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Guias e Dicas
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gangue da bota preta, Notas de estudo de Cultura

monografia

Tipologia: Notas de estudo

2012

Compartilhado em 06/01/2012

raimundo-diniz-10
raimundo-diniz-10 🇧🇷

5

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Baixe gangue da bota preta e outras Notas de estudo em PDF para Cultura, somente na Docsity! 1 ANTÔNIO MARCOS MELO COSTA OS GAROTOS DA BOTA PRETA (1989-1994): entre práticas de visibilidade pública e de delinquência 2 OS GAROTOS DA BOTA PRETA (1989-1994): entre práticas de visibilidade pública e de delinquência Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Federal do Maranhão, como requisito parcial para obtenção do grau de Licenciado em História. Orientação: Prof. Dr. Flávio José Silva Soares. Colaboração: Josiane Cristina Cardoso da Silva SÃO LUÍS 2011 5 AGRADECIMENTOS A todas as entidades supremas das mais variadas religiões do mundo, em especial àquelas com que tenho mais afinidade, a saber, o catolicismo, Deus e as de matriz africana no Brasil, Orumilá e Oxalá. Ao meu eterno amor, Josiane Cristina, mais conhecida por “mozão”. A ela devo todos os mais sinceros e especiais agradecimentos, por toda a dedicação e paciência que teve com este trabalho e por estar comigo desde a escolha do tema até o último ponto de toda essa escrita. Para ela deixo eternizado meu grande amor, carinho, respeito e dedicação. À minha mãe, dona Jucileide, que soube criar e dotar de virtude todos os seus sete filhos, em especial o quinto, eu. Se não fosse a sua criação, pautada nos estudos como o melhor caminho para uma vida melhor, talvez eu não estivesse escrevendo este trabalho, por isso agradeço a ela, que carinhosamente chamo de “velha”. À minha sogrona, dona Rosiane, pelos inúmeros incentivos, em forma de “pressão”, que foram tão importantes para o correto andamento deste trabalho. Agradeço a ela pela disponibilidade e dedicação ao ouvir, perguntar, questionar e opinar objetivando o sucesso acadêmico do seu genro doidinho, Marcos. Aos meus irmãos, minhas irmãs, meu pai, minha cunhada Jacqueline, Dudu, Bartô pelos inúmeros momentos de apoio e descontração que se deram ao longo desse período de monografia. Aos ex-integrantes do grupo Garotos da Bota Preta, a saber: Bandidão, Bob, Hipólito, Itamar, Falcão, Alexandro, Marcio, Scub, Baiacu, Magal, Gás e Fabiano/Robocop. Agradeço por todo o empenho que demonstraram ao longo desses 11 meses de convivência e pesquisa comigo. A eles meus sinceros agradecimentos. 6 Ao orientador de toda a pesquisa, professor Flávio Soares. Agradeço por ter aceitado orientar um trabalho tão complexo e novo no campo da historiografia ludovicense. A ele agradeço pelo empréstimo de livros e artigos que tratam a respeito da temática gangue e da metodologia no campo historiográfico, que foram tão importantes nessa escrita. A todas as pessoas, em especial estudantes da UFMA e da UEMA, que colaboraram ao responder os questionários a respeito das suas memórias estudantis relacionadas à Gangue da Bota Preta, utilizados nesse trabalho. À diretora da Biblioteca Pública Municipal José Sarney, Rita Oliveira, que tantas e tantas vezes me liberou mais cedo do serviço, entendendo minha situação de pesquisador, haja vista serem necessárias a realização de entrevistas com os ex- botas pretas e as idas ao anexo da Biblioteca Pública Benedito Leite. A todos os funcionários das escolas que visitei, em especial da Unidade de Ensino Luís Viana, pois a cada nova conversa com eles uma parte da história da GBP era (re)construída. Aos meus colegas de corredor da UFMA, a saber, Rafael, Bacharel, Eliabe, Chefe, Rossini, Isabele e outros, que tantas vezes se mostraram ótimos ouvintes e colaboradores da temática deste trabalho. 7 Pesq.: Quando você parou de ouvir falar da Bota Preta? Fabiano: Rapaz, todo dia eu ouço. (Entrevista realizada com ex-integrante do grupo GBP – Agosto de 2011). 10 LISTA DE SIGLAS ASSCARSOL - Associação de Cabos e Soldados da Policia BP - Bota Preta CE - Ceará CEGEL - Centro de Ensino Governador Edison Lobão DPCA - Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente EUA - Estados Unidos da América FN - Falange Negra FV - Falange Vermelha GBP - Garotos da Bota Preta GBP - Gangue da Bota Preta GKP - Garotos do Kepe Preto GG 2000 - Garotos Geração 2000 11 MC - Mensageiros de Cristo NHC - Nova História Cultural OCP - Os Cães Prateados PR - Pichadores Rebeldes SBT - Sistema Brasileiro de Televisão SEGUP - Secretaria de Segurança Pública do Estado do Maranhão UEMA - Universidade Estadual do Maranhão UFMA - Universidade Federal do Maranhão 12 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO........................................................................................................14 1.1 Os caminhos frente o des-conhecido..............................................................14 1.2 Do método e técnicas de pesquisa...................................................................18 1.3 Os percalços da pesquisa: ecos do silêncio...................................................21 2 GANGUES E JUVENTUDE: práticas de delinquência e de visibilidade pública.......................................................................................................................26 2.1 A gangue como tema, a delinquência como problema..................................27 2.1.1 As gangues na literatura norte-americana........................................................27 2.1.2 “Maras, padillas e bandas”: a literatura latino-americana sobre as gangues....31 2.1.3 Entre a delinquência juvenil e o imaginário da violência: as gangues no Brasil...........................................................................................................................33 2.2 Paradigmas sobre a juventude no século XX..................................................40 2.2.1 Das tribos urbanas às culturas jovens...............................................................44 3 MEMÓRIAS (D)E JUVENTUDE: os “Garotos da Bota Preta” saem (d)à rua....51 3.1 A bota preta e outros símbolos: as memórias da origem..............................52 3.2 Território e pedaços como lugares de memória.............................................63 3.3 Práticas de visibilidade nos “Garotos da Bota Preta”....................................67 3.4 Os (des)caminhos de uma liderança................................................................75 3.5 “Fomos perdendo o controle”: memórias do ocaso......................................77 4 MÍDIA E MARGINALIDADE: marcas de “desvio” na Gangue da Bota Preta pela mídia impressa ludovicense (1992-1994).......................................................84 4.1 A aurora da delinquência: o nascer da Gangue da Bota Preta para a mídia ludovicense...............................................................................................................85 4.2 Desvio como “falta de”: o imaginário da violência dos “Garotos da Bota Preta”.........................................................................................................................88 15 O acontecimento se deu da seguinte maneira: logo após o recreio de mais um dia comum de aula nesta unidade de ensino, houve um pânico generalizado na turma 207, a sala em que eu estudava, quando foi divulgada a notícia de que uma gangue chamada “Bota Preta” iria invadir a escola a qualquer momento para cortar o “bico do peito” das garotas. Ao saber desta notícia, muitos(as) discentes choravam, principalmente as meninas. Diante deste cenário, eu, mesmo sem saber o que era a tal “Gangue da Bota Preta“, fiquei muito nervoso e temendo o pior, no caso, a escola ser invadida com os alunos dentro. A diretora da escola e a professora da sala 207 tentaram acalmar os alunos e diziam que nada daquilo iria acontecer, uma vez que a polícia já estava fazendo a segurança da escola. Contudo, na saída, percebi que a ameaça de invasão por parte da Gangue da Bota Preta era o tema geral de conversa entre os alunos. Então, imaginei que a Gangue da Bota Preta não fosse uma gangue igual às outras, pois para despertar tanto medo nas pessoas, ela deveria ser mesmo muito cruel nas suas ações. O tempo se passou e, desde o dia da ameaça de invasão da escola pela “gangue” da Bota Preta, em 2000, até o final de 2010, eu vinha imaginando como seria essa gangue. Para mim, ela se apresentava como uma legião de homens e mulheres trajando roupas escuras, com os mais variados tipos de cordões, calçando botas pretas e armados com facão e revólver. A partir desta sexta-feira, na escola Artur Carvalho, passei a temer essa gangue e foi, com esse gostinho de temor, misturado com um de curiosidade, que resolvi partir para a pesquisa relacionada ao grupo Bota Preta. No início da pesquisa, tudo era novidade para mim. Eu não sabia o que poderia encontrar, pois todos os ex-integrantes deste grupo já poderiam estar mortos assim como estar vivos e em plena atividade nos GBP. Contudo, o meu maior temor era que os ex-integrantes deste grupo não quisessem falar comigo e ignorassem por completo a temática. Felizmente, grande parte do que eu temia não aconteceu. Como escrevi inicialmente, no dia 15 de Dezembro comecei a pesquisa sobre a então denominada Gangue da Bota Preta na Unidade Escolar General Artur Carvalho, indagando algumas pessoas a exemplo da diretora do turno da tarde, o professor de matemática Edilson e o discente do 3º ano Geilson. Fui informado de que a chamada “Gangue da Bota Preta” era muito temida e que ela sobreviveu até 16 2002. De acordo com Geilson, a dita gangue “... cortava o peito das mulheres e os dedos dos homens.” Mas, como adverte o professor Edilson “... muito do que falaram da Bota Preta foi fantasia”. Assim, inspirado pela advertência do professor Edilson, segui em frente visitando a escola Complexo Educacional Edison Lobão (CEGEL). Procurei esta escola através de informações passadas por Geilson de que era nas escolas localizadas no centro de São Luís que deveria haver muitas histórias sobre a Bota Preta, sendo o CEGEL, a meu ver, a maior unidade de ensino do referido centro da cidade. Nesta escola, entrei em contato com a diretora bem como com outros funcionários, a saber, uma professora, uma secretária e o vigilante Batista. No CEGEL, fui informado de que a gangue era do bairro da Alemanha, sendo que suas ações se concentravam em cortar os seios das garotas e os dedos dos rapazes bem como colocar pânico nas escolas mandando bilhetes de ameaça de invasão. Para o vigilante Batista, funcionário do CEGEL desde sua fundação, a Bota Preta “... era uma gangue formada por homens e mulheres que se reuniam entre 14h e 17:30h na Praça Deodoro”. Com essas informações, finalizei um mês de pesquisa e o próximo passo seria procurar as unidades de ensino do bairro da Alemanha, assunto que trato a seguir. No dia 17 de Janeiro de 2011 fui para a escola Luís Viana, localizada no bairro da Alemanha. Escolhi esta unidade de ensino pela sucessiva repetição das pessoas de que o referido bairro seria o local de atuação da Bota Preta, sendo as escolas locais, os principais alvos desta gangue. No Luís Viana entrei em contato com os profissionais de limpeza da escola e foi lá que recebi a informação de que a Gangue da Bota Preta pertenceu àquele bairro e que alguns ex-integrantes da gangue estavam vivos, como era o caso de “César Bandidão” e de “Bob”. Sendo informado onde “César Bandidão” morava, fui em direção à sua residência, embora estivesse um pouco apreensivo, pois antes de receber a informação de que César era da Bota Preta já havia recebido outras sobre dois possíveis integrantes desta gangue. Isto aconteceu ainda no primeiro mês da pesquisa, mas, ao entrevistar essas duas pessoas, percebi que eles não tinham nenhuma relação com a Bota Preta, suas gangues teriam sido outras e eles apresentavam-se como “alarmes falsos”. Por esse motivo havia ficado apreensivo pela possibilidade de César não ser da Bota Preta, mas esta hipótese não se confirmou. 17 Ao chegar à rua onde morava o possível informante de minha pesquisa, perguntei a um morador sentado na calçada onde ficava a casa de “César Bandidão” e, para minha surpresa, fui informado que ele estava a uns cinco metros à minha distância. Encontrei “Bandidão” lavando carro, um homem negro, gordo e alto (uns 1,70m de altura), e fui cumprimentá-lo, apresentando-me como estudante da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e expondo, em seguida, o assunto de minha pesquisa. Para minha total alegria e alívio “Bandidão”, como era mais conhecido César, foi integrante da Gangue Bota Preta, definida por ele pelo nome de “Garotos da Bota Preta”. Desse momento em diante, por intermédio de Bandidão, inicialmente, entrei em contato com Magal, Hipólito, Baiacu, Scub, Bob e Gás, depois por intermédio de Fabiano, outro informante privilegiado dessa pesquisa2, entrei em contato com Márcio, Falcão, Ranger e Itamar. Como características dos meus encontros com os ex-integrantes do grupo GBP tem-se a boa receptividade que tive de todos eles. Como disse, o primeiro ex- GBP que encontrei foi Bandidão, que deu dicas de onde eu poderia encontrar os outros, me levando, inclusive, à casa de Hipólito, um dos ex-integrantes do grupo, possibilitando, assim, o contato com este e a realização de duas entrevistas. Em seguida, encontrei Baiacu, que se categorizou como um ex-integrante não muito ativo no grupo Bota Preta e em seguida falei com Magal, em uma entrevista que foi realizada num bar, a pedido do entrevistado. Interessante observar que a cada nova entrevista, sempre era dado um nome novo de um ex-integrante. Foi dessa forma que encontrei o nome de Scub, indo em seguida à sua casa para expor a pesquisa e marcar a entrevista, que foi realizada na praça do bairro da Alemanha. Logo depois de Scub, consegui marcar uma entrevista com Bob, que foi realizada em sua casa. Bob é o caso mais curioso dessa pesquisa, isso porque eu o encontrei em Janeiro de 2011, mas só consegui marcar uma conversa formal com ele em Junho do mesmo ano. Esse fato deve-se à vida corrida de trabalho em que se encontra a maioria dos ex-Botas Pretas entrevistados tendo, atualmente, entre um a dois empregos, além de que todos têm famílias formadas e outras inúmeras preocupações. 2 Informantes que se destacaram dentre os demais não só por ser a “ponte” com outras pessoas como também pelo tempo da pesquisa, que se deu mais com este tipo de informante. Assim é que, Bandidão e Fabiano vão ser inseridos nesta categoria, por terem participado de forma mais ativa e dinâmica desta pesquisa. 