Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

Nova-Retorica - Perelman, Notas de estudo de Engenharia Informática

Texto sobre comunicação e argumentação.

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 29/08/2010

diego-valadares-7
diego-valadares-7 🇧🇷

4.2

(6)

41 documentos

Pré-visualização parcial do texto

Baixe Nova-Retorica - Perelman e outras Notas de estudo em PDF para Engenharia Informática, somente na Docsity! A Nova Retórica de Perelman Tito Cardoso e Cunha Universidade Nova de Lisboa Em 1958, no mesmo ano em que S.Toulmin publicava o seu The Uses of Ar- gument, no continente e reclamando-se de uma outra tradição filosófica, Ch. Perelman, Professor na Universidade Livre de Bruxe- las, publica um livro que terá pelo menos o mesmo relevo no renascimento contemporâ- neo da retórica: Traité de l’Argumentation. La Nouvelle Rhétorique. Só a expressão deste sub-título denota e acentua uma linhagem de que o autor se quer reclamar: a herança aristotélica. Mas o 1o parágrafo da introdução é também ele muito significativo dessa intenção do autor. Es- creve Perelman, a iniciar o seu tratado: "A publicação de um tratado consagrado à argu- mentação e a sua ligação a uma velha tradi- ção, a da retórica e da dialéctica gregas...". Esta 1a parte do 1o §serve obviamente para afirmar com toda a clareza, e desde o início, uma genealogia que coloca a obra na directa sucessão da problemática grega sobre a retó- rica. As raízes são claramente afirmadas e re- montam aos gregos, particularmente a Aris- tóteles. Essa referência helénica é um rea- tar de uma tradição rompida e o reatar dessa tradição e em si mesmo a ruptura com uma outra tradição da modernidade: "...(a publi- cação e a ligação) constituem uma ruptura com uma concepção da razão e do raciocí- nio saídos de Descartes, que marcam com o seu selo a filosofia ocidental."(TA.1) Em suma, o reatamento da tradição grega é uma ruptura com a tradição da moderni- dade cartesiana. Em embrião, estas palavras, escritas em 1958, trazem quase uma premonição do que será a crítica pós-moderna da razão. Em vez da necessidade do encadeamento das ideias no raciocínio e da evidência com que estas se impõem ao espírito, o vocabulário privi- legiado é outro e nele avultam termos como "verosímil", "plausível", "provável". A ve- rosimilhança tem de distintivo em relação à verdade que essa semelhança ao vero se de- cide apenas na instância interlocutória que é um auditório. Há que obter uma "adesão"e é para isso que as "provas"são necessárias. Sendo que estas não mais poderão aspirar do que ao estatuto aproximativo da probabili- dade e do plausível. A verdade, que cartesianamente se impõe pela evidência, não resulta, por isso mesmo, de uma deliberação argumentada nem é por isso também objecto de um consenso. De- liberação e evidencia são duas expressões quase contraditórias, porque, como exem- plarmente escreve Perelman, "não se deli- bera quando a solução é necessária e não se argumenta contra a evidencia."(TA.1) 2 Tito Cardoso e Cunha Em suma, o diferendo é o campo de elei- ção da retórica, ao menos da sua vertente ar- gumentativa. Contrariamente ao que se pre- tendia, Descartes, para quem o diferendo era impossível, há que retoricamente pensar a possibilidade de soluções diferentes sem que o erro seja inevitável. Com efeito, no espírito cartesiano, o diferendo era o mais e mais ób- vio dos sinais do erro. Porque, no passo cé- lebre das Regras... (TA.2): "De cada vez que dois homens fazem sobre uma mesma coisa um juízo contrário, é certo que um dos dois se engana. Mas há mais, nenhum dos dois possui a verdade; porque se tivesse uma vi- são clara e distinta, podê-la-ia expor ao seu adversário de tal modo que acabaria por for- çar a sua convicção." Este forçar da convicção, esta violência simbólica que impõe à mente do outro a ver- dade das coisas segundo um critério univer- sal, é o oposto de uma dialéctica doxoló- gica/doxologia/dialéctica opinativa em que prevaleceu apenas a regra do melhor argu- mento e de onde a violência, mesmo simbó- lica, está ausente. Com efeito, argumentar sustentando uma opinião contra um adversário num diferendo é já reconhecê-lo como interlocutor, renunci- ando à violência da imposição e reconhecer