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Guias e Dicas
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Violações de Direitos de Crianças e Adolescentes no Brasil: Análise de Casos do ECA, Notas de estudo de Serviço Social

Uma análise sistemática de histórias verídicas de aplicação bem-sucedida do estatuto da criança e do adolescente no brasil. Ele oferece importantes insights sobre os desafios enfrentados pelos diversos atores do sistema de garantia de direitos e cidadãos na garantia plena dos direitos de crianças e adolescentes. O documento também detalha os tipos de violações de direitos, suas causas e soluções, além de fornecer dados sobre a frequência de violações em diferentes regiões do país.

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 23/12/2010

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paulo-honorato-1 🇧🇷

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Baixe Violações de Direitos de Crianças e Adolescentes no Brasil: Análise de Casos do ECA e outras Notas de estudo em PDF para Serviço Social, somente na Docsity! Retratos dos direitos da criança e do adolescente no Brasil É com satisfação que nós, da Fundação Telefônica Brasil, vemos esta iniciativa de analisar os cerca de 2.500 causos inscritos no concurso Causos do ECA até 2009, dos quais apenas uma centena, referente aos finalistas, foi publicada e está dis- ponível no portal Pró-Menino. Não deixá-los cair no esquecimento expande o potencial de con- tribuição que esses relatos têm para fortalecer o Sistema de Garantia dos Direitos de Crianças e Adolescentes. Ao se analisarem e categorizarem as violações de direitos e os encaminhamentos e soluções expressos no conjunto dos causos, res- gata-se a riqueza de conhecimento neles contida, possibilita-se entender melhor como o ECA está efetivamente contribuindo para melhorar a vida de nossas crianças e adolescentes e amplia-se o seu alcance transformador. Rosa Maria Fischer Luana Schoenmaker Capa.indd 1 9/20/10 3:36 PM Retratos dos direitos da criança e do adolescente no Brasil: pesquisa de narrativas sobre a aplicação do ECA Rosa Maria Fischer Luana Schoenmaker Colaboradores Graziella Maria Comini (coautoria de texto) Maria de Lourdes Trassi Teixeira (assessoria especializada) Neide Duarte (coautoria de texto) Rogério Jerônimo Barbosa (assessoria metodológica) São Paulo, 2010 4 Prefácio O Brasil amadureceu nestes 20 anos de Estatuto da Criança e do Adolescente Em 20 anos, o mundo parece ser outro para as crianças e adolescentes. No Brasil, certamente muito mudou. Começo este prefácio com um depoimento pessoal, bem nos moldes dos Causos do ECA. É uma história que teve grande impacto em minha vida e influenciou toda a minha trajetória profissional. Nos anos de 1970, quando comecei a trabalhar com crianças, resolvi visitar um local em que havia muitas delas – um orfanato. Nunca havia visto tanta criança num só lugar. Eram mais de cem crianças. Todas, muito carentes de afeto, disputavam minha atenção e contato físico. Duas coisas chamaram minha atenção logo de início. Percebi que tinham um vocabulário bastante limitado e próprio – custei muito a começar a entender o que diziam –; era quase um dialeto criado por elas! Em pouco tempo compreendi que apenas falavam entre si. Praticamente ninguém mais lhes dirigia a palavra. O que mais me chocou, no entanto, foi descobrir que essas crianças – que cresciam em um orfanato – tinham família! Não raro tinham pai, mãe e muitos parentes. Mas se viam como abandonadas e órfãs. Por isso afirmo que muita coisa mudou em apenas 20 anos. Para quem esqueceu como era antes e acredita que nada mu- dou, é bom relembrar. Como esquecer notícias como aquela de primeira página de um jornal carioca na década de 1980? Menores atacam crianças em uma escola Quem poderia repetir uma frase dessas hoje sem pelo menos desconfiar que há algo muito errado nessa afirmação? Até outro dia parecia normal que as crianças que viviam no hemisfério sul do planeta (em geral países pobres, tidos como “atrasados”) passassem sua infância e adolescência no trabalho pesado e não fossem à escola. Nada de mais se apanhassem e fossem exploradas – nem se considerava isso um abuso e muito menos uma “violação de seus direitos”. Parecia normal também que fossem retiradas de seu contexto familiar e encaminhadas a instituições (para “reformá-las”, “reeducá-las”) e ali passassem o resto de suas vidas no trabalho escravo. Seus “benfeitores”, é bom lembrar também, ainda se beneficiavam com recursos públicos e com a imagem de estarem salvando os “menores”. O que hoje se considera um absurdo, uma violação de direitos ou mesmo um crime, no tratamento dispensado às crianças e aos adolescentes, até outro dia era visto como normal. Por isso é que se pode dizer que o mundo parece outro para as crianças e adolescentes. Tudo começou a mudar com a compreensão de que as crianças e adolescentes são cidadãos co- mo quaisquer outros, com direitos assegurados de acordo com a normativa nacional e internacional. E que a divisão entre menores e crianças é um total contrasenso no contexto dos direitos humanos, no qual prevalece o princípio da igualdade. O Estatuto da Criança e do Adolescente, hoje com 20 anos, foi a lei que no Brasil consolidou esses direitos, após a inclusão do artigo 227 na Constituição de 1988. Essa consolidação vem acontecendo de uma forma articulada, refletida e forte em todo o País com a operacionalização dos direitos por meio do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente. A partir da promulgação do Estatuto, iniciou-se a árdua tarefa de implementar uma lei que desafia o Brasil a abandonar antigas concepções e práticas, por exemplo, a noção de menor abandonado e delinquente; a de que criança é um ser passivo; a ideia de que é de pequeno que se torce o pepino; que apanhando é que se aprende... 5 Nestes 20 anos, sob a vigência do Estatuto, o Brasil amadureceu na forma de conceber e tratar as crianças e os adoles- centes. A série Causos do ECA vem mostrando isso de maneira simples, por meio de histórias do cotidiano de pessoas interagindo com as crianças e adolescentes em todo o País. Há muito a fazer para que o Estatuto seja efetivamente implementado e para ajudar a transformar a vida de 60 milhões de crianças e adolescentes brasileiros. Mas o que já foi feito é real e não tem volta. Sem dúvida, há muito a celebrar. Irene Rizzini Professora do Departamento de Serviço Social da PUC-Rio Presidente do Ciespi - Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância 6 Apresentação Alegramo-nos ao apresentar à sociedade a presente publicação. Trata-se de livro desenvolvido a partir do projeto de pesquisa apoiado pela Secretaria de Direitos Humanos no ano 2009 sobre a aplicação do Estatuto da Criança e do Ado- lescente por meio da análise de narrativas reais: um retrato do Sistema de Garantia de Direitos de 2005 a 2009. A pesquisa, que culmina com a presente publicação, objetivou construir um panorama da aplicação do Estatuto da Crian- ça e do Adolescente por meio do levantamento de dados sobre o funcionamento do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente frente à ocorrência de violações desses direitos. Para atingir esse objetivo são analisados os trabalhos que compõem o acervo do Concurso literário cultural Causos do ECA, promovido anualmente pelo portal Pró-Menino. Desde que o ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente foi promulgado, em 1990, o poder público e a sociedade civil vêm empreendendo ações para a garantia de sua efetiva implementação, a partir da articulação e da integração de suas instâncias, seja na aplicação de instrumentos normativos, seja estimulando o funcionamento dos mecanismos de promoção, defesa e controle para a efetivação dos direitos humanos da criança e do adolescente. Desse modo, apoiar a produção e publicação de estudos e pesquisas que contribuam para a divulgação e aplicação do ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente é imprescindível. O fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos exige, nesse sentido, a apreensão de olhares distintos sobre a aplicação e implementação do ECA, sobretudo em função da insuficiência de materiais (referências teórico-conceituais, materiais didático-pedagógicos, manuais, etc.) e, ainda, da limitação de estudos e pesquisas que consolidem dados e informações que estejam correlacionados aos tópicos especí- ficos dos direitos da criança e do adolescente. Entendemos que a presente publicação caminha no sentido de orientar políticas públicas para garantia dos direitos da criança e do adolescente a partir de olhares do cotidiano (“são percepções, representações, ações e decisões que têm feito do ECA um instrumento de transformação social”), além de lançar luz sobre os diferentes olhares de profissionais e cidadãos comuns em torno da aplicação do Estatuto. Assim, o material que ora apresentamos legará um conjunto de informações quantitativas e qualitativas sobre o patamar de realização de direitos, a partir dos eixos constantes do ECA, representativo de todo o território nacional. Necessitamos cada vez mais ofertar aos conselheiros e outros profissionais boas condições de trabalho no que concerne aos conhecimentos fundamentais sobre a matéria com que lidam no cotidiano. O material, nesse sentido, inegavelmente oferta uma importante sistematização de histórias verídicas de aplicação bem-sucedida do Estatuto da Criança e do Ado- lescente, essencial para identificar desafios e orientar a atuação dos diversos atores do Sistema de Garantia de Direitos e demais cidadãos na perspectiva da garantia plena dos direitos de nossas crianças e adolescentes. A Secretaria de Direitos Humanos, por meio da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adoles- cente, vem investindo nos últimos anos na produção de conhecimento na área de promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente e, com a presente publicação, vê