20 exemplo da Antropologia, Sociologia, Psicologia, Linguística, do folclore e da semiótica. Desse modo, a utilização da oralidade como fonte histórica é consequência da interdisciplinaridade entre ao vários campos do saber com a História. A técnica da oralidade é pertinente a este trabalho, pois se tem a possibilidade de dar voz aos silenciados da História. Assim, entende-se que A história oral seria inovadora (...), pois dá atenção aos „dominados‟, aos silenciados e aos excluídos da história [dando preferência] a uma „história vista de baixo‟ (...) atenta às maneiras de ver e de sentir (AMADO e FERREIRA, 1996, p. 04). Desse modo, é nessa compreensão de dar voz aos discursos da “marginalidade” 5, em especial a partir da temática jovem, que este trabalho foi orientado, utilizando-se para isso a técnica da Historia Oral. No entanto, a pesquisa não se guiou apenas pelas entrevistas com os ex-GBP, necessitando de outras fontes que discordassem ou reforçassem as narrativas dos entrevistados. Assim, fez-se necessário usar as reportagens dos jornais impressos ludovicenses que circularam entre os anos de 1992 a 1994, a saber, Jornal Pequeno, O Imparcial, O Estado do Maranhão e O Debate. Às fontes escritas, os jornais, foram dados o rigor técnico da análise dos discursos encontrados nas reportagens. Assim é que as fontes jornalísticas foram analisadas objetivando encontrar a prática discursiva da cultura da violência, no sentido de entender como o imaginário ocidental da delinquência e do “desvio” é (re)produzido nos jornais ludovicenses quando associado à Gangue da Bota Preta. Dessa forma, a temática “Garotos da Bota Preta: entre práticas de visibilidade pública e de delinquência” torna-se pertinente por vários motivos. Primeiramente por dar mais visibilidade à prática da Nova História Cultural, em especial à história das cidades, com a noção de uma cultura jovem urbana. Em segundo lugar porque, através da técnica da história oral, dá voz àqueles que passaram quase 20 anos silenciados, àqueles que foram vistos pelo discurso oficial como delinquentes, marginais e desviantes. Por fim, porque enriquece um campo de estudos tão carente nas pesquisas locais, a saber, as ditas “gangues” como 5 Marginalidade entendida neste contexto como à margem dos discursos historiográficos tradicionais. 21 expressão de uma cultura jovem, embora muitas vezes sejam ditadas como uma cultura da delinquência. Assim, fazendo uso do método da NHC, da técnica da História Oral e das pertinências de tal pesquisa foram tentadas outras fontes de análise. Essas possibilidades viram-se, inicialmente, possíveis devido à amplitude da temática proposta e à coerência com a metodologia empregada. Dessa forma, é sobre essas outras vias discursivas que tratará a temática seguinte. 1.3 Os percalços da pesquisa: ecos do silêncio Ao longo desses 11 meses de pesquisa várias vias discursivas foram tentadas. Algumas, que já foram discutidas, referiram-se às entrevistas feitas com os ex-integrantes do grupo GBP e às reportagens dos jornais impressos analisados, enquanto que outras diziam respeito às tentativas realizadas com ex-integrantes das gangues rivais aos GBP, discurso policial da época além das fontes audiovisuais da mídia televisiva maranhense. Assim, na busca por esses outros discursos a resposta encontrada veio, muitas vezes, em forma do silêncio. Desse modo, foram procurados outros discursos que complementassem a pesquisa sobre os “Botas Pretas”. Um deles foi o dos (ex)inimigos do grupo GBP, a saber, ex-integrantes da MC6, da PR7 e da GG 20008, todas configuradas pelas reportagens dos jornais e pelas entrevistas dos ex-GBP, como gangues rivais da “Bota Preta”, mesmo a GG 2000, que durante um momento foi aliada da GBP mas que depois tornou-se rival desta. Assim, na busca por esses discursos o, “não me lembro de nada desse período” foi a resposta mais frequente encontrada. Na busca pelo discurso dos (ex)inimigos da GBP, o desprezo foi o parceiro frequente desses encontros. Isso porque os informantes procurados se mostraram totalmente indiferentes com relação à pesquisa, não aceitando serem 6 A MC tem como significado a denominação “Mensageiros de Cristo” e era uma turma de jovens do bairro do Bequimão. 7 A PR que tem como significado a denominação “Pichadores Rebeldes” e era uma turma de jovens do bairro da Macaúba. 8 A GG 2000 tem como significado a denominação “Garotos Geração 2000” e era uma turma de jovens do Bairro de Fátima. 22 colaboradores e nem sequer terem os seus nomes ou pseudônimos divulgados em futuras análises, enfim, pediram para que eu nunca mais procurasse por eles e que esquecesse os locais em que eu os encontrara. Por esses (des)encontros percebi que o silêncio, em forma de desprezo, pode “estar associado a uma determinada forma de se relacionar com o passado em que a transmissão das „informações‟, não é um valor, é um risco” (ARRUTI, 2006, p. 212). Assim, o risco presente em fornecer qualquer tipo de informação ficou evidente no ato de silenciar sobre o assunto “Gangue da Bota Preta”. Isso se deve a várias possibilidades, e uma delas diz respeito à vergonha que essas pessoas têm ao serem lembradas como pertencentes a uma gangue. Assim é que “os indivíduos [...] podem ter organizado suas memórias de forma a não precisar falar de suas experiências” (ARRUTI, 2006, p. 216), porque uma simples volta a um passado camuflado pode trazer sérias consequências para o presente, como o sentimento de culpa e de vergonha por achar, hoje, que a experiência vivenciada foi errada, que ela nunca deveria ter existido, que ela nunca mais deverá ser acionada. E foi aí que essa estrada terminou como possibilidade de pesquisa. Fechada a estrada pela busca dos discursos dos (ex)inimigos dos GBP, procurei o discurso policial, a fim de ter a representação atribuída pela polícia à “Bota Preta”. Nessa nova abordagem, procurei os policiais do período de atuação dos GBP e os arquivos escritos, em forma de Boletim de Ocorrência, que tratavam de crimes relacionados a esse grupo de jovens. Procurei e encontrei vários “nãos”, alguns “tu deve ser doido”, outros “rapaz, deixa isso prá lá, tá todo mundo quieto no seu lugar” e por fim um “rapaz, tanto casarão histórico pra tu falar na tua monografia, tu vai falar de um bando de marginal, vagabundo e assaltante. Tu não tem o que fazer mesmo”. Já quanto às fontes escritas, recebi a informação de que todas já haviam sido incineradas, porque essa era a política da polícia, incinerar toda a papelada de cinco em cinco anos. Na busca pelo discurso policial percebi o quanto o silêncio é importante para forjar uma estabilidade idealizada. O silêncio dessa fonte demonstrou o grau de periculosidade que a “Bota Preta” ainda representa no imaginário policial, vista como um bando de vagabundos, marginais e assaltantes, ou seja, conceitos que denotam o imaginário do perigo, do risco, daquilo que tem que ser eliminado. Assim é que um simples “não” denota toda a complexidade desta temática para a polícia, um caso 25 Por fim, a última grande problemática gira em torno do meu primeiro contato com a gangue da Bota Preta, no ano 2000, pois visa entender o sentido daquelas ameaças dirigidas àquela unidade de ensino. Assim, foi montado um questionário com 70 estudantes da UFMA e da UEMA, do tempo que estes frequentavam o Ensino Médio e Fundamental, a fim de ter uma visão mais ampla sobre as ameaças a outras escolas de São Luís pela Bota Preta. O resultado desta amostra, que não se caracterizou como fonte central neste trabalho, bem como das (in)conclusões advindas delas vão ser expressas nas últimas páginas desta pesquisa. Desse modo, a monografia está assim estruturada: inicialmente, discute- se a teorização dos conceitos de gangue e de cultura jovem; em seguida parte-se para a análise das entrevistas com os ex-GBP, atreladas ao entendimento de visibilidade e demarcação dos espaços públicos. No último capítulo, encontra-se uma discussão a respeito do discurso da mídia impressa, atrelado a noção de imaginário da marginalidade, bem como dos questionários feitos com 70 estudantes, enfatizando as ameaças dirigidas às escolas pela GBP. Por fim, têm-se as conclusões (parciais) desse trabalho que visam promover indagações motivadoras de futuras pesquisas. 26 2 GANGUES E JUVENTUDE: práticas de delinquência e de visibilidade pública A discussão sobre as temáticas gangue e juventude são recentes no universo acadêmico. Ambas encontram visibilidade nas Ciências Sociais na primeira metade do século XX e se configuram por uma relação de complementaridade, uma vez que tanto as teorias sobre as gangues quanto as sobre juventude vão se influenciar. Assim, faz-se necessário ater-se a uma revisão historiográfica sobre essas duas temáticas. Esta revisão, por sua vez, pretende centrar-se nas realidades norte- americana, latino-americana e brasileira. A delimitação espacial desta temática deu- se pelo fato de que foi nos Estados Unidos, mais especificamente na Escola de Chicago11 na década de 1920, que as gangues apareceram como objeto de estudo na academia (Abramovay, 2010) configurando, atualmente nos EUA, o que Mike Davis (1991 apud Jankowski, 1997) chama de uma “growth industry”, isto é, um assunto sobre o qual “todo mundo escreve”. Diante disso, assim como a realidade dos Estados Unidos, outra enfatizada será a latino-americana. Nesta, as gangues têm várias denominações e assumem características diferenciadas de acordo com a localidade. Assim, elas são denominadas de padillas na Nicarágua, maras nos países como El Salvador, Guatemala e Honduras, e bandas no território mexicano (Abramovay, 2010), encontrando como características em comum as suas origens derivadas da situação de extrema desigualdade social nesses países e o forte domínio territorial que em alguns momentos entram em choque direto com os do Estado. Por fim, tem-se a temática gangue nas ciências sociais brasileiras. Aqui serão enfatizadas as formas diferenciadas de surgimento desses agrupamentos 11 A Escola de Chicago teve suas origens nos Estados Unidos, na década de 1910, por iniciativa de professores americanos de Sociologia da Universidade de Chicago. Sua maior relevância foi no campo da criminalidade, ao trazer discussões sobre a temática das gangues como fruto da desorganização social. Essa escola foi, também, responsável por um estudo mais detalhado a respeito de fenômenos sociais que ocorriam na parte urbana das metrópoles norte-americanas, devido ao aumento na imigração para o Centro e Sul dos Estados Unidos. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Escola_de_Chicago >. Acessado em: 02/09/11. 27 jovens, bem como sobre o imaginário ocidental que se produziu sobre as gangues ao caracterizar seus integrantes de delinquentes e suas atividades como um “desvio” da ordem vigente (Diógenes, 1998). Assim, muito mais do que fazer uma revisão bibliográfica sobre as gangues nas ciências sociais, o que vai ser enfocado neste capítulo é como a construção de um conceito, pautado no imaginário ocidental da violência, vai ser reapropriado para vários contextos a fim de tornar inteligíveis atos categorizados como “desviantes” da norma estipulada. Em outra linha de análise, mas ainda no sentido de uma revisão bibliográfica, será importante entender como ocorre a inserção da temática “jovem” nas ciências sociais, bem como sobre a mudança de visão que é dada a esta, passando de uma cultura da rebeldia e da desordem para uma que visa a prática de visibilidade pública e inserção no espaço urbano. Dessa forma faz-se necessária a análise sobre as conceituações de “tribo urbana” de Michel Maffesoli (1987), de “cultura jovem” de CarIes Feixa (1998) e de “circuito jovem urbano” de José Magnani, a fim de buscar as categorias, do universo jovem, mais pertinentes para a análise sobre as práticas de visibilidade pública do grupo Garotos da Bota Preta. 2.1 A gangue como tema, a delinquência como problema No primeiro contato deste pesquisador com o tema, tive conhecimento de um grupo chamado “Gangue da Bota Preta”. Essa foi a denominação mais corrente utilizada pelas pessoas que diziam ter conhecimento desse grupo. No entanto, o que elas não tinham conhecimento era da historicidade deste conceito e de todas as práticas atribuídas a grupos categorizados dessa forma. Assim, esse é o objetivo deste item: contextualizar os conceitos e práticas atribuídas às gangues. 2.1.1 As gangues na literatura norte-americana O dicionário Oxford (1999) conceitua gang como “bando, quadrilha, turma”, tendo como sinônimo gangster, ou seja, “criminoso, assassino, ladrão, 30 fracamente estruturados que praticam atos ilegais e de caráter violento. Assim, o fator ilegalidade aparece nesta característica como sinônimo de marginalidade e de atos desviantes aos da ordem vigente naquele contexto. Outros autores norte-americanos abordam a temática gangue nesta mesma linha de “desvio”. Assim, Spergel e Curry (1990) trazem uma divisão de gangues em: de rua, juvenis tradicionais e posse crew13, tendo em comum nesses três tipos o caráter da Coletividade de pessoas envolvidas em um número significativo de atividades ilegais ou criminosas, essencialmente ameaçadoras e violentas; aliado a isso, para que se distinga um grupo como gangue seria necessário haver uma reação da sociedade a julgar as atividades do grupo como legítimas ou ilegítimas, criminais ou não (SPERGEL e CURRY, 1990 apud ABRAMOVAY, 2010, p. 56). Conforme o exposto, como argumento novo tem-se o julgamento que a sociedade faz das ações dos grupos jovens, a fim de categorizá-los como gangues. Desse modo, a gangue só seria reconhecível se seus integrantes estivessem envolvidos em um número considerável de atos ilegais e se tais práticas fossem reprovadas pela sociedade. Em outra perspectiva, tem-se a conceituação de gangue feita por Huff (1993), que encara as mesmas como uma coletividade formada primordialmente de adolescentes e jovens que: 1) interagem uns com outros com certa freqüência; 2) encontram-se habitual e deliberadamente envolvidos com atividades ilegais; 3) compartilham a mesma identidade coletiva [...] e, 4) essa identidade seria expressa por símbolos e/ou declaração de controle sobre uma determinada quebrada (pessoas, lugares, coisas e/ou mercados econômicos) (HUFF, 1993 apud ABRAMOVAY, 2010, p. 57). Por essa perspectiva, tem-se a gangue como um grupo inserido num universo de simbologia e de posse. Aqui, o caráter da criminalidade e do “desvio” não desaparecem, mas são inseridos em um contexto mais amplo e heterogêneo de atividades. Assim, nesta mesma linha de pensamento encontra-se o entendimento de Martín Sánchez-Jankowski (1990), que assim pontua o seu entendimento sobre a temática gangue: 13 Caracterizada “pelo comprometimento com uma atividade criminal para ganho econômico, particularmente o tráfico de drogas” (ABRAMOVAY, 2010, p. 56). 31 [Na gangue] haveria uma forma de ideologia, um conjunto de crenças que dariam aos seus membros 1) uma visão de mundo; 2) uma interpretação deste mundo; e 3) uma justificativa da superioridade desta visão de mundo. [Também seria adotada] uma ideologia organizacional, referente a unidade e identidade, fundamentais no desenvolvimento de uma noção de irmandade (JANKOWSKI, 1990 apud ABRAMOVAY, 2010, p. 56). Abordado no início desta análise, os argumentos do antropólogo Martín Sánchez-Jankowski (1997) deram, na primeira abordagem, uma noção das várias conceituações de gangue entendidas até aquele momento na literatura norte- americana. Agora, a sua análise é concentrada no seu entendimento de gangue que é visto por ele como um grupo composto por códigos de (sobre)vivência, que dariam um sentido de pertencimento e de identificação a este tipo de coletividade. Assim, a gangue seria formada por um conjunto de valores, configurando um ethos gangueiro (Abramovay, 2010). Dessa forma, na literatura norte-americana a temática gangue é composta por argumentos discordantes/complementares, em que esta é vista ora como um agrupamento criminal ora como um grupo jovem composto de simbologias e valores. Assim, para um maior entendimento da problemática dessa conceituação, faz-se necessário trilhar por caminhos complementares, a saber, a literatura latino- americana sobre esta temática. 