no outro a dignidade de quem pode ser racio- nalmente convencido. É um reconhecimento da outra consciência de si e da sua liberdade. Afastamo-nos, portanto, aqui da rigidez logico-formal centrando inevitavelmente a atenção sobre o modo mais comum de uti- lização da razão na interacção social. Por- que há uma racionalidade in-formal que não tem de, obrigatoriamente, pela sua não- formalidade, soçobrar na emocionalidadade irracional. Sem querer aqui levantar em toda a sua dimensão a discussão sobre a legitimidade dessa exclusão mútua entre razão e emoção, com a qual A.Damásio certamente estaria em desacordo 1 digamos que as provas funda- doras de uma convicção não têm quotidia- namente a exactidão de uma prova dedutiva (ou científica). Basta pensar no sistema ju- rídico e na sua codificação de um conheci- mento procedimental em que a prova tende, e é tudo o que lhe é permitido, a fundar um saber, é certo, mas que o é sobretudo do ve- rosímil, do plausível ou do provável. "Toda a prova seria redução à evidência e o que é evidente não teria necessidade de prova."(TA.5) A noção de evidência tem de ser enten- dida, para que uma teoria da argumentação seja possível, como uma força de persua- são que se insere numa escala proporcional. A evidência marcando um grau extremo de força persuasiva atribuível a um argumento. Como o sublinha Perelman (p. 5) há que não confundir "evidencia"com "verdade", uma vez que a "evidencia"se referirá ape- nas à adesão por parte do espírito que uma ideia merece. Estaremos portanto aqui, e no limite, num campo puramente psicoló- gico (Cf. Toulmin e a recusa do psicolo- gismo pela lógica). Enquanto que a ques- tão da verdade, pelo menos na tradição ra- cionalista cartesiana, contra a qual Perelman se inscreve em ruptura, implica uma necessi- dade e um constrangimento lógico. Em ruptura com um certo projecto da mo- dernidade encarnado pelo racionalismo car- tesiano, Perelman reclama-se muito natural- mente, de uma outra tradição mais antiga que remonta a Aristóteles. Ao Aristóteles sobre- 1António Damásio, Descarte’s Error www.bocc.ubi.pt A Nova Retórica de Perelman 5 O conhecimento psicológico, sociológico ou ideológico do auditório é pois essencial à própria eficácia da argumentação. Compreende-se que assim seja, dado o pa- pel central que a natureza do auditório tem na argumentação. Tendo esta por objectivo, não propriamente a "verdade"mas a verosi- milhança, essa "semelhança ao verdadeiro só pode encontrar um critério de validade ou justeza naquilo que pensa o auditório, qual seja o seu estado de espírito, a força da sua convicção ou crença, eventualmente pela ar- gumentação aduzida. Assim por exemplo, num processo penal com intervenção de um júri o que processu- almente está em causa não é tanto a "ver- dade"dos factos mas antes a adesão do es- pírito dos jurados a uma das teses em con- fronto: culpabilidade ou inocência 6.Mas é aqui que tem a sua raiz o que há de proble- mático na concepção perelmaniana do audi- tório. Com efeito, resulta do que anterior- mente se disse, o inevitável reconhecimento da extrema variação e variedade dos auditó- rios bem como das suas crenças e convic- ções, do seu estado de espírito. A questão agora é de saber se pode exis- tir uma técnica (technê) discursiva retórico - argumentativa válida em todas as circunstan- cias e independente da variação dos auditó- rios. Perelman tenta resolver, em parte, o pro- blema fazendo uma distinção entre "persu- adir"e "convencer", pretendendo que a per- suasão se dirige a um auditório particular e o convencimento a um auditório univer- 6Cf. TA.31: o importante, na argumentação, não é saber o que o orador considera como verdadeiro ou como probante, mas qual é a opinião daqueles a quem se dirige sal caracterizado pela sua simples racionali- dade.