reuniu-se, nestas circunstâncias, pela primeira vez, em 19 de Maio de 1859, ano da publicação de A Origem das Espécies. Em reuniões subsequentes foi discutido um número considerável de questões -arqueologia, mitologia, fisiologia, anatomia, psicologia, linguística e história- e é fácil imaginarmos o espião da Polícia desatento na maioria das ocasiões e às vezes deixando cair a cabeça de sono. Broca relatou que, uma vez, o espião quis dar um pequeno passeio para que não estava autorizado e perguntou se podia abandonar a sala com a certeza de que, na sua ausência, nada de ameaçador seria dito em relação ao estado. "Nem pense nisso", disse-lhe Broca. "Você não pode ir a parte alguma: sente-se e mereça aquilo que lhe pagam." Não foi a Polícia a única que se opôs ao desenvolvimento da antropologia em França. Em 1876, o partido ligado à igreja católica organizou uma campanha enorme contra o ensino dessa disciplina no Instituto Antropológico de Paris, fundado por Broca. Paul Broca morreu em 1880, vitimado talvez pelo mesmo tipo de aneurisma que tão brilhantemente estudara. Nessa altura debruçava-se sobre um estudo global do cérebro humano. Tinha fundado em França as primeiras sociedades profissionais, escolas de pesquisa e algumas publicações científicas de antropologia moderna. Os seus espécimes de laboratório foram então incorporados naquilo a que, durante muitos anos, se chamou o Musée Broca e que, mais tarde, acabou por fazer parte do Musée de 1'Homme. Fora o próprio Broca, cujo cérebro eu embalava entre as mãos, quem iniciara a colecção macabra que eu contemplava. Estudara embriões, macacos e pessoas de todas as raças, trabalhando como um louco para compreender a natureza de um ser humano; e, apesar do aspecto actual da colecção e das minhas suspeitas, ele não era, pelo menos segundo os padrões do seu tempo, mais racista ou chauvinista do que qualquer outra pessoa e muito menos essa figura típica da ficção e, mais raramente, factual: o frio, despreocupado e desapaixonado cientista, muito pouco interessado pelas consequências humanas dos seus actos. Broca interessava-se e muito. Na Revue d'Anthropologie de 1880 consta a bibliografia completa das obras de Broca. A partir dos títulos consegui mais tarde aperceber-me das origens da colecção que tinha observado: Sobre o Crânio e o Cérebro do Assassino Lemaire, Apresentação do Cérebro de Um Gorila Macho Adulto, Sobre o Cérebro do Assassino Prévost, Sobre a Suposta Hereditariedade de Características Acidentais, A Inteligência dos Animais e o Governo dos Humanos, A Ordem dos Primatas: Paralelos Anatómicos entre o Homem e o Macaco, A Origem da Arte de Fazer Fogo, Sobre os Monstros Duplos, As Questões da Microcefalia, Trepanando a Pré-História, Dois Casos de Um Sobredesenvolvimento Digital na Idade Adulta, As Cabeças de Dois Homens da Nova Caledónia e O Crânio de Dante Alighieri. Eu desconhecia então o paradeiro actual do crânio do autor de A Divina Comédia, mas a colecção de cérebros, crânios e cabeças que me rodeava teria decerto começado com o trabalho de Paul colecção - nessa altura nem sabia que Broca era um deles de sexismo, racismo e chauvinismo evidentes, de uma profunda resistência à ideia de que existe uma relação entre os seres humanos e os outros primatas. E, em parte, era verdade. Broca foi um humanista do século xIx, mas não foi capaz de abalar os preconceitos enraizados ou as doenças sociais da humanidade do seu tempo. Achava que o homem era superior à mulher e que os Brancos eram superiores aos Negros. Mesmo a sua afirmação de que os cérebros germânicos não eram significativamente diferentes dos franceses foi uma reacção à intransigência dos teutónicos, que apregoavam a inferioridade gaulesa. De qualquer forma, ele concluiu que havia relações profundas, na fisiologia cerebral, entre os gorilas e o homem. Broca, o fundador, na sua juventude, da sociedade dos livres pensadores, acreditava na importância da investigação livre e viveu a sua vida para atingir esse objectivo. A sua incapacidade de realizar esse ideal só mostra que, mesmo os que têm ilimitada capacidade para o livre estudo do conhecimento, como Broca, podem ser paralisados por um obscurantismo endémico e respeitável. A sociedade corrompe aquilo que há de melhor dentro de cada um de nós. Creio que será um pouco injusto criticar alguém pelo facto de não partilhar a clarividência de uma época posterior; mas é também profundamente triste que tais preconceitos se tenham difundido tanto. A questão levanta dúvidas contínuas sobre quais das verdades convencionais da nossa geração serão consideradas pela próxima como um obscurantismo imperdoável. Uma maneira de recompensar Paul Broca por esta lição que ele, inadvertidamente, nos proporcionou é desafiar, profunda e seriamente, as nossas crenças mais enraizadas. Estes frascos esquecidos e os seus terríveis conteúdos haviam sido recolhidos, pelo menos em parte, com um espírito humanístico; e talvez, numa era futura de avanço no estudo do cérebro, voltem a ser considerados úteis: eu gostaria de saber um pouco mais sobre o homem do bigode ruivo da Nova Caledónia, cuja cabeça foi devolvida à França. . . No entanto, aquilo que nos rodeava, a sensação de uma câmara de horrores, evocava outros pensamentos, indesejados e inquietantes. Num lugar como este sentimos, no mínimo, um pouco de solidariedade com aqueles -especialmente os mais jovens e os que morreram em sofrimento- que de um modo tão invulgar ficam na memória. Os canibais do Noroeste da Nova Guiné usam filas de crânios como umbrais na frontaria das casas e, às vezes, como lintéis. Talvez sejam estes os materiais de construção adequados mais abundantes; mas os arquitectos não conseguem ser alheios ao terror que aquelas construções evocam nos viajantes inadvertidos. Os crânios foram utilizados pelas tropas SS de Hitler, pelos Anjos do Inferno, pelos xamãs, pelos piratas e ainda por aqueles que desenham os rótulos dos recipientes de produtos tóxicos no esforço consciente de chamar a atenção para o perigo. E faz sentido. Se eu me encontrar numa sala repleta de crânios, é como se houver alguém perto: talvez um grupo de hienas, talvez um carrasco doentio e obsessivo, cuja ocupação ou hobby seja coleccionar crânios. Tais indivíduos devem ser obviamente evitados ou, se possível, liquidados. O arrepio na minha nuca, a aceleração do meu ritmo cardíaco e da minha pulsação, essa sensação fria e estranha, são tramas da evolução para me fazer lutar ou fugir. Aqueles que evitam a decapitação deixam mais descendentes. A convivência com esses medos fornece uma vantagem evolutiva. Encontrarmo-nos numa sala cheia de cérebros é ainda mais assustador, como se um monstro de moral indizível, armado com lâminas afiadas e ferramentas côncavas, se arrastasse, babando-se, algures no sótão do Musée de 1'Homme. Mas tudo depende -julgo eu- do objectivo da colecção; se esse for descobrir, se a colecção adquiriu partes humanas postmortem especialmente com o prévio consentimento daqueles a quem essas mesmas partes pertenceram-, então não se causou mal nenhum. E talvez a longo prazo se venha a revelar útil à humanidade. Mas não tenho a certeza de que os cientistas estejam inteiramente desligados dos motivos dos tais canibais da Nova Guiné. Não dirão pelo menos: "Eu vivo com estas cabeças todos os dias. Elas não me incomodam. Porque é que você é tão sensível? Leonardo e Vesalius tiveram de subornar e furtar para realizar em segredo as primeiras dissecações sistemáticas de seres humanos na Europa, embora tivesse havido uma escola de Anatomia activa e competente na Grécia antiga. A primeira pessoa a localizar, com base na neuranatomia, a inteligência humana na cabeça foi Herófilos da Calcedónia, que nasceu cerca de a. C. Foi igualmente o primeiro a distinguir o nervo motor dos nervos sensoriais e realizou o estudo mais detalhado de anatomia cerebral concebido até ao Renascimento. Sem dúvida, houve quem fizesse objecções a estas suas experiências algo horríveis. Existe um medo escondido, evidente na lenda de Fausto, de algumas coisas não terem sido "feitas" para serem conhecidas, de algumas perguntas serem demasiado perigosas para os seres humanos. E, na nossa geração, o desenvolvimento das armas nucleares pode, se tivermos pouca sorte e falta de juízo, tornar-se um caso precisamente deste tipo. No entanto, no que diz respeito às experiências sobre o cérebro, os nossos medos são menos intelectuais. Mergulham profundamente no nosso passado evolutivo. Fazem-nos pensar nas criaturas selvagens e nos homens que aterrorizavam os viajantes e as populações rurais da Grécia antiga à beira dos caminhos, através de mutilações procrusteanas e outras selvagerias, até que um herói qualquer -Teseu ou Hércules- conseguisse desembaraçar-se deles sem esforço. Estes medos tiveram uma função específica no passado; mas no presente creio que são apenas portadores de uma grande carga emocional. Eu estava interessado, como cientista que escrevera sobre o cérebro, em encontrar essas reacções escondidas dentro de mim, revelando-se durante a minha visita à colecção de Broca. Vale a pena lutar contra os medos. Todas as investigações trazem consigo um certo elemento de risco. Não há garantias de que o universo seja conforme às nossas predisposições. Mas não vejo como podemos agir em relação ao universo - tanto o interior como o exterior - sem o estudarmos. A melhor maneira de evitar abusos, no que concerne ao público em geral, é sermos cientificamente competentes, compreendermos as implicações que existem nessas investigações. Em troca da liberdade de pensamento, o cientista é obrigado a prestar verificando se têm sentido, se são consentâneas com o que já conhecemos, pensando em provas que podemos fazer para substanciar ou esvaziar essas hipóteses, encontramo-nos a fazer ciência. E, à medida que este hábito de pensar vai sendo praticado, vamo-nos aperfeiçoando. Penetrar no coração de uma coisa -mesmo pequena, numa folha de erva, como disse Walt Whitman- é experimentar uma espécie de alegria muito grande que talvez apenas os seres humanos, entre todos os seres deste planeta, podem sentir. Somos uma espécie inteligente e o uso apropriado da nossa inteligência dá-nos prazer. Visto por este prisma, o cérebro é como um músculo. Quando pensamos correctamente, sentimo-nos bem. E o entendimento é uma espécie de êxtase. Mas até onde podemos verdadeiramente conhecer o universo que nos rodeia? Às vezes, esta pergunta é feita por pessoas que esperam que a resposta seja dada na negativa, porque têm medo de um universo em que tudo possa, um dia, ser revelado. E às vezes ouvimos declarações de cientistas afirmando, confiantes, que tudo o que vale a pena conhecer será conhecido -ou já o é- e que pintam quadros de uma era dionisíaca ou polinesiana em que o gosto pela descoberta intelectual decaiu, para ser substituído por uma espécie de fraqueza subjugada, os comedores de lótus bebendo leite de coco fermentado ou qualquer outro suave alucinogénio. Além de difamar tanto os Polinésios, que foram exploradores intrépidos (e cujo breve repouso no Paraíso está agora tristemente a acabar), como os incentivos para descobertas intelectuais propiciados por alguns alucinogénios, esta afirmação acaba por estar trivialmente errada. Aproximemo-nos de uma questão bem mais modesta: não a de se podemos conhecer o universo, a Via Láctea, uma estrela ou um mundo; mas a de se podemos conhecer, integral e detalhadamente, um grão de sal. Imaginemos 1 micrograma de sal de mesa, uma partícula tão minúscula que, sem microscópio, apenas seria visível por alguém com apuradíssima visão. Nesse grão de sal há mais ou menos 10*16 átomos de sódio e cloro. Isto é, um 1 seguido de dezasseis zeros, ou seja, 10 milhões de biliões 1 de átomos. Se quisermos conhecer um grão de sal, teremos pelo menos de conhecer as posições tridimensionais de cada um desses átomos. (De facto, haveria muito mais para ser conhecido - como a natureza das forças entre os átomos -, mas estamos apenas a fazer um cálculo modesto.) Ora bem: este número é maior ou menor do que o número de coisas que o cérebro é capaz de conhecer? Quanto pode um cérebro conhecer? Há no cérebro talvez " de neurónios, os elementos dos circuitos e interruptores que são responsáveis, na sua actividade química e eléctrica, pelo funcionamento das nossas mentes. Um neurónio cerebral típico tem talvez 100 pequenos filamentos, chamados dendrites, que o ligam aos seus companheiros. Se, ao que parece, cada bit de informação corresponde no cérebro a uma destas ligações, o número total de coisas susceptíveis de conhecimento pelo cérebro não é maior do que 10&4, 100 triliões. Mas este número é apenas 1 % do número de átomos da pequena partícula de sal. Neste sentido, o universo é resistente, espantosamente imune a qualquer tentativa humana de conhecimento total. Acontece que o sal é um cristal em que, excepto pelos defeitos da estrutura da rede cristalina, a posição de cada átomo de sódio e cloro é predeterminada. Se pudéssemos penetrar neste mundo cristalino, veríamos filas e filas de átomos dispostos ordenadamente, uma estrutura alternada regularmente -sódio, cloro, sódio, cloro-, identificando