2.1.2 “Maras, padillas e bandas”: a literatura latino-americana sobre as gangues As gangues na America Central têm várias denominações, a saber: padillas na Nicarágua, maras nos países como El Salvador, Guatemala e Honduras, e bandas no território mexicano. Assim, os agrupamentos gangues nesses países seriam consequência de inúmeros fatores, dentre eles estariam: a) o processo de exclusão social; b) a cultura da violência; c) o crescimento urbano [desorganizado]; d) a migração [para países como os Estados Unidos com a posterior deportação]; e) a dinâmica da violência; f) a desorganização comunitária; g) a presença de drogas; h) famílias problemáticas; i) amigos e companheiros membros de padillas [maras ou bandas]; j) a dificuldade de construção da identidade pessoal (ABRAMOVAY, 2010, p. 66). 32 Observa-se que em todos os fatores está explícita a noção de marginalidade e de “desvio” atribuídos a esses agrupamentos. Aqui, a noção de desvio está associada à falta de alguma característica que encaixe esses agrupamentos no caminho da ordem, seja pela falta de uma família estruturada, de uma identidade formulada, de uma organização comunitária, enfim, todos são fatores que dão às padilhas, maras e bandas um caráter desviante. Nesta linha de análise, as padillas são agrupamentos relacionados ao comportamento “delinquente” e “criminoso”. A filiação a um grupo denominado de padilla se manifestaria “com freqüência por meio da utilização de signos, tatuagem, colares, determinadas peças de vestir e certos tipos de linguagem” (ABRAMOVAY, 2010, p. 63). Assim, as padillas seriam uma fusão de identidades relacionadas ao crime e à simbologia de objetos. Já as maras operariam sob uma lógica de dominação territorial e simbólica. As maras são “portadoras de um poder paralegal que destrói a oposição binária entre legal e ilegal [transformando essa realidade de exceção no] cotidiano” (ABRAMOVAY, 2010, p. 64). Esses agrupamentos são formados, principalmente, por Jovens filhos de centro-americanos que viviam em Los Angeles e que voltaram para os seus países principalmente por falta de documentação. [O controle territorial desses grupos] ocorria muitas vezes para cometer crimes contra a propriedade e contra pessoas, [tendo com uma das características as] disputas (simbólicas e físicas) de território – tanto com a polícia como com os membros do grupo contrário (ABRAMOVAY, 2010, p. 65). Assim, as maras são formadas por agrupamentos de pessoas, em sua maioria homens, que tentaram uma experiência de vida nos Estados Unidos. Lá tiveram que forjar uma identidade de defesa, contra os outros agrupamentos de imigrantes, mantendo essa identidade de grupo na volta aos seus países de origem, tendo que se readaptar às condições socioeconômicas e culturais, uma vez que eles eram vistos como o outro, misto das culturas norte-americana e latino-americana. Desse modo, as formações das maras são uma resposta aos sentimentos de insegurança e de marginalidade que esses agrupamentos de pessoas experimentaram tanto nos Estados Unidos como na volta aos seus países de origem. 35 adolescentes passam a ser enquadrados na realidade da vulnerabilidade social, determinada por múltilpos fatores que vão desde aspectos de natureza econômica e política até a fragilização dos vínculos afetivo-relacionais, de pertencimento social, territorialidade e outros (MARINHO e BEZERRA, 2008, p. 12). Com condições socioeconômicas desfavoráveis para um perfeito desenvolvimento do ser adolescente, este passa a se configurar como frequentador, cada vez mais assíduo, da fronteira de marginalidade atribuída ao universo das gangues. Entretanto, como já abordado nas análises de Marinho e Bezerra (2008), as condições espaciais também se configuram como caminhos motivadores para a formação do agrupamento gangue, isso porque alguns especialistas consideram o espaço urbano a própria causa da chamada violência urbana [devido aos fatores de] uma infra-estrutura precária de vida, impessoalidade das relações nas grandes metrópoles, desestruturação familiar e baixa oferta de emprego (MARINHO e BEZERRA, 2008, p. 12). A prática da violência deve ser entendida aqui como uma das características do agrupamento gangue na cidade de Fortaleza. Sendo assim, o espaço urbano, com todas as suas características de falta de (infra)estrutura socioeconômica, é entendido como outro fator facilitador de formação e desenvolvimento de grupos jovens praticantes de atos delinquentes, as gangues. Conforme visto, o fator “falta de”, presente nas literaturas sobre gangues norte- americanas e latino-americanas, reaparece nas análises de Marinho e Bezerra (2008), agora inseridos na realidade brasileira. Outra conceituação que enfatiza o aspecto de delinquência dos jovens gangueiros está presente nas pesquisas de Miriam Abramovay (2004 e 2010)14. Por esta conceituação, as gangues seriam grupos mais ou menos estruturados que desenvolvem desde atividades lúdicas até atos de deliquência, cujos membros mantêm relações de solidariedade à base de uma identidade – ainda que incipiente – compartilhada (ABRAMOVAY, 1999, p. 95 apud ABRAMOVAY, 2010, p. 67). 14 Correspondentes às obras: Gangues, galeras, chegados e rappers: juventude, violência e cidadania nas cidades periféricas de Brasília (2004) e Gangue, gênero e juventude: donas de rocha e sujeitos cabulosos (2010). 36 Essa visão enfatiza a gangue como um grupo que desenvolve atos delinquentes, mantendo um nível de solidariedade entre seus membros, configurando-se como um dos vetores de identidade deste grupo. Nessa linha de análise, Miriam Abramovay (2010) aponta que outro vetor de identificação deste grupo seria a sua estruturação, assim configurada: As gangues brasileiras são marcadas por uma organização atravessada por rituais regidos por valores compartilhados que dariam uma certa „ordem‟ ao grupo, fazendo com que determinadas atitudes se tornassem relativamente previsíveis (ABRAMOVAY, 2010, p. 69). Desse modo, a organização de uma gangue no Brasil é caracterizada por um conjunto de rituais que dariam uma noção de valores para estes grupos. Por esses valores algumas atitudes das gangues já seriam esperadas, pois encontram- se ligadas à noção de “ordem” e “equilibrio” do grupo. Assim é que, tomando alguns exemplos de atividades das gangues pesquisadas por Miriam Abramovay, pode-se perceber que pichar equipamentos urbanos públicos, praticar guerras entre turmas, matar, roubar e usar drogas ilegais, todas fariam parte desses vetores de identificação do ser e estar em uma gangue, pois estão estipulados como valores de “equilibrio” e “ordem” dessa modalidade jovem. Nesse sentido, Andrade (2007) enfatiza o aspecto territorial das gangues, abordando que as mesmas seriam turmas de jovens com estrutura relativamente territorializada reunidas em torno de interesses geralmente alheios à violência, mas que, além de não estarem livres de praticar atividades ilícitas e atos violentos, costumam manter rivalidades com outros grupos (ANDRADE, 2007, p. 15 apud ABRAMOVAY, 2010, p. 67). Assim, as gangues teriam como componente de domínio o território e seria nesse local, e por essa noção de posse, que se dariam grande parte dos atos de violência atribuídos a estes grupos. A noção de territorialidade nas gangues não elimina destas o caráter de delinquência atribuídas aos seus membros, apenas especifica o tipo de delinquência empregada que agora tem um sentido, relacionado à defesa de sua área de domínio, empregando nestas lutas atos de violência, o que poderia caracterizar esses grupos como “desviantes”. A literatura brasileira sobre a temática gangue também tem outra compreensão sobre a formação destes grupos, qual seja, seu surgimento associado 37 às realidades das favelas cariocas. Assim é que, para Zaluar (1997) as gangues cariocas teriam como componentes básicos [uma] chefia instituída, regras explicitadas, rituais iniciáticos, com estreita relação com os bairros e atividades ilícitas. As gangues cariocas teriam surgido nas favelas e em bairros pobres, tendo estreita relação com as escolas de samba, os blocos de carnaval e os times de futebol que representavam a respectiva vizinhança e rivalizavam entre si (apud ABRAMOVAY, 2010, p. 67). Conforme a exposição, as gangues cariocas teriam suas origens ligadas à realidade das favelas, bem como do momento eufórico do carnaval e das rivalidades entre times de futebol. Elas também teriam como características uma liderança instituída com regras, rituais e atividades ilícitas. Desse modo, elas se configurariam como inseridas no campo da “marginalidade” brasileira. Por fim, têm-se as análises de Glória Diógenes (1998), tão válidas para este trabalho. Esta pesquisadora analisou, em sua obra intitulada “Cartografias da Cultura e da Violência: Gangues, Galeras e Movimento Hip Hop”, algumas gangues de alguns bairros da cidade de Fortaleza. Neste trabalho de Diógenes, serão válidas suas análises acerca das conceituações de imaginário da violência, imaginário da juventude e suas implicações na conceituação de gangue. Na reflexão sobre o sentido da violência para a sociedade ocidental, Diógenes (1998) enfatiza o papel das ciências sociais como construtoras e reprodutoras de um imaginário acerca desta temática. Sendo assim, a dinâmica de funcionamento e estruturação da sociedade Têm quase sempre se constituído tendo por base dualizações: as margens em relação à centralidade; o desvio contraposto à normalidade; a contra- cultura à cultura dominante; o singular ao universal (DIÓGENES,1998, p. 74). Desse modo, nesse jogo de dualizações do funcionamento e estruturação do social, as ciências sociais vão eleger como campo de estudos a “anormalidade”, ou seja, os comportamentos encarados como diferentes aos da dita normalidade. Assim, A “marginalidade”, os “desviantes”, os precursores de uma contra-cultura, fragmentos particulares de experiência social, expõem modos de 40 Os bailes funk tornaram-se espaços motivadores de formação de agrupamentos jovens a partir do momento que se tornaram visíveis nos espaços públicos. Assim, conforme a exposição de Diógenes (1998), No final dos anos 80, os bailes extrapolam os espaços da periferia. É nesse momento que se observa a formação de uma diversidade de galeras de jovens, representando os espaços de moradias como forma de se „destacar‟ e disputar o respeito de outras galeras (DIÓGENES, 1998, p. 104). Dessa forma, os bailes funk tornaram-se locais de visibilidade pública (Diógenes, 1998) a partir do momento que extrapolaram os espaços privados dos bairros, sendo este o contexto de formação das galeras/gangues de Fortaleza/CE. Assim, as noções de visibilidade pública dos agrupamentos jovens, bem como a de gangue como conceituação fruto do imaginário ocidental sobre a violência e os jovens serão essenciais para o entendimento deste trabalho. Mas é necessário ter o entendimento de outras conceituações, que complementem a questão da juventude como categoria construída historicamente. 2.2 Paradigmas sobre a juventude no século XX A fim de entender a inserção da experiência juvenil como cultura é necessário fazer uma revisão história de como se enfatizou a construção da imagem da juventude na realidade ocidental. Assim, a imagem do jovem como figura autônoma ganha legitimidade no final do século XIX e ao longo do século XX quando várias medidas governamentais impulsionaram esta atitude, como as que ocorreram em 1899 [...] no direito britânico, [com] a proibição de encarcerar menores de 16 anos ao lado de adultos, em 1908, se instaurou os tribunais de menores; foram medidas que refletem o reconhecimento social de uma nova faixa etária, entre a infância e a idade adulta (FEIXA, 2006, p. 04) 15 . 15 Todas as citações diretas a Carles Feixa (2006), colocadas neste trabalho, são traduções livres do original em espanhol. 41 Nesta configuração do jovem como uma categoria autônoma foi importante, também, o desenvolvimento da instituição escola, que homogeneizou as pessoas por faixa etária. Conforme o exposto na seguinte citação, No período pós guerra, quando o alongamento da permanência dos jovens e das jovens em instituições educacionais e a aparição do „consumidor adolescente‟ consagra o nascimento de uma nova classe de idade nos países industrializados [...] a escola secundária se converte no centro da vida social de uma nova categoria de idade: o adolescente. A escola não só oferecia uma cultura acadêmica, mas um espaço de sociabilidade composta por uma série de rituais [...] em definitivo, era „uma cidade dentro da cidade‟, em que a idade era muito mais importante que a classe (FEIXA, 2006, p. 09). Nesta mesma linha de pensamento de Feixa (2006), Canevacci (2005) pontua que Um elemento posterior de inovação caracterizará „os jovens‟ com os traços decisivos da contemporaneidade: a escola de massa [... que] separa um segmento interclassista da população, da família e da produção (CANEVACCI, 2005, p. 22). Desse modo a escola “de massa” (Canevacci, 2005) é vista por esses dois pesquisadores como um fator essencial para a configuração histórica do ser jovem. A escola é assim vista porque separou, pela idade, uma classe da população e os alojou em um único local, propiciando assim o aparecimento de um “espaço de sociabilidade” (Feixa, 2006) e de identificação entre esses sujeitos. Entretanto a escola de massa não é o único fator motivador da configuração histórica da imagem do jovem. Dessa forma, Canevacci (2005) pontua mais dois fatores que se desenvolveram no contexto do pós Segunda Guerra Mundial, a saber, a mídia e o espaço da metrópole, que assim são citadas: As culturas expressas e veiculadas pelos meios de comunicação social que então estavam nascendo, que terão como principais sujeitos de consumo justamente os jovens (...). [Sendo assim] a mídia (discos, rádios, cinema) produz um novo tipo de sensibilidade e de sexualidade, modos de estilos de vida, valores e conflitos [enquanto que] a metrópole se difunde como cenário panoramático repleto de signos e sonhos (CANEVACCI, 2005, p. 22). Neste sentido, para Canevacci (2005) é no cruzamento desordenado desses três fatores, escola de massa, mídia e metrópole, que vai se constituir a conceituação sociológica do jovem. Assim, “em termos sociológicos, a faixa etária 42 chamada „jovem‟ é recente. Nasce, grosso modo, nos anos 1950” (CANEVACCI, 2005, p. 20). Entretanto, como já abordado por Diógenes (1998) 16 nos trabalhos relacionados aos jovens, predominaram aqueles que os categorizavam como delinquentes e “desviantes”. Assim, da década de 60 aos dias atuais, “tem-se uma visão da juventude como agente de difusão de „costumes típicos do mundo às avessas‟, como personagem mobilizador de tensão social” (DIÓGENES, 1998, p. 98). Outra característica apontada sobre os jovens é a noção de rebeldia (Diógenes, 1998; Júnior, 2008) vista como sinônimo de contestação às ordens vigentes. Essa característica vai ser inserida no seguinte contexto: A revolução socialista na China, a guerra da Coréia, a descoberta do totalitarismo e dos massacres no socialismo soviético, as lutas contra o colonialismo no norte da África e na América Latina, principalmente a guerra da Argélia e a Revolução Cubana na década de 1950, espraiaram-se ao longo dos anos 60 com as manifestações de massa contra a guerra do Vietnã, as lutas pelos direitos humanos e igualdade racial nos Estados Unidos, os movimentos estudantis no „maio de 68‟ na França e na Primavera de Praga. Acenava-se para uma possível „rebelião mundial‟ com a cara da juventude (JÚNIOR, 2008 17 ). A esses acontecimentos somam-se as várias formas de contestação que era empreendida às ditaduras militares nos países da América Latina, inclusive no Brasil. Assim, o rótulo de juventude rebelde e revolucionária tem um contexto de contestações às guerras e à política. Dessa forma, como complemento desta discussão tem-se a seguinte citação de Diógenes (1998), que enuncia: Pode-se afirmar que até o final dos anos 60, seja pelo foco do desvio que marcou a Escola de Chicago 18 , seja pelo teor transformador/revolucionário que marcaram as análises das manifestações estudantis, seja pela idéia de fomentadora de uma contracultura e de crise social, a juventude está profundamente associada ao referente da rebeldia (DIÓGENES, 1998, p. 98). 