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Guias e Dicas
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A análise antropológica de rituais, Manuais, Projetos, Pesquisas de Antropologia

Antropologia dos Rituais.

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2010

Compartilhado em 04/09/2010

marlos-martins-5
marlos-martins-5 🇧🇷

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Baixe A análise antropológica de rituais e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Antropologia, somente na Docsity! SÉRIE ANTROPOLOGIA 270 A ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DE RITUAIS Mariza G.S. Peirano Brasília 2000 2 A análise antropológica de rituais Mariza G.S. Peirano Como o refinamento teórico das ciências sociais não é linear mas espiralado, é freqüente que eventuais reapropriações do passado sejam utilizadas como alavancas heurísticas. Tal fato não deriva de uma nostalgia intelectual, ou de um fascínio por teorias anteriores, nem da idealização de seu poder explicativo, mas porque, revisitadas, essas teorias revelam aspectos inesperados nas combinações e bricolagens que, então como agora, são, estas sim, produtos sempre atuais. Teorias sociológicas têm vínculo com a realidade empírica na qual são geradas, mas não são por esta determinadas; a relativa autonomia das teorias sociológicas as faz ao mesmo tempo efêmeras e contínuas. É minha proposta que o estudo de rituais, tema clássico da antropologia desde Durkheim, assume um especial significado teórico e, menos óbvio, político, quando transplantado dos estudos clássicos para o mundo moderno. Nessa transposição, o foco antes direcionado para um tipo de fenômeno considerado não rotineiro e específico, geralmente de cunho religioso, amplia-se e passa a dar lugar a uma abordagem que privilegia eventos que, mantendo o reconhecimento que lhes é dado socialmente como fenômenos especiais, diferem dos rituais clássicos nos elementos de caráter probabilístico que lhes são próprios. Voltarei a este ponto. Por enquanto, basta mencionar que, na análise de eventos, mantém-se o instrumental básico da abordagem de rituais, mas implicações são redirecionadas e expandidas. Esta é a perspectiva geral deste ensaio. Nele, procurarei situar a análise de rituais na história teórica da antropologia (cf. Peirano 1995, 1997) e seu vínculo com o exame de eventos contemporâneos, assim como indicar as conseqüências ao mesmo tempo disciplinares e políticas desta abordagem analítica. O ensaio divide-se em cinco seções: na primeira, discuto o tema magia e ciência como promotor da teoria antropológica no início do século; em seguida, apresento o contraste entre mitos e ritos e os aspectos positivos e negativos dessa dicotomia; na terceira parte introduzo o tema da eficácia social e situo a abordagem performativa para a análise de rituais; na quarta vinculo rituais a eventos mediante a relação entre cultura e linguagem; na quinta seção examino em detalhe o livro Leveling Crowds, de Stanley Tambiah, publicado em 1996, como exemplo da relação entre análise de rituais e teoria sociológica. Um epílogo em dois tempos focaliza a relação entre eventos, acasos e histórias no contexto da (política da) teoria contemporânea. 5 antropólogos antes procuraram em civilizações distintas e longínquas. O resultado da argumentação é múltiplo: primeiro, não resta nenhuma dúvida sobre o futuro da antropologia porque seu objeto não é um tipo de sociedade, mas as sempre-presentes diferenças culturais; segundo, e como conseqüência, estão eliminadas crises atuais ou futuras: “Enquanto as maneiras de ser ou de agir de certos homens forem problemas para outros homens, haverá lugar para uma reflexão sobre essas diferenças que, de forma sempre renovada, continuará a ser o domínio da antropologia” (Lévi-Strauss 1962: 26). Hoje podemos ver esses dois textos como representando, respectivamente, a renovação teórica e o otimismo pragmático na disciplina.5 Mas, passados alguns anos, verificamos a complementaridade dos dois e a importância de “A crise...”, inclusive nas suas implicações epistemológicas: Lévi-Strauss aí negava a (im)possibilidade de uma suposta homogeneização planetária, assim como deixava claro que a antropologia não seria afetada pelas conseqüências da ocidentalização do mundo moderno. A antropologia estava pronta, como sempre, para enfrentar mudanças. Estas são questões até hoje debatidas. Para muitos, “the new indeterminate emergent worlds with which we all now live” (Fischer 1999: 457) trazem desafios teóricos, se não práticos, mas a antropologia continua sendo “the most useful of checks on theorizing becoming parochial, ethnocentric, generally uncomparative, uncosmopolitan, and sociologically ungrounded” (:457). É esse otimismo que encontramos nos textos de Lévi-Strauss dos anos 60, referentes tanto à horizontalidade das práticas humanas quanto à tarefa a que se destinava a antropologia, de revelar os mecanismos de um mundo com novos contornos empíricos. II Mitos e ritos No momento em que se estabelecia a horizontalidade entre magia, ciência e religião, estava eliminada, como conseqüência, a dicotomia entre primitivos e modernos. Mas, no espiralar da história, outras dicotomias (res)surgiram, ou tornaram-se mais evidentes e, em certo sentido, perversas. Chamo aqui a atenção para o processo intelectual que levou Lévi-Strauss e os estruturalistas a questionarem o totemismo como instituição