(TA.36) Se é verdade que a noção de "persuasão"é precária e está sempre ligada à volatilidade da doxa, haverá talvez que acentuar sobre- tudo o seu cariz relacional. Isto é, a persu- asão é-o sempre de outrem. É uma acção discursiva que se propões obter um resultado no âmbito de uma troca relacional. Enquanto que a convicção é algo que se tem, se guarda ou se defende. É o resultado, eventualmente, de uma acção persuasiva ou, pelo contrário, aquilo que, na sua solidez, se opõe a essa ac- ção. A convicção, e o grau da sua solidez, ou força, é certamente o que mais está em causa no processo argumentativo. Como é que isso se liga à questão da crença e também à sua relativa solidez, os modos da sua aquisição, perda, transforma- ção é algo para cuja análise se teria de mobi- lizar a magna questão da ideologia que, mais cedo ou mais tarde, terá de regressar do rela- tivo esquecimento a que ultimamente foi vo- tada. Regressando ao problema da universali- dade do auditório, convém referir ou lem- brar, por contraste, como esta é uma ideia estranha a Toulmin, para quem até uma boa parte dos argumentos são estritamente de- pendentes de um determinado "campo de argumentação". É certo que ele não faz alusão à ideia de auditório, mas a dife- renciação por si proposta dos "campos de argumentação"leva-nos a pensar que essa dispersão implica uma concomitante disper- são dos auditórios. Seja como for, Perelman, quanto a ele, pretende reconhecer e apenas admitir três ti- pos de auditório: universal, individual e ín- timo. Mas de certa maneira o único modelo é o auditório universal de que os outros dois www.bocc.ubi.pt 6 Tito Cardoso e Cunha não são mais do que "encarnações sempre precárias"(TA.40). O problema, ao que nos parece, está no modo como Perelman entende aquilo a que chamava um "auditório universal"como mo- delo de todos os auditórios particulares, in- dividuais ou íntimos. É que nele reencontra- mos uma ideia de necessidade que segundo ele próprio caracterizava o formalismo ló- gico mas não, precisamente, a argumenta- ção retórica. Escreve: "uma argumentação que se dirige a um auditório universal deve convencer o leitor do carácter constringente das razões fornecidas, da sua evidência, da sua validade intemporal e absoluta, inde- pendente das contingências locais e históri- cas."(TA.41) Onde está a diferença relativa- mente ao que Perelman condenava na "evi- dencia"cartesiana? Dir-se-ia que o recalcamento da lógica, que Perelman tinha expulsado pela janela, regressa agora pela janela. O retorno do re- calcado. É esta contradição que Toulmin resolve, nomeadamente com a ideia da distinção en- tre campos de argumentação e a visão mais processual e menos taxinómica da argumen- tação. Quanto ao auditório individual, é consti- tuído dialogicamente por um só interlocutor, a questão acaba por ser a mesma uma vez que se vê nele uma simples declinação do auditório universal (TA.48 "o auditor único encarna o auditório universal.") O problema também é que Perelman pre- tende situar-se a um nível puramente filosó- fico que exige precisamente essa intenção de universalidade no diálogo como oração ao colectivo. Como atrás se disse, a noção de um auditório mediático não está no seu hori- zonte. Muito provavelmente a argumentação vei- culada pelo discurso mediático não sustenta a mesma pretensão à universalidade que é a do discurso filosófico. Pelo que, uma vez mais a dispersão toulminiana nos parece bem mais adequada. Finalmente, a deliberação íntima do su- jeito consigo próprio num movimento do pensar que se poderá dizer equivaler à pró- pria reflexividade da consciência, adopta também o modelo dialógico da relação ao interlocutor como auditório, num desdobra- mento reflexivo do eu a si próprio. Aqui entra-se num domínio particu- larmente incerto. O razoamento intra- subjectivo, em que medida não releva da simples "racionalização", isto é de uma re- construção pseudo argumentativa que tem por base o simples desconhecimento, por- que inconscientes, das reais "razões"ou "mo- tivações"/fundamentos daquilo de que o su- jeito se pretende auto-persuadir. Freud, aqui, aconselhar-nos-ia a mais extrema prudência. Perelman, aliás, admite que a íntima deli- beração serve sobretudo para "intensificar a convicção"já arreigada, do que a receber no- vas opiniões mesmo que solidamente argu- mentadas. *** Em todo o caso, há pelo menos um aspecto inegavelmente e necessariamente presente em qualquer tipo de argumentação qualquer que seja a sua relação à acção. O discurso argumentativo é sempre constituído por uma palavra performativa, no sentido em que essa palavra cumpre uma acção persuasiva que procura o efeito de "mover a mente"do