16 Conferir item 2.1.3 deste capítulo. 17 Fonte extraída de documento eletrônico. 18 O caráter desviante nas análises da Escola de Chicago sobre a juventude foi abordado no item 2.1.1 deste capítulo. 45 de forma estável (Maffesoli, 1998). Esse conceito de socialidade, que vem em junção aos de neotribalismo, comunidade emocional e tribo urbana, representa as instabilidades típicas dos novos agrupamentos urbanos, em que o indivíduo assumiria diversos papéis sociais e se moldaria de acordo com a tribo referente àquele contexto. Na apresentação dos diversos papéis nas tribos o indivíduo teria uma preocupação essencial com a aparência. Essa preocupação é assim abordada por Maffesoli (1998), quando trata da questão da estética: A estética é um meio de experimentar, de sentir em comum e é, também, um meio de reconhecer-se [assim] os matizes das vestimentas, os cabelos multicoloridos [...]. O culto do corpo, os jogos da aparência, só valem porque se inscrevem numa cena ampla onde cada um é, ao mesmo tempo, ator e espectador (MAFFESOLI, 1998, p. 108). Nesta caminhada, a importância dada à aparência teria como fator principal a necessidade do indivíduo em “estar-junto” da sua tribo (Maffesoli, 1998). Desse modo, assim como no tribalismo tradicional, o neotribalismo do espaço urbano teria como componente os prazeres em grupo, a necessidade do sentimento coletivo, enfim o “estar-junto”, que, “antes de qualquer outra determinação ou quantificação ele consiste nessa espontaneidade vital que assegura a uma cultura sua força e sua solidez específica” (MAFFESOLI, 1998, p. 115). Por fim, tem-se a noção de tempo nas análises de Maffesoli (1998). Desse modo, a compreensão dada por este sociólogo dá conta de três noções de tempo, todas pautadas no contexto histórico ocidental, que são assim pontuadas: na Idade Média era enfatizado o passado, pelas várias passagens escritas de cunho teológico; na Idade Moderna, séculos XVIII e XIX, a ênfase era dada ao fator político e todos os atos progressistas advindos deste; por fim, tem-se a atualidade que é caracterizada Pela elaboração de uma aura estética onde se reencontrarão, em proporções diversas, os elementos que remetem à pulsão comunitária, à propensão mística ou à perspectiva ecológica (MAFFESOLI, 1998, p. 20). Assim, na atualidade, a ênfase é dada aos sentimentos comunitários, coletivos, e aos rituais que guiam o cotidiano. Aqui não se valoriza mais a contemplação das ações futuras da modernidade, nem os atos passados da Idade 46 Média, e sim as ações ligadas ao presente. Dessa forma, o prazer coletivo do momento de “estar-junto” à sua tribo é o que importa na experiência da sociedade neotribal. Conforme o exposto sobre as análises de Michel Maffesoli (1998) entende-se que os agrupamentos jovens das grandes cidades são uma forma de tribo urbana, visto que eles têm as características dos encontros pontuais e efêmeros, bem como gozam de um prazer coletivo e de um momento em que o importante é o sentimento de “estar-junto”. Essas características são observadas no grupo Garotos da Bota Preta, mas, como será pontuado a seguir, essa é só uma forma parcial de analisar a problemática da visibilidade pública dos GBP. Assim sendo, faz-se necessário discorrer sobre outras conceituações a fim de compreender de maneira mais abrangente esta análise. A outra conceituação importante para ser analisada é a noção de “cultura jovem” presente na obra do antropólogo espanhol Carles Feixa (1998). Para este autor as culturas jovens referem-se À forma como as experiências sociais dos jovens são coletivamente expressadas mediante a construção de estilos de vida distintos, localizado principalmente no tempo livre, nos espaços interssociais da vida institucional (FEIXA, 1998, p. 84). Dessa forma, os agrupamentos jovens urbanos denominados por Maffesoli (1998) de “tribos urbanas” passam a ser encarados agora por Carles Feixa (1998) como “culturas jovens” e teriam como características a vivência coletiva de uma experiência de vida, que se expressaria nos tempos livres desses jovens, tendo como espaços de visibilidade os de grande mobilidade humana e como componente os estilos de vida diferenciados. Nesta conceituação, Feixa enfatiza a utilização do termo “culturas juvenis” no plural e não no singular, como forma de “enfatizar a heterogeneidade interna das mesmas” (FEIXA, 1998, p. 85). Dessa maneira, esta conceituação permite ao autor ver o universo jovem de outra forma, pois Transfere a ênfase da marginalidade para a identidade, das aparências para as estratégias, do espetacular para a vida cotidiana, da delinquência ao lazer, das imagens aos atores (FEIXA, 1998, p. 85). 47 Assim, Carles Feixa rompe com alguns paradigmas de Michel Maffesoli (1998). Este último, que enfatizava o espetáculo das tribos urbanas, com as múltiplas aparências que o indivíduo assumiria de acordo com a tribo pertencente, diferencia-se das análises de Feixa (1998). Por esta análise, o antropólogo espanhol propõe um deslocamento da conceituação de tribo urbana para a de cultura jovem, transferindo assim a direção da análise para as identidades que os atores sociais, jovens, assumem ao montar estratégias distintas de lazer na vida cotidiana. A partir disso, coloca-se que através das análises das entrevistas dos ex- “Botas Pretas”, este estudo pretende reinseri-los, historicamente, em seu universo jovem. Nesta problemática, o que se pretende enfatizar são as estratégias de “lazer” montadas por estes no dia-a-dia, bem como as identidades assumidas pelos mesmos. Enfim, entende-se que o enfoque atribuído nestes últimos 20 anos aos “Botas Pretas”, com os atributos da marginalidade e da delinquência, necessitam ser revisados e comparados com outra visão que enfatiza a inserção destes na categoria de “cultura jovem”, com as várias estratégias de “lazer” utilizadas na vida cotidiana. FEIXA (1998) pontua, ainda, que o termo “cultura jovem” remete a uma noção de “cultura subalterna”. Esta última se configuraria como uma “cultura dos setores dominados, e [pela] fraca integração à cultura hegemônica” (p. 85), encontrando nas suas experiências de visibilidade “chocantes” uma resistência ao discurso legitimado. Assim, por esta noção, a experiência jovem dos “Garotos da Bota Preta” é encarada como uma “cultura subalterna” e suas estratégias de “lazer”, uma resistência ao discurso oficial. Entretanto, pela delimitação da problemática da pesquisa essa noção não será levada em conta na categorização destes como uma “cultura jovem”. Outra noção importante de Feixa (1998) na definição de cultura jovem é a relação destes com o território. Assim, como é pontuado por este, A emergência da juventude, desde o período pós-guerra, se traduziu em uma redefinição da cidade no espaço e no tempo [...]. Deste modo, a ação dos jovens serve para redescobrir territórios urbanos esquecidos e marginalizados, para dotar de novos significados uma determinada zona da cidade, para humanizar praças e ruas através das festas, das rotas de lazer, mas também do grafite e sua demonstração, diversas gerações de jovens estão recuperando espaços públicos que se haviam convertido em invisíveis, questionando o discurso dominante sobre a cidade. [Desse modo, se] por um lado as culturas jovens se adaptam ao contexto ecológico [por outro] as culturas jovens criam um território próprio, apropriando-se de 50 valores do grupo, em locais onde as formalidades da sociedade não interferem, de modo significativo, no cotidiano de (sobre)vivência desse grupo. Já aos locais que fogem à noção de pedaço, Magnani (2005) denomina mancha, que é assim problematizada: Manchas são áreas contíguas do espaço urbano dotadas de equipamentos, marcam seus limites e viabilizam – cada qual com sua especificidade, competindo ou complementando – uma atividade ou prática predominante. [A mancha é] resultado da relação que diversos estabelecimentos e equipamentos guardam entre si, e que é o motivo da afluência de seu público [que busca também a] oferta de determinado bem ou serviço [e] uma possibilidade de encontro (MAGNANI, 2005, p. 179). Dessa forma, as manchas compreendem os locais de encontro de turmas, que podem ser em boates, bares, shoppings etc. Esses locais, entendidos como estabelecimentos ou equipamentos, oferecem um determinado bem ou serviço que agrada um determinado público. Assim, no entendimento deste trabalho, as manchas irão abarcar os locais de consumo e de encontro dos GBP com outras turmas, espaços que não estão inseridos na configuração dos pedaços. Diante disso, coloca-se que as noções de pedaço e macha vão ser essenciais neste trabalho como meio de visibilidade pública dos “Botas Pretas” no espaço urbano da cidade de São Luís. Estas conceituações permitem inseri-los na dinâmica de ocupação dos estabelecimentos e equipamentos urbanos bem como na lógica de demarcação territorial. Assim como estas conceituações, a noção de “cultura jovem” de Carles Feixa (1998) também será de grande valor, entendida neste trabalho como as experiências jovens no espaço urbano com suas diversas ocupações de “lazer”. Dessa forma, as categorias mancha, pedaço e cultura jovem apresentar-se-ão, no capítulo seguinte, como substrato para as análises realizadas acerca da dinâmica interna/ externa dos “Garotos da Bota Preta”. 51 3 MEMÓRIAS (D)E JUVENTUDE: os “Garotos da Bota Preta” saem (d)à rua Este capítulo tem por objetivo analisar a experiência de ocupação, demarcação e de visibilidade pública dos “Garotos da Bota Preta” no espaço urbano de São Luís, na perspectiva de uma cultura jovem urbana. Para tanto, é tomada como fonte história a memória dos ex-integrantes dos GBP22, a fim de pontuar as seguintes questões: as origens deste grupo, a escolha do nome, as marcas identificatórias, os pedaços e manchas da turma, as atividades de visibilidade pública e o processo de desagregação da referida galera23. Como fontes complementares, são utilizados os periódicos24 de 1992 e 1993 que vão auxiliar na contextualização de alguns eventos. Sendo assim, este capítulo busca dar voz àqueles que foram silenciados pelos discursos oficiais, àqueles que encontraram no silêncio um companheiro certo para dar voz às suas memórias de juventude. A fim de situar o leitor de forma cronológica tem-se algumas datas prováveis da vivência do grupo “Garotos da Bota Preta”. O ano de início de suas atividades é datado, embora sem muita precisão, em 1989, enquanto que a desagregação do mesmo gira em torno de 1992/1993, mais especificamente entre Dezembro de 1992 e Abril de 1993. Essa ideia de possíveis datas se dá devido à falta de consenso dos ex-GBP com relação à datação de alguns marcos do grupo, isso porque se utiliza como fonte histórica a memória, que tem como uma de suas principais características o fato de ser seletiva (Pollak, 1992), ou seja, de nem tudo ficar gravado e/ou registrado. A memória como fonte de análise para os historiadores tem sua datação. De acordo com Peter Burke (2006) essa preocupação por parte dos pesquisadores em analisar a memória como fonte histórica é datada no final da década de 1970, com o advento das “Historia Oral” e “História das Mentalidades” bem como pelo 22 Como componente ético deste trabalho, nas análises das entrevistas realizadas, os nomes dos ex- integrantes do grupo GBP vão aparecer em forma de consoantes, não necessariamente correspondendo as iniciais dos seus nomes reais. 23 O termo “galera” está sendo utilizado neste capítulo como o modo mais frequente com que os ex- “Botas Pretas” identificavam suas experiências no grupo GBP, enquanto que o termo “gangue” aparece nas citações de pesquisadores dessa área bem como nas reportagens dos jornais pesquisados. Para mais discussões, ver capítulos 2 e 4. 24 Os periódicos serão explicitados ao longo do texto. 52 excesso de críticas à história documental tradicional. Assim, Peter Burke (2006) pontua que para a memória ser utilizada como fonte histórica o historiador deve elaborar sobre ela uma crítica de confiabilidade e compreender os mecanismos de seleção e maleabilidade da mesma. Em conformidade com esta análise, esta pesquisa fez uso da memória na perspectiva da História Oral, tratando as narrativas a partir das críticas sobre o seu processo de construção. Nesta abordagem, na modalidade memória, o tipo de perspectiva que se insere as narrativas dos ex-GBP é a “memória subterrânea” (ABRAMOVAY, 2010, p. 71). Isto por que por quase 20 anos os “Garotos da Bota Preta” tiveram seus discursos silenciados, sendo suas experiências de juventude consideradas pelos discursos oficiais como um desvio social, como memórias não memoráveis, memórias subterrâneas. Entretanto, a partir desta pesquisa os ex-GBP tem a oportunidade de ter suas experiências jovens inscritas nos espaços públicos, ou seja, de saírem à rua novamente, bem como de saírem da rua, historicamente estigmatizada pela visão oficial como o local da exclusão, da marginalidade. Sendo assim, nas narrativas subsequentes, pretende-se inserir os relatos dos ex-“Botas Pretas” como uma experiência jovem, uma experiência que traz de volta seus olhares para a rua a fim de serem historicizadas. 