concretizado mais um passo importante na oferta de informações essenciais que fortalecem nossa caminhada para viabilizar a proteção integral de todas as crianças e adolescentes. Boa leitura a todos e todas! Carmen Silveira de Oliveira Secretária Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República 9 Introdução Uma vez, uma mulher me contou que outra mulher contou pra ela, num velório, lá no interior de Minas, uma história assim: uma mulher andava solta pelo mundo, e cada filho que nascia dela, matava, dava um jeito de sumir com a criança. Aí, um dia, ela começou a se sentir mal com esse jeito de se livrar dos filhos. Foi então até a parteira do lugar que lhe deu um conselho: a próxima criança que nascer você não mate. Durante três dias amamente e cuide dos paninhos dela; só aí, no quarto dia, você pode matar. A mulher assim fez e nunca mais pôde matar uma criança. Teve sete filhos, que hoje estão criados, casados e vivem todos felizes ao lado da mãe. Neide Duarte, jornalista A história coletada pela jornalista em suas caminhadas pelos grotões do País em busca de conhecer um pouco do cotidiano do povo brasileiro pode ser interpretada sob diferentes olhares. Um é o do assombro, do espanto, do horror diante da crueldade; outro é o da surpresa, do alívio, do conforto em saber que um conselho – aparentemente simplório – pode transformar a maldade, pode criar afeição onde só parecia haver o solo estéril, o deserto de sentimentos, pode implementar a ética onde só existia a ausência de valores. Do mesmo modo que a parteira da história ofereceu a sugestão simples e tão sábia – “cuide dos paninhos dela” –, há 20 anos os cidadãos e cidadãs que se sentiam mal com o status de incapaz atribuído às crianças e adolescentes no Brasil construíram uma proposição, igualmente simples e sábia: redigiram e promulgaram o ECA. Parecia uma solução simplória: mais um estatuto legal? Um acréscimo ao cipoal da legislação jurídica? Um texto com- plexo que ficaria adormecido nas estantes dos juristas? Muito além da simplicidade, a sabedoria da proposição fez toda a diferença: o ECA atribuiu cidadania à infância e à juventude, garantiu-lhes direitos e criou um sistema para assegurar não só que fossem cumpridos, mas que se tornassem responsabilidade comum ao Estado e à sociedade. Passados esses 20 anos – talvez o tempo necessário e suficiente para corrigir os caminhos que separam o Bem do Mal – pode-se aquilatar o tamanho e a qualidade dessa transformação social. Desse desejo é que se originaram as 2.579 nar- rativas que vêm sendo coletadas desde 2005 pelo concurso nacional Causos do ECA e que constituem a matéria-prima da pesquisa5, em que se baseia esta publicação, cujo objetivo é esboçar um retrato da aplicação do Estatuto e de como essa aplicação transforma as situações reais da vida de crianças e adolescentes. Antigamente, contar um causo era contar uma história que trazia sempre algum ensinamento, alguma questão moral e ética. Causos que faziam pensar: o que era fazer o Bem ou o Mal? Como corrigir o caminho daquele que se arrependia? Causos da vida cotidiana, das pessoas comuns, os quais se desenrolavam e emendavam na vida mesma, mediante a sabedoria e os conselhos que emergiam da própria vivência. Causos como o da parteira que inspirou o espírito de amor materno na mulher carente de sentimentos. Os causos enviados para o concurso são relatos que, ao mesmo tempo em que traçam um cenário assustador da violência latente nas relações sociais, sinalizam para a construção efetiva do caminho para a cidadania que se descortina no Brasil. Um caminho que busca restringir os limites dentro dos quais o Mal, o abuso de poder e a desumanidade se manifestam. E que é pavimentado pela ação direta e contínua dos atores do SGDCA, engajados em ampliar o espaço no qual predo- minem sólidos valores de respeito ao outro. 5 Das 2.579 narrativas recebidas durante as cinco edições do concurso Causos do ECA, foram analisadas 2.421 em virtude de terem sido descartadas aquelas que não obedeciam à proposição temática do concurso e outras que se inscreveram em mais de uma edição. Todos os resultados desta pesquisa, assim como os nomes dos autores dos causos utilizados para ilustrá-los, constam no Relatório “A aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente por meio da análise de narrativas reais: Um retrato do Sistema de Garantia dos Direitos de 2005 a 2009”, de uso exclusivo da SDH/PR e do Ceats e do qual esta publicação constitui a síntese para ampla divulgação. 10 Educação, saúde, carinho, proteção, cuidados, respeito à integridade física, moral e psicológica são mais do que direitos de cidadania de crianças e adolescentes. São condições básicas e mínimas que todo ser humano precisa receber quando chega a este mundo. São condições necessárias para a humanização do homem, mas também para a preservação do pró- prio senso de humanidade e do desenvolvimento deste mundo, que é a nossa morada e a única morada que poderemos deixar aos nossos filhos e aos filhos dos nossos filhos. Para salvaguardar os direitos das crianças e dos adolescentes é preciso que cada cidadão sinta-se responsável por ga- rantí-los porque, muito além de um estatuto legal, a vigência da legislação em um Estado de Direito depende de como e quanto cada pessoa se assume como “proprietário” do conteúdo dela e se responsabiliza para que esse conteúdo seja efetivamente praticado no âmbito da sociedade. O ECA é esse instrumento legal que toda sociedade brasileira tem em mãos para garantir o presente e o futuro das crianças e jovens brasileiros. Como afirmou a filósofa Hannah Arendt (1968) A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele (...) e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos e, tampouco, arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as, em vez disso, com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum (...)6. A análise das narrativas inscritas nas cinco edições do concurso Causos do ECA busca compreender como e quanto o Estatuto, nestes 20 anos de existência, vem contribuindo para assegurar que nossas crianças sejam, efetivamente, amadas e estejam preparadas para assumir o mundo como nossa morada comum. Os conteúdos dessas narrativas foram interpretados e sistematizados com emprego de metodologia científica7, procurando identificar: os tipos de violações dos direitos assegurados pelo ECA que são descritos com mais elevada frequência nos causos; como essas violações podem se relacionar com as características de vulnerabilidade das crianças e adolescentes e de suas famílias; quais os encaminha- mentos que propiciaram as soluções desses causos, em especial quais foram os atores dessas iniciativas; e como se deu o funcionamento da rede de atendimento e do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente. Os autores das narrativas são, em sua maioria (75,4%), pessoas vinculadas, de algum modo, ao SGDCA8, pois estão diretamente envolvidas em profissões ou funções de programas, projetos e serviços ligados a esse Sistema. São, por isso, pessoas que vivenciam diariamente a realidade das violações dos direitos com os protagonistas – crianças e adolescentes, violadores – e com as instituições responsáveis: CMDCA - Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, Conselhos Tutelares, secretarias municipais etc. Os causos foram escritos, em grande parte, por mulheres (66,7%) e não foram enviados das capitais mas, predominan- temente, de outros municípios dos Estados (72%). A maioria dos causos foi proveniente da região Sudeste (55,5%). O segundo maior volume de causos veio da região Nordeste (16,1%) e o terceiro, da região Sul (14,3%). A quantidade de causos das regiões Centro-Oeste e Norte é muito pequena9 , representando, respectivamente, 4,7% e 3,1% do total recebido. Esses números retratam a receptividade à divulgação do concurso, mas não devem ser considerados como indicadores do volume de ocorrência de violações por região. 6 Arendt, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. Ed. Perspectiva, SP, 1968, trad. Mauro Barbosa de Almeida, pags. 247 e 237. 7 A análise das narrativas no âmbito da pesquisa “A aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente por meio da análise de narrativas reais: Um retrato do Sistema de Garantia dos Direitos de 2005 a 2009” obedeceu ao método de análise de conteúdo, indicado para extrair de forma sistemática as informações inseridas em material de natureza qualitativa. O discurso original das narrativas é submetido à análise classificatória que permite a criação de categorias analíticas, passíveis de tratamento estatístico. 8 Segundo o Artigo 1º da Resolução 113 do Conanda - Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente, “O Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente constitui-se na articulação das instâncias públicas governamentais e da sociedade civil na aplicação de instrumentos normativos e no funcionamento dos mecanismos de promoção, defesa e controle para a efetivação dos direitos humanos da criança e do adolescente nos níveis Federal, Estadual, Distrital e Municipal”. 9 As análises apresentadas sobre as variações regionais não incluem as regiões Centro-Oeste e Norte, uma vez que as informações sobre elas não garantem inferências estatistica- mente significantes em virtude do pequeno número de causos recebidos. 11 Esta publicação está dividida em três seções. Na primeira, são apresentados os tipos e as frequências das violações iden- tificadas nos causos, assim como os fatores de vulnerabilidade dos indivíduos cujos direitos foram violados. Na segunda parte, são destacados os atores e órgãos do SGDCA envolvidos nos encaminhamentos que fizeram frente às violações de direitos e as soluções encontradas para dirimir esses desafios. Na parte terceira, destacam-se os dados extraídos das análises dos causos que se caracterizam como relatos de ações bem-sucedidas de promoção dos direitos da criança e do adolescente, as quais contribuem para se compreender o panorama da aplicação do ECA. E, por último, são colocadas as reflexões que os resultados da pesquisa podem estimular nos leitores acerca da garantia dos direitos da criança e do adolescente no Brasil. 