a camada de átomos onde estivéssemos e todas as outras por cima e por baixo. Um cristal de sal absolutamente puro podia ter a posição de todos os átomos determinada por qualquer coisa como 10 bits de informação2. Isto não excederia a capacidade de informação do cérebro. O cloro é um veneno mortal gasoso que foi usado nos campos de batalha europeus durante a primeira guerra mundial. O sódio é um metal corrosivo que se queima ao contacto com a água. Juntos formam um material plácido e inofensivo, o sal de mesa. Por que razão cada uma das substâncias tem as propriedades que tem é um assunto chamado "química", que requer muito mais do que 10 bits de informação para se compreender. Se o universo tivesse leis naturais que governassem o seu comportamento com o mesmo grau de regularidade que determinam um cristal de sal, então o universo poderia ser decerto passível de conhecimento. Mesmo que existissem muitas leis como essas, cada uma com uma complexidade considerável, os seres humanos poderiam ter a capacidade de as compreender todas. Ainda que esse conhecimento excedesse a capacidade de informação do cérebro, poderíamos armazenar as informações adicionais fora dos nossos corpos -por exemplo, em livros ou na memória de um computador- e ainda, em certo sentido, conhecer o universo. Os seres humanos estão, compreensivelmente, muito motivados para a descoberta de regularidades, de leis naturais. A procura de regras, única maneira possível de compreender um universo tão vasto e complexo, chama-se "ciência". O universo força aqueles que nele vivem a compreendê-lo. Essas criaturas que acham a experiência quotidiana um amontoado confuso de acontecimentos irregulares, imprevisíveis, estão moribundas. O universo pertence àqueles que, pelo menos em certa medida, perceberam isso. É um facto admirável que haja leis da natureza, regras que sintetizem convenientemente -não só qualitativa, mas também quantitativamente- o funcionamento do mundo. Podíamos imaginar um universo no qual não há leis dessas, no qual 10*88 de partículas elementares que formam um universo como o nosso se comportam em total e inflexível isolamento. Para compreender um tal universo precisaríamos de um cérebro pelo menos tão maciço como o universo. Parece improvável que esse universo tivesse vida e inteligência, porque os seres e os cérebros requerem um certo grau de estabilidade e ordem interna. Mas num universo ainda muito mais desorganizado, onde houvesse esses seres com uma inteligência muito superior à nossa, não poderia haver tanto conhecimento, tanta paixão, nem tanta alegria. Para nossa sorte, vivemos num universo que tem, pelo Albert Einstein nasceu em Ulm, na Alemanha, exactamente há um século. Era uma dessas raras pessoas que em qualquer época reformulam o mundo através de um dom especial, um talento de compreender coisas antigas de novas formas, de propor profundos desafios à sabedoria convencional. Durante muitas décadas, Einstein foi admirado e venerado por todo o mundo, sendo o único cientista que toda a gente conhecia, através não só das suas descobertas científicas, conhecidas pelo menos vagamente pelo público, mas também das posições frontais que tomava perante os assuntos sociais e da sua benevolência. Para pessoas com eu, filhos de pais emigrantes com inclinação científica, ou que cresceram durante a Depressão, esta veneração por Einstein demonstrou que existiram pessoas que eram de facto cientistas e que a carreira científica não era totalmente impossível. Ele desempenhou, sem querer, a função de servir de modelo científico. Sem ele, muitos dos jovens que se tornaram cientistas após 1920 poderiam nunca ter ouvido falar da existência da empresa científica. O raciocínio que serviu de suporte à teoria da relatividade restrita, de Einstein, poderia ter sido desenvolvido um século mais cedo, mas, embora tivesse havido algumas investigações premonitórias feitas por outros, a relatividade teve de esperar por Einstein. Fundamentalmente, a física da relatividade restrita é muito simples e muitos dos resultados essenciais podem ser deduzidos com a álgebra do liceu ou com a observação de um barco que rema rio acima e rio abaixo. Toda a vida de Einstein teve a riqueza do génio e da ironia, foi a paixão pelos assuntos do seu tempo -a intervenção na educação, a ligação entre a ciência e a política- e a demonstração de que indivíduos podem, de facto, modificar o mundo. Enquanto criança, Einstein deu poucos sinais do que viria a ser. "Os meus pais", disse um dia, "preocupavam-se porque comecei a falar relativamente tarde. Consultaram um médico por causa disso. Eu devia ter na altura talvez uns 3 anos, não menos que isso." Foi um aluno desinteressado na escola primária, onde dizia que os professores lhe faziam lembrar sargentos instrutores. Durante a sua juventude, as directrizes máximas da educação europeia eram o nacionalismo bombástico e a rigidez intelectual. Revoltou-se contra os métodos de ensino mecanizados e enfadonhos - "Preferia suportar qualquer espécie de castigo a ter de papaguear as coisas aprendidas." Einstein continuaria sempre a detestar os autoritarismos rígidos na educação, na ciência e na política. Aos 5 anos sentiu-se atraído pelo mistério do funcionamento de uma bússola. Mais tarde escreveu: "Aos 12 anos experimentei uma segunda sensação maravilhosa, de uma natureza completamente diferente, ao ler um pequeno livro sobre geometria euclidiana simples. Havia conclusões, como, por exemplo, a intersecção das três alturas de um triângulo num ponto, que, embora não fossem evidentes, podiam ser provadas com tal clareza que qualquer dúvida parecia estar fora de questão. Esta lucidez e segurança provocaram em mim uma impressão indescritível. " A escolaridade formal era, para Einstein, apenas uma interrupção fastidiosa de tais contemplações. Escreveu depois sobre a sua auto-educação: "Dos 12 aos 16 anos familiarizei-me com elementos de matemática e com os princípios do cálculo diferencial e integral. Ao fazê-lo, tive a sorte de encontrar livros que não eram demasiado insistentes no seu rigor lógico, mas que, em compensação, apresentavam as ideias principais de uma forma bastante clara. Tive a sorte de começar a conhecer os resultados e os métodos do campo global das ciências naturais através de uma excelente exposição de divulgação que se restringia quase só aos aspectos qualitativos. . . um trabalho que li apaixonadamente." Os actuais divulgadores da ciência devem sentir-se reconfortados com estas palavras. Nenhum dos professores de Einstein parece ter reconhecido as suas potencialidades. No Gymnasium de Munique, a principal escola superior da cidade, um dos professores disse-lhe: "Nunca hás-de ser alguém, Einstein." Aos 15 anos foi aconselhado a abandonar a escola: "A sua presença prejudica o respeito que os alunos têm por mim", disse-lhe um dos professores. Aceitou esta sugestão com satisfação e passou vários meses passeando pelo Norte de Itália, deixando o liceu na década de . Sempre preferiu o estilo informal na forma de estar e de se vestir. Se tivesse vivido a sua juventude nos anos 60 ou 70, teria sido considerado um hippie pela sociedade convencional. O seu desagrado pela educação formal foi, no entanto, rapidamente ultrapassado pela curiosidade em relação à física e pela atracção pelo universo natural. Inscreveu-se, por isso, e apesar de não ter ainda o diploma do ensino secundário, no Instituto Federal de Tecnologia em Zurique, na Suíça. Tendo reprovado no exame de admissão ao Instituto, inscreveu-se num liceu suíço para corrigir as suas falhas e foi admitido, passado um ano, no Instituto Federal. Continuava, no entanto, a ser um estudante medíocre. Estudava apenas aquilo a que era obrigado, o que estava estipulado, não comparecia às aulas e dedicava-se ao que o interessava. Mais tarde escreveu: "O grande problema disto é que eu era obrigado a meter tudo aquilo na cabeça, quer quisesse quer não, para conseguir passar no exame." Só conseguiu licenciar-se porque um grande amigo, Marcel Grossmann, ia regularmente às aulas e partilhava os seus apontamentos com Einstein. Escreveu, muitos anos depois, a respeito da morte desse amigo: "Lembro-me dos nossos tempos de estudantes. Ele era um aluno irrepreensível e eu um incorrigível sonhador. Ele, sempre de boas relações com os professores, percebendo sempre tudo; eu, um pária insatisfeito e pouco querido por todos, completamente perdido no limiar da vida." Conseguiu a sua graduação através da concentração absoluta nos apontamentos de Grossmann, mas, recorda mais tarde, "estudar para os exames finais teve um efeito tão terrível em mim que durante um ano inteiro me foi completamente insuportável a concentração em qualquer problema científico [...] à massa, m. A quantidade de energia que poderia, em circunstâncias ideais, ser extraída da massa é mcz, onde c é a velocidade da luz = 30 biliões de centímetros por segundo. (A velocidade da luz é sempre escrita em letra minúscula, e nunca em letra maiúscula.) Se medirmos m em gramas e c em centímetros por segundo, E será medido numa unidade de energia chamada erg. A conversão completa de 1 g de massa em energia liberta x (3 x l0&o)z = 9 x l0zo ergs, o que seria mais ou menos equivalente à explosão de 1000 t de TNT. Estas imensas fontes de energia estão contidas em quantidades mínimas de matéria. Imagine-se o que seria se soubéssemos como extraí-la. As armas e as centrais nucleares são hoje exemplos corriqueiros das nossas tentativas eticamente ambíguas de extrair a energia que Einstein demonstrou estar presente em toda a matéria. Uma arma termonuclear, uma bomba de hidrogénio, é uma invenção com um poder aterrorizador, mas nem mesmo assim representa mais de 1 % de mc2 da massa m de hidrogénio. Os quatro artigos de Einstein publicados em 1905 poderiam ter sido o resultado impressionante de um trabalho de investigação feito a tempo inteiro durante toda uma vida; terem sido o resultado do trabalho feito nas horas vagas de um empregado do Departamento de Patentes com 26 anos de idade é algo completamente espantoso. Muitos historiadores da ciência chamaram ao ano de 1905 Annus Mirabilis, o "ano dos milagres". Só tinha existido um ano ligeiramente semelhante a este na história da física -1666, ano em que Isaac Newton, de 24 anos, num isolamento rural forçado por uma epidemia de peste bubónica, produziu uma explicação para a natureza espectral da luz do Sol, inventou o cálculo diferencial e integral e criou a teoria da gravitação universal. Os artigos de 1905 e a teoria da relatividade generalizada, formulada pela primeira vez em 1915, foram as principais criações da vida científica de Einstein. Antes de Einstein defendia-se que existiam sistemas de referência privilegiados e coisas tais como o espaço absoluto e o tempo absoluto. O ponto de partida de Einstein foi que, qualquer que fossem os sistemas de referência, todos os observadores (fosse qual fosse a sua localização, velocidade ou aceleração) veriam as leis fundamentais da natureza da mesma forma. É provável que esta forma de encarar os sistemas de referência tenha sido influenciada pelas atitudes sociais e políticas de Einstein e pela sua resistência ao chauvinismo estridente da Alemanha dos finais do século xix. A ideia de relatividade neste sentido tornou-se já um lugar-comum da antropologia e os cientistas sociais já há muito adoptaram a ideia do relativismo cultural: há uma validade comparável nas várias formas de encarar os contextos sociais e de expressar, nas diferentes sociedades, os conceitos éticos e religiosos. A relatividade estrita não foi inicialmente bem aceite. Tentando iniciar, de novo, uma carreira académica, Einstein submeteu os seus artigos à apreciação da Universidade de Berna, apresentando-os como exemplo do seu trabalho. Considerava-os evidentemente como algo de importância. Foram rejeitados por serem incompreensíveis e ele manteve-se, assim, no Departamento de Patentes até 1909. O trabalho publicado não passou, no entanto, completamente despercebido e alguns dos mais importantes físicos da Europa começavam lentamente a perceber que Einstein poderia ser um dos maiores cientistas de todos os tempos. Mas o seu trabalho sobre a relatividade continuava a ser altamente controverso. Numa carta de recomendação para que Einstein ingressasse na Universidade de Berlim, um importante cientista alemão sugeria que a relatividade era uma divagação hipotética, uma aberração momentânea, mas que, apesar disso, Einstein era, de facto, um pensador de alta craveira. (O Prémio Nobel que Einstein ganhou, e de que teve conhecimento durante uma visita ao Oriente em 1921, foi-lhe atribuído pelo artigo sobre o efeito foteléctrico e "outras contribuições" para a física teórica. A relatividade era ainda tida como demasiado controversa para poder ser mencionada explicitamente.) As formas de Einstein encarar a religião e a política estão interligadas. Os pais, de origem judaica, não praticavam os rituais judaicos. Einstein acabou por ter, apesar disso, uma educação religiosa convencional, "dada pela máquina tradicional da educação, o estado e as escolas". Este tipo de educação teve um final repentino aos 12 anos: "A leitura de livros científicos de divulgação levou-me rapidamente à conclusão de que muitas das histórias da Bíblia não podiam ser verdadeiras. A consequência disto foi um fanatismo positivo pela liberdade de pensamento, a que se juntou a impressão de que a juventude estava a ser intencionalmente enganada pelo estado com as suas mentiras; era uma sensação chocante. Desta experiência nasceu a desconfiança em relação a qualquer tipo de autoridade, a atitude céptica em relação às convicções defendidas em qualquer ambiente social específico - atitude que não mais me abandonou, embora mais tarde, através do conhecimento profundo das ligações causais, tenha perdido a sua rigidez inicial." Exactamente antes de rebentar a primeira guerra mundial, Einstein aceitou um lugar de professor no célebre Instituto Kaiser Wilhelm, em Berlim. O profundo desejo de estar no principal centro de física teórica foi momentaneamente mais forte do que a sua antipatia pelo militarismo alemão. O início da guerra impediu a mulher e os dois filhos de Einstein de voltarem da Suíça para a Alemanha. Esta separação forçada acabaria em divórcio alguns anos depois. Apesar de estar de novo casado, Einstein doou o valor total do Prémio Nobel que lhe foi atribuído em 1921, 30 000 dólares, à sua primeira mulher e aos filhos. O filho mais velho viria a ser uma figura importante da engenharia civil, professor na Universidade da Califórnia. O segundo filho, que idolatrava o pai, acusou-o anos mais tarde, e com grande angústia para Einstein, de ter sido ignorado durante a sua juventude. Einstein, que se dizia socialista, defendia que a primeira guerra mundial era, em grande parte, resultado das intrigas e na União Soviética, mais ou menos simultaneamente, alguns importantes intelectuais estalinistas classificavam a relatividade como a "física burguesa". O facto de o conteúdo da teoria em causa ser verdadeiro ou falso não era, obviamente, considerado em nenhum desses ataques. A identificação do próprio Einstein como judeu, apesar do seu profundo distanciamento das religiões tradicionais, foi inteiramente determinada pelo aparecimento do anti-semitismo na Alemanha dos anos 20. Foi também por este motivo que se tornou sionista. Segundo o seu biógrafo Philipp Frank, nem todos os sionistas o aceitavam bem, porque Einstein pedia que os Judeus fizessem um esforço para ajudar os Árabes, tentando perceber o seu modo de vida. Esta devoção ao relativismo cultural tornava-se ainda mais marcante pelos complexos aspectos emocionais envolvidos. De qualquer forma, ele continuou a apoiar o sionismo, especialmente à medida em que ia sendo conhecido o desespero dos Judeus na Europa no fim da década de 30. (Em 1948, Einstein foi convidado para presidente de Israel, mas recusou delicadamente. É interessante especular sobre as diferenças que poderiam existir, se é que haveria algumas, na política do Próximo Oriente se Albert Einstein tivesse aceite ser presidente de Israel.) Depois de ter abandonado a Alemanha, Einstein soube que os nazis tinham posto a sua cabeça a prémio por 20 000 marcos. ("Eu não sabia que ela valia assim tanto ! ") Aceitou então um emprego no Instituto de Estudos Avançados, recentemente fundado em Princeton, Nova Jérsia, onde ficaria o resto da vida. Quando lhe perguntaram que salário pensava ser justo para si, respondeu 3000 dólares. Percebendo o olhar de espanto do representante do Instituto, pensou que teria pedido de mais e propôs uma quantia mais baixa. O seu salário foi fixado em 16 000 dólares, o que era uma quantia considerável nos anos 30. O prestígio de Einstein era tão grande que não é de estranhar que outros físicos europeus emigrados nos Estados Unidos o tenham abordado, em 1939, para escrever uma carta ao presidente Franklin D. Roosevelt propondo o estudo e o desenvolvimento de uma bomba atómica, tentativa de ultrapassar os prováveis esforços para conseguir armas nucleares por parte dos Alemães. Embora Einstein não estivesse a trabalhar em física nuclear, nem tivesse tido, mais tarde, qualquer participação no desenvolvimento deste projecto, escreveu a carta que levou à realização do Projecto Manhattan. É provável, no entanto, que a bomba atómica tivesse sido criada nos Estados Unidos independentemente desta participação de Einstein. Mesmo sem o E = mcz, a descoberta da radiactividade por Antoine Becquerel e a investigação dos núcleos atómicos por Ernest Rutherford - ambos trabalhando independentemente de Einstein - teriam sempre conduzido ao desenvolvimento das armas nucleares. O horror de Einstein à Alemanha nazi já há muito o tinha levado a abandonar, para seu grande desgosto, as ideias pacifistas. Quando, mais tarde, se veio a saber que os nazis não tinham conseguido adquirir armas nucleares, Einstein expressou o seu remorso: "Se tivesse sabido que os Alemães não iam conseguir uma bomba atómica, nada teria feito para que a conseguíssemos aqui. " Em 1945, Einstein incitou os Estados Unidos ao corte de relações com a Espanha de Franco, que apoiara os nazis na segunda guerra mundial. John Rankin, um congressista conservador do Mississípi, atacou Einstein num discurso feito na Câmara dos Representantes, declarando que "este agitador estrangeiro vai acabar por fazer-nos mergulhar numa nova guerra só para propagar o comunismo pelo mundo [...) Já é tempo de o povo americano se precaver contra Einstein". Einstein era um poderoso defensor das liberdades civis nos Estados Unidos, mesmo durante o período mais negro do macartismo no final dos anos 40 e início dos anos 50. Observando a maré crescente de histeria, experimentava a sensação assustadora de ter assistido a algo de semelhante na Alemanha dos anos . Incentivava os réus a recusarem-se a depor perante a Comissão das Actividades Antiamericanas da Câmara, dizendo que qualquer pessoa deveria estar "preparada para a prisão ou para a ruína económica [...] para sacrificar o seu bem-estar pessoal aos interesses [...) do seu país". Defendia que as pessoas têm "o dever de se recusar a participar em qualquer iniciativa que viole os direitos constitucionais do indivíduo. Isto diz respeito, em particular, a todos os inquéritos relacionados com a vida privada e as filiações políticas dos cidadãos [...)". Esta tomada de posição foi fortemente criticada pela imprensa. O senador Joseph MaCarthy afirmou, em 1953, que qualquer pessoa que tivesse este tipo de opinião era "ela própria um inimigo da América". Por tudo isto, tornou-se moda associar o reconhecimento do génio científico de Einstein a um certo menosprezo condescendente pelo seu posicionamento político, considerado naive. Os tempos mudaram. Pergunto-me hoje se não será mais razoável ver as coisas de uma outra forma: num campo como a física, onde as ideias podem ser quantificadas e comprovadas com grande precisão, as descobertas de Einstein são inquestionáveis e é espantosa a sua clareza em assuntos onde outros se perdiam na confusão; valerá talvez a pena pensar se as suas opiniões não terão também alguma validade no campo mais subjectivo da política. Durante os anos que passou em Princeton, a paixão de Einstein continuou a ser, como sempre, a vida da mente. Trabalhou longa e duramente numa teoria do campo unificado, que combinaria a gravitação, a electricidade e o magnetismo numa base comum. Esta tentativa foi, no entanto, considerada fracassada. Ainda assistiu à incorporação da teoria da relatividade generalizada como instrumento principal da compreensão da estrutura e da evolução do universo em larga escala. Ter-lhe-ia sido agradável, decerto, testemunhar a aplicação vigorosa da relatividade coisa, dava qualquer outra coisa em troca: há muitas consequências da relatividade restrita que vão contra a intuição e contra a nossa experiência de todos os dias, mas que se tornam claras e facilmente verificáveis quando viajamos suficientemente próximos da velocidade da luz - o que é uma experiência rara ao nível do senso comum (cap. Ii). Um exemplo disto é que, quando viajamos a uma velocidade próxima da da luz, o tempo se atrasa: os relógios de pulso, os relógios atómicos e o nosso envelhecimento biológico. Uma nave espacial que se desloque a uma velocidade próxima da da luz pode deslocar-se entre dois lugares quaisquer, independentemente da distância entre eles, num período de tempo muito curto-tempo medido a bordo da nave, e não no planeta de origem. Um dia poderemos ir ao centro da Galáxia da Via Láctea e voltar demorando apenas umas décadas, tempo medido a bordo da nave. Este mesmo período de tempo, medido na Terra, é equivalente a perto de 000 anos e muito poucos dos que nos viram partir estariam vivos para comemorar o nosso regresso. O filme Encontros Imediatos do Terceiro Grau dá-nos uma vaga ideia desta possibilidade de dilação do tempo, embora integre também a sugestão gratuita de que Einstein seria provavelmente um extraterrestre. As suas descobertas foram, de facto, desconcertantes, mas ele era muito humano e a sua vida é um exemplo de quanto um ser humano pode conseguir, se for suficientemente dotado e corajoso O último acto público de Einstein foi juntar-se a Bertrand Russell e a muitos outros cientistas e intelectuais, numa tentativa frustrada de parar o desenvolvimento das armas nucleares. Argumentava que as armas nucleares tinham modificado tudo menos a nossa forma de pensar. Num mundo dividido em estados hostis, ele via a energia nuclear como a maior ameaça à sobrevivência da espécie humana. "Pudémos escolher", dizia, "entre tornar ilegais as armas nucleares e ter de enfrentar a aniquilação geral [...] O nacionalismo é uma doença infantil. É o sarampo da espécie humana [. . .] Os nossos livros escolares glorificam a guerra e escondem os seus horrores. Infiltram o ódio nas veias das crianças. Eu ensinaria a paz em vez da guerra. Eu tentaria infiltrar o amor, e não o ódio." Com 66 anos, nove anos antes de morrer, em 1955, Einstein descrevia o objectivo de toda a sua vida: "Havia este mundo enorme, que existe independentemente de nós, seres humanos que permanece diante de nós um enigma gigantesco e eterno acessível, pelo menos em parte, à nossa inspecção e ao nosso pensamento. A contemplação deste mundo acenava como uma libertação [...] O caminho para este paraíso não era tão confortável nem atraente como o caminho para o Paraíso religioso; mas mostrou-se digno de confiança e nunca me arrependi de o ter escolhido." . 51 @CAPÍTULO IV EM LOUVOR DA CIÒNCIA E DA TECNOLOGIA O enriquecimento da mente é como um alimento que se fornece à alma humana. Marco Túlio Cícero, De Finibus Bonorum et Malo rum, voI. 19 (45-44 a. C.) Para alguns, a ciência é uma deusa enaltecida; para outros, uma vaca leiteira. Friedrich von Schiller, Xenien ) Nos meados do século xIx, o grande físico inglês autodidacta Michael Faraday recebeu a visita da sua soberana, a rainha Vitória. Entre as inúmeras famosas descobertas de Faraday, algumas de óbvio e imediato benefício prático, encontravam-se achados menos conhecidos versando os campos da electricidade e do magnetismo, que então mais não eram do que curiosidades laboratoriais. Durante o tradicional diálogo entre um responsável pelo estado e um responsável por um laboratório, a rainha questionou Faraday sobre a utilidade de tais estudos, ao que o cientista retorquiu: "Minha Senhora, e qual a utilidade de um bebé?" Faraday pensava que, um dia, talvez viesse algo de prático a resultar da electricidade e do magnetismo. Na mesma altura, o físico escocês James Clerk Maxwell estabeleceu quatro equações matemáticas baseadas no trabalho de Faraday e nas experiências dos seus antecessores, relacionando cargas e correntes eléctricas com campos eléctricos e magnéticos. As equações revelavam uma estranha falta de simetria, facto que preocupou Maxwell. Havia algo de inestético.nelas, tal como eram então conhecidas, e, para melhorar a simetria, Maxwell propôs que a uma dessas equações fosse somado um termo adicional, que o físico denominou "corrente de deslocamento". O seu argumento era fundamentalmente intuitivo; não havia nenhuma prova experimental que comprovasse a existência de tal corrente. A proposta de Maxwell teve contudo consequências espantosas. As equações corrigidas implicavam a existência de radiação electromagnética, incluindo raios gama, raios X, luz ultravioleta, luz visível, infravermelhos e rádio. Estas equações estimularam Einstein na descoberta da relatividade restrita. O conjunto do trabalho laboratorial e teórico levado a cabo por Faraday e Maxwell deu origem, um século mais tarde, a uma revolução técnica no planeta Terra. A luz eléctrica, o telefone, o gira-discos, a rádio, a televisão, o frigorífico, os pace- makers cardíacos, as centrais hidroeléctricas, os sistemas automáticos de alarme e de combate a incêndios, os eléctricos e os metropolitanos, juntamente com o computador electrónico, constituem alguns dos benefícios advindos da linha revolucionária do trabalho laboratorial de Faraday e da insatisfação estética de Maxwell ao observar uns rabiscos matemáticos numa folha de papel. Muitas das grandes aplicações práticas da ciência deram-se deste modo acidental e imprevisível. Na época da rainha Vitória não bastaria dinheiro