3.1 A bota preta25 e outros símbolos: as memórias da origem Para a problemática da formação dos “Garotos da Bota Preta” atrelada à memória social e na perspectiva da História Oral focalizaram-se as circunstâncias históricas como fatores motivadores da formação deste grupo. Para tanto, utilizaram- se as narrativas de seus ex-integrantes e a contribuição dos teóricos sobre essa temática. Nesta perspectiva, este estudo se inicia com a visão de G26, um dos ex- integrantes dos GBP, que expõe: 25 O termo bota preta utilizado neste subtítulo faz referência ao calçado usado e não ao nome do grupo. 26 Como abordado na Introdução deste capítulo, optou-se por não utilizar os nomes reais dos informantes, estes sendo identificados apenas por consoantes. Conferir nota de rodapé 21. 55 e foi nesse contexto que os garotos do bairro da Alemanha formaram o grupo nomeado “Garotos da Bota Preta”, GBP. Entretanto, esse tipo de análise estritamente linear torna-se inconsistente quando a fonte de pesquisa é a memória. Conforme Rousso (1998 apud MOREIRA, 200530), a memória tem como “atributo mais imediato [...] garantir a continuidade do tempo e permitir resistir à alteridade, ao „tempo que muda‟; às rupturas que são o destino de toda vida humana”. Sendo assim, embora as narrativas relacionadas à origem dos GBP deem uma ideia de continuidade dos fatos, de um tempo sem ruptura, na verdade, pode-se criar pelo pesquisador uma simplificação dos fatos, alicerçada pela falsa linearidade expressa em alguns relatos. No entanto, este estudo pauta-se na compreensão de que a memória é acionada a fim de resolver o conflito da alteridade, camuflando-o, assim, em narrativas de linearidade. Outra questão a ser analisada se refere ao próprio nome dado ao grupo de amigos do Bairro da Alemanha e para tal utilizaram-se as narrativas de G e R. O primeiro aponta que A gente gostava de marcar na porta do colégio da Alemanha, o Luís Viana, e na frente dele tem uma sorveteria e do outro lado é um canto. Foi lá que surgiu o nome Bota Preta. Aí, eu conversando com Danilo, ele chegou e falou: „Porra! A gente já tem uma turma, a gente tem que colocar um nome pra nossa galera‟. Tava eu, ele e mais o irmão dele afastado com uma galera. Aí, eu olhei pro pé de todo mundo e falei: „pô, cara! Eu já sei qual vai ser o nome da nossa galera... Vai ser Garotos da Bota Preta‟. Aí, ele começou a botar de carvão, ele começou pichando de carvão „Gatos da Bota Preta‟, aí, eu: „pô, cara! Não é gato, Garotos da Bota Preta‟. Aí começou a pegar. FIGURA 01: Muro que foi palco da primeira inscrição do nome GBP (bairro da Alemanha). Fonte: Marcos Costa (2011). 30 Fonte extraída de documento eletrônico. 56 Com relação à narrativa de R, é apontado que Toda sexta e sábado a gente se encontrava, mais não tinha nada resolvido ainda. Aí, foi Bob, Bandidão e Fabiano: „rapaz, como a gente anda junto e tal pra festa, sem maldade nenhuma‟, a gente só era beber e dançar, ninguém trabalhava nessa época, todo mundo era vagabundo mesmo, uns estudavam e outros faziam bico. Aí: „rapaz, vamos botar um nome‟. Aí, uns disseram uns nome lá e Fabiano, que sempre gostou desse negócio de coturno falou: „rapaz, vamos colocar Garotos da Bota Preta‟. Aí ficou. ABRAMOVAY (2010, p. 78) aponta em seus estudos sobre gangues que a nomeação da mesma “ativa muitos dos eixos conformadores das identidades das gangues” e que “o nominável torna-se concreto e reconhecível pela coletividade”, sendo que esse momento normalmente é feito em grupo, pois “a escolha coletiva do nome parece não apenas legitimá-lo como também concorre para o desejo de todos propagá-lo”. Como uma criança que nasce e só é reconhecida pela coletividade, o Estado, quando é instituído um nome, o mesmo ocorreu com o grupo de amigos do bairro da Alemanha que só seria reconhecido pela coletividade, as manchas, quando tivesse instituído um nome. Como aponta R, o grupo estava formado, mas sem um nome nada estava instituído, ou como lembra G, a galera estava formada, mas precisava de um nome a fim de se sentir oficializado, ultrapassando o limite entre os espaços privado e público da galera. Com o nome “Garotos da Bota Preta” o grupo torna-se “concreto e reconhecível pelo coletivo” (ABRAMOVAY, 2010, p. 77) e legitimado a circular pelos circuitos da cidade. Outro ponto abordado na questão de nomeação da gangue é o fato de que o uso contínuo da bota preta e do coturno pelo grupo de amigos do bairro da Alemanha foi decisivo para a escolha do nome “Garotos da Bota Preta”. O uso desse tipo de calçado ativou um eixo de identidade do grupo, uma característica que homogeneizava esses rapazes. Isso se exemplifica na fala de G, que no momento da nomeação do grupo, focalizou aquilo que acionava a coletividade da galera, os pés armados com a bota preta. Mesmo G não tocando no fator coletividade para a nomeação da galera (já que R tinha deixado explícito), o mesmo ficou implícito no ato de olhar para os pés de todos e ver o que os unia para que assim o grupo, já batizado de GBP, pudesse se propagar. Em relação à preferência pelo uso da bota e do coturno como calçado, tem-se os argumentos a seguir. S expõe que, 57 Nessa época eu era cobrador de ônibus e nesse tempo tava chovendo demais. E aí, como eu chegava cedo do serviço, eu vinha pra cá (falando da Praça da Alemanha) e aí eu tava com a calça preta, a camisa laranja da São Benedito e o coturno. Aí, nego: „rapaz aonde é que tu comprou esse coturno?‟. Nessa época era baratinho. Aí, eu ia pro serviço com ele e nego via. Nego de tênis molhava e o coturno custava a acabar. Aí, todo mundo comprou. D analisa que a preferência pelo calçado bota preta se configurou como uma “necessidade, porque alguns não trabalhavam, eram de família pobre e pra que quer usar tênis de marca?! Então usava bota, porque era baratinha...”. Já para G o uso de tal calçado pelos integrantes do grupo GBP deu-se porque “nesse tempo a gente já andava de bota... todo mundo andava de bota. Era a moda da época”, e continua ao narrar o motivo do uso contínuo desse calçado: Porque a gente tinha um fornecedor de botas da Alumar. Era Magal, através dele que a gente conseguia as botas. Cortava a língua da bota e ficava só o bico de aço... às vezes a gente fazia negócio, ou jogava e conseguia a bota... eu e meu irmão, por exemplo, a gente tinha um conhecido na polícia que conseguia os coturnos pra gente. Assim, pelas narrativas expostas encontram-se as justificativas para o uso da bota preta. Para S, a preferência pelos calçados, bota preta e coturno, se deu devido aos fatores climático, lógico e econômico, já que, nessa época chovia muito e quem andava de tênis tinha o risco de ficar com os pés encharcados de água, além de que o referido calçado se deteriorava muito rápido, em oposição ao coturno que demorava mais, sendo mais propício para esse tempo chuvoso, além de ser barato. Já D enfatiza o aspecto econômico, pois as botas eram baratas, levando em conta que a maioria dos ex-“Botas Pretas” era de famílias pobres. Por fim, G aponta o fator “moda da época” e o elemento “fornecedor de botas da Alumar” como determinantes para o uso contínuo desse calçado no grupo GBP. 60 novas redes de sociabilidade e reconhecimento mútuo (DIÓGENES, 1998, p.154). Analisando o perfil familiar dos ex-“Botas Pretas” entrevistados, no momento de vivência no grupo GBP, encontram-se filhos sem pai, filhos de casais separados, famílias em que o pai e a mãe trabalhavam viajando, trabalhavam durante a semana e finais de semana, enfim, sofriam do processo de “esvaziamento familiar” encontrando esse preenchimento na esfera pública da rua. Esse sistema de fraternidade das gangues deve ser encarado como um novo significado de família, em que o simbólico supera a realidade sanguínea, mesmo na GBP, em que alguns eram irmãos de sangue, importando aqui a coletividade deste grupo, como se todos unidos formassem a “grande família”, os Garotos da Bota Preta, com suas atividades e ethos compartilhados. Finalizando este item, tem-se o processo de aceitação de outros integrantes neste grupo. A aceitação de novos integrantes no grupo GBP era feita de diversos modos, como serão pontuados nas narrativas subsequentes. Inicialmente, S argumenta que: Quando surgimos, era muito macho! Aí, a gente fez um teste com eles, „rapaz, pra não ficar muita gente, vamos fazer um teste com vocês que são de parada mesmo, pra não correr do pau‟. O teste deles era o seguinte: botava o cara pra revista, aí, a gente ia lá e quando entrasse um integrante da gangue, pode quebrar... Tinha que quebrar pra ver se ele era macho mesmo... Aí, a natação... A gente jogava todinho da ponte, porque se a polícia chegasse, nós não corria pela avenida que se não ela ia pegar, aí, nego caía por cima do mangue [da Alemanha] e já saía bem aqui aonde eu moro. B classifica esse ritual como uma “surrinha... uns tapas que o cara levava pra entrar na Bota Preta”, ato esse que é levado a um grau de complexidade maior com T ao apontar que Tinha um ritual que a gente sempre fazia com os novatos. A gente mandava eles passarem no meio da gente e caía de porrada neles...o outro era pular da ponte do Ipase e nadar até o mangue (da Alemanha). C aprofunda mais essa problemática quando diz: Pra entrar a gente fazia uma prova pra saber se o cara era bom de briga. A gente dizia: „rapaz, quem entrar tem que ser bom de briga‟. Aí, a gente colocava um com o outro pra ter um confronto pra saber se tem coragem. Quando a gente percebia que o cara era mole, a gente colocava ele pra 61 fazer esse teste. Quando a gente já percebia que o cara era durão, nem precisava fazer o teste... o outro teste era na ponte do Ipase. A gente fazia assim, a gente pegava 2 a 4, os mais medrosos, e pulava da ponte do Ipase pra maré. Aí, uns não queria, aí, a gente empurrava eles pra criar coragem. R expõe seus argumentos exemplificando com sua entrada no grupo: Eu tava indo pra uma festa no Casino com Muk e lá tava Bandidão, Hipólito, Gás, Magal, Camarão, Fabiano e Satânico [integrantes da Bota Preta]. Tavam dançando numa roda de break e eu tava olhando, aí os cara perguntaram pra Muk: „Rapaz, quem é esse cara aí?‟ „Rapaz, esse aqui é Rômulo, colega meu que mora no Caratatiua‟. „Ah, ele mora no Caratatiua‟. Aí passamos a nos conhecer, começamos a dançar break, dançar e depois dessa festa, toda sexta e sábado, a gente passou a se encontrar. Argumentos esses que são reforçados por C quando fala da entrada de Sagat no grupo GBP, Quando a gente conhecemos ele, ele era um pichador demais e a gente não gostava de pichador. Aconteceu que toda festa que a gente ia ele ia com a gente. Aí, ele ia e participava de umas rodas de break, morava no Caratatiua, aí a gente não ia quebrar o cara. Aí, como ele se uniu com a gente e ia fazer transação, acabou ficando. Pelo exposto percebe-se que em S os testes de surrar o indivíduo e de pular da ponte do Ipase em direção ao mangue da Alemanha eram feitos devido à necessidade de diminuir a quantidade de integrantes do grupo, selecionando os melhores. B ameniza o ar violento dos testes, quando utiliza o termo “surrinha”, que é problematizado por T que utiliza o termo “ritual”, elevando a tal “surrinha”, a um grau maior de seriedade. Para C essas “provas” só eram dirigidas para os mais “moles”, àqueles que não apresentavam as principais características de um GBP, ser valente e temido, enquanto que para R, reforçado por C, o fato de morar em área de residência do grupo e curtir das suas mesmas atividades era fator essencial para ser aceito como um GBP. O chamado “ritual de entrada” de uma gangue é analisado por vários pesquisadores que pontuam as diversas experiências das gangues. Textualmente, Abramovay (2004) explicita que Para tornar-se membro de uma gangue um indivíduo pode ter que cumprir certas obrigações e ser submetido a várias provas ou „ritos de iniciação‟, a fim de mostrar seu comprometimento com [seus] códigos de valores (ABRAMOVAY, 2004, pp.111 e 112). 62 A mesma continua pontuando: Há ainda os que não são submetidos a nada porque já deram anteriormente provas de coragem, força, valentia, já eram famosos, ou porque são „muito doidões‟, „de racha‟, „tem atitude‟ (ABRAMOVAY, 2004, p.112). Percebe-se isso nas narrativas, quando C enfatiza que o ato de colocar um iniciante para duelar com um veterano não era feito com todos, pois tinha alguns que já se mostravam “durões”, bons de briga, não precisando de tal iniciação. Alargando mais tal questão, percebe-se pelas narrativas de R, e a segunda de C, que o fato de morar na área de atuação do grupo GBP era um fator facilitador de entrada no grupo, complementado pelo ato de praticar uma atividade característica da cultura jovem local, dançar break e frequentar as festas nas boates de São Luís. Esses fatores somados isentavam o indivíduo de passar pelos outros rituais que, ao que parece, era dirigido aos que não possuíam nenhuma característica de um GBP. Uma dessas provas praticadas era o chamado “corredor polonês”, definido por Abramovay (2010) como o momento no qual os membros posicionam-se lado a lado, em dois grupos, um de frente ao outro, deixando um espaço entre eles pelo qual o novato deve passar enquanto os integrantes desferem golpes contra o postulante (ABRAMOVAY, 2010, p.103). No sentido original, o termo corredor polonês foi formulado no período entre as duas grandes guerras mundiais (1919-1939) e era uma estreita faixa de terra pertencente à Polônia que separava grande parte da Alemanha da cidade (também alemã) de Dantzig (hoje Gdańsk). No sentido figurado, tornou-se uma realidade em que dois grupos se dividem em fileiras bem estreitas esperando por alguém tentar passar por ela ao gosto de muitos socos e pontapés. Essa prática é vista nas narrativas de S, B e T, e tal ato servia como uma prova para “verificar se o jovem suportará apanhar sem denunciar ninguém, caso seja pego pela polícia” (ABRAMOVAY, 2004, p. 112). Esse ritual, como uma lição para a vida na gangue, também é observado no ato de jogar o indivíduo da ponte do Ipase, tendo sua prática no momento de fuga da polícia, que se daria pela maré/mangue e não pela avenida. Assim, os rituais de entrada na gangue têm toda uma inteligência de sobrevivência, permanência e identidade desse grupo. 65 FIGURA 04: Canto da Igreja da Glória no bairro da Alemanha em 2011. Fonte: Marcos Costa (2011). No caminho de volta G pontua que “as outras galeras vindo se aliar com a gente aumentava nosso mando de campo”, e frisa sobre outros dois pedaços dos GBP. Um deles era a Praça do Caratatiua, que teve sua lembrança acionada por ser “... a praça que nós nos reunimos pro primeiro encontro de galeras que teve no Casino Maranhense. Nesse dia era macho pra caramba”, o outro é a Praça da Merque, que teve sua importância por ser a praça que a gente fez a reunião pra invadir o Bequimão... Nesse dia era macho de tudo quanto era lugar, ali eram várias galeras que se aliaram a gente... Ali a gente fez a reunião pra pegar a MC. A gente decidiu o que a gente ia levar foguete, facão, faca... Em outro momento G caminha comigo (o pesquisador) até a ponte do Ipase para mostrar uma das áreas limites dos GBP, o antigo Clube dos Cabos e Soldados da PM, o ASSCARSOL. Lá declara que geralmente tinha festa de dance... Era o clube dos oficiais, cabo de polícia... Funcionava tipo assim, um Casino Maranhense, mas nosso, uma danceteria... a gente fazia festa americana, cada um levava um litro de bebida e com o som no meio do salão a gente dava o grito de guerra da bota preta... 