14 Em 47,7% dos causos, as crianças e adolescentes provinham de uma estrutura familiar completa com pai e mãe (bioló- gicos ou adotivos) e, em 39,9%, pertenciam a famílias monoparentais13. Em 80,4% das narrativas a criança/adolescente convivia com a família ou havia convivido em algum período da vida, enquanto em 30,3% dos relatos o local de residên- cia referido eram abrigos e casas de acolhimento. Também são bastante frequentes as situações nas quais as crianças e adolescentes viveram um período com outros familiares (28,8%) ou outros responsáveis (18,2%). É interessante o fato de que foram poucos (5,3%) os causos de adolescentes que viveram períodos em unidades de privação de liberdade para cumprimento de medidas socioeducativas, sejam elas de internação ou semiliberdade. Tabela 1 Formas de convivência e locais de residência14 Frequência Percentual Casa com família nuclear ou um dos pais 1026 80,4 Abrigo, casa de acolhimento ou de passagem 387 30,3 Casa com outras pessoas da família 367 28,8 Casa com outros responsáveis 232 18,2 Rua 159 12,5 Clínica 31 2,4 Unidades de internação ou semiliberdade 68 5,3 Não especifi cado 91 7,1 Procurou-se identificar nas narrativas se as crianças e adolescentes descritos apresentavam características de vulnerabi- lidade, as quais poderiam ter agravado, ou mesmo desencadeado, a situação de violação dos direitos. Como se observa na Tabela 2, esses atributos apresentaram incidência significativa, mas não elevada, nas personagens descritas, ressaltando- se 15% de autores de atos infracionais, 13,1% de usuários de drogas e álcool e 5,1% de casos cuja personagem vivia em situações de exploração sexual. Tabela 2 Fatores de vulnerabilidade das crianças e adolescentes Frequência Percentual Dependência de drogas ou álcool 167 13,1 Portador de doença 131 10,3 Defi ciência física 63 4,9 Defi ciência ou doença mental 82 6,4 Exploração sexual 65 5,1 Autoria de ato infracional 191 15,0 Os dados referentes às características e situações de vulnerabilidade das crianças e adolescentes relatados nos causos são mais preocupantes quando se referem às características das famílias, pois 54,7% das narrativas referem-se a um contexto de pobreza ou miséria e em 30,3% das famílias há parentes adictos de álcool ou drogas. 13 Nos demais casos, a estrutura familiar consistia por parentes (4,0%), sem família (2,5%) e não especificado (5,9%). 14 Esta e outras tabelas (tabelas de número 2, 3, 4, 5, 7, 8, 14, 15, 17, 18, 21, 22 e 23) foram construídas a partir de perguntas que permitiam múltiplas respostas. Por isso, a soma dos valores apresentados não resulta em 100%. No entanto, o percentual de cada linha possui um complementar que não foi exibido e com o qual somaria aquele valor. O mesmo vale para parte dos dados apresentados no texto. 15 Sobre os direitos violados Direito à vida e à saúde Os dados indicam que os direitos à vida e à saúde mais frequentemente violados nas narrativas dos causos são os de alimentação – garantia e qualidade da alimentação (34,3%), condições de higiene (25,0%) e garantia (providência) de encaminhamento para atendimento médico ou psicológico por parte dos pais/responsáveis (15,1%). Outros direitos que são violados em menor frequência são: ausência de registro de nascimento e outros documentos (6,0%), ausência de condições estruturais para os cuidados de saúde – qualidade do atendimento, dos serviços e da atenção dada pelos profissionais de saúde (3,4%), atendimento médico incompatível com a legislação (3,1%), vítima de assassinato ou morte devido a alguma violação de direitos (1,9%) e criança não vacinada (0,9%). Esses itens discriminados separadamente na pesquisa quase sempre caminham juntos. Em geral, os causos relatados mostram pais que, quando não dão alimentação adequada aos filhos, normalmente também não são cuidadosos com a higiene e com o encaminhamento e tratamento médico. É o cuidado básico com os filhos que parece não existir na lógica de responsabilidades dessas famílias, seja pela dificuldade de acesso aos serviços, seja porque o convívio com a carência absoluta acaba por eliminar a própria percepção da necessidade. Todas essas atitudes, entretanto, podem ser redimensionadas. Mesmo quando uma família inteira é destruída, ela pode se erguer outra vez com a ajuda de uma intervenção. Temos uma família, em meu município, em que os pais Abraão e Aparecida eram alcoólatras. Não havia nada que fizesse eles pararem de beber. E, com isso, seus quatro filhos Ruan, Renan, Rico e Richard viviam sem a mínima condição de higiene; todos sujos, maltrapilhos, sem comida, porque a mãe nem levantava o braço de tão embriagada, que dirá fazer comida. Mas não era por falta de ajuda com cesta básica, assistência social, não, era por falta de vontade mesmo; aliás, o vício impedia. O pai faltava ao trabalho quase todos os dias, e quando ia ficava até meio-dia e voltava pra casa. Não havia solução. Eu, como conselheira, encaminhei para psicólogo, psiquiatra, A.A., e nada de conseguirmos resgatar a família. O filho mais novo, de quase dois anos, começou com um problema de rim, e a mãe não dava os remédios prescritos pela pediatra, vindo a correr risco de vida se não tomasse a medicação. E, por esse motivo, foi to- mada uma medida drástica, mas necessária: o abrigamento das crianças e a internação dos pais numa clínica de desintoxicação e recuperação para alcoólatras. Foi um trabalho difícil, mas valeu a pena, porque hoje nem parecem as mesmas pessoas. Os genitores fizeram o tratamento e, principalmente, tiveram boa vontade: hoje estão recuperados e as crianças felizes por terem voltado ao seu lar. Direito à liberdade O texto do ECA não dissocia liberdade, respeito e dignidade. Essas três categorias de direitos são tratadas no mesmo capítulo II do Estatuto, mas, como as violações desses direitos são muito amplas, difusas e heterogêneas, na pesquisa elas foram separadas. De um lado foram analisadas as violações do direito à liberdade e, de outro lado, as dos direitos ao respeito e à dignidade. No que tange ao direito à liberdade, as violações que figuram nas narrativas dizem respeito ao direito de ir e vir, contem- plando constrangimentos, obstruções, vexações sofridas quando a criança ou adolescente tenta frequentar determinados espaços (5,8%) e ao cárcere privado (5,3%). As demais violações que aparecem com frequência menor incluem: privação de liberdade por aplicação de medidas socioeducativas de maneira irregular ou ilegal (2,4%) e violação ao direito de manifestação da opinião, de expressão e de participação em movimentos ou associações (0,4%). 16 A violação do direito de ir e vir, por exemplo, é comumente vivenciada por crianças e adolescentes pobres e/ou negros, quando tentam frequentar determinados espaços públicos ou comerciais. Mas raramente uma situação desse tipo é denunciada ou reclamada. O trecho do causo a seguir exemplifica uma violação desse tipo: No último final de semana do mês de outubro fui visitar a Escola Dom João Costa e, ao sair depois da visita, estava na parada de ônibus quando fui abordado por três crianças de idades aproximadas de dez anos. Uma delas disse: ‘Tio, me dá dez centavos’. Respondi: ‘só te dou se você for naquela escola e falar para Dona Maria do Carmo, a coordenadora, que você também quer usar os computadores da escola e fazer parte do Projeto, para sair da rua’. Elas concordaram e assim foi feito o acordo. Ao chegarem na escola, a coordenadora as recebeu com todo o carinho e as encaminhou para a sala de Informática. Quando as três chegaram na sala, os outros jovens também residentes do mesmo bairro criaram a maior confusão para que os três não fizessem parte da sala, alegando que ali não era lugar para Cheira-Cola, e as três foram barradas pelos outros parti- cipantes do Projeto. Há causos, por sua vez, que mostram a eficácia do emprego da legislação quando é preciso conscientizar os próprios pais de seus deveres: “Recebemos uma denúncia anônima de que uma mãe saía de casa diariamente e deixava o fi lho de dez anos de idade amarrado com correntes. Após recolhermos a criança, encontramos e notifi camos a mãe para que comparecesse na sede do Conselho Tutelar. Ela compareceu na tarde do mesmo dia. Foi comunicada de que havia cometido um ato infracionário pelos artigos 15, 16, 17 e 18 do ECA. Após fazermos todas as documentações, fizemos o encaminhamento para o Ministério Público e encaminha- mos a mãe para a delegacia para que prestasse esclarecimentos. Hoje, após algum tempo do acontecimento, a criança vive com a mãe em uma casa humilde, porém está frequentando a escola regularmente, participa de um movimento religioso, brinca com os seus colegas e recebe carinho da sua mãe, o que antes não acontecia”. É provável que um dos motivos pelos quais os autores dos causos não fizeram menções mais frequentes às violações desses direitos é a vigência de uma concepção do senso comum que considera que as questões tidas como essenciais para a vida (moradia, saúde, segurança) são mais relevantes e acabam por se sobressair em relação aos direitos que tratam de outros aspectos (éticos, culturais, psicológicos), particularmente quando se trata de populações pobres. Apenas recen- temente essas questões têm sido mais debatidas; no entanto, isso ainda não se traduziu em práticas de garantia desses direitos e não teve maiores consequências na vida daquelas pessoas cujos direitos são violados. Direito ao respeito e à dignidade Nas categorias de respeito e dignidade o que se encontra mais frequentemente são violações cometidas pela própria família: em primeiro lugar a violência psicológica, que aparece em 36,0% dos causos; em segundo lugar a violência física, que emerge em 25,8% das histórias de violação; e, em terceiro, a violência e o abuso sexual (10,7%). Somente depois dessas três formas de violação cometidas pela família é que surgem, em quarto lugar, a violência psicológica cometida por outros adultos (7,3%) e, em quinto, abuso e violência sexual cometidos por pessoas de fora da família (6,7%). 