para que os cientistas ingleses pensassem e inventassem, digamos, a televisão. foi a consequência mais citada (os indivíduos de pele negra estão perfeitamente adaptados ao aumento de fluxo de luz ultravioleta). No entanto, pouca atenção por parte do público tem sido dada à bem mais preocupante possibilidade de microrganismos que ocupam a base de uma complexa pirâmide de alimentos, no topo da qual está o Homo sapiens, poderem também ser destruídos pelo aumento da luz ultravioleta. Têm sido tomadas medidas, embora relutantemente, com vista a suprimir os halocarbonetos das latas de spray (ainda que ninguém pareça preocupar-se com o facto de as mesmas moléculas serem utilizadas em sistemas de refrigeração) e, como resultado, os perigos imediatos são provavelmente diminutos. O que penso ser mais preocupante em relação a este incidente é o modo acidental da descoberta deste problema. Um grupo abordou este último, pois tinha redigido os programas de computador adequados, embora num contexto diferente; os seus membros estavam preocupados com a química da atmosfera do planeta Vénus, que contém ácidos clorídrico e fuorídrico. A necessidade de um amplo e diverso conjunto de equipas de pesquisa, trabalhando numa grande variedade de problemas científicos, torna-se exigível para a continuação da nossa sobrevivência. Mas que outros problemas, até mais graves, não existirão e dos quais não temos conhecimento em virtude de não terem ainda sido detectados por uma equipa de pesquisa? Por detrás de cada problema ainda por solucionar, como o do efeito dos halocarbonetos na ozonosfera, não poderão esconder-se muitos outros? É, portanto, um facto espantoso que não exista no governo federal, nas principais universidades ou nos institutos privados de investigação um grupo de pesquisa altamente competente, poderoso e adequadamente instituído cuja função seja a de descobrir e precaver futuras catástrofes resultantes do desenvolvimento de novas tecnologias. O estabelecimento de uma tal pesquisa e de organizações para a sua avaliação requer uma coragem política substancial, se se pretender que tal tarefa seja levada a cabo eficientemente. As sociedades tecnológicas são detentoras de uma ecologia industrial fortemente tecida, uma rede de teorias económicas interligadas. É muito difícil desatar um dos fios dessa rede sem causar um abalo no seu todo. A afirmação de que o progresso tecnológico provocará consequências humanas adversas implica a perda de lucro para alguém. Como exemplo, a Companhia DuPont, principal indústria de halocarbonetos pressurizados, assumiu em debates públicos a curiosa posição de que todas as conclusões sobre os halocarbonetos destruindo a ozonosfera eram teóricas. Parecia implicar que estaria preparada para cessar o fabrico de halocarbonetos apenas quando tais conclusões fossem comprovadas experimentalmente - isto é, quando a ozonosfera já tivesse sido destruída. Existem alguns problemas em que a prova por inferência é tudo o que existe; quando a catástrofe se der, será demasiado tarde para remediar seja o que for. Paralelamente, o novo Departamento de Energia conseguirá ser eficiente se se mantiver a devida distância dos interesses comerciais, se for livre para prosseguir novas opções, mesmo que estas impliquem perdas de lucro para certas indústrias. O mesmo se passa na pesquisa farmacêutica, no desenvolvimento de alternativas ao motor de combustão interna e em muitas outras fronteiras tecnológicas. Penso que o desenvolvimento de novas tecnologias não deveria ser controlado pelas velhas tecnologias; a tentação de suprimir a competição é demasiadamente grande. Se nós, Americanos, vivemos numa sociedade onde vigora a livre iniciativa, que nos seja então permitido assistir a uma iniciativa substancialmente independente no que diz respeito a todas as tecnologias das quais o nosso futuro possa depender. Se as organizações dedicadas à inovação tecnológica e aos seus limites de aceitação não desafiarem (e até ofenderem), pelo menos, alguns grupos poderosos, elas não estarão a cumprir os seus propósitos. Existem múltiplos desenvolvimentos tecnológicos práticos que não estão a ser empreendidos por falta de apoio governamental. Por exemplo, por mais agonizante que uma doença como o cancro seja, penso que não se pode afirmar que a nossa civilização esteja por ela ameaçada. Se o cancro pudesse ser curado por completo, a média de longevidade ver-se-ia distendida por apenas alguns anos, até que alguma outra doença - que neste momento não atinge vítimas de cancro- se implantasse. No entanto, dá-se o caso de a nossa civilização se encontrar fundamentalmente ameaçada pela falta de um adequado método de controlo de fertilidade. Os aumentos de população exponenciais dominarão quaisquer aumentos aritméticos, mesmo aqueles que advieram de iniciativas tecnológicas heróicas, na disponibilidade de alimentos e recursos, como há muito tempo Malthus percebeu. Mesmo que alguns países industriais tenham conseguido atingir um nível zero de crescimento populacional, isto não acontece ao nível mundial. Pequenas flutuações climáticas podem destruir populações inteiras com economias marginais. Em muitas sociedades, onde a tecnologia é escassa e as perspectivas de se atingir a idade adulta duvidosas, terem-se muitos filhos torna-se a única tábua de salvação em relação a um futuro desesperante e incerto. Tal sociedade, ao ver-se confrontada com a fome, por exemplo, pouco tem a perder. Numa época em que as armas nucleares proliferam inconscientemente, em que um sistema atómico constitui quase uma indústria artesanal, a fome e o aumento da população causam graves perigos tanto às nações desenvolvidas como às subdesenvolvidas. A solução para tais problemas requer certamente um melhor sistema educativo, pelo menos a um nível de auto-suficiência tecnológica, e, em especial, uma justa distribuição dos recursos mundiais. No entanto, é urgente o estabelecimento de uma adequada contracepção - a longo prazo, uma melhor educação científica, uma comunicação superior dos seus poderes e delícias. O ponto de partida mais simples é abolir o declínio autodestrutivo das bolsas federais concedidas aos investigadores científicos e professores de ciência nas universidades, licenciados e doutorados. Os agentes mais eficientes na comunicação da ciência ao público são a televisão, o cinema e os jornais - onde as propostas científicas são frequentemente desinteressantes, imprecisas, solenes, tremendamente caricaturadas ou (como sucede em muitos programas televisivos dedicados às crianças aos sábados de manhã) hostis à ciência. Têm surgido recentemente extraordinárias descobertas no que diz respeito à exploração de planetas, ao papel desempenhado por pequenas proteínas cerebrais que afectam a nossa vida emocional, às colisões de continentes, à evolução da espécie humana (e até que ponto o nosso passado simboliza o nosso futuro), à estrutura ulterior da matéria (e à questão sobre se existem partículas elementares ou um número infinito), bem como à tentativa de comunicação com civilizações de planetas pertencentes a outras estrelas, à natureza do código genético (que determina o nosso grau de hereditariedade e que nos torna aparentados com todas as plantas e animais do nosso planeta) e às questões fundamentais da origem, natureza e destino da vida, dos mundos e do universo como um todo. As recentes descobertas nestes campos podem ser entendidas por uma pessoa inteligente. Porque são tão pouco discutidas nos meios de comunicação social, nas escolas, nas conversas de todos os dias? As civilizações podem ser caracterizadas pela maneira como abordam tais questões e pelo modo como alimentam a mente e o corpo. O tratamento científico destas questões representa uma tentativa de alcançar uma opinião geralmente aceite do nosso lugar no cosmo; requer criatividade e uma mente aberta, persistente cepticismo e desejo de saber. Estas questões são diferentes dos temas práticos que discuti anteriormente, encontrando-se, no entanto, com eles relacionadas e -como no exemplo de Faraday e Maxwell- o encorajamento dado à investigação poderá constituir a garantia mais segura de que teremos os meios intelectuais e técnicos necessários para lidar com os problemas práticos que se nos deparam. Apenas uma pequena fracção da maioria dos jovens com capacidade consegue seguir carreiras científicas. Espanto-me frequentemente com a tremenda capacidade e entusiasmo pela ciência existentes entre os jovens das escolas preparatórias, bem maiores do que entre os alunos universitários. Algo acontece durante os anos de escolaridade que desencoraja o seu interesse (e não é essencialmente a puberdade); devemos compreender e eliminar este desencorajamento perigoso. Ninguém pode prever de onde virão os nossos futuros líderes científicos. É óbvio que Albert Einstein se tornou um cientista apesar dos seus estudos, e não apenas por causa deles (cap. iII). Na sua Autobiografia, Malcom X conta-nos a história de um jogador que nunca fez um contrato, mas que passou a vida a fazer transacções na sua cabeça. Que contribuições para a sociedade, perguntava Malcom, poderia tal pessoa ter dado se tivesse tido uma educação adequada e o devido encorajamento? Os jovens mais brilhantes são um recurso nacional e global. Eles requerem um tratamento e um cuidado especiais. Muitos dos problemas que enfrentamos podem ter solução, mas somente se estivermos dispostos a arranjar soluções brilhantes, ousadas e complexas. Tais soluções requerem gente brilhante, ousada e complexa. Acredito que existam muito mais pessoas assim -em todas as nações, grupos étnicos e classes sociais- do que pensamos. A preparação de tais jovens não deve, obviamente, restringir-se à ciência e à tecnologia; na verdade, a aplicação de novas tecnologias aos problemas humanos requer uma profunda compreensão da natureza e da cultura humanas, uma educação geral no sentido mais lato. Encontramo-nos numa encruzilhada da história da humanidade. Nunca antes existiu um momento assim, simultaneamente tão arriscado e prometedor. Somos a primeira espécie a ter domínio sobre a nossa evolução. Pela primeira vez possuímos os meios para a nossa autodestruição intencional e inadvertida. Possuímos também, a meu ver, os meios para ultrapassar este estádio de adolescência tecnológica e atingir um outro de maturidade rica e compensadora para todos os membros da nossa espécie. Mas não nos resta muito tempo para determinar qual o caminho dessa encruzilhada que devemos escolher para orientar os nossos filhos e o nosso futuro. @PARTE II OS CULTIVADORES DE PARADOXOS @CAPÍTULO V VIAJANTES DA NOITE E TRAFICANTES DE MISTÉRIOS: RAZÃO E ABSURDO NO LIMITE DA CIÒNCIA O BATER DE CORAÇÃO DE UMA PLANTA EXCITA CIENTISTAS NUMA REUNIÃO EM OXFORD Um sábio hindu causa ainda mais sensação mostrando "sangue" a escorrer de uma planta. A ASSISTêNCIA FICA FASCINADA Observa atenta e concentrada o conferencista, que obriga bocas-de-dragão a uma luta de morte. New York Times de 7 de Agosto de 1926, D. I. William James costumava pregar a "vontade de acreditar". Pela minha parte, gostaria de pregar "o desejo de duvidar" 1...) Aquilo que é preciso não é a vontade de acreditar, mas o desejo de descobrir, que é exactamente o contrário. Bertrand Rusxll, Ensaios Cépticos (1928). Na Grécia do século )i d. C., durante o reinado do imperador romano Marco Aurélio, viveu um homem erudito com o nome de Alexandre de Abonothicus. Com boa presença, esperto e sem escrúpulos, segundo as palavras de um seu contemporâneo, "vivia de pretensões ocultas". A sua impostura mais conhecida aconteceu quando "entrou de rompante no mercado quase nu, apenas com uma tanga ornamentada, não trazendo mais o livro lhe poupou milhões de dólares - presumivelmente porque o alertou para o tipo de planos idiotas em que não deveria investir o seu dinheiro. O tratado de Mackay abrange desde os danos da alquimia, da profecia e da fé até às casas assombradas, às cruzadas e à influência da religião e da política no cabelo e na barba. O valor do livro, como o negócio de oráculos de Alexandre, está nos anos que nos separam desses acontecimentos. Muitas das imposturas nele descritas não têm eco contemporâneo e só muito levemente comprometeriam as nossas paixões: torna-se claro como as pessoas de outros tempos eram enganadas. Mas, depois da leitura de muitos casos como estes, começamos a pensar nas versões contemporâneas que lhes podem ser comparadas. Os sentimentos das pessoas são tão fortes como sempre foram e o cepticismo está hoje provavelmente tão fora de moda como noutros tempos. Assim sendo, tem de haver charlatães em abundância na sociedade contemporânea. E há. No tempo de Alexandre, como no de Mackay, a religião era a fonte da maioria dos dogmas aceites e das opiniões sobre o mundo que prevaleciam. Essa intenção de enganar o público esteve frequentemente presente na linguagem religiosa. Isto, é claro, ainda hoje acontece, como atestam claramente os testemunhos de espíritos arrependidos e outras notícias recentemente aparecidas. Mas, nos últimos cem anos -fosse por bem ou por mal-, a ciência mergulhou no pensamento popular como um meio primário de penetrar nos segredos do