e, em seu lugar, estabelecê-lo como um mecanismo, de tipo totêmico, “bom para pensar”. Este mecanismo contrastava com aquele visto como simplesmente “bom para comer”  preocupação pragmática atribuída a Malinowski como base de sua teoria sociológica. Se, portanto, de um lado, se abria caminho para desconstruir uma série de categorias, como totemismo, magia, religião, e, nesse processo, eventualmente, outras tantas, como economia, parentesco, política, de outro, faltava algo importante para se retornar, com proveito, ao fato social total. O próprio Lévi-Strauss comentou, retrospectivamente: 5 Vale lembrar que Lévi-Strauss escreveu vários textos para a UNESCO. Alguns deles, como “Raça e História”, tornaram-se marcos na disciplina, tendo sido incorporados em coletâneas organizadas pelo autor. Já “A crise moderna da antropologia” não recebeu, nem de seu próprio autor, maior atenção. Ver Benthallk (1984), para a relação entre Lévi-Strauss e a UNESCO. 6 “La génération à laquelle j’appartiens fut essentiellement préoccupée d’introduire un peu plus de rigueur dans notres disciplines; elle s’est donc efforcée, chaque foi qu'elle étudiait des phénomèmes, de limiter le nombre des variables qu'il fallait considérer. [...] Car évidemment, nous le savious, que l’économie, la parenté, la religion étaient liées; nous le savons depuis Mauss, qui nous l’a enseignée et l’a proclamé avec Malinowski” (1975: 184-5; ênfases minhas). Essa lucidez sobre a ligação entre os fenômenos da economia, do parentesco, da religião etc. não o impediu, contudo, de manter e defender a dicotomia mitos versus ritos, exigindo inclusive um estudo separado dos dois, de modo a fazer dos mitos a via privilegiada de acesso à mente humana. Aos ritos era relegada a execução dos gestos e a manipulação dos objetos, a própria exegese do ritual passando a fazer parte da mitologia: “On dira que [le rituel] consiste en paroles proférées, gestes accomplis, objets manipulés indépendamment de toute glose ou exégèse permise ou appelée par ces trois genres d’activité et qui relévent, non pas du ritual même, mais de la mythologie implicite” (Lévi-Strauss 1971: 600). Mitos e ritos marcariam uma antinomia inerente à condição humana entre duas sujeições inelu- táveis: a do viver e a do pensar. Ritos faziam parte da primeira; mitos, da segunda. Se o rito também possuía uma mitologia implícita que se manifestava nas exegeses, o fato é que em estado puro ele perderia a afinidade com a língua (langue). O mito, então, seria o pensar pleno, superior ao rito que se relacionava com a prática. O resultado paradoxal dessa distinção foi fazer ressurgir, com novas vestimentas, a velha e surrada dicotomia entre relações sociais (ou “realidade”) e representações. Embora Durkheim tenha insistido na necessidade de incluir os atos de sociedade no estudo do domínio social, tendo enfatizado que é pela ação comum que a sociedade toma consciência de si, se afirma e se recria periodicamente, e embora Mauss tenha visto a magia como uma forma individual privilegiada de um fenômeno coletivo, mas eficaz de forma sui generis, por várias décadas a apropriação histórica destes autores  inclusive por Lévi-Strauss  separou heuristicamente os dois níveis: os mitos ficaram associados às representações e os ritos, às relações sociais empíricas (como na proposta de van Gennep). Curiosamente, até os contendores de Lévi-Strauss na época contribuíram para a analogia mitos = representações. Vindo da tradição britânica, Victor Turner procurou resgatar a dimensão do viver, definindo os rituais como loci privilegiados para se observar os princípios estruturais entre os Ndembu africanos, mas também apropriados para se detectar as dimensões processuais de ruptura, crise, separação e reintegração social, cujo estudo ele havia iniciado com sucesso através da idéia de “drama social”  ritos seriam dramas sociais fixos e rotinizados, e seus símbolos, dentro da razão durkheimiana, estariam aptos para uma análise microssociológica refinada. Fascinado pelos processos, conflitos, dramas  em suma, pelo vivido , para Turner, símbolos instigam a ação. Em 1975, ele dizia, no contexto de sua polêmica com o estruturalismo: “On earth the broken arcs, in heaven the perfect round” (1975: 146), observando que em 7 nenhuma sociedade concreta os sistemas simbólicos se realizam em sua perfeição.6 No contexto dos anos 60, Edmund Leach também contribuiu para o tema com um pequeno ensaio que se tornou clássico. Antes, ele já havia procurado reduzir a distinção mito/rito quando concebeu os Kachin birmaneses como engajados em comportamentos que eram menos ou mais técnicos, e menos ou mais rituais (Leach 1954). No artigo de 1966, Leach passa a distinguir três tipos de comportamentos: além do racional-técnico (dirigido a fins específicos que, julgados por nossos padrões de verificação, produzem resultados de maneira mecânica), o comunicativo (que faz parte de um sistema que serve para transmitir informações através de um código cultural) e o mágico (que é eficaz em termos de convenções culturais). Para o autor, os dois últimos tipos eram considerados rituais. Assim, de um lado, Leach dava um grande passo não distinguindo comportamentos verbais de não-verbais. Como conseqüência, ele aproximava o ritual do mito. Esta era uma grande inovação: o ritual era um complexo de palavras e ações e o enunciado de palavras já era um ritual. O ritual tornava-se, assim, linguagem