66 FIGURA 05: Ponte do Ipase, local limite do território dos GBP. Fonte: Marcos Costa (2011). Esse mesmo ponto também é discutido por P, que enfatiza o fato de ali ser a nossa área, o ASSCASOL, Associação de Cabos e Soldados da PM, na beira da ponte do Ipase. Ali tinha festa de dance todo final de semana. Ali era nossa área. Aí, quando eles vinham [a MC] ficavam na beira da ponte porque a gente lascava foguete. A gente já deixava um monte de pedra com caixa de foguete. Dessa forma, os pedaços dos GBP são acionados através dos lugares de memória, locais onde ocorreu algum evento marcante ou que se tornou parte do cotidiano do grupo. As praças da Alemanha, da Merque, do Caratatiua, o antigo retorno com uma pedra, o ASSCARSOL, os cantos da Igreja da Glória e do antigo Supermercado Lusitana, foram todos pedaços deste grupo em que os sentimentos de posse e identidade se cruzam e se confundem. DIÓGENES (1998, p. 156) pontua essa questão encarando-a como uma “idéia de apropriação dos equipamentos de uso coletivo” e que tal ato “ativa, entre eles [gangues], um sentimento de posse e poder”. Sendo assim, os equipamentos de uso coletivo tornaram-se particulares para os GBP, encarados como pedaços seus. Outro conceito que complementa as noções de Lugares de Memória e pedaço é o de território para as culturas jovens. Feixa (1998) analisa que as culturas jovens apropriam-se dos equipamentos urbanos, cravando-os com suas marcas e transformando em territórios seus. Já DIÓGENES (1998, p. 148) pontua que “a 67 territorialidade das gangues é móvel, cambiante, rompendo os limites físico- geográficos dos bairros e periferias”. Desse modo, a territorialidade para os GBP engloba bairros, junções de avenidas e equipamentos urbanos, todos cravados com marcas identitárias deste grupo. Este território viveu em constante mobilidade quer seja através de alianças com outras galeras ou por conflitos travados com outras gangues. O território dos GBP permaneceu em constante movimento, transformação e ignorou os limites físico-geográficos dos bairros e avenidas da cidade de São Luís, sendo, portanto “um referente em movimento que transcende barreiras estritamente geográficas” (DIÓGENES, 1998, p. 151). Nesta análise, percebe-se que o território com seus pedaços são os locais de refúgio e de descanso dos GBP. Lá eram feitas as provas de ingresso de novos integrantes do grupo, eram feitas, também, as reuniões da galera, bem como os preparos para as festas e era lá que seus corpos, armados com as botas, ficavam expostos num público particular, sendo nesse caso, o território entendido como um meio de “tentar transpor a noção do anonimato” (DIÓGENES, 1998, p. 148), pois ali ficavam os palcos para as suas encenações. Neste sentido, os pedaços dos GBP, unificados na noção de território, funcionavam como um “condensador de um sentido [da] turma, de unidade do grupo (DIÓGENES, 1998, p. 203), uma marca de identificação desses rapazes. 3.3 Práticas de visibilidade nos “Garotos da Bota Preta” Outra marca de identificação do grupo GBP eram as atividades realizadas por estes e que se mostravam bem diversificadas, sendo que algumas eram consequências diretas de outras. Neste tópico serão analisadas as seguintes atividades dos GBP: festas nas boates da cidade de São Luís, os conflitos travados com outras gangues e a prática do surf urbano. É importante entender que todas essas práticas devem ser encaradas como componentes do ethos (Abromovay, 2010) dos GBP, em que a visibilidade nos espaços públicos da cidade e no espaço privado dos “Botas Pretas” são fatores reguladores de tais atos. 70 Nesta perspectiva, tanto pode ser o Casino Maranhense, como a Taj Mahal, a Scorpions, o ASSCARSOL ou a KGB, todos foram manchas frequentadas pelos GBP. Estes sabiam do bem ou serviço oferecidos nestes locais, mas não sabiam as pessoas que ali encontrariam tornando assim a mancha um espaço de desfechos imprevistos. Assim, foi com essa característica, as incertezas das manchas, que os GBP se depararam, tendo como consequência uma das principais atividades dos “Botas Pretas”, os conflitos com gangues rivais. R narra um fato que serve como demonstração da mancha como local do imprevisto e de posterior conflito, declarando: Uma das nossas maiores brigas aconteceu no Casino, na festa do Miguel Lins, Garota Pantera. Descemos aqui em peso, a Alemanha em peso, fomos andando, era umas 8 horas da noite. Umas 2 meninas nossa iam desfilar, que eram da Bota. Fomos pelo Monte Castelo, passamos pela Deodoro e descemos pela aquela Praça Gonçalves Dias, nós andando, marchando. Nesse dia o Casino ficou pequeno. Chegamos lá encontramos a JJ 37 , ali fechou. Era macho pra caralho, não tinha pra onde correr... Senhor (falando com o pesquisador), nesse dia rolou um pau, foi muitas horas, quem pulava na maré pulava, aqueles cara que vendia lanche saíram foram tudinho rasgado, foi todo mundo fudido, era tanta pedra, tanto pau, sangue pra tudo quanto era lugar. Nesse dia, senhor, apanhei, dei muito chute e muita facãozada nos outros. Eu saí de lá morto só de dá tapa, foi o dia que eu mais briguei, foi umas três hora de briga. Outro conflito memorável foi a chamada “invasão do Bequimão” que é narrada por C, trazendo outra perspectiva dos conflitos: Nós combinamos lá na Praça da Merque pra gente invadir a gangue da MC 38 , nós combinamos todo mundo pra invadir o Bequimão, nós chegamos lá, mais de 150 machos, nós chegamos andando. Tinha uns componentes da MC lá na praça, nós andava de foguete, aí quando nós chegamos na pracinha foi logo lascando foguetada nos apartamentos de lá, e foi uma correria doida, foi numa sexta-feira. De lá a gente ia pra Taj Mahal porque lá tinha, também, uns componentes da MC... Aí, a MC queria invadir aqui, vindo da ponte do Ipase. Foi eles de lá e a gente daqui, foi pedra, foguete, foi uma guerra que durou mais de uma hora. Foram uns 10 presos esse dia. 37 A JJ tem como significado a denominação “Jovens Justiceiros” e era uma turma de jovens do bairro da Liberdade. 38 A rivalidade MC e GBP é assim narrada por G: “Tinha um moleque chamado Tel, parceiro nosso aqui do bairro. Ele era da FV, que era aliada nossa. E Luk, que era da MC... Ele chegou e encheu de porrada e ameaçou ele, o Tel. E nessa hora a gente vai passando e ele chegou e falou pra gente e nós pegamos ele e tomamos as dores de Tel... Aí, nós pegamos e enchemos a mão de pedra e botamos ele pra correr, aí ele correu e se refugiou no Bequimão. Quando ele chegou lá ele se juntou com o pessoal da MC, aí, quando ele retornou aqui foi com uns dois caras, foi no dia que os caras deram uma porrada no meu irmão, por detrás... Daí pra frente... Começou a rivalidade nossa com eles”. 71 R dá sua versão sobre essa invasão ao bairro Bequimão à procura dos integrantes do grupo MC (Mensageiros de Cristo), colocando que lá nós cortamos gente pra caralho, fomos por detrás dos prédios. Aí nesse mesmo dia nós fomos pra invadir a Liberdade pra pegar os caras da DR 39 . Os de lá foram pela maré e daqui pela Vila Palmeira. Dividimos, uns pra lá e outros pra cá. Fabiano foi quem comandou pra invadir o Bequimão e Satã pra invadir a Liberdade. Quem a gente encontrava pelo caminho lascava fogo, foguete, não tava nem aí. Nesse dia foi macho pra caralho. G narra outra circunstância de conflito dos GBP, Sempre que chegava nas festas, a gente tinha que tomar as dores de alguém, tipo assim, o menor, o mais fraco, e os super heróis, assim que nós éramos. Para a maioria das pessoas assim que a gente era, os super heróis... Se alguém batia neles, eles corriam pra gente, avisava, e a gente tomava as dores e resolvia... Sempre foi assim. Na maioria das vezes a gente nunca brigava por uma causa nossa, só dos outros, tipo assim, comprava briga dos outros. Pelas argumentações expostas percebem-se três circunstâncias de conflito para os GBP. R narra o contexto da mancha e sua característica do imprevisto, do inesperado como motivador de um conflito. C expõe o contexto de um conflito previsível, esperado e organizado, tendo por base uma reunião e a posterior invasão de um território inimigo. Já G enfatiza a necessidade de manutenção de uma imagem superior e protetora dos GBP, vistos como os “super heróis”, tendo o fator “tomar as dores de alguém”, como motivador de um conflito. Assim, as narrativas dão conta de três formas de como os GBP se inscrevem nos espaços públicos na modalidade violência. As chamadas “guerras” dos GBP com gangues inimigas devem ser entendidas como uma forma de se inscreverem nos espaços públicos. Para DIÓGENES (1998), “a violência não [é] (...) o centro fundamental das ações das gangues, sendo mais um dos mecanismos utilizados para dar registro e visibilidade às ações” (p. 150). Nesta linha de análise, os atos de violência dos GBP com outras gangues rivais são ações que visavam à visibilidade e inscrição destas (as gangues) na cartografia da cidade oficial. Os conflitos são dirigidos para locais de grande visibilidade, normalmente nas boates ou nos bairros, objetivando esse excesso de olhares, mesmo que os estigmatizando de desviantes e marginais. Assim, a 39 A DR tem como significado a denominação “Detonadores de Rua” e era também uma turma de jovens do bairro da Liberdade. 72 violência teve sua positividade para os GBP, pois ela foi um meio de os tornarem visíveis, inscritos e marcados nos espaços públicos. Outro ponto de destaque nesta problemática dos conflitos dos GBP é a figura da rua como palco das encenações de violência para este grupo. Glória DIÓGENES (1998) pontua que “a rua é palco de dinâmicas diversas de expressão juvenil que acabam se cruzando na dimensão compactuada da violência” (p. 153), sendo observado isso nos GBP não só na questão dos conflitos, que se desenvolveram em ruas e avenidas, como em diversas outras atividades e momentos, como, por exemplo, a prática do surf urbano. O surf urbano é reconhecido pelos entrevistados como uma das principais práticas dos GBP. Ele consistia em apoiar os pés sobre os parachoques traseiros dos ônibus, tendo uma das mãos agarrada na janela de fundo do mesmo. Os GBP realizavam-no em trio, com duas pessoas nos cantos apoiando as mãos nas janelas do fundo e um terceiro no meio, segurando nas mãos dos outros dois. Para C, essa prática entre os GBP teve suas origens da seguinte forma: “A gente começou a ver pela televisão, não sei se foi em São Paulo ou no Rio de Janeiro, nos trens. Aí, a gente passou a fazer nos ônibus daqui”. Os percursos preferidos para realizar tal prática eram as avenidas com descidas rápidas, a exemplo da Avenida dos Franceses. Dessa forma, como apontado por C, a prática do surf urbano tem suas origens externas aos GBP, sendo a reapropriação de tal ato ao contexto ludovicense uma singularidade deste grupo. O momento do surf nos coletivos foi responsável pela produção de várias sensações para os GBP. Z resume este momento como “alto estilo! Adrenalina pura! A gente pegava esses ônibus e descia voando nessa avenida [Avenida dos Franceses]”. S complementa essa visão adicionando o fator risco de vida para tal atividade: Aqui [falando da Praça da Alemanha] ficava um de um lado e outro de outro esperando o ônibus passar pra surfar. Quando o ônibus passava a gente pulava nele e descia essa avenida [Avenida dos Franceses] a mil. Já morreu muita gente surfando nesses ônibus aqui. A morte era uma companheira constante para os amantes do surf urbano. G expõe o perigo do imprevisto nesta atividade, pois “a qualquer momento alguém, por maldade ou até mesmo sem querer, podia fechar a janela e aí já era, caía todo 75 resume esta questão na seguinte frase: “o primeiro líder foi Matozão, esse Danilo, e depois veio Hipólito como último líder”. Entretanto, esse posicionamento é problematizado por G, ao colocar que Não tinha líder. Essa questão de Hipólito, quando ele começou a se aproximar da gente, a Bota Preta começou a entrar em crise, um discutindo com outro por causa disso, daquilo, porque o negócio era só a gente e outros queriam entrar. Aí, uns e outros chegaram e disseram: „Ah, rapaz! A gente tem que ter um líder‟. Aí, uns foram contra e outros a favor. Aí, pegaram e „rapaz, coloca o cara aí como líder!‟, aí pegaram e colocaram Hipólito como líder, talvez porque ele serviu o quartel, aí o pessoal falavam „bota o cara aí porque ele já foi do quartel‟. Fazendo um paralelo com o fato de a liderança de Hipólito ser devido o mesmo ter servido ao quartel, C fala das condições para a escolha dele próprio (C) como líder dos GBP, Muitos achavam que eu era sério, calado e por causa da minha estatura (1,80m), aí me botaram como líder. Hipólito entrou logo porque ele serviu o quartel, sabia muita coisa, inteligente. Pra ser o líder nem precisava brigar com as pessoas, às vezes [bastava] o modo do cara, muito sério e ser forte. Com relação às funções da liderança, C aponta que “o líder fazia era o seguinte, ele programava mais era reuniões na praça da Alemanha e do Caratatiua e ia pra festa pra disputar dança de salão”. Esses argumentos são complementados pelos de P ao expor o fato de que o líder era o responsável por decidir quem dos nossos rivais ia apanhar no dia, tipo assim, se tinha um de uma gangue numa escola tal, aí quando a gente descobria a gente colocava um nosso pra vigiar e aí, na saída a gente lascava de porrada nele. Pelas argumentações percebem-se os conflitos com relação à liderança no grupo GBP. T reconhece apenas Matozão e Hipólito como líderes, enquanto que G só reconhece a liderança de Hipólito se esta for entendida como fruto de um fator interno, discussões entre os membros da GBP, e um fator externo, o fato de Hipólito ter servido ao quartel. C reforça o argumento de G com relação ao fato de Hipólito ter servido ao quartel como facilitador para este ter sido escolhido como líder dos GBP, acrescentando que as características que o indivíduo tinha que ter para assumir a liderança desse grupo era ser sério, forte e alto. As narrativas finalizam com as funções do líder dos GBP que são pontuadas por C e P, sendo que a este (o 76 líder) caberia arquitetar a (sobre)vivência dos GBP nas manchas e no pedaço a estes legitimados. Com relação à liderança das gangues, DIÓGENES (1998) pontua que normalmente os líderes “se notabiliza[m] pela coragem e força física [sendo esses] corpulentos, musculosos, assemelhando-se ao estereótipo dos seguranças e leões- de-chácara.” (pp. 115 e 116). Tais características são observadas nas narrativas de C e G, este primeiro expondo os ideais facilitadores de liderança nos GBP, altura e seriedade, e G reconhecendo que a vivência por um tempo no quartel foi essencial para que Hipólito assumisse a liderança do grupo. Esta concepção se expressaria talvez pela imagem que o quartel despertava nesse grupo, ao ser considerado um local de fabricação de homens “inteligentes”, que sabiam muito no sentido da disciplina em grupo, de brigas, das táticas de guerra e no preparo de armas, sendo, portanto, esta a expectativa dos GBP ao colocar Hipólito como líder, ou seja, que ele praticasse toda a “inteligência” adquirida no quartel em favor do grupo. Sendo assim, a liderança no grupo “Garotos da Bota Preta” era encarada a partir da soma de alguns fatores, a saber, os fatores internos, que podiam ser inerentes ao próprio sujeito, sendo no caso de C, a altura, coragem e seriedade, ou adquiridos pelo “líder” em sua experiência de vida, que no caso de Hipólito seria o saber sobre técnicas de guerra, disciplinamento em grupo e preparo de armas, adquiridos no tempo do quartel. A liderança é um fator de disputa nas gangues e na GBP esse fator sofreu uma mudança por uma simples questão, a fama que os “Botas Pretas” adquiriram. Essa fama se resumiu em uma complexidade de histórias sobre os GBP, que sobrevoaram o ar de São Luís em 1992 e eram transmitidas pelos órgãos oficiais de jornalismo impresso e televisivo. Por essas histórias, os GBP eram caracterizados por cortar bicos de seios de estudantes, bem como por invadir escolas e fazer arrastões nas ruas da cidade40. Essas histórias fizeram dos GBP uma gangue41 e foi com essa categoria que eles ficaram inscritos e marcados na cidade de São Luís, sendo assim transformados em atores da violência, enfim, “famosos”. De forma paradoxal a fama deveria trazer uma maior disputa na liderança da gangue GBP, mas foi ela a responsável pelo esvaziamento desse conflito, como aponta P: 40 Essa questão será melhor contextualizada no capítulo 4. 