universo, e então esperámos que muitos charlatães contemporâneos tivessem, pelo menos, alguma preparação científica. E têm. Neste último século, muitas declarações foram feitas à margem ou no limite da ciência - declarações que despertaram o interesse popular e, em muitos casos, teriam uma importância profundamente científica se, pelo menos, fossem verdadeiras. Examinaremos sucintamente uma amostra representativa dessas declarações: são fora do vulgar, uma brecha no mundo enfadonho, e muitas vezes contêm um rasgo de esperança: a de que, por exemplo, tenhamos poderes amplos que estão encobertos ou que forças invisíveis estejam em vias de salvar-nos de nós mesmos, ou ainda que possa haver uma harmonia desconhecida para o universo. É certo que às vezes também a ciência faz afirmações deste tipo - como, por exemplo, a de que a informação hereditária que passa de geração para geração está codificada numa única e longa molécula chamada ADN, na descoberta da gravitação universal ou translação dos continentes, no aproveitamento da energia nuclear, na procura da origem da vida ou da história mais remota do universo. E, se se faz alguma alegação adicional - como, por exemplo, a de que é possível flutuar no ar sem ajuda, através de uma força de vontade muito particular - o que há de tão diferente nisso? Nada. Excepto pelo problema da prova. Os que apregoam a levitação têm obrigação de demonstrar a sua afirmação perante cépticos, em circunstâncias controladas. A obrigação da prova é deles, e não dos que duvidam. Essas afirmações são demasiado importantes para que pensemos nelas de ânimo leve. Muitas levitações têm sido mostradas nos últimos cem anos, em filmes com pessoas bem iluminadas elevando-se no ar sem ajuda a cerca de quatro metros e meio do chão, mas nunca praticadas em condições que possam excluir a possibilidade de fraude. Se a levitação fosse possível, as suas implicações científicas e, mais genericamente, humanas seriam enormes. Aqueles que fazem observações ou alegações fraudulentas conduzem-nos ao erro e desviam-nos do maior objectivo humano, que é o de compreender como funciona o mundo. É por esta razão que jogar levianamente com a verdade é um assunto bastante sério. 69 @PROJECÇÃO ASTRAL Consideremos aquilo a que por vezes se chama "projecção astral". Em circunstâncias de êxtase religioso ou sono hipnótico, ou, às vezes, mesmo sob a influência de um alucinogénio, as pessoas relatam a sensação típica de saírem para fora do seu corpo, de abandoná-lo, de flutuarem sem esforço pela sala (muitas vezes junto ao tecto) e de, só no fim da experiência, voltarem a entrar nele. Se isto pode realmente acontecer, tem decerto uma grande importância: contém algo sobre a natureza da personalidade humana e mesmo sobre a possibilidade de "vida depois da morte". Na verdade, algumas pessoas que já estiveram à beira da morte ou foram dadas clinicamente como mortas contam sensações semelhantes. Mas o facto de uma sensação ser relatada não quer dizer que tenha ocorrido exactamente como se relatou. Pode ter sido apenas uma experiência vulgar ou uma deficiência de neuranatomia humana que, em circunstâncias específicas, conduz sempre à mesma ilusão de projecção astral (ver cap. xv). Existe uma maneira muito simples de comprovar a autenticidade da projecção astral. Peça a um amigo seu que, na sua ausência, coloque, com a capa virada para cima, um livro numa prateleira alta e inacessível da biblioteca. Então, se já teve uma experiência de projecção astral, flutue até ao livro e leia o título. Quando o espírito voltar a entrar no seu corpo e você anunciar correctamente o que leu, forneceu alguma prova da realidade física da projecção astral. É claro, porém, que não pode haver nenhuma maneira de você saber previamente o título do livro, como, por exemplo, dando uma espreitadela quando não estiver ninguém ao pé ou tendo recebido a informação através do seu amigo ou de outra pessoa. Para evitar que isto suceda, a experiência deve fazer-se "às cegas para ambos", ou seja, alguém que você conhece mal e sabe muito pouco acerca da sua vida é a pessoa indicada para escolher e colocar o livro na prateleira e dizer se a sua resposta está correcta. Pelo que sei, nenhuma demonstração de projecção astral foi relatada em circunstâncias tão controladas em presença de cépticos. Assim, concluo que, ainda que não excluamos a possibilidade da projecção astral, não temos grandes motivos para acreditar nela. Por outro recente, donde se concluiu que o Gigante de Cardiff fora apenas uma farsa arquitectada por George Hull, de Binghamton, que se descreveu a si mesmo como "negociante de tabaco, inventor, alquimista e ateu": um homem de negócios. As "veias azuis" eram uma característica natural da rocha esculpida. O objectivo da farsa era ganhar algum dinheiro atraindo os turistas àquela terra. Esta revelação um tanto dolorosa não assustou, porém, o empresário americano P. T. Barnum, que ofereceu 60 000 dólares para alugar o Gigante de Cardiff durante três meses. Quando Barnum deixou de o ter à disposição para as suas exposições itinerantes (porque os donos estavam a fazer tanto dinheiro que não o alugavam), ele mostrava uma cópia que mandara fazer, o que dava grande alegria aos seus clientes a aumentava o seu pé-de-meia: o Gigante de Cardiff, de que a maioria dos Americanos não viu senão a cópia. Barnum exibiu uma falsa falsidade. O original está hoje a apodrecer no Museu de Agricultura de Cooperstown, em Nova iorque. Diz-se que, tanto Barnum como H. L. Mencken, fizeram a observação infeliz de que nunca ninguém perdeu dinheiro por subestimar a inteligência do público americano. O reparo tem aplicação universal. Mas a falta não está na inteligência, que é mais do que suficiente, mas sim no esforço de treinar sistematicamente o pensamento crítico, que ainda é muito escasso. @CHICO ESPERTO, O CAVALO MATEMÁTICO No início do século xx houve um cavalo na Alemanha que sabia ler e contar e mostrava ter um conhecimento profundo das questões políticas mundiais. Ou, pelo menos, assim parecia. O cavalo tinha o nome de Chico Esperto. O seu dono era Wilhelm von Osten, um cidadão de Berlim tão respeitável que, segundo o que se dizia, a hipótese de fraude estava inteiramente fora de questão. Delegações de cientistas famosos observaram o milagre equino e deram-no como genuíno. Chico respondia a problemas de matemática que lhe eram postos dando pancadas em código com uma das patas dianteiras e respondia a questões não matemáticas abanando com a cabeça para cima e para baixo ou para um lado e para o outro, à maneira ocidental. Por exemplo, alguém perguntava: "Chico, quanto é o dobro da raiz quadrada de nove menos um?" Ao fim de uma breve pausa, Chico levantava devidamente a pata direita e batia no chão com ela quatro vezes. "Moscovo é a capital da Rússia?" A cabeça abanava para cima e para baixo. "E Sampetersburgo?" A cabeça movia-se negativamente. A Academia das Ciências Prussiana mandou uma comissão liderada por Oskar Pfungst para observar de mais perto; Osten, que acreditava piamente nos poderes de Chico, acolheu os investigadores calorosamente. Então Pfungst reparou numa série de regularidades muito interessantes. Quanto mais difícil era a pergunta, mais tempo levava Chico a responder; quando Osten desconhecia a resposta, Chico mostrava igual ignorância; se Osten estava fora da sala ou se o cavalo tinha antolhos, as respostas não eram dadas com a mesma rapidez. Mas, de outras vezes, Chico dava a resposta num lugar pouco familiar, rodeado por cépticos, às vezes mesmo com Osten fora da cidade. A explicação tornou-se clara mais tarde. Quando era posto a Chico um problema de matemática, Osten ficava ligeiramente nervoso, temendo que Chico batesse demasiadas vezes com a pata. Quando Chico, no entanto, alcançava o número correcto de pancadas, Osten, inconsciente e imperceptivelmente, inclinava a cabeça e ficava completamente relaxado: imperceptivelmente para todos os seres humanos presentes, mas não para Chico, que era recompensado com um cubo de açúcar por cada resposta correcta. Até as equipas de cépticos olhavam para a pata de Chico logo que a pergunta era feita e acompanhavam com olhares, gestos e posturas precisos o momento em que o cavalo acertava na pergunta. Chico era completamente ignorante em matemática, mas muito sensível aos sinais não verbais feitos inconscientemente pelas pessoas. Sinais semelhantes aos que devia fazer para responder eram-lhe transmitidos sem querer quando perguntas de ordem verbal eram postas. Chico Esperto tinha o nome certo: era um cavalo que condicionava um ser humano e descobrira que outros seres humanos que nunca vira antes lhe forneciam os sinais de que necessitava. Mas, apesar da natureza evidente da prova de Pfungst, histórias semelhantes de cavalos, porcos e gansos que sabem ler e contar e que percebem de política continuam a enganar os ingénuos de muitos países. ' Por exemplo, Lady Wonder, uma égua nascida na Virgínia, respondia a perguntas ordenando com o focinho cubos de madeira com letras. Como também respondia a interrogações feitas em particular pelo seu dono, foi declarada não só uma égua erudita, mas também telepática pelo parapsicólogo . B. Rhine (Diário da Psicologia Anorma! e Social, 23, 449,1929). O mágico John Scarne descobriu que o dono acenava intencionalmente com um chicote enquanto Lady Wonder movia o focinho entre os cubos para formar palavras. O dono parecia estar fora do campo de visão da égua, mas os cavalos têm excelente visão periférica. Ao contrário de Chico Esperto, Lady Wonder foi parte numa fraude intencional. @SONHOS PREMONITÓRIOS Uma das mais arrebatadoras instâncias aparentes da percepção extra-sensorial é a experiência premonitória, quando acontece a alguém ter a percepção de um desastre iminente, da morte de uma pessoa querida, da comunicação de um amigo distante, e o evento pressentido acontece. Muitos dos que tiveram essa experiência relatam que a intensidade emocional da premonição e a sua consequente verificação fornecem um sentido de poder de contacto com outro domínio da realidade. Eu já tive uma experiência destas. Há muitos anos acordei no meio de uma noite alagado em suor, com a sensação de que um parente próximo tinha sucumbido de repente. Senti-me tão dominado pela carga fantasmagórica da experiência que tive medo de pedir uma ligação interurbana, com receio de que o meu parente tropeçasse mesmo aviões como os nossos, e conhecendo a nossa civilização ancestral. Isto não distorce o nosso poder imaginativo e é suficientemente parecido com histórias religiosas do Ocidente para parecer natural. A procura de micróbios marcianos para a bioquímica exótica ou de mensagens radiofónicas interestelares de seres inteligentes biologicamente diferentes do homem é mais difícil de acreditar e não parece tão natural. A primeira opinião está amplamente difundida e ao nosso dispor; a última muito menos. Mesmo assim, creio que muitos dos que se excitam com a ideia da existência de antigos astronautas são motivados por sentimentos sinceros de ordem científica (e às vezes religiosa). Há um interesse popular não aproveitado pelas questões científicas mais profundas. Para muita gente, as doutrinas grosseiras da ciência marginal são o primeiro passo para a compreensão da ciência de que dispomos. A popularidade da ciência marginal é uma censura às escolas, à imprensa e à televisão comercial, pelos seus esforços muito escassos, ineficazes e pouco imaginativos de educação científica; e a nós, cientistas, por fazermos tão pouco pela popularidade da nossa disciplina. Os defensores dos antigos astronautas -sendo o mais notável Erich von Dãniken, no seu livro Quadrigas dos Deuses?declaram a existência de numerosos elementos de prova arqueológica que apenas podem ser compreendidos pelo contacto, no passado, de civilizações extraterrestres com os nossos antecessores. Um pilar de ferro na Índia, uma placa em Palenque, no México, as Pirâmides do Egipto, os monolitos de pedra (todos, segundo Jacob Bronowsky, parecidos com Benito Mussolini) na ilha de Páscoa e as figuras geométricas em Nazca, no Peru, foram considerados como tendo sido manufacturados por extraterrestres ou sob a sua orientação. Mas, em qualquer dos casos, os artefactos em questão têm explicações plausíveis bem mais simples. Os nossos antepassados não eram nenhuns parvos. Podem não ter dominado a tecnologia avançada, mas eram tão espertos como nós e às vezes misturavam dedicação e inteligência com trabalho árduo e produziam resultados que nos impressionam. A ideia do antigo astronauta, curiosamente, é popular entre os burocratas e os políticos da União Soviética, talvez porque preserva as velhas ideias religiosas num contexto científico cuja modernidade é aceitável. A versão mais recente da história do antigo astronauta é a afirmação de que a tribo Dogon, da República do Mali, tem uma tradição astronómica relacionada com a estrela Sírio, de que apenas puderam ter conhecimento através do contacto com uma sociedade estranha. Esta parece, com efeito, ser uma explicação correcta, mas nada tem a ver com astronautas, sejam eles antigos ou modernos (ver cap. vi). É surpreendente que as