condensada e, portanto, econômica, e o primitivo, um homem sagaz e engenhoso. Contudo, por se manter fiel ao estruturalismo como orientação, Leach aproximava demais, em excesso, o ritual do mito, fazendo com que ele perdesse sua especificidade: como o principal objetivo do ritual era transmitir e perpetuar o conhecimento socialmente adquirido, tanto o rito quanto o mito estavam igualmente inseridos na ordem da mente humana. A dimensão do “bom para viver” desaparecia. Desnecessário relembrar que foi Victor Turner, e não Leach, quem recebeu o reco- nhecimento social como o especialista do estudo dos rituais. Ambos, no entanto, não deram importância a um ponto central, que era o de perceber que traços formais, quer de mitos ou de ritos, são produtos também culturais que resultam de cosmologias distintas. Evans-Pritchard (1929) havia esclarecido esse ponto por meio de um precioso achado etnográfico, quando comparou os Azande e os Trobriandeses. Usando-os como ícones da África e da Melanésia, Evans-Pritchard associou-os, respectivamente, aos rituais e aos encantamentos verbais. Se hoje temos a liberdade de retomar essa linha de trabalho, na década de 60 os antropólogos ainda estavam preocupados em manter o que haviam conquistado no período pós-Malinowski, isto é, “um pouco mais de rigor na disciplina”  como reconheceu Lévi-Strauss em 1975. Para tanto era necessário limitar o número de variáveis a considerar, o que resultou, por exemplo, tanto na rejeição à etnografia Iatmul enquanto experimento etnográfico e analítico (Bateson 1936), quanto na afirmação da especificidade irredutível de cada um dos sistemas (que mais tarde seria desconstruída), como parentesco, economia, política, religião. A relação entre esses sistemas, ensinados e proclamados por Mauss e Malinowski, ficou em segundo plano, assim como a relação entre etnografia e análise antropológica. Todo passo inclui avanços e recuos. Este foi parte do preço que a antropologia pagou pelos avanços do estruturalismo. 6 É importante enfatizar que Turner manteve a definição de ritual vinculada a crenças em seres ou poderes místicos (Turner 1967). Para uma reanálise das árvores Ndembu estudadas por Victor Turner, ver Peirano (1995). 10 Nos dez anos seguintes o projeto de unir simbolismo e eficácia sociológica foi desen- volvido em vários artigos, muitos deles utilizando como estratégia a reanálise de clássicos da disciplina, demonstrando assim a riqueza dos textos etnográficos e indicando que, na antropologia, ao se refinar uma análise anterior com novo instrumental teórico rende-se, ao mesmo tempo, homenagem ao autor original. Vejamos a seqüência: em 1968, apoiado no material trobriandês de Malinowki, Tambiah publicou um ensaio no qual indicava como a linguagem da magia não era qualitativamente diferente da linguagem usual, mas uma forma intensificada e dramatizada da mesma. As mesmas leis de associação que se aplicam à linguagem em geral estão presentes na magia  como metáforas e metonímias, por exemplo , exceto que na magia o objetivo é transferir uma qualidade ao recipiente, quer via propriedades da linguagem, quer por meio de substâncias e objetos rituais. A transferência de propriedades continua a ser objeto de reflexão em Tambiah (1973), quando então a reanálise da magia azande leva o autor a experimentar as idéias de Austin (1962) sobre atos performativos e sua “força ilocucionária” às analogias mágicas, positivas e negativas. Tambiah aí indicava estar consciente de seu rompimento com a distinção entre langue/parole de Sausurre e enfatizava que o ato mágico tem significados predicativos e referenciais, mas é também performativo. Em artigo de 1977, Tambiah introduzia a noção de cosmologia para explicar a cura nos ritos budistas na Tailândia por meio da meditação. E em 1979, havia refinado seu instrumental analítico a ponto de, finalmente, elaborar um texto síntese sobre a abordagem performativa do ritual (Tambiah 1979).9 Diferente de seus predecessores, contudo, Tambiah tomava como ponto de partida a não-pertinência de definir o ritual em termos absolutos. Aos nativos ficava delegada a distinção possível (relativa ou absoluta) entre os diversos tipos de atividade social e, ao etnó- grafo, a capacidade de detectá-la. Para Tambiah, os eventos que os antropólogos definem como rituais parecem partilhar alguns traços: uma ordenação que os estrutura, um sentido de realização coletiva com propósito definido, e também uma percepção de que eles são diferentes dos do cotidiano. Mas o ritual faz parte de uma cosmologia: “Thus, while we must grant the importance of cultural presuppositions, of cosmological constructs, as anterior and antecedent context to ritual, we must also hold that our understanding of the communicative aspects of ritual may not be furthered by imagining that such a belief context adequately explains the form of the ritual per se. But the clue for synthesizing this seeming antinomy has already been revealed, in the fact that cosmological constructs are embedded (of course not exclusively) in rites, and that rites in turn enact and incarnate cosmological conceptions” (Tambiah 1985: 130). Na verdade, o caráter performativo do ritual está implicado na relação entre forma e conteúdo que, por sua vez, está contida na cosmologia. Para Tambiah, a inevitabilidade da perspectiva 9 Os ensaios mencionados acima estão reunidos em Tambiah (1985), coletânea de artigos sobre análise