19 Outras violações do direito de convivência familiar e comunitária são: casos de adoções ou guardas irregulares ou ilegais (4,8%); pais que não reconhecem a filiação (3,8%); discriminação por parte dos pais entre filhos naturais e adotados (2,7%); violação dos direitos à convivência familiar/comunitária por parte de órgãos do sistema de Justiça (1,8%); abrigos que ferem o direito à convivência familiar e comunitária (1,8%); privação da visita dos pais ou familiares por aqueles que detêm a guarda (1,5%); e, unidades de internação que ferem o direito à convivência familiar (0,7%). Direito à educação Na pesquisa o significado do direito à educação foi restringido ao direito à escolarização formal. Estão nesta categoria de análise as violações do tipo: dificuldades de acesso à escola pública, de permanência no ambiente escolar e de oferta de ensino gratuito localizado nas proximidades da criança ou adolescente. Algumas dimensões do direito à educação podem ter aparecido em narrativas associadas a outras categorias de direitos, por exemplo, o direito do aluno ser respeitado pelos seus educadores foi classificado na categoria do direito ao respeito. As atividades de educação complementar foram, por sua vez, lidas a partir da chave do direito à cultura. Considerando, entretanto, o direito à escolarização sob sua forma mais direta e estrita, em 18,1% dos causos detectou- se que o acesso da criança à escola foi impedido por motivos diversos15. Foram detectados, também, 7,7% de baixa frequência às aulas; 3,8% de crianças ou adolescentes que estavam fora da escola em virtude de práticas excludentes ou restritivas, por parte da escola ou dos serviços de educação; e uma frequência de mais de 3% de problemas de conflito entre escola e familiares, ou questões referentes à qualidade da escola16. Esses dados indicam que, apesar dos sucessos obtidos pelas políticas de universalização do ensino básico, ainda existem crianças e adolescentes que ficam fora da escola, não apenas porque pertencem a famílias desorganizadas, com pais desatentos, mas também porque ainda persistem problemas estruturais na oferta dos serviços de educação. A responsabilidade pela educação e pelo acompanhamento das crianças não é exclusiva dos familiares. Independente- mente da classe social a que pertencem é na escola que as crianças e os adolescentes têm a melhor oportunidade de constituir e desenvolver sua cidadania e de compreender e respeitar a de todas as pessoas. O Conselho Tutelar desta cidade recebeu a denúncia através da mãe do adolescente de que o próprio pai do menino achava que seu filho não precisava frequentar a escola e não acreditava que a formação escolar pudesse melhorar sua vida . Ele alegava que o seu filho deveria trabalhar na roça, ajudando a aumentar a renda familiar.(...) Ao encaminhar o menino para matricular-se na escola pública, o Conselho garantiu-lhe o direito à educação. Neste causo era o pai que desvalorizava a educação, mas outras vezes é o filho que abandona a escola , sem perceber que ali é o lugar em que as possibilidades de mudança de rumos são reais. Carlinhos foi um menino que cresceu com pais alcoólatras e drogados que costumavam deixá-lo amarrado ao pé da mesa, quando saíam para “noitadas”. Por meio da intervenção do Conselho Tutelar e da Justiça foi entregue aos cuidados da avó. Quando cresceu, cometeu atos infracio- nais e não queria mais frequentar a escola. Carlinhos não guardava muitas expectativas para o futuro, apenas a necessidade de estar com a avó e a na- morada. Como havia desistido de estudar, apesar das constantes investidas de Dona Maria, a nossa primeira preocupação foi encaminhá-lo para a escola. Vencidas as primeiras dificuldades, no início, logo depois ele começou a nos mostrar suas boas notas nas provas. 15 Sob essa categoria estão contempladas desde a decisão pessoal de não frequentar as aulas até negligência e descuido dos pais com respeito à matrícula. 16 Essa categoria contempla, por exemplo, ausência de professores, instalações deterioradas e falta de merenda e de material. 20 O retorno à escola foi apenas o primeiro passo que Carlinhos deu para construir um novo futuro. O passo seguinte foi a conclusão de cursos profissionalizantes que o ajudariam a se inserir no mercado de trabalho. Pensávamos que, quando estivesse em condições de trabalhar e contribuir com as despesas da casa em que moravam, com muita penúria, ele e sua avó, Carlinhos não se envolveria mais em atos ilícitos. E não nos enganamos. Bastou incluir o adolescente no programa e apresentar-lhe as possibilidades de superação de sua condição que Carlinhos logo manifestou os primeiros sinais do seu potencial. A escola pode ser o espaço em que o que chamamos de direitos cidadãos podem ser aprendidos, discutidos e usufruídos. Mais do que um lugar, a escola deveria ser o espaço da cidadania por excelência, o disseminador do Estatuto para formar cidadãos aptos a se responsabilizarem pelo controle social porque foram, eles próprios, objetos da proteção integral oferecida pelo Estado e pela sociedade. Direito à cultura, ao lazer e ao esporte A violação dos direitos de acesso à cultura, ao esporte e ao lazer é citada menos frequentemente nas narrativas enviadas ao concurso Causos do ECA. Dentre estes, a mais elevada frequência se deu na violação do direito ao lazer (proibição ou restrição ao lazer da criança de modo geral), que apareceu em apenas 2,0% das narrativas. As outras frequências foram: violação do direito a ter tempo de lazer, com o impedimento de a criança desfrutar de um tempo livre de obrigações e de tarefas (1,7%); falta de condições estruturais para o lazer (1,3%); falta de condições estruturais para a prática de esportes (0,9%); falta de condições estruturais para o acesso aos bens culturais (0,9%); obstrução ou restrição do usufruto dos bens culturais da sociedade (0,7%); obstrução ou restrição das possibilidades de produção e manifestação cultural e artística (0,4%); além de obstrução ou restrição do acesso aos novos bens de informação (0,3%). Pequenos episódios e proporções observadas nos dados não implicam que tais violações não ocorram com muita frequência. No caso dos direitos à cultura, ao lazer e ao esporte pode ser, até mesmo, que a realidade seja o contrário. Trata- se de situações cotidianas e que, talvez por isso, estejam entre as mais recorrentes. No entanto, isso não é mencionado nos causos porque não fez parte do recorte dos autores no momento de construção das narrativas para o concurso. No senso comum, o acesso à cultura, ao lazer e ao esporte é visto como menos fundamental do que o direito à alimentação e à higiene, principalmente quando se trata de crianças e jovens pobres. Por isso, diversas práticas que restringem esses direitos não são vistas como violações. A perspectiva dos autores pode ser um bom indicador de uma visão preconceituosa acerca dos direitos da criança e do adolescente, quando propostos para diferentes classes sociais. Relatos como o que segue abaixo são indicativos de como esses direitos estão ausentes do cotidiano das crianças de classe baixa e de como essa condição é considerada tão “natural” que sequer é apontada como uma violação. O que se percebe nas narrações dos causos é que os autores sele- cionaram as histórias de pessoas e famílias que vivem no limite da sobrevivência, para as quais as questões mais básicas da vida – alimentação, saúde, segurança, educação – não estão resolvidas, e para as quais esporte, lazer, cultura, arte não passam de miragens inalcançáveis, ou bens aos quais os mais pobres não tem direito de acesso e aspiração. A comunidade onde moram é muito carente, desprovida de programas sociais e políticas públicas efetivas. Não possui nem sequer uma área de lazer, onde possam praticar esportes, gritar, pular, correr, brincar, in- teragir com outras crianças. Principalmente pelo fato de que a comunidade vive sob constante ameaça de disputa entre facções e a invasão da polícia, em confronto com a marginalização e a pauperização imposta à comunidade. Entretanto, embora pareça paradoxal, a maioria dos projetos sociais que têm o objetivo de resgatar para a vida e para a cidadania as crianças e adolescentes que foram vítimas de violações empregam justamente – e com muito êxito – práti- cas de socialização fundamentadas no lazer, no esporte e na arte, associando o lúdico ao pedagógico. 21 Direito à profi ssionalização e à proteção ao trabalho Nessa categoria de violações, as mais frequentes são a exploração do trabalho infantil (que aparece em 11,9% dos causos) e condições inadequadas para o trabalho do adolescente (8,8%). Em terceiro lugar figura o trabalho forçado (4,7%). Em seguida, o trabalho em condições que prejudicam o acesso à escola (3,1%) e a formação para o mercado de trabalho (1,0%). A questão dos direitos de profissionalização e de proteção ao trabalho mostra algumas diferenças regionais que devem ser destacadas. Ocorrências de trabalho infantil aparecem duas vezes mais no Nordeste do que no Sul. O mesmo acontece quanto a condições inadequadas ao trabalho do adolescente. Ocorrências estas que retratam a diversidade no país das condições de vida da infância e adolescência, bem como da internalização dos preceitos do Estatuto. A exploração do trabalho infantil, por exemplo, é relatada em um causo que traz a história de um menino de nove anos de idade que foi “utilizado”, sem saber, como “mão-de-obra” no tráfico de drogas: Luig falou que brincava mais com uma arapuca durante o dia... O ‘tio’ deu essa arapuca pra ele, dava R$ 15,00 todos os dias, ele dava R$ 10,00 pra mãe e ficava com R$ 5,00.... Questionado sobre quantos pássaros Luig pegava por dia, ele respondeu: ‘Tia, eu não pego pássaros, fico na beira da estrada com uns pacotinhos dentro da arapuca e vão umas pessoas lá e eu entrego e eles dão R$ 5,00, que eu entrego pro tio que passa de hora em hora na beira da estrada e leva refrigerante pra mim.... Outro causo relata a vida de um adolescente de 12 anos de idade, que, após a morte da avó, se viu obrigado a começar a trabalhar para garantir o seu próprio sustento. Suas atividades, árduas e inadequadas para um jovem dessa faixa etária, impossibilitaram a continuidade de sua escolarização: Alexandre ficou com seu tio e logo começou a trabalhar para ajudar no sustento em casa. Iniciou-se no tra- balho de forma precoce e inapropriada (...) trabalhava duro, carregando caixas de legumes, recebendo pouco mais de meio salário, além da ‘feirinha’ que levava nas costas todos os dias para casa (...) como não era um aluno exemplar e pela dificuldade do trabalho, Alexandre abandonou os estudos. Sua vida passou a ser a de um trabalhador adulto. 