Pirâmides tenham desempenhado um papel importante em.tudo o que se escreveu sobre os antigos astronautas; desde que as invasões napoleónicas do Egipto facilitaram a influência das antigas civilizações egípcias na consciência da Europa, as Pirâmides tornaram-se o foco de uma quantidade de absurdos. Muito se escreveu sobre a suposta informação numérica contida na dimensão das Pirâmides, especialmente da grande Pirâmide de Gizé, tanto que, por exemplo, a relação entre a altura e a largura é tida como sendo o tempo em anos entre Adão e Jesus. É famoso o caso de um defensor destas teorias que foi visto a encher uma protuberância para que as suas especulações estivessem de acordo com a observação. A revelação mais interessante e mais recente na "piramidologia" das Pirâmides é a afirmação de que tanto nós como as nossas lâminas de barbear duramos mais tempo dentro de pirâmides do que dentro de cubos. Talvez. Penso que habitar cubos é depressivo e, durante a maior parte da nossa história, os seres humanos não viveram em habitações cúbicas. Mas essas afirmações nunca foram provadas em condições controladas. Mais uma vez, a prova não foi encontrada. O "mistério" do Triângulo das Bermudas tem a ver com o desaparecimento inexplicável de barcos e aviões numa vasta região do oceano à volta das Bermudas. A explicação mais razoável para estes desaparecimentos (se eles tiverem efectivamente ocorrido: acontece que muitos dos que foram alegados nunca se verificaram na realidade) é que os navios se afundaram. Uma vez afirmei, num programa de televisão, que era estranho que os aviões e os navios desaparecessem misteriosamente, e nunca os comboios; ao que o entrevistador, Dick Cavett, respondeu: "Já percebi que você nunca esperou pelo comboio de Long Island." Como os entusiastas do antigo astronauta, os que defendem o Triângulo das Bermudas são retóricos e escolásticos. Mas não fornecem provas. Não encontraram as provas. Os discos voadores, ou OVNis, são conhecidos pela maioria das pessoas. Mas ver uma luz estranha no céu não quer dizer que estejamos a ser visitados por seres do planeta Vénus ou de uma galáxia distante chamada Spectra. Pode ser, por exemplo, o farol de um automóvel reflectido numa nuvem a grande altitude, o voo de um insecto luminoso, ou um avião não convencional com faróis não convencionais, como, por exemplo, a luz dum farol de alta intensidade utilizado para observações meteorológicas. Há também um número de casos -encontros mais imediatos de um enésimo grau- em que uma ou duas pessoas afirmam ter sido levadas numa nave espacial estranha, examinadas com instrumentos médicos fora do comum e depois libertadas. Mas nestes casos temos apenas um testemunho sem fundamento, não importa se sentido ou sincero, de uma ou duas pessoas. E, por tudo quanto sei, não há um único exemplo, entre as centenas de milhares de relatórios preenchidos sobre OVNIs desde 1947, em que muitas pessoas independente e confiantemente contem um encontro físico com o que seja claramente uma nave espacial extraterrestre. Neste domínio, há uma ausência não só de evidência anedótica, mas também de prova física. Os nossos laboratórios são muito sofisticados. A presença de qualquer objecto de manufactura estranha seria imediatamente identificada como tal. No entanto, nunca ninguém apareceu sequer com um pequeno fragmento de uma nave espacial estranha que pudesse ser submetido a esse exame físico - muito menos o diário de bordo do comandante da nave. Foi por estas razões que, em 1977, a NASA recusou um convite do Gabinete Executivo do presidente para Que aconteceu? Para onde foram todas as Virgens? O que se passou com os deuses do Olimpo? Será que estes seres só nos abandonaram em tempos mais cépticos e recentes? Ou poderão estas narrações reflectir a credulidade supersticiosa e a falta de confiança das testemunhas? Isto sugere um possível perigo social vindo da proliferação do culto dos OVNIS: se acreditarmos que seres extraterrestres benignos virão resolver os nossos problemas, podemos ser tentados a exercer menos do que a nossa medida máxima de esforço para os resolvermos nós próprios - como aconteceu muitas vezes em movimentos religiosos milenários na história da humanidade. Todos os casos verdadeiramente interessantes de OVNIs dependem de se acreditar que as testemunhas não estavam a enganar-nos ou a ser enganadas. Mesmo assim, a oportunidade de enganar, presente nos relatos de testemunhas oculares, chega a fazer faltar o ar: 1) quando um assalto simulado é teatralizado numa aula da Faculdade de Direito, poucos estudantes estão de acordo sobre o número de intervenientes, a sua roupa, armas e comentários, a sequência dos acontecimentos ou a altura precisa em que ocorreu o roubo; 2) os professores lidam com dois grupos de crianças que têm, sem saber, a mesma classificação em todos os exames. Mas os professores são informados de que as crianças de um grupo são espertas e as outras parvas. As classificações que são atribuídas reflectem a avaliação prévia e errónea, independentemente da actuação dos alunos. Predisposições influenciam conclusões; 3) mostra-se a um número de testemunhas um acidente entre automóveis. Faz-se-lhes então uma série de perguntas, como, por exemplo: "O carro azul passou com o sinal de stoP?" Uma semana depois, feitas as mesmas perguntas, uma grande proporção das testemunhas afirma ter visto um carro azul - apesar do facto de não haver nenhum carro azul no filme. Parece haver um momento, pouco depois de testemunharmos um evento, em que verbalizamos o que pensamos ter visto e o gravamos depois definitivamente na nossa memória. Nesse momento somos muito vulneráveis e quaisquer crenças que prevaleçam -deuses do Olimpo, santos cristãos ou astronautas extraterrestres- podem inconscientemente influenciar a avaliação do nosso testemunho. Os que são cépticos em relação aos sistemas de crenças marginais não são necessariamente os que temem a inovação. Por exemplo, muitos dos meus colegas e eu estamos profundamente interessados na possibilidade de vida, inteligente ou não, noutros planetas. Mas temos de ter cuidado para não introduzir no cosmo os nossos medos e desejos. Em vez disso, na tradição científica natural, o nosso objectivo é descobrir quais são as verdadeiras respostas, independentemente das nossas predisposições emocionais. E é preciso ter em atenção o facto de estarmos sós. Ninguém ficaria mais encantado do que eu se extraterrestres inteligentes visitassem o nosso planeta. Isso tornaria o meu trabalho cem vezes mais fácil. Na verdade, passei mais tempo do que podia pensando sobre a questão dos OVNIs e dos antigos astronautas. E o interesse do público por este assunto é, penso, pelo menos em parte, uma coisa boa. Mas a nossa abertura para as possibilidades estonteantes que a ciência moderna apresenta devem ser temperadas por um cepticismo que é como que um faro muito apurado. Acontece que muitas das possibilidades interessantes estão erradas. Uma abertura a novas possibilidades e uma vontade de perguntar coisas difíceis são coisas necessárias ao avanço do conhecimento. E perguntar coisas difíceis tem um benefício adicional: a vida política e religiosa na América, especialmente nos últimos quinze anos, foi marcada por uma credulidade pública excessiva, uma falta de vontade de perguntar o que é difícil, facto que resultou numa perturbação que se pode verificar na saúde da nação. O cepticismo do consumidor resulta em produtos de qualidade. Isto pode explicar porque os governos, as igrejas e as escolas não mostraram entusiasmo em excitar o pensamento crítico. Sabem que eles próprios são vulneráveis. Os cientistas profissionais têm normalmente de fazer uma escolha nos seus objectivos de investigação. Há alguns que, se alcançados, seriam muito importantes, mas prometem uma parcela tão pequena de sucesso que ninguém tenta segui-los. (Por muitos anos, este foi o caso da procura de inteligência extraterrestre. A situação mudou principalmente porque os avanços da radiotecnologia nos permitem agora construir enormes radiotelescópios com receptores sensíveis para recolher quaisquer mensagens que possam ser-nos enviadas. Nunca antes na história humana isto foi possível.) Há outros objectivos científicos que são perfeitamente alcançáveis, mas pouco significativos. A maioria dos cientistas escolhem o meio caminho. E, como resultado disto, temos que muito poucos cientistas mergulham verdadeiramente nas águas lodosas de comprovar e desafiar as crenças marginais e pseudocientíficas. A probabilidade de descobrir algo verdadeiramente interessante -excepto o que se relaciona com a natureza humana- parece pouca e o tempo exigido parece muito. Creio que os cientistas deviam passar mais tempo discutindo estes assuntos, mas o facto de uma dada afirmação não ter eco numa oposição científica vigorosa não implica, de modo algum, que os cientistas a achem razoável. Há muitos casos em que o sistema de crenças é tão absurdo que os cientistas o denunciam instantaneamente, mas nunca entregam os seus argumentos à imprensa. Creio que isto é um erro. A ciência, especialmente hoje em dia, depende do apoio do público. Porque muitas pessoas têm, infelizmente, um conhecimento muito reduzido sobre a ciência e a tecnologia, tomar a decisão inteligente a partir de dados científicos é difícil. Parte da pseudociência é uma empresa lucrativa e há apoiantes que não só estão fortemente identificados com o assunto em questão, como também tiram dele grandes lucros monetários. Estão dispostos a investir recursos importantes para defender as suas Começou a fazer um trabalho profícuo, incluindo nas suas publicações as mais recentes notícias sobre o confronto entre o racional e o irracional - um debate que nos faz regressar aos encontros entre Alexandre, traficante de oráculos, e os epicuristas, que eram os racionalistas do seu tempo. A Comissão apresentou também protestos oficiais às cadeias de televisão e à Comissão das Comunicações Federais contra programas televisivos dedicados à pseudociência que são particularmente pouco escrupulosos. Um debate interessante foi efectuado pela Comissão entre aqueles que pensam que todas as doutrinas que cheiram a pseudociência devem ser combatidas e os que crêem que cada assunto deve ser julgado pelo seu próprio mérito, mas que o dever da prova deve ser irrecusavelmente dos que fazem as propostas. Encontro-me, decididamente, dentro do último campo. Penso que devemos perseguir seguramente o extraordinário. Mas afirmações extraordinárias requerem provas extraordinárias. É claro que os cientistas são seres humanos. Quando as suas paixões são excitadas, pode acontecer que abandonem temporariamente os ideais da sua disciplina. Mas estes ideais e o método científico provaram ser enormemente efectivos. Descobrir o verdadeiro modo como o mundo funciona requer uma mistura de pressentimento, intuição e criatividade brilhante; requer também cepticismo em todos os passos. É a tensão que existe entre a criatividade e o cepticismo que produz as admiráveis e inesperadas descobertas da ciência. Em minha opinião, as alegações da ciência marginal empalidecem se forem comparadas com centenas de actividades e descobertas recentes da verdadeira ciência, incluindo a existência de dois cérebros semi-independentes em cada crânio humano; a realidade dos buracos negros, desaparecimento de continentes e colisões; a linguagem dos chimpanzés; as mudanças climáticas maciças em Marte e Vénus; a antiguidade da espécie humana; a procura de vida extraterrestre; a elegante arquitectura molecular e auto- reprodutora que controla a nossa hereditariedade e evolução; e a evidência observada da origem, natureza e destino do universo como um todo. Mas o êxito da ciência, o seu entusiasmo intelectual, a sua aplicação prática, dependem do carácter autocorrector da ciência. Deve haver um modo de comprovar qualquer ideia válida. Deve ser possível reproduzir qualquer experiência válida. O temperamento ou as crenças do cientista são irrelevantes; o que importa é saber se a evidência apoia a sua afirmação. Os argumentos da autoridade simplesmente não contam; demasiadas autoridades enganaram-se demasiadas vezes. Gostaria de ver estes modos do pensamento científico tão efectivos comunicados pelas escolas e pelos meios de comunicação; e seria decerto admirável e um prazer vê-los introduzidos na política. Os cientistas foram conhecidos por mudar completa e publicamente de ideias em presença de novos argumentos. Não me consigo lembrar da última vez em que um político tenha revelado uma abertura e uma força de vontade para mudas semelhantes. Muitos dos sistemas de crença, no limite ou na franja da ciência, não são matérias susceptíveis de experimentação. São casos anedóticos que dependem inteiramente da validade da testemunha ocular, que, em geral, é de desconfiar. Com base nas atitudes do passado, muitos sistemas como esses tornar-se-ão inválidos. Mas não podemos rejeitar essas afirmações assim do pé para a mão, como também não podemos aceitá-las como válidas. Por exemplo, a ideia de que pedras enormes poderiam cair do céu foi considerada absurda pelos cientistas do século xvIII; Thomas Jefferson notou, a