Ou- tro, "co-movê-la"até criando uma certa "dis- www.bocc.ubi.pt A Nova Retórica de Perelman 7 posição à acção"7. O que também signi- fica, uma vez mais, que, se a acção esco- lhe a palavra para se exercer, é porque re- nuncia à violência. Como escreve Perel- man: "...toda argumentação pode ser enca- rada como um substituto da força material que, pelo constrangimento, se propõe obter efeitos da mesma natureza." Habermas (Cf. Teoria da acção comuni- cativa) envereda também por esta direcção quando distingue a acção comunicativa me- diada pela discussão argumentada que pres- supõe a aceitação mútua de uma certa "ética da discussão", à acção estratégica que se im- põe (instrumentalmente) (Cf.). Essa ética d discussão como pressuposto, está bem defi- nida por Habermas (e Apel Cf.). Isto não significa, obviamente, que essa ética esteja presente necessariamente na inte- racção social discursiva. Há pelo menos dua posturas que, ao serem adoptadas, anulam a possibilidade de argumentar: 1) o que se re- cusa a discutir aquilo que se lhe apresenta como indiscutível e assim acha que deve ser para todos: "Não se discute a Pátria... Deus... Autoridade...). Por outro lado 2) aquele que apenas aceita como válida uma argumentação que pro- vasse, com a necessidade do cálculo lógico, as asserções proferidas. Neste caso tam- bém a discussão argumentada, porque con- 7Cf. TA: "A finalidade de toda a argumentação é a de provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se apresentam ao seu assentimento: uma argumentação eficaz é aquela que consegue aumentar essa intensidade de adesão de modo a desencadear a acção encarada " Ou ainda (TA,62): encararemos sobretudo a ar- gumentação nos seus efeitos práticos: virada para o futuro, propõe-se provocar uma acção ou prepará-la, agindo por meios discursivos sobre os espírito dos au- ditores. tingente nos seus resultados, é igualmente excluída. Isto é, ambos recusam a interacção dia- lógica, um porque se acha na posse da ver- dade necessária e portanto indiscutível, o ou- tro porque, à força de exigir garantias (des- proporcionadas) se condena a não acreditar em nada. *** Se na base de qualquer processo argumen- tativo, assente necessariamente na discursi- vidade como modo da racionalidade, está a renuncia à violência, isso significa que o seu ponto de partida, a sua condição de possibi- lidade, tem de ser um acordo sobre um certo número de coisas. Se seguirmos as propostas de Perelman, constatamos que esse acordo prévio entre o orador e o interlocutor/auditório diz respeito ao que mutuamente se concede e admite co- mummente entre o orador e o seu auditório. Esse acordo exprime-se nas premissas da argumentação. Sem premissas acordadas, explicita ou implicitamente, não há argu- mentação possível, nem sequer comunica- ção. Assim, sendo a argumentação um discurso que se insere numa troca interlocutória recí- proca ao nível da sociabilidade, terá de pres- supor, ou partir de um acordo sobre o que seja, pelo menos, o real. Isto é, como pre- missa da argumentação existe um acordo so- bre o que seja, e que defina e delimite o que é o real. Mas não só, o acordo prévio abrange também o que seja o preferível. Se não há qualquer espécie de acordo so- bre o que seja o real, dificilmente qualquer troca argumentativa se torna possível de su- ceder. Mas entendamo-nos, por real não se www.bocc.ubi.pt 10 Tito Cardoso e Cunha lítico, o fundador ou fundadores terão ten- dência a invocar esse argumento hierárquico para justificar a sua precedência sobre os que chegaram depois. A hierarquização dos valores é portanto determinante numa argumentação, não tanto pelo valores em si serem ou não aceites pelo auditório mas porque este adere com dife- rente intensidade aos diferentes valores , es- tabelecendo assim uma diferenciação hierár- quica entre eles (TA.109). Um outro aspecto decisivo para o discurso argumentativo é a questão dos lugares (to- poi) ditos "comuns". Também aqui alguns equívocos têm sido constantes. A expres- são "lugar comum"evoca-nos a ideia pejora- tiva de banalidade desinteressante, algo que já se sabe e que toda a gente pensa irreflec- tidamente. E no entanto a expressão tem originalmente, nomeadamente em Aristóte- les, um significado bem diferente. A