24 Os causos que se encaixam nesse primeiro perfil descrevem tanto situações em que os pais vivem uma condição de restrições e impossibilidades para o cumprimento de suas responsabilidades (por falta de recursos, por estarem doentes ou por estarem cumprindo pena em regime prisional), como aquelas em que há uma omissão deliberada no desempenho de funções, o que melhor caracteriza a situação de abandono e negligência. Ou seja, na primeira situação, a responsabi- lidade pela situação não pode ser atribuída exclusivamente aos pais, porque eles estão objetivamente impossibilitados; na segunda, é possível atribuir a responsabilidade a eles. Na literatura e também na prática jurídica, a atribuição de responsabilidade em casos de negligência é uma tarefa difícil devido à complexidade inerente a esses casos, em que fatores de ordem pessoal estão imbricados com fatores socioeconômicos e culturais. O segundo perfil de causos, por sua vez, refere-se às histórias que descrevem violências psicológicas ou físicas cometidas contra a criança e o adolescente pela própria família. Diferentemente do primeiro perfil, são histórias em que a falta de condições materiais de existência não é a principal questão, mas sim a existência de pais, mães, padrastos ou madrastas que praticam violência contra os filhos/enteados. Nessa categoria também está presente a ocorrência de ambiente fami- liar violento, mostrando que, quando há violência entre membros da família, existe uma elevada probabilidade de que a criança também seja vítima. É nesse perfil de causos, inclusive, que a chance de ocorrer abuso sexual é maior, compondo o fenômeno perverso e múltiplo da violência doméstica. O terceiro perfil de tipos de violações descritas nos causos trata da associação dos direitos referidos ao trabalho–escola. Diz da exploração do trabalho infantil, das condições de trabalho escravo, das condições inadequadas para o trabalho do adolescente e da incompatibilidade entre a frequência escolar e a dedicação ao trabalho. Por isso, nesse perfil foram associados os casos de crianças e adolescentes que abandonaram a escola. O quarto tipo conjuga os casos de crianças que estão fora da escola por diversos motivos, abandono, ausência de documentos e situações de adoção ou guarda irregulares ou ilegais. Esse perfil está também relacionado à negligência, embora manifestada de formas e com consequências diferentes das descritas no primeiro perfil. Exemplos desse tipo de perfil são as histórias de crianças abandonadas pelos pais, sem que tivessem a certidão de nascimento, e que são criadas sem vínculos de responsabilidade, proteção e afeição. O quinto perfil traz juntas as violações que se expressam pelas situações de cárcere privado e pelas “adoções” que não obedecem a preceitos legais. Configuram, desse modo, uma situação de irregularidade jurídica que pode afetar a própria identidade da criança, do jovem e, mais tarde, do adulto. O sexto perfil foi construído com histórias que retratam violências cometidas por pares, geralmente ocorridas nas escolas, onde as crianças e os adolescentes que têm seus direitos violados sentem barreiras e constrangimentos para frequentar esses espaços e acabam configurando os quadros de evasão escolar ou baixa frequência às aulas. Esse perfil é indicativo da necessidade de empregar o ECA com concepções mais abrangentes, pois esse tipo de violência cometida por pares está presente tanto nas escolas públicas como nas privadas, atingindo crianças e adolescentes das mais variadas classes sociais, problematizando a função e responsabilidade dos adultos presentes nestas instituições e tornando-se foco da preocupação de autoridades e especialistas em educação17. O sétimo perfil trata exclusivamente de causos de violência psicológica cometida por pessoas que não são familiares nem pares das crianças ou adolescentes cujos direitos foram violados. O último perfil dos causos refere-se aos abusos e violências sexuais cometidas por não familiares dos indivíduos cujos direitos foram violados, nos quais se observa uma possibilidade de correlação com as situações de abandono. 17 Pesquisa “Bullying Escolar no Brasil”. http://www.promenino.org.br/Portals/0/pesquisabullying.pdf 25 Embora a maioria das violações dos direitos das crianças e dos adolescentes não apresente diferença significativa em sua ocorrência conforme o sexo da vítima, torna-se essencial destacar, na Tabela 7, a notável discrepância na ocorrência do abuso sexual, corroborando dados de pesquisas na temática18,19. Essa violação é muito mais elevada no caso das meninas – 19,1% quando cometida por familiares e 11,1% quando cometida por não familiares –, confrontado, respectivamente, com 3% e 3,5% quando as vítimas são meninos Tabela 7 As vinte violações mais frequentes nos causos distribuídas por sexo Tipo de violação Masc Fem 1 Violência psicológica cometida por familiares/responsáveis 34,8 35,9 2 Violação do direito de alimentação 33,1 27,9 3 Abandono 35,6 32,4 4 Violência física cometida por familiares/responsáveis 26,3 24,4 5 Violação do direito de higiene 22,7 20,2 6 Ambiente familiar violento 16,9 18,2 7 Indivíduo fora da escola por motivos diversos 21,0 13,3 8 Pais/responsáveis que não providenciam encaminhamento para atendimento médico ou psicológico 10,8 15,3 9 Trabalho infantil 13,4 10,9 10 Violência ou abuso sexual cometido por familiares/responsáveis 3,0 19,1 11 Condições inadequadas para o trabalho do adolescente 9,5 8,9 12 Baixa Frequência às aulas 8,0 8,2 13 Violência psicológica cometida por não familiares/responsáveis 8,4 7,8 14 Violência ou abuso sexual cometido por não familiares/responsáveis 3,5 11,1 15 Violência cometida por pares 8,4 6,4 16 Ausência de registro de nascimento ou outros documentos 6,5 4,7 17 Impedimentos ou constrangimentos para frequentar espaços e localidades 6,9 5,8 18 Cárcere privado 4,8 5,5 19 Adoção ou guarda irregular ou ilegal 4,5 7,1 20 Trabalho escravo ou forçado 4,5 5,1 Em outra leitura, os meninos são os personagens dos causos mais frequentemente vitimados quando as violações refe- rem-se aos direitos à alimentação (33,1%) e ao acesso à escola (21%). Tabela 8 Tipos agrupados de violações mais frequentes por sexo Masculino Feminino Respeito e dignidade 63,1 70,5 Convivência familiar e comunitária 50,3 50,6 Vida e saúde 47,1 42,1 Educação 35,2 28,4 Profi ssionalização e proteção ao trabalho 22,0 17,5 Liberdade 14,9 12,0 Cultura, lazer e esporte 5,0 3,5 18 Bordin, Isabel, Paula, Cristiane de, Nascimento, Rosimeire e Duarte Cristiane. Punição física grave e problemas de saúde mental em população de crianças e adolescentes economicamente desfavorecidas. Revista Brasileira de Psiquiatria. 28(4); p.290-296.2006. 19 Costa, Maria Conceição Oliveira et al. O perfil da violência contra crianças e adolescentes, segundo registros de Conselhos Tutelares: vítimas, agressores e manifestações de violência. Revista Ciência & Saúde Coletiva, 12(5): 1129-1141, 2007. 26 Os dados da Tabela 8 mostram diferenças relevantes entre as crianças/adolescentes do sexo masculino e feminino que são personagens dos Causos do ECA. As violações aos direitos ao respeito e à dignidade ocorrem com frequência mais elevada entre as meninas do que entre os meninos (70,5% contra 63,1%). Como foi visto na Tabela 7, parte desse fato se explica pela maior incidência de abusos sexuais contra crianças e adolescentes do sexo feminino. Entre as crianças e adolescentes do sexo masculino são mais frequentes as violações do direito à vida e à saúde, à educação e à profissionalização. Os cruzamentos de dados apontam que problemas, carências e dificuldades familiares estão associados à vulnerabilidade da criança e do adolescente e podem aumentar a probabilidade de ocorrência de violações de direitos. É importante res- saltar que não é possível afirmar que haja uma relação de causalidade entre essas variáveis, mas apenas uma correlação estatística, que indica que os fatores de vulnerabilidade das crianças estão associados aos fatores de vulnerabilidade de suas famílias. Os dados apresentados nas Tabelas 9, 10 e 11 mostram que parentes usuários de álcool ou drogas, presença de pesso- as envolvidas com criminalidade e existência de parentes que estão cumprindo pena são características associadas a crianças ou adolescentes dependentes do uso de álcool ou drogas. No caso das famílias em que são identificados esses indicadores de vulnerabilidade 17,3%, 26,2% e 23,8% das crianças/adolescentes fazem uso do álcool. Já entre aquelas famílias em que não estão presentes, os percentuais encontrados são significativamente menores - 11,2%, 12,4% e 12,4%, respectivamente. Tabela 9 Cruzamentos dos fatores de vulnerabilidade dos familiares (uso de drogas/álcool) e da criança/adolescente (uso de drogas/álcool) Característica da família: Presença de pessoas usuárias de drogas/álcool Característica do indivíduo: Usuário de drogas/álcool Total Sim Não