propósito de uma dessas histórias, que preferia acreditar que dois cientistas ianques mentiam a que pedras podiam chover dos céus. Mas, na verdade, as pedras caem do céu. Chamam-se "meteoritos" e os nossos preconceitos não têm qualquer relação com a verdade da questão. Mas a verdade foi estabelecida apenas por uma análise cuidadosa através de dúzias de testemunhas independentes que viram o mesmo meteorito cair, apoiadas por um grande corpo de prova física, incluindo meteoritos recolhidos das goteiras de casas e dos sulcos de campos plantados. Preconceito quer dizer à letra "julgamento prévio", a rejeição de uma afirmação antes de examinada a prova. O preconceito é resultado de emoções poderosas, não de racionalismo. Se queremos descobrir a verdade sobre um assunto, devemos aproximar-nos da questão com a mente tão aberta quanto possível e com uma profunda consciência das nossas limitações e predisposições. Por outro lado, se, depois de examinarmos cuidadosa e abertamente a evidência, rejeitamos a proposta, isso não é preconceito. Podia chamar-se "pós-conceito". É seguramente um pré-requisito para a compreensão. O exame crítico e céptico é o método utilizado em todas as matérias do dia-a-dia e também na ciência. Quando compramos um carro novo ou usado, achamos prudente insistir em garantias por escrito, provas de condução e verificação de algumas peças específicas. Somos muito cuidadosos com os negociantes de automóveis que são evasivos nestes pontos. Por isso, muitos dos que praticam algumas das ciências marginais se ofendem quando são sujeitos a uma verificação semelhante. Muitos dos que alegam ter percepção extra-sensorial também alegam que as suas capacidades declinam quando estão sob uma observação cautelosa. O mágico Uri Geller sente-se feliz se dobra chaves e talheres em presença de cientistas -que, nos seus confrontos com a natureza, estão habituados a um adversário que faz jogo limpo-, mas sente-se muito assustado com a ideia de representações perante uma assistência de mágicos cépticos que, compreendendo as limitações humanas, são eles próprios capazes de levar a cabo efeitos semelhantes por destreza de mãos. Onde a observação céptica e a discussão são suprimidas está escondida a verdade. Os que apoiam aquelas crenças marginais, quando criticados, apontam frequentemente génios do passado que foram ridicularizados no seu tempo. Mas o facto de alguns génios terem sido objecto de riso não implica que todos aqueles The Psychic Maja3, M. Lamar Keene, St. Martin's Press,1976. URI GELLER The Magic of Uri Geller4, James Randi, Ballantine, 1975. A ATLÃNTIDA E OUTROS CONTINENTES "DESAPARECIDOS Legends ofthe Earthù Their Geologic Origins5, Dorothy B. Vitaliano, Indiana University Press, 1973. Lost Continentsó, L. Sprague de Camp, Ballantine, 1975. OVNIS U FOs Explained" Philip Klass, Random House, 1974. U FOs: A Scientific Debates, Carl Sagan e Thornton Page (eds.), Norton, 1973. O Mistério do Triângulo das Bermudas - Resolvido. (N. do T.) O Mago entre os Espíritos. (N. do T.) A Magia Psíquica. (N. do T.) A Magia de Uri Geller. (N. do T.) Lendas da Terra: as Suas Origens Geológicas. (N. do T.) Continentes Desaparecidos. (N. do T.) OVNIS Explicados. (N. do T.) OVNIS: Um Debate Científico. (N. do T.) ANTIGOS ASTRONAUTAS The Space Gods Revealed: A Close Look at the Theories of Erich Von Dãnikenl, Ronald Story, Harper Row, 1976. The Ancient Engineersz, L. Sprague de Camp, Ballantine,1973. Mundos em Colisão, de Velikovsky. Scientists Confront Velikovsky3, Donald Goldsmith (ed.), Cor nell University Press, 1977. A VIDA EMOTIVA DAS PLANTAS "Plant Primary Perception'"', K. A. Horowitz e outros, Science, 189, pp. 478-480, 1975. @CAPÍTULO VI ANÃS BRANCAS E HOMENZINHOS VERDES Não há testemunho que chegue para estabelecer um milagre, a menos que [...] a sua falsidade seja mais miraculosa do que o facto que pretende estabelecer. David Hume, Os Miracles A humanidade já conseguiu o voo espacial interestelar. Com um auxílio gravitacional do planeta Júpiter, as naves espaciais Pioneer 10 e 11 e Voyager 1 e 2 foram lançadas em trajectórias que deixarão o sistema solar em direcção ao reino das estrelas. São naves espaciais muito lentas, embora sejam os objectos mais rápidos alguma vez lançados pela nossa espécie. Levarão dezenas de milhares de anos a percorrer distâncias interestelares típicas. A menos que seja feito um esforço especial para modificar a sua direcção, não entrarão noutro sistema planetário em todas as dezenas de milhares de milhões de anos da história futura da Galáxia Via Láctea. As distâncias entre uma estrela e outra são demasiado grandes. As naves estão condenadas a vaguear para sempre na escuridão entre as estrelas. Mas, mesmo assim, estas naves espaciais levam com elas mensagens para a eventualidade remota de, em qualquer tempo futuro, seres alienígenas poderem interceptar a nave espacial e interrogar-se sobre os seres que a lançaram nessas viagens prodigiosas . Se somos capazes destas realizações no nosso estádio tecnológico, comparativamente atrasado, não poderá uma civilização milhares ou milhões de anos mais avançada do que a nossa, num planeta de outra estrela, ser capaz de viagens interestelares rápidas e directas? O voo espacial interestelar é demorado, difícil e caro para nós; e talvez também o seja para outras civilizações com recursos substancialmente maiores do que os nossos. Mas seria certamente pouco inteligente pensar que não descobriremos em qualquer momento futuro abordagens conceptualmente novas da física ou da engenharia do voo espacial interestelar. É evidente que no que diz respeito à economia, à eficiência e à conveniência, a transmissão de rádio interestelar é muito superior ao voo espacial interestelar, tendo sido por esta razão que os nossos próprios esforços se concentraram fortemente na radiocomunicação. Mas a radiocomunicação é evidentemente imprópria para contactar uma sociedade ou espécie pré- tecnológica. Por muito inteligente ou poderosa que fosse a transmissão, nenhuma dessas mensagens de rádio teria sido recebida ou entendida na Terra antes do presente século. E existe vida no nosso planeta há aproximadamente 4000 milhões de anos, seres humanos há vários milhões e civilização talvez há 000 anos. Não é inconcebível que exista uma espécie de Inspecção Galáctica, estabelecida por civilizações cooperantes em muitos planetas através da Galáxia Via Láctea, mantendo os olhos (ou outros órgãos equivalentes) bem abertos, atentos a planetas inesperados e procurando mundos por descobrir. Mas o sistema solar encontra-se muito longe do centro da Galáxia e pode ter escapado a tais buscas. Será possível que nos visitem naves de inspecção, mas só uma vez em cada 10 milhões de anos, por exemplo - não tendo chegado nenhuma durante tempos históricos. Contudo, também é possível que algumas equipas de inspecção tenham chegado em tempos suficientemente recentes e a sua presença haja sido observada pelos nossos antepassados e a história da humanidade tenha sido até afectada pelo seu contacto. O astrofísico soviético I. S. Shklovskii e eu discutimos esta possibilidade no nosso livro, Intelligent Life in the Universel, em 1966. Examinámos um conjunto de artefactos, lendas e folclore de muitas culturas e concluímos que nem um único destes casos fornecia provas pelo menos moderadamente convincentes de contactos extraterrestres. Há sempre explicações alternativas mais plausíveis baseadas em capacidades e comportamentos humanos conhecidos. Entre os casos discutidos havia vários aceites mais tarde por Erich von Diniken e outros escritores pouco críticos como provas válidas de contactos extraterrestres: astronautas extraterrestres. Discutiu-se a pureza de amostras de magnésio obtidas, segundo se diz, em OVNIS que se despenharam, mas a sua pureza estava ao alcance da competência da tecnologia americana na altura do incidente. Um suposto mapa das estrelas que se diz ser recuperado (de memória) do interior de um disco voador nem sequer lembra, como se afirmou, as posições relativas das estrelas mais próximas, como o Sol; de facto um exame mais rigoroso mostra que não é muito melhor do que o "mapa de estrelas" que se produziria se, utilizando uma caneta de pena das antigas, salpicássemos umas páginas em branco com tinta. Com uma excepção óbvia, não há histórias suficientemente detalhadas que mereçam outras explicações, nem suficientemente precisas para transmitir correctamente a física moderna ou a astronomia a um povo pré-científico ou pré-tecnológico. A única excepção é a notável mitologia a respeito da estrela Sírio que possui o povo Dogon, da República do Mali. Actualmente vivem, no máximo, alguns milhares de Dogon e foram estudados profundamente pelos antropólogos apenas desde os anos 30. Alguns dos elementos da sua mitologia recordam as lendas da civilização do antigo Egipto e alguns antropólogos admitiram uma ténue ligação cultural dos Dogon com o antigo Egipto. As elevações em espiral de Sírio eram fulcrais no calendário egípcio e previam as cheias do Nilo. Os aspectos mais espantosos da mitologia Dogon foram relatados por Marcel Griaule, um antropólogo francês que trabalhou nos anos 30 e 40. Não havendo razão para duvidar do relato de Griaule, é importante ter em conta que não existe nenhum relato ocidental anterior destas extraordinárias crenças populares dos Dogon e que toda a informação foi canalizada através de Griaule. A história foi recentemente divulgada por um escritor britânico, R. K. G. Temple. Destacando-se de quase todas as sociedades pré-científicas, os Dogon asseguram que os planetas, tal como a Terra, rodam em volta dos seus eixos e giram à volta do Sol. Esta conclusão pode, evidentemente, ser conseguida sem uma tecnologia avançada, como Copérnico demonstrou, mas é uma intuição muito rara entre os povos da Terra. Foi, contudo, ensinada na Grécia antiga por Pitágoras e Filolaus, que, ao que parece, asseguraram, nas palavras de Laplace, "que os planetas eram habitados e as estrelas eram sóis, espalhados pelo espaço, sendo eles próprios centros de sistemas planetários". Tais ensinamentos, entre uma grande variedade de ideias contraditórias, podem ser apenas uma conjectura inspirada. Na Grécia antiga acreditava-se que existiam apenas quatro elementos -a terra, o fogo, a água e o ar-, a partir dos quais se formavam todos os outros. Entre os filósofos pré- socráticos havia quem defendesse preferencialmente cada um desses elementos. Se mais tarde se verificasse que o universo tinha na verdade uma quantidade maior de um desses elementos do que de qualquer dos outros, não atribuiríamos um pré-conhecimento extraordinário ao filósofo pré-socrático que o propusera. Apenas em bases estatísticas, um deles devia obrigatoriamente ter razão. Do mesmo modo, se temos várias centenas ou milhares de culturas, cada uma com a sua própria cosmologia, não nos devemos admirar se, de vez em quando, por puro acaso, uma delas propuser uma ideia que não só é correcta, como impossível de ter sido obtida por dedução. Mas, segundo Temple, os Dogon vão mais longe. Asseguram que Júpiter tem quatro satélites e que Saturno está envolvido por um anel. É talvez possível que indivíduos com um sentido de visão extraordinário, em óptimas condições de observação, pudessem, sem telescópio, ter observado os satélites galileanos de Júpiter e os anéis de Saturno. Mas isto é o limite máximo de plausibilidade. Diz-se que os Dogon, ao contrário de todos os astrónomos antes de Kepler, representam os planetas movendo-se correctamente em órbitas não circulares, mas sim elípticas. Ainda mais espantosa é a crença Dogon sobre Sírio, a estrela mais brilhante do céu. Sustentam que tem uma estrela companheira, invisível e escura, que gira à sua volta (e, diz Temple, numa órbita elíptica), completando uma volta em cada 50 anos. Afirmam que a estrela companheira é muito pequena e pesada, composta por um metal especial chamado sagala, que não pode ser encontrado na Terra. O facto a salientar é que a estrela visível, Sírio A, tem na verdade uma extraordinária companheira escura, Sírio B, que descreve à sua volta uma órbita elíptica em cada 50,04 0,09 anos. Sírio B é o primeiro exemplo de uma estrela anã branca descoberta por astrofísicos modernos. A sua matéria encontra- se num estado "relativisticamente degenerado", que não existe na Terra, e, como os electrões não estão ligados ao núcleo, essa matéria degenerada pode, com propriedade, descrever-se como metálica. Como Sírio A se chama Estrela do Cão, Sírio B tem sido por vezes chamada O Cachorro. De entre as possíveis provas de um contacto, no passado, com uma civilização extraterrestre evoluída, a melhor parece- nos, à primeira vista, a lenda dos Dogon sobre Sírio. Ao começar a examinar mais de perto esta história, contudo, recordemos que a tradição astronómica dos Dogon é puramente oral, que só podemos ter a certeza da sua existência a partir dos anos e que os diagramas são escritos na areia com paus. (Diga-se de passagem que existem provas de que os Dogon gostam de compor figuras elípticas e que Temple se pode ter enganado ao afirmar que, na mitologia Dogon, os planetas e Sírio B se moviam em órbitas elípticas.) Ao