simbólica do ritual e cosmologia em termos de pensamento e ação. 11 cosmológica foi graficamente expressa por Wittgenstein no aforismo: “if the flea were to construct a rite, it would be about the dog” (apud Tambiah 1985: 129). Por cosmologia, então, “I mean the body of conceptions that enumerate and classify the phenomena that compose the universe as an ordered whole and the norms and processes that govern it. From my point of view, a society’s principal cosmological notions are all those orienting principles and conceptions that are held to be sacrosact, are constantly used as yardsticks, and are considered worthy of perpetuation relatively unchanged” (1985:130). E acrescenta: “As such, depending on the conceptions of the society in question, its legal codes, its political conventions, and its social class relations may be as integral to its cosmology as its ‘religious’ beliefs concerning gods and supernaturals. In other words, in a discussion of enactments which are quintessentially rituals in a ‘focal’ sense, the traditional distinction between religious and secular is of little relevance, and the idea of sacredness need not attach to religious things defined only in the Tylorian sense” (1985: 130). E, portanto: “Anything toward which an ‘unquestioned’ and ‘traditionalizing' attitude is adopted can be viewed as sacred. Rituals that are built around the sacrosanct character of constitutions and legal charters or wars of independence and liberation, and that are devoted to their preservation as enshrined truths or to their invocation as great events, have a ‘traditionalizing role’, and in this sense may share similar constitutive features with rituals devoted to gods or ancestors (1985: 130). Ao evitar a definição rígida de ritual, a relação entre ritos e outros eventos torna-se, também, flexível, em uma plasticidade engendrada pela situação etnográfica. Isto é, somente uma determinada cosmologia pode explicar por que, em certos contextos, mitos, ritos, tabus, proibições têm a capacidade de dizer e fazer coisas diferentes, já que semanticamente eles são tanto separados quanto relacionados: se uma sociedade privilegia ritos, outra pode enfatizar mitos (cf., por exemplo, Evans-Pritchard 1929). Como sistemas culturalmente construídos de comunicação simbólica, os ritos deixam de ser apenas a ação que corresponde a (ou deriva de) um sistema de idéias, resultando que eles se tornam bons para pensar e bons para agir  além de serem socialmente eficazes. Tambiah afirma que a eficácia deriva do caráter performativo do rito em três sentidos: no de Austin (onde dizer é fazer como ato convencional); no de uma performance que usa vários meios de comunicação através dos quais os participantes experimentam intensamente o evento; e, finalmente, no sentido de remeter a valores que são vinculados ou inferidos pelos atores durante a performance (1985: 128). Em outras palavras, os rituais partilham alguns traços formais e padronizados, mas estes são variáveis, fundados em constructos ideológicos particulares. Assim, 12 o vínculo entre forma e conteúdo torna-se essencial à eficácia e as considerações culturais integram-se, implicadas, na forma que o ritual assume.10 A ação ritual assim compreendida consiste em uma operação feita em um objeto- -símbolo com o propósito de uma transferência imperativa de suas propriedades para o recipiente. Assim, o ritual não pode ser considerado falso ou errado em um sentido causal, mas, sim, impróprio, inválido ou imperfeito. Da mesma maneira, a semântica do ritual não pode ser julgada em termos da dicotomia falso/verdadeiro, mas pelos objetivos de “persuasão", “conceptualização”, “expansão de significado”, assim como os critérios de adequação devem ser relacionados à “validade”, “pertinência”, “legitimidade” e “felicidade” do rito realizado (1985: 77-84).11 Em suma, ao considerar o rito etnograficamente, Tambiah reintegra a centenária preocupação dos antropólogos com as características intrínsecas do ritual, dissolvendo-as.12 Tambiah segue, portanto, a trajetória consagrada das disciplinas humanas no século XX: focalizar o que o senso comum considera diferente, estranho, anômalo para dissolver sua bizarria e depois reagregá-lo na fluidez do usual. Foi assim com a afasia, quando Roman Jakobson provou que ela poderia ajudar-nos a desvendar mecanismos tanto lingüísticos quanto mentais, que estão presentes em qualquer comunicação verbal; com os sonhos, quando Sigmund Freud demonstrou que eles eram bons para analisar, indicando mecanismos do consciente e do inconsciente; com o totemismo, quando Lévi-Strauss detectou nesses fenômenos mecanismos analógicos entre cultura e natureza, presentes no simbolismo em geral. No caso dos rituais, focalizá-los em sua especificidade para demonstrar que são momentos de intensificação do que é usual torna-os loci privilegiados  verdadeiros ícones ou diagramas  para se detectar traços comuns a outros momentos e situações sociais. Se existe uma coerência na vida social  como os antropólogos acreditamos , o que se observa no fragmento do ritual (quer seja a resolução de conflitos, à Turner; transmissão de conhecimentos, como queria Leach; ou o vínculo entre ação social eficaz e cosmologia, seguindo Tambiah) também se revela em outras áreas do comportamento que o pesquisador investiga. Vivemos sistemas rituais complexos, interligados, sucessivos e vinculados, atualizando cosmologias e sendo por elas orientados. 