Sim % 17,3 82,7 100,0 Freq. 67 320 387 Não % 11,2 88,8 100,0 Freq. 100 789 889 Total % 13,1 86,9 100,0 Freq. 167 1109 1276 Tabela 10 Cruzamentos dos fatores de vulnerabilidade dos familiares (criminalidade) e da criança/adolescente (usuário de drogas/álcool) Característica da família: Presença de pessoas envolvidas com criminalidade Característica do indivíduo: usuário de drogas/álcool Total Sim Não Sim % 26,2 73,8 100,0 Freq. 17 48 65 Não % 12,4 87,6 100,0 Freq. 150 1.061 1.211 Total % 13,1 86,9 100,0 Freq. 167 1.109 1.276 29 Tabela 15 Fatores de vulnerabilidade das famílias e tipos de violação Fatores de vulnerabilidade das famílias Vida e saúde Liberdade Respeito e dignidade Convivência familiar e comunitária Educação Cultura, esporte e lazer Profi ssionali- zação e prot. ao trabalho Dependência de drogas ou álcool 59,9 8,0 69,8 70,5 30,2 3,6 18,6 Portador de doença 62,0 9,8 59,8 66,3 33,7 4,3 25,0 Defi ciência física 65,0 10,0 70,0 45,0 35,0 0,0 20,0 Defi ciência ou doença mental 67,5 16,9 72,7 58,4 37,7 5,2 18,2 Exploração sexual, prostituição 52,7 7,3 60,0 76,4 14,5 1,8 14,5 Autoria de ato infracional ou envolvimento com criminalidade 53,8 15,4 72,3 66,2 32,3 3,1 24,6 Parentes presos 46,3 11,3 68,8 71,3 31,3 2,5 20,0 Pobreza 62,9 11,5 59,9 54,2 36,4 5,0 25,4 Para a média dos causos de violação 47,6 13,0 64,3 51,6 31,8 5,0 19,4 A Tabela 15 também mostra que o direito à liberdade da criança e do adolescente é violado com mais elevada frequência em famílias nas quais existem pessoas portadoras de deficiências físicas ou mentais e nas quais há parentes envolvidos com criminalidade. O direito à profissionalização e à proteção ao trabalho é mais frequentemente violado em famílias com portadores de doença, pessoas envolvidas com criminalidade e em situação de pobreza. O que se pode concluir a partir destes dados é que há uma correlação entre um ambiente de vulnerabilidade da dinâmica familiar e um contexto propício à violação de direitos da criança e do adolescente. Tais relações podem ser exemplificadas com alguns causos. Um deles é o relato de uma jovem pobre, com sete irmãos, cujo pai tinha paralisia motora e uma das irmãs paralisia cerebral. Em razão dessa situação, a mãe tinha que trabalhar fora para garantir o sustento da família e a menina, desde os sete anos de idade, ficou responsável pelas tarefas domésticas e se viu impossibilitada de frequentar a escola que, além de tudo, era distante da sua casa: Eu não podia estudar, devido às condições financeiras, pois morávamos na roça, no interior; também não poderia deixar minha irmã sozinha e isso me deixava revoltada, pois não conseguia aceitar aquela situação que eu e minha família estávamos passando. Ou o causo que trata de uma família na qual o pai havia assassinado a mãe por ciúmes e, em decorrência deste fato, estava preso. As crianças (...) estavam sob os cuidados dos tios maternos, casados e com dois filhos (...) Acontece que as meninas viviam trancadas dentro de casa depois que chegavam da escola, sendo obrigadas a fazer serviços domésticos pesados, como lavar roupas, calçados etc.. Causa espanto que essas crianças e adolescentes que enfrentam situações tão dramáticas de abandono, violência e carência consigam sobreviver e chegar a se reconhecer como cidadãos. Muitos dos personagens dos Causos do ECA, à medida que percebem outras possibilidades de viver a vida, conseguem se empenhar com coragem e confiança na busca de um novo destino. Nessa trajetória tomam consciência dos direitos de cidadania e das possibilidades de exercerem o protagonismo previsto pela legislação. Muitos dos pais e familiares dos personagens dos causos podem ter vivido histórias semelhantes de violações. A diferença é que o ECA não existia para explicitar e assegurar esses direitos, ou eles simplesmente desconheciam sua existência e, por isso, não se mobilizavam por garantir sua aplicação. Assumindo outra postura, muitos desses jovens vitimados pelas violações descritas nos causos se comprometem em construir uma nova vida. Mesmo que os primeiros passos sejam dados no escuro, que os caminhos sejam repletos de idas e vindas, plenos de recaídas e falsos atalhos, ainda assim, encon- tram na aplicação do ECA, no funcionamento do SGDCA, na rede de proteção da comunidade local, o apoio fundamental para essa reconstrução. 30 31 Sobre o SGDCA Dos órgãos definidos pelo ECA como integrantes do SGDCA - Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adoles- cente, o mais frequentemente citado nos relatos de violação de direitos (1.276 textos) é o Conselho Tutelar, que figura em 65,5% das histórias. Em segundo lugar, figuram os órgãos ligados ao sistema de Justiça21, que aparecem em 41,1% das ve- zes. Em terceiro figuram as escolas, centros de educação continuada e a Secretaria de Educação, com uma frequência de 38,6%. A presença desses organismos é seguida pelas referências aos abrigos e casas de passagem (29,4%), dos serviços de saúde22 (25,3%), das polícias e Secretarias de Segurança Pública (20,1%), das ONGs e projetos sociais (19,9%), e dos Cras - Centros de Referência em Assistência Social e do Creas - Centro de Referência Especializado em Assistência Social (14,3%). Outros serviços e programas ligados ao SGDCA são referidos em menos de 10% dos causos. Os programas de execução de medidas socioeducativas, por exemplo, aparecem somente em 7,4% das histórias e o CMDCA - Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e o Conselho de Saúde, em apenas 2,4%. Gráfi co 1 Frequência de menções a cada ator e órgão do SGDCA23 Órgãos públicos Programa de execução de medidas socioeducativas Clínicas, comunidades, hosp. psiquiátrico Abrigos, casas de acolhimento ou de passagem Polícia ou Secretaria de Segurança Pública Sistema de Justiça ONGs ou projetos sociais Unidades de atendimento à saúde Escolas e Secretaria de Educação Cras/Creas Conselho ou Secretaria de Saúde CMDCA Conselho Tutelar 7,5% 7,4% 5,2% 29,4% 20,1% 19,9% 25,3% 14,3% 2,4% 2,4% 65,5% 41,1% 38,6% O organismo mais frequentemente apontado como não existente na localidade em que ocorreu a violação é o abrigo (3,2%). A reclamação pelo não atendimento incide mais sobre os hospitais e serviços de saúde (mas a frequência de incidência é baixa, apenas 0,9%). A falta de recursos materiais é um problema que incide mais sobre os órgãos públicos (7,3%) e área da saúde (5,6%). É nesta área, ainda, que a falta de recursos humanos foi referida com mais elevada fre- quência (5,0%) nos causos em que aparece. Atendimento demorado é uma reclamação que incide principalmente sobre a atuação dos órgãos públicos (9,4%). Mas aparece também, embora em escala reduzida, relacionado às escolas (3,3%), ao sistema de Justiça (2,9%) e ao Cras/Creas (2,7%). No que se refere a conflitos e problemas com outros atores do SGDCA, também são os órgãos públicos os mais citados (28,1% dos causos em que aparecem). Em segundo lugar figuram os serviços de atendimento à saúde (6,2%) e, em terceiro, as unidades de internação e os programas de execução de medidas socioeducativas (5,3%). 21 Foram considerados como integrantes do sistema de Justiça as Varas Judiciais, Procuradorias, Defensorias e Ministério Público. 22 Foram considerados como serviços de Saúde os postos de saúde, hospitais, pronto-socorros, UBSs - Unidades Básicas de Saúde e PSF -Programa de Saúde da Família. 23 Este e os demais gráficos constantes nesta publicação foram construídos a partir de perguntas que permitiam respostas múltiplas. Por isso, a soma dos valores apresentados não resulta em 100%. O mesmo vale para alguns dados apresentados no texto. 34 O sistema de Justiça também é referido nas narrativas como um dos componentes dessa rede (77,3%), que tanto en- caminha crianças e adolescentes para outros órgãos como recebe encaminhamentos. O eixo da defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes ao qual esse sistema pertence caracteriza-se pela garantia do acesso à justiça, ou seja, pelos recursos às instâncias e mecanismos jurídicos de proteção legal dos direitos humanos gerais, e dos especiais da infância e da adolescência, para assegurar a sua impositividade e sua exigibilidade. Encaminhar um interno de medida socioeducativa para avaliação psicossocial e, em seguida, contatar a Vara da Infância e Juventude do local de origem do adolescente para que este cumpra sua medida mais próximo de sua família são exemplos de encaminhamentos realizados pelos membros desse sistema citados nos causos. Na pesquisa também se procurou identificar o desempenho do Conselho Tutelar, órgão que tem a função de atendimento e encaminhamento imediato de crianças e adolescentes em situações críticas, principalmente em dois aspectos que são frequentes em sua atuação cotidiana. O primeiro diz respeito à questão da priorização dos laços familiares: muitas medidas e formas de solução dos problemas de violação implicam decisões que podem separar a família das crianças ou adolescentes cujos direitos estão sendo violados. São causos, por exemplo, que retratam situações em que se torna ne- cessário o abrigamento, a tutela, a guarda etc. No entanto, em algumas situações existem alternativas que não implicam na retirada do poder familiar ou a obstrução da convivência com parentes. Se o Conselho Tutelar age visando garantir a manutenção dos vínculos familiares, dizemos que ele priorizou esses laços27. Observou-se que em apenas 31 dos causos que focam o atendimento do Conselho Tutelar, correspondendo ao índice de 3,7%, sua atuação deixou de priorizar os laços familiares, indicando que o abrigamento institucionalizado não é considerado, automaticamente, a melhor solução para salvaguardar as crianças e adolescentes cujos direitos são violados. O segundo aspecto do atendimento do Conselho Tutelar que se enfocou na pesquisa diz respeito ao monitoramento dos casos de violação atendidos. Identificou-se que, em mais de 86% das narrativas analisadas (720 causos), há referências explícitas de que o Conselho Tutelar envolvido acompanhou o enfrentamento da violação de direitos descrita até que houvesse uma solução efetiva. Este indicativo do bom desempenho deste integrante do SGDCA, embora não possa ser generalizado em virtude das características da amostra, sinaliza para a eficácia da legislação e da arquitetura institucio- nal estruturada para fazê-lo funcionar com efetividade. 