examinarmos o corpo da mitologia Dogon, encontramos uma estrutura de lendas muito rica e detalhada - muito mais rica, como salientaram muitos antropólogos, do que as dos seus vizinhos geográficos mais próximos. Onde existe um conjunto de lendas rico existe, evidentemente, uma maior probabilidade de uma correspondência acidental de um dos mitos com uma descoberta da ciência moderna. Uma mitologia muito pobre tem muito menos probabilidades de originar uma tal concordância acidental. Mas, quando examinamos o resto da mitologia mito europeu de Sírio e da anã branca sua companheira: um mito que possui todas as características superficiais de um conto incrível, maravilhosamente inventivo. Talvez o contacto com o Ocidente proviesse da visita de um europeu a África, da presença de escolas francesas locais, ou talvez ainda de contactos na Europa de africanos ùocidentais induzidos a lutar pelos Franceses na primeira guerra mundial. A probabilidade de essas histórias serem provenientes de um contacto com europeus, preferível em relação a um contacto com extraterrestres, foi enriquecida devido a um recente achado astronómico: uma equipa de investigação da Universidade de Cornell, chefiada por James Elliot, empregando um observatório aéreo a grande altitude, sobre o oceano Índico, descobriu em que o planeta Úrano se encontra rodeado por anéis - uma descoberta nunca sugerida pelas observações feitas a partir da Terra. Os seres extraterrestres, observando o sistema solar durante a sua aproximação da Terra, teriam pouca dificuldade em descobrir os anéis de Úrano. Mas os astrónomos europeus ' A expressão do antigo Egipto para o planeta Marte traduz-se por "o Horos vermelho", sendo Horos o deus falcão imperial. Portanto, a astronomia egípcia registava a coloração acentuada de corpos celestes. Mas a descrição de Sírio não menciona nada de saliente acerca da sua cor. do século xIx e dos princípios do século xx não teriam nada a dizer a este respeito. O facto de os Dogon não falarem de outros planetas com anéis para além de Saturno faz-me pensar que os seus informadores foram europeus, e não extraterrestres. Em 1844, o astrónomo alemão F. W. Bessel descobriu que o movimento a longo prazo da própria Sírio (Sírio A) não é em linha recta, mas antes ondulatório em relação ao fundo de estrelas mais distantes. Bessel propôs a existência de uma companheira escura de Sírio, cuja influência gravitacional produzia o movimento sinusoidal observado. Como o período da oscilação era de 50 anos, Bessel deduziu que a companheira escura de Sírio tinha um período de 50 anos no movimento conjunto de Sírio A e B à volta do seu centro de gravidade comum. Dezoito anos depois, Alvan G. Clark, durante as provas de um novo telescópio refractor de 18 '/z polegadas, descobriu acidentalmente a companheira, Sírio B, por observação visual directa. A partir dos movimentos relativos, a teoria gravitacional de Newton permite-nos calcular uma estimativa das massas de Sírio A e B. Verifica-se que a companheira tem uma massa aproximadamente igual à do Sol. Mas Sírio B é quase 10 000 vezes menos luminosa do que Sírio A, apesar de as suas massas serem aproximadamente as mesmas e se encontrarem praticamente à mesma distância da Terra. Estes factos só podem ser conciliados se Sírio B tiver um raio muito mais pequeno ou uma temperatura muito mais baixa. Mas, nos fins do século xix, os astrónomos acreditavam que as estrelas com a mesma massa tinham aproximadamente a mesma temperatura e durante a passagem do século foi amplamente aceite que a temperatura de Sírio B não era extraordinariamente baixa. As observações espectroscópicas realizadas por Walter S. Adams em 1915 confirmaram este argumento. Portanto, Sírio B deve ser muito pequena. Sabemos hoje que é apenas do tamanho da Terra. Devido ao seu tamanho e à sua cor, é chamada uma anã branca. Mas se Sírio B é muito mais pequena do que Sírio A, a sua densidade deve ser muito maior. Sendo assim, o conceito de Sírio B como uma estrela extremamente densa foi largamente mantido nas primeiras décadas deste século. A natureza peculiar da companheira de Sírio foi extensamente relatada em livros e na imprensa. Por exemplo, no livro de Sir Arthur Stanley Eddington The Nature ofPhysical Worldl lemos: "As provas astronómicas parecem não deixar praticamente dúvidas de que, nas chamadas estrelas anãs brancas, a densidade da matéria ultrapassa de longe qualquer uma de que tenhamos experiência na Terra; na companheira de Sírio, por exemplo, a densidade é aproximadamente de 1 t por polegada cúbica. Este estado explica-se pelo facto de a elevada temperatura e a correspondente intensa agitação do material separarem (ionizarem) o sistema exterior de electrões dos átomos, de modo que os fragmentos se possam agrupar com muito maior proximidade. " Durante o ano que se seguiu à sua publicação, em , este livro teve 10 reedições em inglês. Foi traduzido para muitas línguas, incluindo o francês. A ideia de que as anãs brancas eram constituídas por matéria degenerada nos electrões tinha sido proposta por R. H. Fowler em 1925 e imediatamente aceite. Por outro lado, a proposta de que as anãs brancas eram constituídas por matéria "relativisticamente degenerada" foi feita inicialmente no período de 1934 a 1937, na Grã-Bretanha, pelo astrofísico indiano S. Chandrasekhar; a ideia foi acolhida com forte cepticismo pelos astrónomos que não se conformavam com a mecânica quântica. Um dos cépticos mais vigorosos era Eddington. O debate foi relatado pela imprensa científica e era acessível aos leigos inteligentes. Tudo isto se passava precisamente antes de Griaule encontrar a lenda Dogon sobre Sírio. Com os olhos da mente visualizo um visitante gaulês ao povo Dogon, no que era então a África Ocidental Francesa, nos primeiros anos deste século. Pode ter sido um diplomata, um explorador, um aventureiro ou um dos primeiros antropólogos. Pessoas como estas - por exemplo, Richard Francis Burton estiveram na África ocidental muitas décadas antes. A conversa volta-se para os conhecimentos astronómicos. Sírio é a estrela mais brilhante do céu. Os Dogon presenteiam o visitante com a sua mitologia sobre Sírio. Então, sorrindo com delicadeza, na expectativa, perguntam ao visitante qual será a sua mitologia sobre Sírio. Talvez ele consulte, antes de responder, um livro bastante usado que traz na sua bagagem. Sendo a anã branca companheira de Sírio uma sensação astronómica em voga, o viajante oferece um mito espectacular em troca de outro mais rotineiro. Depois da sua partida, o seu relato é recordado, recontado e finalmente incorporado na estrutura da mitologia Dogon - ou, pelo menos, num ramo colateral (talvez arquivado em baixa, cheia de fumo e coberta de colmo, estava dividida de tal modo que os visitantes não podiam estar de pé nem estender- se. Estava dividida em muitos compartimentos para dormir, cada qual com a sua própria pequena lareira, à volta da qual homens e rapazes se amontoavam em grupos para dormir e para se manterem quentes durante as noites frias a uma altura de 6000 pés, maior do que a, de Denver. Para instalar os visitantes, os homens e os rapazes rasgaram alegremente a estrutura interior de metade da casa cerimonial dos homens e, durante dois dias e duas noites de intensa chuva, Gajdusek e os seus companheiros ficaram retidos em casa, num cume alto, varrido pelo vento e coberto de nuvens. Os jovens iniciados Fore usavam fitas de couro entrelaçadas no cabelo, que cobriam de gordura de porco. Usavam enormes enfeites no nariz, pénis de porco como pulseiras e órgãos sexuais de opossuns e de cangurus trepadores como pendentes à volta do pescoço. Os hospedeiros cantaram as suas canções tradicionais ao longo de toda a primeira noite e continuaram ao longo do chuvoso dia seguinte. Por sua vez, "para reforçar as nossas relações com eles", como diz Gajdusek, "começámos a cantar canções em troca - entre elas canções russas, tais como Otchi chornye e Moi kostyer v tumane svetit (. . .)". Isto foi muito bem acolhido e os habitantes de Agakamatasa exigiram muitas dúzias de repetições na fumarenta casa-comprida de South Fore, com o acompanhamento da fúria da tempestade. Alguns anos mais tarde, Gajdusek estava empenhado na recolha de música indígena noutra parte da região do South Fore e pediu a um grupo de jovens que percorresse o seu repertório de canções tradicionais. Para espanto e divertimento de Gajdusek, apresentaram uma versão um pouco alterada, mas ainda claramente reconhecível, de Otchi chornye. Muitos dos cantores julgavam evidentemente a canção tradicional e, mais tarde ainda, Gajdusek encontrou a canção importada ainda de mais longe, sem que nenhum dos cantores tivesse alguma ideia sobre a sua fonte. Podemos facilmente imaginar um grupo de pesquisa etnomusical mundial chegando a uma zona excepcionalmente obscura da Nova Guiné e descobrindo que os nativos tinham uma canção tradicional que lembrava extraordinariamente em ritmo, música e palavras Otchi chornye. Se se julgasse que não tinha ocorrido nenhum contacto prévio de ocidentais com essas pessoas, poderia ser posto em questão um grande mistério. Mais tarde, nesse mesmo ano, Gajdusek foi visitado por vários médicos australianos, desejosos de compreender as extraordinárias descobertas sobre a transmissão do kuru entre um paciente e outro através do canibalismo. Gajdusek descreveu as teorias sobre a origem de muitas doenças aceites pelo povo Fore, que não acreditava que as mesmas fossem causadas pelos espíritos dos mortos, ou que maldosos parentes falecidos, invejosos dos vivos, as infligissem aos parentes sobreviventes que os ofendiam, como o antropólogo pioneiro Bronislaw Malinowski relatara a propósito dos povos do litoral da Melanésia. Em vez disso, os Fore atribuíam a maior parte das doenças a feitiçaria maldosa que qualquer elemento do sexo masculino ofendido e vingativo, novo ou velho, podia executar sem a ajuda de feiticeiros especialmente treinados. Havia uma explicação especial de feitiçaria para o kuru, mas também para a doença crónica dos pulmões, a lepra, o piau e outras. Estas crenças foram há muito estabelecidas e são mantidas com firmeza; mas, à medida que os Fore testemunharam a cedência completa do piau às injecções de penicilina de Gajdusek e do seu grupo, rapidamente concordaram que a explicação do piau baseada na feitiçaria era um erro e abandonaram-na. (Gostaria que os Ocidentais fossem tão rápidos como os Fore da Nova Guiné a abandonar ideias sociais obsoletas ou erradas.) O tratamento moderno da lepra provocou também o desaparecimento da sua explicação baseada na feitiçaria, embora mais lentamente, e o povo Fore ri-se hoje dessas antiquadas opiniões primitivas sobre o piau e a lepra. Mas as opiniões tradicionais sobre a origem do kuru mantiveram-se, uma vez que os cientistas não conseguiram curar ou explicar, de maneira satisfatória para eles, a origem e a natureza da doença. Por isso, o povo Fore permanece fortemente céptico em relação às explicações ocidentais para o kuru e agarra-se firmemente à sua opinião de que a sua causa é feitiçaria maldosa. Um dos médicos australianos, visitando uma aldeia próxima e levando um dos informantes nativos de Gájdusek como intérprete, passou o dia examinando doentes com kuru e recolhendo depoimentos independentes. Voltou nessa mesma noite para informar Gajdusek de que estava enganado ao afirmar que as pessoas não acreditavam que os espíritos dos mortos eram a causa das doenças, e ainda mais enganado ao manter que eles tinham abandonado a ideia de que a feitiçaria era a causa do piau. As pessoas mantinham, continuou ele, que um corpo morto se podia tornar invisível e que o espírito da pessoa morta, sem ser visto, podia entrar na pele de um paciente durante a noite, através de uma abertura imperceptível, e produzir o piau. O informante do australiano tinha até esboçado na areia, com um pau, a aparência de um desses seres fantasmagóricos. Desenhara cuidadosamente um círculo e dentro dele umas linhas enroladas. Fora do círculo, explicaram os nativos, era negro; dentro do círculo, brilhante - um retrato na areia dos espíritos malévolos e patogénicos. . Ao interrogar o jovem intérprete, Gajdusek descobriu que o médico australiano tinha conversado com alguns dos homens mais velhos da aldeia, que eram bem conhecidos de Gajdusek e muitas vezes convidados para a sua casa e para o seu laboratório. Tinham tentado explicar que a forma do "germe" produtor de piau era em espiral - a forma de espiroqueta que eles tinham visto muitas vezes ao microscópio de campo negro de Gajdusek. Tinham de admitir que era invisível -só podia ser visto ao microscópio- e, quando pressionados pelo médico australiano a responder se isso "representava" ou não a pessoa morta, tiveram de admitir que Gajdusek acentuara que a doença se podia contrair por contacto próximo com lesões de piau, como, por exemplo, dormindo com uma pessoa que tivesse lesões de piau. Lembro-me bem da primeira vez que olhei através de um microscópio. Depois de ter focado os olhos perto da ocular, para só conseguir examinar as pestanas, e a seguir ter estendido o
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