ex- pressão "lugar do discurso"designa um argu- mento por assim dizer "pré-fabricado"e que se encontra à disposição do orador. Foram mesmo construídos elencos mais ou menos exaustivos desses lugares (do discurso). A ideia do lugar comum servia a Aristóteles para o distinguir do lugar específico. Sendo que o lugar comum era utilizável em qual- quer domínio da argumentação (campos de argumentação, diria Toulmin) enquanto que o lugar específico só tem lugar num campo determinado. Na terminologia de Toulmin, dir-se-ia que o lugar comum é invariante relativamente ao campo de argumentação enquanto que o lu- gar específico é dependente de um determi- nado campo. Os lugares, sejam eles comuns ou específi- cos, têm uma função predominante nas pre- missas de qualquer argumentação uma vez que, por definição, são o tipo de argumen- tos relativamente aos quais o orador pode ter por assegurado o acordo do auditório. Esse acordo já anteriormente teria sido estabele- cido, senão esse argumentos não seriam lu- gares (topoi). Com Perelman, distinguir-se-ão, de entre a multiplicidade de lugares possíveis, duas grandes categorias: os lugares da quantidade e os da qualidade. Os lugares da quantidade afirmam a pre- ferência por algo baseado numa valorização da quantidade. A noção de quantidade aqui pode ter várias declinações, nomeadamente a declinação temporal em que se valoriza a quantidade de tempo e portanto a durabili- dade ou estabilidade. Por exemplo na publicidade de uma casa comercial, pôr em evidencia a sua antigui- dade / durabilidade escrevendo sobre a porta ou no logotipo "estabelecido desde 1769"é uma utilização corrente do lugar comum da quantidade que neste caso valoriza a antigui- dade, durabilidade, estabilidade, tudo isso aqui passando a ser sinónimo de qualidade. É claro que tudo depende do tipo de mer- cadoria. Se porventura se trata de propor algo que se quer caracterizar pela sua novi- dade, esse lugar não seria o mais adequado. Aliás, o lugar comum da quantidade, nesta sua declinação temporal, está por vezes no centro da argumentação sobre a retórica. No Górgias de Platão a verdade é preferida à opinião precisamente através da valorização que o lugar da quantidade faz da estabilidade da verdade em contraste com a inconstância da opinião da opinião. Já na argumentação em defesa da demo- cracia e ao estabelecer-se a regra da preva- lência da maioria, está-se a utilizar o lugar www.bocc.ubi.pt A Nova Retórica de Perelman 11 da quantidade, e da sua preferência, fora já da dimensão temporal. É claro que a utilização do lugar comum da quantidade, ao acentuar a estabilidade temporal ou a maioria puramente quantita- tiva, terá tendência a valorizar sobretudo o que é normal, habitual em detrimento do que é excepcional. A partir daí torna-se curto o passo que vai da valorização da normalidade ao estabelecimento da norma: "só o lugar da quantidade autoriza esta assimilação, um as- pecto quantitativo das coisas, à norma que afirma que esta frequência é favorável e que nos devemos conformar"(TA.118). Quanto aos lugares da qualidade, normal- mente servem para contestar os lugares da quantidade. Nomeadamente quanto á valori- zação da durabilidade, como da maioria, por exemplo. O lugar da quantidade valorizará o aconte- cimento único relativamente ao que perdura e a qualidade da minoria - unicidade, iden- tidade, raridade - relativamente à quantidade da maioria. Uma boa parte da argumentação estética utiliza os lugares comuns da qualidade ao valorizar, por exemplo, a originalidade. O que é original é único, distinto, irrepetível. Basta lembrar a valorização do original rela- tivamente à reprodução de que nos fala Wal- ter Benjamin no seu célebre ensaio sobre "A obra de arte na era da sua reproductibilidade técnica." Toda a lógica do valor signo de que fala Baudrillard assenta também discursivamente no lugar da qualidade ao valorizar precisa- mente a diferenciação, a unicidade, a iden- tidade única. O que não deixa de suscitar alguns paradoxos como é o da moda, por exemplo. A moda, valorizando discursiva- mente, pelo lugar da qualidade, a originali- dade, o diferente e o único, suscita a adesão da maioria que é precisamente o que mais contradiz a diferença, a originalidade e a