27 Duas observações são importantes aqui. Em primeiro lugar, o abrigamento e a guarda não implicam na retirada do poder familiar (anteriormente chamado de “pátrio poder”) – isso só ocorre excepcionalmente em casos muito graves. Em segundo, nem sempre a manutenção da criança ou adolescente na família é a melhor resolução de um caso particular. 35 Os atores e órgãos do SGDCA e os tipos de violação Assim como se procedeu com as violações de direitos, procurou-se identificar padrões de associação dos organismos do SGDCA que são descritos nos causos pesquisados28. De acordo com essa classificação, foi possível construir sete perfis, conforme apresenta a Tabela 16. O perfil 1 é composto por causos que envolvem a polícia e unidades e programas de execução de medidas socioeduca- tivas. O segundo perfil mostra uma associação entre o trabalho do sistema de Justiça e os abrigos e casas de passagem. No terceiro tipo, observamos a presença dos Cras/Creas e de unidades e serviços de atendimento à saúde. O quarto padrão de associações revela uma correlação entre a atuação de órgãos públicos e os Conselhos e Secretarias de Saúde. O quinto perfil traz sozinho o CMDCA. O sexto tipo trata de histórias que dizem, principalmente, respeito à escola como órgão do Sistema de Garantia, e o sétimo se refere aos causos em que as ONGs e projetos sociais figuram como principais promotores dos direitos. Tabela 16 Padrões de associação entre atores e órgãos do SGDCA nos causos Atores e órgãos do SGDCA Perfi s de Associação 1 2 3 4 5 6 7 Polícia/Secretarias de Segurança Pública • Unidades de medidas socioeducativas • Sistema de Justiça • Abrigos, casas de acolhimento ou de passagem • Cras/Creas • Postos de saúde/hospitais/PSF • Conselho ou Secretaria de Saúde • Órgãos públicos • CMDCA • Escola/creche/Secretaria de Educação • ONGs/Projetos sociais • 28 O Conselho Tutelar não foi considerado para essa análise, posto que está presente na grande maioria dos causos, transpassando os diversos padrões e perfis de associação. 36 A próxima tabela, por sua vez, traz o cruzamento dos atores do SGDCA e os tipos de violações de direitos infringidas às crianças e adolescentes. Tabela 17 Cruzamento entre atores e órgãos do SGDCA e tipos de violação Atores e órgãos do SGDCA Vida e saúde Liberdade Respeito e dignidade Convivência familiar e comunitária Educação Cultura, esporte e lazer Profi ssionalização e prot. ao trabalho Conselho Tutelar 73,4 66,3 68,7 72,5 65,3 50,0 54,0 CMDCA 2,8 4,2 2,3 2,9 3,0 1,6 2,8 Conselho ou Secretaria de Saúde 3,5 1,8 1,6 2,3 2,7 1,6 2,0 Cras/Creas 15,8 16,3 14,9 16,0 12,8 7,8 12,1 Escolas, centros de educação continuada e Secretaria de Educação 34,9 48,8 40,2 35,1 63,1 42,2 40,7 Unidades de atendimento à saúde 35,7 24,7 25,8 24,5 17,7 26,6 12,1 ONGs ou projetos sociais 20,1 13,9 18,9 17,2 22,9 32,8 29,0 Sistema de Justiça 44,4 47,6 44,6 46,2 35,7 31,3 33,1 Polícia ou Secretarias de Segurança Pública 17,8 33,7 25,8 20,2 18,5 18,8 21,4 Abrigos, casas de acolhimento ou de passagem 34,5 21,1 33,0 40,4 23,4 17,2 29,8 Clínicas, comunidades terapêu- ticas, hospital psiquiátrico 5,3 5,4 6,0 5,2 4,9 1,6 4,4 Unidades de internação e programas de execução de medidas socioeducativas 5,4 16,3 8,5 7,1 11,1 12,5 10,1 Órgãos públicos 10,2 7,2 5,2 5,3 9,1 9,4 10,9 Como se pode perceber, o Conselho Tutelar se destaca na atuação contra todos os tipos de violação. Isso ocorre devido à proximidade que mantém com a população, em virtude de sua própria função, da natureza de seus serviços e de sua responsabilidade por atendimentos imediatos e encaminhamentos, o que o torna mais visível e conhecido do público que necessita de atendimento. Há ainda, entretanto, o fato de que vários dos autores dos causos estão ligados diretamente ao SGDCA – e boa parte deles são conselheiros tutelares que narram situações vividas em seus contextos de atuação, o que indica qual foi o público mais diretamente atingido e mobilizado pela divulgação do concurso do portal Pró-Menino, bem como a importância que atribuem à necessidade de disseminação do poder transformador do ECA. Na maioria dos tipos de violação, o sistema de Justiça e a escola figuram em segundo e terceiro lugares. Nos causos de violação do direito à vida, as unidades de atendimento à saúde são referidas de forma mais frequente (35,7%). A polícia figura com maior frequência nos causos de infração do direito à liberdade (33,7%). Abrigos e casas de passagem são mais frequentes em causos de violação à vida e à saúde (34,5%), ao respeito e à dignidade (33,0%) e à convivência familiar e comunitária (40,4%). ONGs e projetos sociais figuram, principalmente, quando a questão é educação (22,9%), cultura, esporte e lazer (32,8%), e profissionalização e proteção ao trabalho (29,0%). Como os órgãos mais procurados pelos personagens dos causos são, notadamente, aqueles encarregados de receber denúncias sobre violações de direitos – Polícia, sistema de Justiça, Conselho Tutelar –, os dados da pesquisa indicam a necessidade de que a população tenha melhores informações sobre as atribuições dos diversos componentes do SGDCA para saber recorrer às instâncias adequadas. 39 Esses dados podem ser bem exemplificados pela menção a um causo em que todas essas variáveis estiveram presentes. Trata-se de um relato sobre a organização e mobilização de uma comunidade que, preocupada com a defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, criou uma associação de moradores: Nosso objetivo era juntar forças para conseguirmos garantir os direitos daquelas crianças (...) Conseguimos também, através de uma reunião com as assistentes sociais da prefeitura, incluir os dois filhos no Peti – Pro- grama de Erradicação do Trabalho Infantil. Conquistamos ainda um acompanhamento psicológico para a família. Além disso, conseguimos incluir outras famílias da comunidade em programas da prefeitura. A organização das crianças e adolescentes foi legitimada por toda a comunidade, estimulando os adultos a criar um grupo de discussões acerca das dificuldades enfrentadas. Unimos forças na perspectiva de criar meios que garantissem os direitos às políticas básicas, como: moradia, saúde, educação, cultura e geração de renda. Realizávamos reuniões semanais, uma com as crianças e adolescentes e outra com os adultos. Hoje a comunidade tem uma associação de moradores, um trabalho cultural voltado para crianças e ado- lescente, uma conquista de muitas lutas. Aprenderam a elaborar projetos e conseguiram a aprovação da Secretaria de Educação para a construção de uma escola municipal. Lá, eu pude ver e conhecer a realidade. Lá, eu pude, junto com a comunidade, fazer as intervenções sociais a partir do ECA. 40 41 Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente Diferentemente dos causos cujas análises foram apresentadas nas seções anteriores, que detalham situações de violação de direitos, os dados apresentados nesta seção se referem a relatos de ações bem-sucedidas de promoção dos direitos da criança e do adolescente. São dois tipos de relatos: o primeiro engloba iniciativas, projetos e ações que tinham como ob- jetivo a melhoria das condições de vida de crianças e adolescentes, classificado como causos de “divulgação”. O segundo trata de trajetórias pessoais que, de alguma maneira, foram transformadas por uma experiência de garantia de direitos, categorizado como “histórias de vida”30. Na análise dos 510 causos de divulgação, chamou a atenção o fato de que alguns dos temas mais frequentemente relatados, como cultura, esporte, lazer e inclusão social são justamente os que foram pouco recorrentes nos causos de violação. A análise das violações de direitos, apresentadas na primeira seção desta publicação , apontou que nem sempre há uma consciência da importância desses direitos e que, por isso, frequentemente não são apontados pelos autores co- mo passíveis de violações. Isso se deve ao fato de que alguns direitos, como aqueles relacionados à cultura, são chamados direitos de segunda geração, para os quais só se voltou a atenção mais recentemente. E o processo de conscientização sobre a importância desses temas se realiza, em boa medida, graças ao trabalho de atores e órgãos de promoção e defesa de direitos. A maioria das divulgações (70%) foca os trabalhos promovidos por organizações e um quinto destas refere-se a ações desenvolvidas individualmente. A categoria “outros coletivos” (10%) agrupa uma variedade de possibilidades de coletivos de atores, tais como uma comunidade, a vizinhança ou mesmo um grupo de amigos que se uniu num determinado momento tendo em vista algum propósito, mas que não se constitui como organização formal. A Tabela 19 traz uma descrição mais detalhada das informações apresentadas, expandindo a categoria dos atores organizacionais. Tabela 19 Tipos de atores da atividade divulgada31 Frequência Percentual Individual 104 20,4 Organizacional Escola 108 21,2 Conselho Tutelar 48 9,4 Outros conselhos 8 1,6 Abrigos, casas de acolhimento ou de passagem 14 2,7 Organismos relacionados a medidas socioeducativas31 33 6,5 ONG/projetos sociais 144 28,2 Outros coletivos 51 10,0 Total 510 100,0 30 Nesta publicação não são apresentados os dados referentes a 40 causos que apresentavam elogios e críticas ao ECA, aos atores e órgãos do SGDCA, pois, por se tratar de um grupo residual, não proporcionou interpretações substantivas em termos estatísticos. 31 Unidades de internação e também instituições relacionadas à execução das medidas socioeducativas. 