10 A definição de ritual é estabelecida assim: “Ritual is a culturally constructed system of symbolic communication. It is constituted of patterned and ordered sequences of words and acts, often expressed in multiple media, whose content and arrangement are characterized in varying degree by formality (conventionality), stereotypy (rigidity), condensation (fusion), and redundancy (repetition). Ritual action in its constitutive features is performative in these three senses: in the Austinian sense of performative, wherein saying something is also doing something as a conventional act; in the quite different sense of a staged performance that uses multiple media by which the participants experience the event intensively; and in the sense of indexical values  I derive this concept from Peirce  being attached to and inferred by actors during the performance” (Tambiah 1985: 128). 11 Tambiah continuou a desenvolver ensaios teóricos sobre rituais, analogias, força ilocucionária e cosmologias. Em trabalho recente desafia a abertura dos sistemas cosmológicos, focalizando orientações (cosmológicas) múltiplas (Tambiah 1996b). 12 Tambiah continuou a desenvolver ensaios teóricos sobre rituais, analogias, força ilocucionária e cosmologias. Em trabalho recente desafia a abertura dos sistemas cosmológicos, focalizando orientações múltiplas (Tambiah 1996b). 15 teoricamente quando confrontada com novos universos empíricos. Como o objeto da antropologia não é inerte, ele influi no olhar que lhe é dirigido, criando novas agências (o kula, o potlatch, o mana) e estimulando refinamentos teóricos. Disto resulta que, partindo de uma orientação universalista, a antropologia particulariza-se em ação e se torna “antropologia da política”, “antropologia da religião”, “antropologia dos movimentos sociais”, “antropologia do gênero”, “antropologia do parentesco”, “antropologia das sociedades indígenas” etc.  terminando, assim, o período que já dura demasiado de subdividir a disciplina em “antropologia política”, “antropologia econômica”, “antropologia filosófica” etc. É dessa perspectiva que se pode examinar o último livro de Stanley Tambiah, Leveling Crowds. Ethnonationalist Conflicts and Collective Violence in South Asia, publicado em 1996.15 Tendo anteriormente desenvolvido trabalhos sobre a violência no Sri Lanka (Tambiah 1986, 1992), em um sentido mais ou menos evidente Tambiah dá continuidade a eles. Os livros sobre seu país de origem seguiram-se, por sua vez, a uma trilogia sobre budismo e política na Tailândia (1970, 1976, 1984), projeto desenvolvido de forma concomitante à publicação de ensaios teóricos de reanálise de material etnográfico clássico, assim como à abordagem de uma teoria performativa do ritual (Tambiah 1979, 1985). Até então, embora suas propostas teóricas sobre ritual e simbolismo estivessem presentes nos ensaios histórico-antropológicos, era possível perceber uma certa diferenciação entre estudos teóricos e monográficos.16 Já em Leveling Crowds as duas orientações se combinam em sentido pleno. Tambiah mobiliza instrumental analítico sobre ritual para construir seu livro dentro da tradição monográfica: de um lado, verificam-se as contribuições que se totalizaram na formulação de uma abordagem performativa,17 de outro, a série de erupções de violência coletiva no sul da Ásia, fenômeno contemporâneo que desafia a capacidade interpretativa de sociólogos, historiadores e cientistas políticos. Ao fazer dialogar a teoria, que no caso da antropologia se sustem na etnografia presente e passada, e os eventos contemporâneos, Tambiah dá prova da plasticidade e riqueza da disciplina  de sua “eterna juventude”. Leveling Crowds tem como propósito discutir os conflitos etnonacionalistas e a 15 O livro foi objeto de duas apreciações no Brasil, por Comerford (1998) e Chaves (1999). 16 Tambiah explica esta distinção, apontando para o fato de que, freqüentemente, apenas os especialistas das áreas culturais lêem livros monográficos. Assim sendo, ele nota que a maioria de suas contribuições teóricas passaram despercebidas quando desenvolvidas em monografias (cf. Tambiah 1996a). 17 Podemos exemplificar com os mecanismos que detectou na compreensão do caráter metafórico e metonímico da magia trobriandesa (em “The magical power of words”), a força ilocucionária nas práticas Zande (em “Form and meaning of magical acts”), as classificações nativas dos camponeses tailandeses que as tornavam boas para pensar e viver (em “Animals are good to think and good to prohibit”), os meios de cura por meio da meditação (em “The cosmological nad performative significance of a Thai cult of healing through meditation”), a (re)construção da cosmologia trobriandesa por meio dos valores masculinos e femininos (em “On flying witches and flying canoes”). Estes artigos estão reunidos em Tambiah (1985). 