41 Como será analisado no capítulo 4, os GBP são vistos como uma gangue pela mídia jornalística impressa, ganhando uma conotação pejorativa de marginalidade. 77 Quando eu fui preso e me saí, comecei a abandonar a galera, só ficando de longe vendo o movimento. Quem assumiu foi Marcelo... Aí, quando o pessoal tirou ele, eu fiquei só de longe, coordenando só de longe. Aí eu cheguei „rapaz, não vou mais ficar não se não vou me queimar mais ainda‟. Foi aí que saí e colocaram Bob na liderança. Se a prisão de P for entendida como consequência da grande visibilidade que a GBP estava tendo na cidade de São Luís (da sua “fama”), o ato de ficar distante das atividades da “Bota Preta”, bem como a negação da liderança e a posterior saída do grupo foram, todos, frutos desse excesso de exposição dos GBP no espaço público. Os atores da GBP estavam na mídia, só que na parte de violência, tendo como consequência direta a entrada da polícia em cena e o posterior esvaziamento de liderança no grupo, como pontua R A polícia tava caçando os cabeças, os líderes da Bota Preta e com isso, cara, todo mundo foi se saindo, quem tinha parente no interior caía fora e quem ficava aqui tinha que viver escondido. Satânico, que era o líder (Danilo), teve que sair daqui às pressas e escondido. Nesse tempo era Luís Moura e a polícia não brincava. Portanto, nesse contexto, o significado de liderança para os GBP era perigo, cadeia, ou, nas palavras de P, “ficar queimado”. Se continuar na GBP estava sendo um risco, ser líder da mesma era como assinar sua sentença de morte. Desse modo, o fator liderança entre os GBP foi pontuado como um campo de conflitos em que as noções de aceitação/rejeição ocuparam o mesmo espaço, finalizando com o total esvaziamento por sua disputa. 3.5 “Fomos perdendo o controle”: memórias do ocaso A problemática acerca da desagregação do grupo GBP será também analisada a partir dos motivos apontados por seus ex-integrantes. Esta análise inicia-se com Z, apontando que a principal causa para o fim do grupo foi o amadurecimento pela idade: Rapaz, eu vou logo te dizer. O cara vai chegando em uma certa idade e com isso neguinho vai se saindo... Antes de eu completar dezoito anos eu saí. Uns ainda ficaram no movimento, mas eu larguei. Aí, eu viajei e [a gangue] foi se acabando... 80 ano provável do fim desse grupo. Mas, dizer que o grupo “Garotos da Bota Preta” acabou devido ao fator amadurecimento não resolve a problemática, pois, além de dar uma falsa ideia do fim como um “passe de mágica”, deixa em aberto inúmeras questões relativas ao contexto social para tal maturidade. Assim, este fator isoladamente não responde as problemáticas para o fim dos GBP, sendo necessário fazer uso de outros argumentos para tal análise. Como outro fator tem-se o amadurecimento, agora entendido como consequência das ações policiais. M analisa que a prisão de uma parte dos GBP somada ao medo de ter um dos amigos “desovados” foram essenciais para a sua retirada forçada do bairro da Alemanha. A prisão de parte do grupo deu-se entre os dias 12 e 13 de Agosto de 1992, sendo que o ápice dos embates deste grupo com a polícia deu-se com o evento denominado de “arrastões em São Luís”, ocorrido no dia 17 de Novembro de 1992, e transmitido pelas imprensas televisivas e impressos locais, que culpabilizaram os “Botas Pretas” por tal ato42. Por serem declarados culpados, a caçada aos GBP foi intensificada, sendo esse o contexto da retirada de M, que encontrou no fator “imaginário das desovas” uma justificativa para tal fuga. Para a linguagem policial, o ato de desovar consiste em ocultar o cadáver de alguém. Nos anos de 1991 a 1993 os jornais impressos de São Luís43 trazem várias matérias denunciando o ato de um grupo de extermínio na cidade que tinha como objetivo matar e desovar corpos de pessoas declaradas como “marginais”. São comuns, na imprensa oficial durante este período, enunciados como estes: “Primeira „desova‟ do ano acontece em Pedrinhas”(O Debate, 1992); “Açougueiro é „desovado‟ no matagal da UEMA”(O Debate, 1992); “Crime organizado continua agindo: mais dois homens são „desovados‟”(O Imparcial, 1993); “„Desova‟ vira rotina na Ilha de São Luís”(O Debate, 1991). Estes enunciados eram reapropriados no cotidiano da população, sendo os GBP inseridos nesta realidade, ainda mais porque eles eram identificados como “marginais”, inseridos na categoria de futuros “desovados”. G exemplifica o sentimento dos GBP com relação às “desovas”: A gente não saía mais na rua, a gente quase não ia mais pra praça. Aí, foi quando eles agarraram Bob, agarraram Hipólito... Aí, naquele tempo existia 42 Os jornais utilizados foram: Jornal Pequeno, O Imparcial, O Estado do Maranhão e O Debate. 43 Os jornais utilizados foram: Jornal Pequeno, O Imparcial, O Estado do Maranhão e O Debate. 81 a questão da desova e a gente ficou temendo isso, da família não saber pra onde é que a gente tava indo. No dia que Bob foi preso a gente tava na porta e ele passou na viatura, numa Toyota. Quando a gente olhava uma Toyota branca a gente já ficava cabresto, com medo de ser pego e desovado. A gente se refugiou... a gente ficou mais discreto, restrito... eu passei um bom tempo trancado lá em casa, porque a minha mãe não deixava eu saí. G narra o imaginário que rondou os GBP com relação às “desovas”. O medo de serem os futuros desovados obrigou-os a ficarem mais restritos e reservados, retirando assim um dos principais objetivos de (sobre)vivência dos GBP, qual seja, a visibilidade nos espaços públicos das manchas e nos espaços privados dos pedaços. Neste sentido, a ação policial de repressão aos GBP, aliada à questão do “imaginário das desovas”, foram fatores importantes para o fim do grupo “Garotos da Bota Preta”, mas não foram os únicos, pois devido à complexidade da problemática é necessária uma análise mais acurada. Outra questão pontuada nas narrativas com relação ao fim do grupo GBP refere-se ao seu crescimento em quantidade de integrantes. De acordo com R, A gente tinha filial em oito áreas: na Cidade Operária, na [unidade] cento e um, cento e dois, na corrimão; na Vila Palmeira; no João Paulo, [Bairro de Fátima; Santa Cruz; Cerâmica]; em todo esse redor da Alemanha e do Caratatiua. O grupo “Garotos da Bota Preta” cresceu em quantidade de integrantes pelas várias alianças que eram feitas com outras gangues, estas identificadas por G como sendo os grupos: “Falange Vermelha, a FV; Falange Negra, FN; Garotos do Kepe Preto, GKP; Os Cães Prateados, OCP; a GG 200044, que ainda chegou a se aliar com a gente”. Essas alianças eram viáveis quando se tinha “um inimigo em comum ou porque a outra galera era mais fraca que a nossa” (G). Neste sentido as alianças dos GBP com outras galeras serviam tanto para somar forças contra uma 44 A história do começo da rivalidade entre os GBP com a GG 2000 é assim narrada pelo informante P: “eles vieram pichar aqui, aí a gente pegou e queimou tudinho. Aí, depois um da nossa gangue tomou um chapéu deles, aí eles vieram falar comigo pra tomar de volta o boné. Aí, ele veio, „é rapaz, vim falar contigo‟, „pois não‟, „tão falando que a gente é rival de vocês, não tem nada a ver, vocês tão queimando a pichação da gente‟. „vocês tão pichando na nossa área‟, „não, foi mal, eu não sabia que era assim, tem um boné da gente que tomaram‟. Aí, ele falou o nome e eu chamei, „tu tomou o boné do cara aí?‟, „rapaz, eu tomei, tava lá no espaço e eu não sabia de quem é‟, „rapá, tem como devolver?‟, „rapaz, eu já vendi‟. Aí, ele „não rapaz, a gente vai chegar e só dizer que a gente não tinha nada a ver com rival de vocês... Eu só queria que vocês não queimassem mais a pichação da gente‟. Daí começou nossa rivalidade”. 82 galera rival em comum como para legitimar a superioridade dos “Botas Pretas” perante as outras gangues aliadas. No entanto, num determinado momento as alianças dos GBP com outras galeras passaram da categoria de “benefício” para “prejuízo”. Essa mudança de postura deu-se devido ao excesso de visibilidade pública dos GBP, isto porque nos atos dos aliados o nome que era levado e que ficava marcado na cartografia da cidade oficial era o da “Bota Preta”, denominado pela mídia oficial de “Gangue da Bota Preta”. Como lembra X, “a fama da Bota Preta se expandiu de tal forma que todo crime que acontecia na cidade era atribuído à Bota Preta”. Conforme a narrativa de X percebe-se que uma das condições para a aliança dos GBP com uma gangue menor é que esta propagasse o nome da “Bota Preta” e isso se configurou, em um determinado momento, como um grande prejuízo para os integrantes desta última. Isso porque no contexto de caçada e repressão aos GBP, por parte da polícia, não estava sendo mais visto como viável o excesso de visibilidade do grupo na cartografia da cidade, sendo nesse momento percebida a perda do controle dos “Botas Pretas” sobre as ações dos des-ali(nh)ados45. No contexto de repressão policial e de temor pela possibilidade de serem os futuros desovados, os GBP buscaram a discrição nos espaços públicos, movimento contrário aos feitos pelos “aliados”, que buscaram cada vez mais a visibilidade do nome “Bota Preta”. Esse ato dos aliados deve ser entendido como uma prática que visa uma maior, e mais rápida, visibilidade de novas gangues nos espaços oficiais da cidade, já que o nome da GBP era visto constantemente nas mídias impressa e televisiva. Em contraposição ao ato das novas gangues de ganhar visibilidade à custa do nome “Bota Preta” temos as ações dos denominados “seguidores”, como será pontuado a seguir. Inicialmente, os GBP entendiam o seguidor como aquele que segue uma determinada pessoa ou grupo por acreditar em seus ideais. No entanto, essa denominação sofreu algumas modificações, pois apesar de continuarem sendo pessoas que seguiam um grupo, agora tinham outro objetivo, o de praticar atos ilícitos, usando o nome “Bota Preta” para mascarar tais ações. Os seguidores são vistos pelas narrativas dos ex-“Botas Pretas” como “marginais”, pessoas que 45 Esta expressão refere-se aos ditos aliados dos Garotos da Bota Preta que, devido à falta de controle e grande quantidade de membros, desalinharam-se do perfil inicial do referido grupo, corrompendo assim seu código de valores. 85 A metodologia utilizada neste capítulo foi a análise do discurso, privilegiando os jornais ludovicenses dos períodos de 1992 a 1994. Esse tipo de análise terá como complemento as narrativas dos ex-integrantes do grupo “Bota Preta” e de alguns estudantes que tiveram suas experiências estudantis entre os períodos de 1994 a 200647. É importante esclarecer que o ano de 1992 foi escolhido como marco para essa análise discursiva porque é nele que se encontra, pela primeira vez, uma reportagem sobre os GBP, mais especificamente no mês de Agosto. Outro esclarecimento a ser feito é com relação à escolha do ano de 1994 como marco final dessa pesquisa nos jornais, que se deu devido ao fato de que no ano seguinte, 1995, os jornais não mencionam mais o nome da Gangue da Bota Preta nas reportagens sobre violência. Desse modo, o capítulo está organizado por temáticas, não seguindo uma ordem cronológica das reportagens. Assim, na primeira problemática é discutido o nascimento da Gangue da Bota Preta para a mídia impressa ludovicense, privilegiando o imaginário do “desvio” atribuído às gangues. Em seguida, discutem- se as representações sobre a marginalidade atribuída aos GBP e como o imaginário ocidental da delinquência contribuiu para tais conceituações. Por fim, têm-se as reportagens que privilegiam o “arrastão” de Novembro de 1992 e todas as suas implicações para o grupo “Bota Preta”, como as que o identificaram, por quase 20 anos, com práticas de corte dos bicos de seios de estudantes e invasões de escolas. 4.1 A aurora da delinquência: o nascer da Gangue da Bota Preta para a mídia ludovicense METROPOLITANA DESBARATA UMA PERIGOSA GANGUE NO JOÃO PAULO Polícias da Delegacia Metropolitana de São Luís conseguiram colocar [as] mãos na mais perigosa gangue de bairro que agia no João Paulo e adjacência. Trata-se da famosa gangue da “Bota Preta”, integrada por um maior identificado por Hipólito, 20 anos, residente na Rua Fulgêncio Pinto, no João Paulo e mais cerca de quarenta menores. Na residência de Hipólito, a polícia apreendeu uma máscara, vários espetos de aço, chave de 47 Os relatos dos estudantes dizem respeito a um questionário realizado com 70 estudantes da UFMA, UEMA e nas redes sociais via internet, entre os meses de Setembro e Outubro de 2011. Ver modelo dos questionários em anexo. 86 fenda, faca, um porrete, dois pares de botas, entre outros objetos ligados ao crime [...]. Hipólito disse que os equipamentos encontrados eram objetos de decoração de seu quarto de dormir, exceto o porrete, que era para a luta com outras gangues. Ele negou a participação em assaltos, acrescentando que eles utilizavam até fogos de artifício, tipo foguetes que disparavam contra integrantes de outras gangues, negando também que atiram pedras em ônibus (O IMPARCIAL, 13/08/1992). FIGURAS 08 e 09: Prisão dos GBP. Fonte: Jornal O Imparcial, 13/08/1992. No dia 12 de Agosto de 1992 uma operação policial prendeu mais de 40 rapazes identificados como sendo integrantes do grupo “Garotos da Bota Preta”. O grupo era acusado pela polícia de praticar assaltos, atos de vandalismo em coletivos e promover brigas com outras turmas. No dia seguinte, é noticiado no jornal O Imparcial uma reportagem sobre este acontecido, sendo que o ato da polícia foi dado como glorioso, porque eles conseguiram “colocar [as] mãos na mais perigosa gangue de São Luís”, enquanto que, para o grupo GBP, restou negar as acusações e se preparar para a nova identificação que lhes era imposta, pois a partir daquela data a mídia ludovicense os rebatizava de “Gangue da Bota Preta”. Assim, ao rebatizar os GBP de a GBP, a gangue, a mídia aciona todo um imaginário histórico desse termo. 