44 Se de um lado há essa parceria para o desenvolvimento da ação, indicando a construção de uma rede de proteção social, de outro, em quase metade dos causos (49,6%), a iniciativa divulgada tem origem em algum problema ou insuficiência dos órgãos do SGDCA. Ou seja, uma parte das ações empreendidas tem um caráter corretivo, uma vez que apenas quando problemas foram encontrados inicia-se uma atividade que acaba por englobar outros atores do SGDCA. Nos 595 causos classificados na pesquisa como “história de vida”, o personagem principal é geralmente caracterizado como alguém que vive alguma condição de vulnerabilidade, e não há descrição pontual de um direito que tenha sido vio- lado ou não contemplado. Esse personagem passa por alguma situação difícil em que toma conhecimento de seus direitos ou se vê beneficiado por algum serviço, sendo o foco do texto a narração de tal experiência e seu poder transformador. Os personagens das histórias, em um percentual significativo dos causos, são autores de ato infracional (31,6%) ou ex-usuários de drogas ou álcool (22,4%). Ou seja, por viverem situações consideradas críticas demonstram de forma evidente a ação transformadora em suas vidas das intervenções advindas do emprego do ECA. Gráfi co 7 Fatores de vulnerabilidade dos personagens Autoria de Ato Infracional Dependência de drogas ou álcool Portador de doença Gravidez na adolescência Exploração Sexual 2,2% 3,7% 4,5% 5,9% 7,9% 22,4% 31,6% Com relação à caracterização da vulnerabilidade da família ou dos cuidadores do protagonista, verifica-se que a ca- racterística predominante foi a de pobreza/dificuldades econômicas (46,6%), enquanto 10,8% deles mencionaram a existência de algum parente usuário de drogas ou álcool e 4% relatou a presença de pessoas doentes ou portadores de deficiência na família. Na maioria dessas histórias (35,1% dos causos dessa categoria) os direitos dos protagonistas foram assegurados pela própria família e através de ONGs/projetos sociais (28,7%). Figuram também, com um pouco menos de destaque, as escolas (23,9%), as unidades de medidas socioeducativas34 (18,6%) e o Conselho Tutelar (17,5%) como instâncias que propiciaram essa vigência do Estatuto. É interessante notar que a família aparece nos causos de violação de direitos como o local onde essas experiências são vividas pelas crianças e adolescentes que protagonizam a história. No entanto, nos causos de história de vida, a família é o principal veículo da promoção de direitos. Sobre as histórias desse segundo tipo, é possível citar o exemplo de um causo de uma mãe, que, “com a cara e com a coragem”, agiu para garantir os direitos à vida, à saúde e à educação de seu filho que sofria de uma doença que levava à gradativa e contínua atrofia muscular. Ela conseguiu, dentre outras coisas, que professores lecionassem em sua casa, assegurando seu acesso à educação. A garantia de direitos através de ONGs/projetos sociais pode ser ilustrada, por sua vez, pelo relato que apresenta um projeto social como local que garante os direitos de um adolescente após este ter sido expulso da escola por agredir uma professora. Já a garantia do acesso à escola pode ser ilustrada a partir do causo que narra que a instituição na qual estudava um adolescente transformou sua vida, fazendo com que aquele “menino desinteressado se transformasse em um mobilizador de jovens, um líder”. A história de Jorge ilustra como unidades de medidas socioeducativas podem atuar como agentes de transformação. Ao ser encaminhado para uma ONG para o cumprimento de medida socioeducativa de Liberdade Assistida e Prestação de Serviço à comunidade, ele passou a frequentar um curso de música e seu comporta- mento apresentou mudanças positivas: 34 Compreendendo aqui somente as unidades de internação e de semiliberdade, ou seja, exclusive as ONGS e programas de execução de medidas socioeducativas de outros tipos. 45 “O professor de música foi um ‘anjo’ que caiu dos céus, já que despertou em cada um dos meninos potenciali- dades adormecidas, desconhecidas e desacreditadas. Jorge se identificou de tal maneira com o professor, que se tornou seu auxiliar. Juntos, escolhem o repertório, pressionam quanto à compra de instrumentos. Jorge até chegou a marcar e dirigir uma reunião com o presidente da ONG, para apresentar o grupo e solicitar seu apoio. Hoje, através de sua voz talentosa, Jorge canta músicas compostas pelo grupo, onde falam de suas histórias de vida, da rua e do abandono (...). Hoje, nosso trabalho com Jorge gira em torno de sua emancipação. Aquele menino mau, pode agora viver e expressar sua sensibilidade, seus medos e questionamentos. Por ser uma pessoa extremamente articulada e conhecida, foi encaminhado para um albergue, onde conheceu pessoas maravilhosas que vislumbraram seus talentos e o encaminharam para seu primeiro emprego. Hoje, Jorge é agente de saúde de rua no centro da cidade, irá auxiliar pessoas com histórias parecidas com a dele”. Por fim, temos o relato de como a vida de uma adolescente foi alterada após esta ter fugido de casa e experimentado drogas. Ela teve seus direitos, como educação, respeito e dignidade e convivência familiar, garantidos por interferência e ação dos conselheiros tutelares de sua cidade, que assumiram a tarefa de apoiá-la no difícil trânsito para uma nova vida. A Tabela 21 traz uma lista dos direitos que foram garantidos nos casos relatados na categoria de histórias de vida: Tabela 21 Direitos garantidos Frequência Percentual Respeito e dignidade 394 66,2 Vida e saúde 380 63,9 Educação - escolarização formal 340 57,1 Convivência familiar e comunitária 318 53,4 Liberdade 264 44,4 Profi ssionalização 206 34,6 Educação - escolarização formal 172 28,9 Cultura 146 24,5 Esporte e lazer 108 18,2 O conjunto de direitos mais frequentemente abordados nos relatos de histórias de vida são aqueles relacionados ao res- peito e à dignidade (66,2%) e à vida e à saúde (63,9%). É curioso perceber que são também esses direitos os infringidos com mais elevada frequência nos causos de violação. Outro ponto comum é que também nos causos de história de vida as infrações aos direitos à cultura, ao lazer e ao esporte são as que emergem com menor frequência. A Tabela 22 cruza as instituições e espaços com os tipos de direitos garantidos. 46 Tabela 22 Cruzamento entre instituições e tipos de direitos garantidos Vida e saúde Liberdade Respeito e dignidade Convivência familiar e comunitária Educação e escolariza- ção formal Educação comple- mentar Cultura Esporte e Lazer Profissiona- lização Conselho Tutelar 20,3 21,6 19,3 23,0 18,5 10,5 7,5 12,0 9,2 CMDCA 0,8 0,8 1,0 0,6 0,9 1,2 1,4 0,9 0,5 Conselho de Saúde e Secretaria de Saúde 0,0 0,0 0,3 0,3 0,6 0,0 0,0 0,0 0,0 Cras/Creas 4,5 4,5 4,1 3,1 4,1 2,9 0,7 0,9 2,9 Escola, Secretaria de Educação 28,7 36,4 29,9 30,5 36,2 26,7 28,1 25,9 21,8 Unidades de atendimento à saúde 13,2 8,3 7,4 11,0 8,2 5,8 5,5 6,5 2,9 ONGs, projetos sociais 23,4 26,9 28,2 25,8 29,7 51,2 52,7 48,1 48,5 Sistema de Justiça 8,7 9,5 6,9 8,2 6,5 4,7 2,7 6,5 4,4 Polícia, Secretaria de Segurança Pública 3,7 3,4 3,3 2,5 2,9 2,3 1,4 1,9 1,9 Abrigos, casas de acolhimento ou de passagem 7,9 5,3 7,6 9,1 6,5 6,4 4,8 7,4 5,8 Clínicas, comunidades terapêuticas, hospital psiquiátrico 5,8 4,2 2,8 3,5 3,2 3,5 2,1 4,6 1,9 Unidades de medidas socioeducativas 16,3 17,8 19,5 11,3 19,1 20,3 19,9 19,4 27,7 Órgãos públicos 1,8 2,3 2,0 2,2 2,1 2,3 1,4 2,8 1,9 Comunidade, vizinhança 11,1 11,7 10,4 11,6 9,4 8,1 6,8 9,3 5,3 Família 40,8 44,7 39,8 51,9 37,4 36,0 39,0 51,9 29,1 A família ocupa quase sempre o primeiro lugar nesse processo de garantia de direitos reportado nas histórias de vida, o que reforça a importância que o Estatuto dá ao fortalecimento dos vínculos familiares na proteção dos direitos das crian- ças e adolescentes. Sua ação se destaca nas áreas dos direitos à convivência familiar e comunitária (51,9%), à liberdade (44,7%), à vida e saúde (40,8%) e ao respeito e à dignidade (39,8%). As ONGs e projetos sociais foram o espaço de garantia de direitos em 51,2% das histórias que relatavam atividades relacionadas à educação complementar. Foram também responsáveis por grande parte das vezes em que os direitos à cultura e lazer e ao esporte foram garantidos (52,7% e 48,1%, respectivamente), além de terem sido o principal veículo de promoção de atividades de profissionalização (48,5%). A escola e outros órgãos da Secretaria de Educação se destacam principalmente por serem espaços e agentes de pro- moção dos direitos à liberdade (36,4%), à educação (36,2%) – esta última compreendida na pesquisa como o acesso à escolarização formal – e à convivência familiar e comunitária (30,5%). O Conselho Tutelar, nas histórias de vida, tem menor destaque do que nos causos sobre violação de direitos, apesar de ser muito presente. Em 23,0% das histórias em que os direitos à convivência familiar e comunitária foram garantidos, ele foi agente de tal ação. Atores desse órgão também atuaram em 21,6% dos causos de promoção do direito à liberdade, em 20,3% das histórias de garantia do direito à vida e à saúde e em 19,3% das que tratavam do respeito à dignidade. O CMDCA, o Cras, o Creas e os organismos públicos relacionados à saúde (Conselho de Saúde e Secretaria de Saúde) estão pouco presentes nos causos dessa categoria, provavelmente por serem entidades menos conhecidas do público. Nos causos de história de vida, a comunidade foi incluída como um dos possíveis agentes de promoção de direitos, por meio da ação de pessoas que não estão ligadas nem à família nem aos órgãos do SGDCA, mas que assumem o protagonismo na divulgação do ECA. No entanto, como atuou somente em 9,2% dos causos de história de vida, não figura como um dos principais veículos de promoção de direitos. O que a Tabela 22 vem mostrar é que essas atividades e ações ocorre- ram principalmente nas áreas de liberdade (11,7%), convivência familiar e comunitária (11,6%), vida e saúde (11,1%), e respeito e dignidade (10,4%).
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