16 violência coletiva no sul da Ásia. Para alcançar esse objetivo, Tambiah recorta um objeto empírico básico, sobre o qual vai atuar analiticamente. Este objeto empírico não é fortuito: trata-se dos episódios de grande violência coletiva que causam perplexidade tanto aos cientistas sociais, ao grande público, quanto aos jornalistas e à mídia em geral por sua constância e virulência no mundo de hoje  os riots. Para apresentar esses eventos, acontecimentos de difícil tradução na língua portuguesa, Tambiah baseia-se em textos acadêmicos, relatos oficiais, reportagens jornalísticas, e em sua própria experiência. A primeira parte do livro inclui narrativas de riots no espaço/tempo de Sri Lanka, Índia e Paquistão nos últimos cem anos, entre budistas e católicos (Sri Lanka, 1883), budistas e muçulmanos (Sri Lanka, 1915), budistas e tamils (Sri Lanka, 1956-83), hindus e sikhs (Índia, 1984), hindus e muçulmanos (Índia, 1992), muhajirs e sindhis (Paquistão, 1988-90), muhajirs e pathans (Paquistão, 1985-86). Independentemente das etnias, a leitura seqüencial dos inúmeros episódios, ao expor o leitor a uma grande diversidade de conflitos, tem a força (ilocucionária) de reafirmar um padrão. Nesse sentido, a primeira parte do livro deixa de ser puramente um relato de casos etnográficos. A leitura sucessiva de espasmos de violência que se repetem um após o outro, saqueando, depredando, tirando vidas, destruindo propriedades, provocando incêndios, amedrontando e causando pânico, fazendo vítimas e traumatizando populações faz com que o leitor não apenas experimente, ele próprio, o impacto e o trauma da violência, mas também se sensibilize para o fato de que, recorrente e repetitiva, independentemente dos atores envolvidos, a compreensão desse tipo de fenômeno do mundo moderno exige dos cientistas sociais uma abordagem nova. Como que cerzindo sua narrativa, Tambiah vai então inserindo comparações com eventos contemporâneos, assim como com casos históricos do ocidente. No decorrer da exposição, introduz dois conceitos interligados para explicar a trajetória dos tumultos: por focalização, Tambiah indica os processos pelos quais incidentes locais e de pequena escala, ocasionados por disputas religiosas, comerciais, familiares, envolvendo pessoas em contato direto, crescem cumulativamente até tornarem-se grandes questões envolvendo um grupo que se vê como étnico e que, sob a influência de rumores de atrocidades, engaja a população por meio de lealdades e antagonismos que dizem respeito à raça, religião, língua, nação, lugar de origem. Esse movimento de transformar pequenas disputas em grandes problemas, Tambiah chama de transvalorização. Na segunda parte, os relatos continuam, mas o propósito agora é desenvolver a análise de modo a abranger os eventos e as questões teóricas sobre a violência coletiva. Em busca de um repertório dos tumultos, Tambiah observa que os riots, esses fenômenos aparentemente espontâneos, caóticos e orgiásticos, apresentam feições organizadas, antecipadas, programadas, assim como traços e fases recorrentes. É possível distinguir um padrão de eventos provocadores, uma seqüência da violência, estabelecer a duração rápida, verificar quem são os participantes, os locais onde se inicia e se espalha, e como termina. É factível também observar por intermédio de que mecanismos se propaga, e verificar o papel central dos rumores como profecias que se cumprem, eficazes na construção, produção e propagação dos atos de violência. Rumores são causa de pânico e paranóia, mas são também produto de pânico e paranóia. Na medida em que 17 são repetidos inúmeras vezes, os atos supostamente bárbaros dos inimigos circulam, são reelaborados, distorcidos, geram outros rumores e, ao fim, o pânico e a fúria produzidos pelos boatos levam à perpetração de atos tão sinistros quanto aqueles atribuídos aos oponentes. Boatos são de uma eficácia cruel nesses contextos. Riots apresentam, portanto, traços sintáticos que, se não exaurem os eventos contingentes de seu significado pragmático, se sustentam em um repertório cujos elementos são usualmente selecionados das formas cotidianas de sociabilidade, do calendário ritual de festividades, das sanções e punições populares e dos rituais de purificação e exorcismo. Esses elementos podem ser imitados, invertidos, parodiados, de acordo com suas possibilidades dramáticas e comunicativas. Realizando um potlatch às avessas, as multidões que se engajam nos tumultos não são homogêneas e tampouco compostas pelos criminosos e desocupados que o senso comum imagina, mas refletem parte do perfil socioeconômico de cidades como Bombaim, Delhi, Calcutá, Karachi, Colombo e se constituem de trabalhadores de fábricas, de serviços de transportes (trens e ônibus), de empregados em bazares e no pequeno comércio, estudantes, além de políticos, agentes locais, polícia.18 Focalizar a rotinização e a ritualização da violência e seu caráter coletivo permite compreender um aparente enigma: por que brutalidades cometidas por membros da multidão inflamada em nome de uma causa política “válida” para uma coletividade (seja grupo étnico ou nacionalidade) não deixa marcas psíquicas no agressor no plano individual. São os aspectos de ritualização que também permitem entender por que, depois de espasmos de violência  riots têm sempre curta duração , os participantes logo voltam à sua vida normal e continuam a viver junto aos seus (antigos) inimigos. Em termos do timing da violência, a superposição de múltiplos calendários religiosos faz com que muitas vezes o ruído das festividades de uma etnia coincida com o período de reclusão de outra: este é um detonador infalível de tumultos. Eventos públicos com potencial de violência incluem também: procissões carregando símbolos emotivos e recitando slogans inflamados; comícios com oratória estereotipada com alusões mítico-históricas transmitidas e amplificadas em alto-falantes; intimidação do oponente com explosão de bombas em lugares públicos; suborno para facilitar o