87 O conceito de gangue é datado, pois tem suas origens na década de 1920 nos Estados Unidos (Abramovay, 2010) 48. Os trabalhos relacionados à temática gangue, desse período, a configuravam “como a chamada „delinquência juvenil‟, pobreza, segregação espacial e étnica” (ABRAMOVAY, 2010, p. 54). Glória Diógenes (1998) pontua essa questão da seguinte forma: A gangue é uma conceituação criada pela idéia do desvio, tendo em vista a expressão juvenil nos guetos de Chicago [...]. O termo gangue é recortado por toda a visão que tematizou o „desvio‟ através da vasta produção da Escola de Chicago nos anos 40 e 50 nos Estados Unidos e, no Brasil, durante toda a década de 60 até os anos 70. Gangue e delinqüência passam a ser termos correlatos tanto na visão policial, no imaginário social, como na percepção que pontua as diferenciações entre as turmas de jovens (DIÓGENES, 1998, pp. 107, 108 e 114). É essa representação de gangue como desvio e delinquência que foi acionada pelo imaginário dos ludovicenses quando os mesmos leram no jornal O Imparcial a denominação “gangue” para o grupo “Garotos da Bota Preta”. Sendo assim, os GBP vão ser identificados como delinquentes, tendo as práticas do assalto, da baderna em coletivos e das brigas com outras gangues as marcas comprobatórias do nível de suas delinquências sociais. Nesse processo de acionar representações pelo imaginário a mídia tem um papel importante. Elizabeth Rondelli (2000) pontua essa importância com a seguinte citação: A mídia é um determinado modo de produção discursiva, com seus modos narrativos e suas rotinas produtivas próprias, que estabelecem alguns sentidos sobre o real no processo de sua apreensão e relato. Deste real ela nos devolve, sobretudo, imagens e discursos que informam e conformam este mesmo real (RONDELLI, 2000, p. 150). Neste sentido, a mídia tem sua importância por ser um modo de produção discursivo que tem como objetivo apresentar para o público as versões do real através de imagens e discursos. Sendo assim, concomitante ao ato de apresentar a versão do real estaria o de produção e conformação desse real, pois a mídia, ao mesmo tempo em que informa, através de imagens e discursos, conforma uma noção do real, a sua noção de uma dada realidade. Outra grande importância do discurso da mídia estaria no ato de que 48 A problemática da conceituação de gangue já foi discutida no item 2.1 do capítulo 2. 90 produz sobre a violência são representações múltiplas, discursos polifônicos, por vezes contraditórios, mas coerentes com requisitos institucionais diversos (RONDELLI, 2000, p.155). Desse modo, a mídia torna a violência inteligível ao articular explicações e interpretações de vários discursos, considerados como competentes. Assim, ao divulgar ações, como a formação e desenvolvimento de gangues, a exemplo da GBP, a mídia objetiva acionar atores sociais, os obrigando a mobilizarem explicações coerentes com o imaginário da marginalidade presente naquele contexto. Logo, pelas reportagens percebe-se que, para o discurso policial, a marginalidade atribuída à “Bota Preta" se dá devido à falta de uma estrutura familiar, policial e judicial adequada para prevenir a entrada de novos integrantes nessa gangue, vista como algo exterior à realidade ludovicense. A noção de violência como experiência exterior não é exclusiva do discurso midiático ludovicense que, articulado com o discurso policial, encara as práticas de delinquência das gangues como imitações do sul do país. Essa noção encontra-se ancorada no próprio imaginário ocidental cristão que idealiza a ordem, a unidade e o equilíbrio (Diógenes, 1998), reservando para a violência, em forma de delinquência, um papel exterior à vivência da sociabilidade. Assim, é como se o cotidiano da cidade de São Luís, antes da visibilidade dos atos de violência do sul do Brasil, fosse visto como a ordem e a unidade, sendo estas interrompidas por esse fator externo, que adentrou no cotidiano da normalidade e transformou o que era encarado como equilíbrio em atos violentos. Conforme visto pelas reportagens, a Gangue da Bota Preta ganha visibilidade acionando o discurso policial. Isso porque a mídia tem uma linguagem que torna expressivos os atos, considerados como violentos, sejam eles um tiroteio com a polícia, depredação de equipamentos de uso coletivo (Diógenes, 1998), agressão física, estupro, todos considerados anormais à normalidade vigente. Assim, ao tornar inteligíveis os atos de delinquência promovidos pela Gangue da Bota Preta, a mídia tentava confortar e confirmar o imaginário do desvio presente naquela realidade, que vê o desviante como um delinquente, um marginal, alguém que traz de fora os atos de violência vistos naquela sociedade. 91 4.3 “Bichas, assaltantes, drogados e gangueiros”: o imaginário da marginalidade sobre os “Botas Pretas” Como foi observado nas questões anteriores, o termo “gangue” atribuído aos GBP tem toda uma historicidade de marginalização, delinquência e “desvio”, que se tornam públicos ao serem divulgados pela mídia ludovicense. Assim, outra reportagem que complementa essa noção de marginalidade e de desvio atribuídos aos “Botas Pretas” pelos jornais ludovicenses é a do jornal O Debate, do dia 24 de Outubro de 1992, que narra a prisão de 12 integrantes deste grupo pela polícia, quando estes estavam se preparando para agir nos coletivos da cidade. A reportagem é assim noticiada: “BOTA PRETA”: PRESOS 12 INTEGRANTES DA GANGUE A gangue da “Bota Preta”, que vinha agindo nos coletivos da cidade, foi desarticulada ontem pela polícia, após diligências nos bairros da Alemanha e Bequimão. Parte do grupo é formado por bichas. [...] Os marginais se reúnem em um determinado bairro da cidade, cheiram cola e depois vão para os ônibus bater carteira e assaltar os passageiros. Para os policiais, a maior parte da gangue é formada por bichas e menores de idade (O DEBATE, 24/10/1992). FIGURA 10: Prisão de 12 possíveis integrantes da GBP. Fonte: Jornal O Debate, 24/10/1992. 92 Aqui se podem encontrar códigos que elevem o grupo GBP à categoria de delinquentes. Em um primeiro momento, o título traz a noção de que os integrantes desta gangue foram “presos” pela polícia e, por este ato, o discurso policial acredita que desarticulou este grupo. Desse modo, se alguém é preso pela polícia é porque cometeu algum ato considerado desviante da ordem vigente, portanto, os “Botas Pretas” são desviantes, um atraso “na dinâmica homogeneizadora da „cultura de massa‟” (DIÓGENES, 1998, p. 83). Mais do que desvio e atraso, eles ficam na posição de “vilões da história”, que necessitam ser combatidos e eliminados por uma força suprema e legitimada pela sociedade, a polícia. É ela que é acionada nas reportagens como a protetora da sociedade, a única e legítima para combater a marginalidade. A representação da polícia pela mídia ludovicense, quando o assunto é a Gangue da Bota Preta, é pautada na ideia de proteção da sociedade. A polícia protege a sociedade contra os perigos, contra a violência, que é sempre vista como algo estranho e exterior à vivência humana (Diógenes, 1998). Assim, para justificar o discurso policial, que resultou na prisão de 12 integrantes da GBP, a reportagem relata que os diligentes cheiravam cola e depois assaltavam em ônibus da cidade, complementando, então, o sentido de marginalidade atribuída a esta gangue. Logo, a ação da polícia é representada pela reportagem como correta, pois prendeu e desarticulou seres que faziam uso de drogas ilegais e que assaltavam em coletivos da cidade de São Luís, sendo, pois, sinônimos de marginalidade. As ideias anteriores complementam o imaginário do desvio atribuído à Gangue da Bota Preta pela mídia ludovicense. Complementam, mas não completa essa imagem, sendo, portanto, necessários outros símbolos de sua suposta marginalidade. Isso porque o campo jornalístico está permanentemente sujeito à prova dos veredictos do mercado, através da sanção, direta, da clientela, do índice de audiência (BOURDIEU, 1997, p. 106). Conforme o exposto, a reportagem do jornal O Debate necessita comprovar para a sua clientela pagante, que os “Botas Pretas” foram presos por terem todos os requisitos necessários para serem enquadrados como desviantes, caso contrário, não ganhariam os veredictos necessários que os legitimassem a exibir outras reportagens dessa natureza, perdendo assim, seu público pagante. 95 estaria acontecendo um concurso, a nível nacional, entre líderes de gangue, e aquele que obtivesse maior número de seios ganharia o prêmio [...]. O Secretário de Segurança, Leofredo Ramos, assegura que a tranqüilidade vai retornar, já que será desencadeada uma ação eficaz para reprimir os arrastões (O DEBATE, 18/11/1992 – Grifos meus). No dia 17 de Novembro de 1992 a população ludovicense entrou em pânico: a todo o momento ouviam-se notícias de que “arrastões” promovidos por gangues estavam ocorrendo em vários locais da cidade. No dia seguinte a mídia, como “principal testemunha pública dos atos de violência” (RONDELLI, 2000, p. 153), divulga tais fatos com ar dramático, expresso em seu discurso e em suas imagens. Cada qual dos jornais queriam buscar um fato novo, um ar mais dramático nas reportagens, isso porque “a concorrência pela clientela tende a tomar a forma de uma concorrência pela prioridade, isso é, pelas notícias mais novas (o furo)” (BOURDIEU, 1997, pp. 106 e 107). Assim, não bastava divulgar um fato que todos viram e ouviram na íntegra, pois era preciso ser o diferencial, a começar pelo título do “acontecido”. Desse modo, a mídia impressa ludovicense intitula assim o acontecido: O Estado do Maranhão (18/11/1992): “ARRASTÃO DEIXA SÃO LUÍS SOB TENSÃO”; O Imparcial (18/11/1992): “ARRASTÃO DEIXA SÃO LUÍS EM PÂNICO”; O Debate (18/11/1992): “UM DIA DE CÃO: Gangues fazem „arrastão‟ e deixam São Luís em estado de pânico”. Logo, os títulos, em tons diferenciados de dramaticidade, demonstram o quanto foi concorrida a busca, pelos jornalistas, por um fato novo, que os diferenciassem e impressionasse a clientela, ato esse reforçado pelas narrativas das reportagens. Nessa busca pelo ineditismo dos fatos, o Jornal Pequeno foi o único que não encarou o “arrastão” como uma realidade da violência, como é posto na seguinte reportagem: FARSA DE ARRASTÃO ATERRORIZA SÃO LUÍS O arrastão seria um plano para João Alberto [assumir] a Secretaria de Segurança do estado. [Assim] a chegada de João Alberto à SEGUP, então, era apenas uma questão de tempo. Mas acharam que era preciso criar um fato, que o João tinha que chegar à Secretaria da Segurança num clamor da população, como o „salvador da pátria‟. E aí surgiu o „arrastão‟ (JORNAL PEQUENO, 18/11/1992). 96 FIGURA 14: Manchete sobre o “arrastão” Fonte: Jornal Pequeno, 18/11/1992. O fato de não concordar que o “arrastão” se configurou unicamente como violência gratuita não isenta o Jornal Pequeno da busca pelo furo, pela notícia mais diferenciada e nova. Assim é que, o ato de negar as afirmações dos outros jornais torna o discurso do Jornal Pequeno tão inédito e diferenciado quanto os outros que dramatizam, através de imagens e conceitos, o acontecido. Dessa maneira, o ato de negar ou afirmar o “arrastão” visam uma maior credibilidade do público pagante, que busca o novo, o inédito e o extraordinário. O chamado “arrastão” em São Luís teve uma visibilidade tão grande por parte da mídia local que ganhou manchete por dois dias seguidos nas páginas dos principais jornais da cidade. O discurso jornalístico, que tem ”seu modo próprio de falar e de representar a violência, espetacularizando-a a partir de uma lógica da visibilidade, do sensacionalismo, do fascínio e da banalização” (RONDELLI, 2000, p. 155), tratou logo de tornar inteligíveis os atos que foram vistos e ouvidos em São Luís no dia 17 de Novembro de 1992, montando todo um cenário de causas, consequências, culpados, vítimas e heróis da situação. Neste sentido, como aponta Elizabeth Rondelli (2000), A mídia é um dos atores sociais com grande potencialidade de convocar os demais atores a um posicionamento, e o faz com grandes gestos dramáticos (RONDELLI, 2000, p. 156). Seguindo esta linha, os pais com seus filhos, estudantes, foram acionados para serem as “vítimas” de todo o acontecido, seguidos da polícia e 97 outros órgãos de segurança, apontados como os “heróis”, aqueles que protegeriam a população indefesa, agindo com firmeza. Por fim, temos as gangues, particularmente a “Bota Preta”, apontadas como as “culpadas” pelas imagens e palavras de violência divulgadas pela mídia impressa ludovicense. Seguindo esta linha, ao convocar esses atores sociais o objetivo da mídia ludovicense não era dar voz a eles, e sim tornar coerente, para o entendimento do público pagante, os atos de “violência” vistos em São Luís. Isso se explica por que Somos signatários do ideal da ordem, da unidade e do equilíbrio [...]. [Sendo assim] no nosso imaginário ocidental cristão [...] a violência é apresentada como uma parte estrangeira da experiência social, uma ameaça ao consenso, um arcaísmo social a ser eliminado [...]. [Por isso] desenvolve-se uma série de argumentações que, quase sempre, levam a supor a existência de „ações violentas‟ que seriam possivelmente controladas com a eliminação ou contensão do sujeito praticante da violência (DIÓGENES, 1998, pp. 73,75, 78 e 89). Sendo assim, se o público pagante dos jornais ludovicenses são indivíduos que têm a mentalidade ocidental ancorada no ideal da ordem e do equilíbrio, nada mais lógico e cômodo do que divulgar os atos de “violência” deste dia (17/11/1992) em São Luís, como um fato anormal do cotidiano da normalidade. Assim, em um dia anormal a cidade do amor foi transformada, por agentes estranhos à ordem e ao equilíbrio, na cidade do pavor. Esses seres estranhos, “o outro-semelhante” (Diógenes, 1998), identificados como de gangues, em especial a “Bota Preta”, são apontados como culpados, tendo no ato de serem agressivos ao olharem para câmeras e máquinas fotográficas, a prova concreta de que eles não fazem parte do ideal de ordem e equilíbrio, necessitando da lógica policial de contenção e eliminação. Neste sentido, todos os discursos proferidos sobre o “arrastão” em são Luís no dia 17 de Novembro de 1992 são perfeitamente coerentes com o imaginário ocidental sobre a violência. Isso porque, por esse imaginário, a violência é entendida como algo destruidor, situada fora da ordem do cotidiano da normalidade e vista como um fato isolado do ideal de estabilidade, ordem e equilíbrio, necessitando assim, dos culpados por ferirem esse ideal e foi aí que, mais uma vez, os GBP foram acionados. Eles que já haviam ganhado a visibilidade pública pela mídia nos meses de Agosto e Outubro51, agora ganham novamente, só que dessa vez com uma 51 O Debate, 18 de Setembro de 1992 e 24 de Outubro de 1992.
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