movimento de multidões; desafios, insultos e dessacralização de símbolos religiosos. Em outro nível interpretativo, Tambiah quer entender como esses fenômenos urbanos incluem a destruição da propriedade com o propósito intencional de nivelamento (leveling) social. Vantagens que são percebidas no oponente devem ser eliminadas e a desigualdade sofrida pelo oprimido, compensada. Outro traço marcante é que tanto os agressores quanto as vítimas muitas vezes vivem nas mesmas cidades, ou lado a lado em distritos ou cidades próximas. De maneira sintomática, as diferenças de convicção só se transformam em ódio quando existem vínculos anteriores essenciais entre as partes. Uma terceira consideração é sobre a dinâmica dos conflitos: a unidade desejada e imaginada de uma coletividade étnica é com freqüência difícil de se consumar devido a diferenças internas. 18 Para uma discussão dos tumultos como casos de potlatch às avessas, conferir Tambiah (1996c: 122, 279). 20 envolvidos, assim como os valores (“religiosos”) em questão.20 Mas há um subproduto a mais. O livro também nos indica o longo caminho percorrido pela antropologia no último século. Há cem anos, grandes debates procuravam focalizar a relação entre religião, magia e ciência e, também, discutir a primazia ora do rito, ora do mito. Hoje podemos continuar a fazer uso da noção de ritual, mas em sentido ampliado, expandido, tornando-o instrumental analítico para eventos críticos de uma sociedade. Rituais indicam-nos o caminho das cosmologias, quer daquelas um dia consideradas tribais, primitivas, ou, hoje, modernas. Vivendo um processo de constante renovação disciplinar, os antropólogos aprendemos com a experiência etnográfica acumulada de um século, a qual nos permite reiterar, independente da inclinação interpretativa e dos objetos com que nos defrontamos, que a disciplina tem sido um dos controles mais efetivos contra a tendência de a teoria tornar-se paroquial, etnocêntrica, sociologicamente superficial, não comparativa e, portanto, pouco cosmopolita. EPÍLOGO No momento em que o ritual é revisitado do prisma analítico, dois pontos de reflexão se impõem: um, metodológico, sobre a relação entre eventos e acasos; outro, de natureza da política da teoria, sobre a utilização da abordagem de rituais por algumas comunidades de especialistas. Abordo brevemente as duas questões aqui, reservando reflexões mais aprofundadas para o futuro. 1º: Eventos e acasos Para o senso comum, tumultos como os riots sul-asiáticos descritos por Tambiah não são rituais no senso estrito. Acostumamo-nos a associar rituais a performances auspiciosas. No entanto, há três aspectos a considerar: primeiro, a população sul-asiática, isto é, os nativos, marcam esses momentos como distintos dos acontecimentos cotidianos; segundo, trata-se de uma performance coletiva para atingir determinado fim; terceiro, os eventos possuem uma ordenação que os estrutura. Estes são traços fundamentais de um ritual na definição heurística e não-absoluta que Tambiah propôs em 1979. No caso em tela, esses fenômenos têm uma designação específica  são riots  e, embora aparentemente espontâneos, irracionais e caóticos, quando analisados revelam feições antecipadas, programadas, duração determinada, traços e fases recorrentes. É necessário ao etnólogo, portanto, desenvolver a sensibilidade para reconhecer nesses fenômenos os aspectos rituais  aliás, como Mauss fez em relação ao potlatch. E se Mauss utilizou a destruição ritual de propriedade para desenvolver a teoria da troca, é possível se partir dos riots para discutir o destino do estado-nação e da democracia em contextos etnicamente plurais. Eventos como o potlatch e os riots nascem de um repertório cultural que não os faz aberrações em termos sociológicos: produzindo eventos intensificados, exaltados e, no caso sul-asiático, incluindo extrema violência coletiva, é por sua familiaridade que se tornam um desafio para o cientista social. A questão básica parte de uma perspectiva comparativa: o que faz 20 Comerford (1998) ressalta a dimensão weberiana do livro. 21 com que a equivalência de etnias, mais do que a liberdade e a igualdade dos indivíduos, se torne o principal problema das democracias participativas em muitas das sociedades multiétnicas do mundo moderno? Leveling Crowds demonstra a rentabilidade analítica da (re)construção de repertórios culturais e cosmologias a partir de eventos ritualizados, no caso, trágicos em termos dos valores modernos mais caros, inclusive os do cientista social. Mas eventos dessa natureza têm ainda outra face que é preciso confrontar: de um lado, são reconhecidos como “gramaticais” em determinadas culturas  como já notamos, fazem parte de um repertório cultural; de outro, eles ocorrem em momentos e contextos impossíveis de antecipar totalmente. Isto é, embora a passagem de uma procissão festiva em frente do templo de outra etnia que se encontra reclusa já exiba elementos incitadores de violência e tumulto, não se trata de uma fatalidade sociológica o fato de que ocorrerá um riot de grandes proporções. Este exemplo traz à tona a questão do grau de imponderabilidade dos eventos e dos acasos no cotidiano da vida social. Este é um tema que já recebeu atenção detalhada no debate sociológico de cunho histórico (Weber 1992), assim como na história da ciência (Latour 1995). Não é minha intenção retomar a discussão em profundidade, mas apenas apontar, primeiro, para o fato de que não se trata, no contexto presente, de examinar a causalidade dos eventos, mas sua interpretação  para usar a expressão weberiana, o surgimento de “indivíduos históricos”. Em segundo lugar, sugerir que a ampliação da análise de rituais para eventos críticos de uma sociedade implica conceder aos fenômenos assim examinados uma liberdade sui generis, derivada de sua dimensão sociológica e histórica. De um lado, então, é preciso reconhecer que eles são, em parte, “sua própria causa”  o evento tem elementos que o tornam imprevisível, uma surpresa, uma diferença; não fosse assim, não se trataria de um evento, mas somente da ativação de uma potencialidade, da mera atualização de uma causa, da realização de uma estrutura.21 Por outro lado, justamente esses traços específicos dos eventos  diferente dos rituais convencionais  trazem como conseqüência uma ampliação dos “efeitos perlocucionários” (cf. Austin 1962), isto é, dos resultados não antecipados que derivam dos contextos culturais particulares nos quais ocorrem. Mas é justamente aí que, mais uma vez, Leveling Crowds nos surpreende quando Tambiah aponta para padrões nesses efeitos: o que era possibilidade, potencialidade, probabilidade de expansão e intensificação, no caso da violência coletiva no sul-asiático toma a forma de dois pares que Tambiah denomina, um, de “focalização” e “transvalorização”, e o outro, de “nacionalização” e “paroquialização”. Para esses movimentos de violência coletiva poderíamos arriscar o rótulo, em princípio contraditório, de “processos perlocucionários”. Essa possibilidade envolve uma questão fundamental para desvendar mais profundamente os vínculos entre o ritual e o evento, mas que, aqui, fica apenas sinalizada. 2º: Eventos e stories 21 Ver Latour (1995:19) a respeito do encontro de Pasteur com o ácido lático: “For there to be history, the yeast-of-1857-at-Lille-with-Pasteur must in part be causa sui”. Ver também Sahlins (1981) para a relação entre evento e estrutura. Para os acasos, ver Peirano (1995, cap. 4). 22 Outro tema apenas sugerido diz respeito à responsabilidade política como dimensão intrínseca às ciências sociais, quer seja ela implícita ou explícita. Como um sul-asiático de origem, Stanley Tambiah nos relembra esse vínculo. Em suas palavras: “The conundrum that faces many of us South Asians is this: while we all should make the effort to comprehend and appreciate the reasons for the rejection of Western secularism by certain religious communities, we also have to face up to the question of what policy to put in its place in an arena where multiple religious communities with divergent political agendas contest one another and make claims that threaten to engender discrimination and inequality among citizens who in principle must enjoy the same civil rights and should peacefully coexist” (1996c: 19). Lembrando que a própria ciência social nasce engajada em projetos políticos de longa duração no século XIX, encerro este ensaio com uma provocação: na pesquisa antropológica há sempre um acontecimento, seja evento, estória, relato, que detém certo privilégio do momento etnográfico decisivo. Dados são construídos, fatos são feitos. Mas a articulação de experiências que o etnólogo vive e da qual participa (ou que reencontra como documento ou memória, de natureza, âmbito e domínio diversos) precisa de uma âncora não apenas textual, mas cognitiva e psíquica que totalize a experiência. A apropriação do momento efêmero ou do incidente revelador tem nas experiências da disciplina o caso exemplar que levou Mauss, depois de analisar o kula e o potlatch, a expressar o cuidado que o etnólogo precisa ter ao observar “o que é dado” (ce qui est donné). Vale a pena repetir, para não haver dúvida: “Or, le donné, c'est Rome, c'est Athènes, c'est le Français moyen, c'est le Mélanésien de telle ou telle île, et non pas la prière ou le droit en soi” (Mauss 1925: 182). É a essa tradição que podemos associar a escolha de Tambiah em eleger riots do sul-asiático como os incidentes críticos para sua monografia. São eles que representam o tangível, a experiência vivida, o sofrimento episódico, a tentativa de capturar o instante perdido mas crucial da pesquisa (ou da história) e, não menos, de fazer coincidir objetivos teórico-intelectuais com político-pragmáticos. São eles “Roma, Atenas, o melanésio da ilha tal”.22 Mas essa prática é usual? A resposta é negativa. Em contraste com a opção pelo evento, há mais de uma década um grupo significativo de antropólogos norte-americanos escolhem a construção de narrativas ou estórias (stories) como alternativa epistemológica e política, em um contexto no qual o exotismo, tendo dominado o olhar da disciplina por um 22 Incluo nessa tradição alguns livros recentes: Das (1995), Amin (1995), Trouillot (1995). Outros trabalhos de que tenho conhecimento, esses diretamente influenciados pela proposta de Tambiah, são: Trajano Filho (1984, 1993, 1998), Chaves (1993, 2000), Comerford (1996, 1999), Steil (1996), Teixeira (1998), Aranha (1993), Santos (1994), Little (1995), Góes Filho (1999). 25 Das V. 1995. Critical Events. An Anthropological Perspective on Contemporary India. Delhi: Oxford University Press Dirks N. 1998. (ed.) In Near Ruins. Cultural Theory at the End of the Century. Minneapolis: University of Minnesota Press Durkheim E. 1996. As Formas Elementares da Vida Religiosa. 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