uni- cidade. Quando toda a gente anda vestida da mesma maneira, a moda exige a invenção de outra coisa. Daí também a valorização qualitativa do raro, da escassez ou do que é irrepetível e único enquanto acontecimento (cf. O aniver- sário) que é a própria vida. Toda a discursividade ecológica sobre a protecção das espécies assenta no lugar da qualidade valorizando o que é único e raro. Ironicamente, a valorização da unicidade pelo emprego sarcástico do lugar da quali- dade, tem sido utilizado para denegrir aquilo a que recentemente, neste fim da história a acreditar em Fukuyama, se tem designado por "pensamento único". Muitos outros lugares se poderiam distin- guir e os antigos o fizeram. Escapando à ten- tação de exaustividade, enumerem-se apenas os possíveis lugares da ordem, do existente, da essência: a ordem anterior/posterior; a existência preferível ao possível (mais vale um pássaro na mão do que dois a voar); a es- sência (A essência humana relativamente às diferenças étnicas), etc. *** Uma questão prévia essencial a toda argu- mentação e que a condiciona à partida é a selecção dos factos ou dados relevantes, per- tinentes ou assim considerados. A problemática do agenda-setting mos- trou que a selecção dos factos por parte das instancias próprias nos media, determina o conteúdo do que é a actualidade. São notícia, e portanto existem, os factos que os media tornam visíveis. A actualidade como cons- trução. www.bocc.ubi.pt 12 Tito Cardoso e Cunha Ora, a selecção dos factos, mas não só... também a selecção de toda a espécie de noções utilizáveis na argumentação, resul- tando de uma escolha que implica exclusões, torna esses factos presentes, literalmente visíveis no caso da TV. Presença que lhes dá uma força de convicção que torna muito mais eficaz a sua utilização na argumentação 10.Numa discussão sobre a pena de morte por exemplo, a descrição "eloquente"feita por um bom orador do sofrimento das vítimas; a selecção, pela evocação, de vítimas infantis, a descrição expressiva da perversidade do assassino, tudo isso torna presente uma abjecção que só pode condicionar o espírito do auditório a aderir a tese da pena de morte. É claro que aí se faz uma escolha de factos que omite, por exemplo, os estudos sérios e rigorosos demonstrando a fraca capacidade dissuasória da ameaça da pena de morte. As técnicas argumentativas É possível construir, a partir de Perelman uma grelha de análise que permita identificar os argumentos, classificá-los e compreender a sua articulação tentando medir a sua eficá- cia persuasiva. Perelman distingue três grandes grupos de argumentos: argumentos quase-lógicos, ar- gumentos baseados na estrutura do real e ar- gumentos que fundam a estrutura do real. Os primeiros, como o nome indica, constroem-se à imagem de princípios lógicos como que numa versão mais fraca destes. Os argumentos baseados na estrutura do real constroem-se a partir, não do que o real é, no sentido ontológico, mas do que o audi- 10"Não chega uma coisa existir para que se tenha o sentimento da sua presença"(TA.156). tório acredita que ele seja, isto é aquilo que ele toma por factos, verdades ou presunções. Finalmente, os argumentos que fundam a estrutura do real. É um tipo de argumenta- ção que opera como que por indução estabe- lecendo generalizações e regularidades, pro- pondo modelos, exemplos, ilustrações a par- tir de casos particulares. Mas antes disso há que referir as premissas da argumentação. Premissas da argumentação Todo o movimento da argumentação con- siste em transpor a adesão inicial que o au- ditório tem relativamente a uma opinião que lhe é comum para uma outra de que o ora- dor o quer convencer. Daí a importância do kairós e do conhecimento que o orador deve possuir do seu auditório, das suas opiniões, das suas crenças, enfim de tudo aquilo que ele tem por admitido. Essas devem ser as premissas da argumen- tação: as teses sobre as quais há um acordo. É claro que se pode sempre utilizar o estra- tagema da petição de princípio simulando to- mar por acordado precisamente aquilo que se trata de demonstrar. No entanto não é esse o procedimento habitual. Segundo Perelman há dois tipos de acordo presentes nas premissas da argumentação: acordo sobre o Real e sobre o Preferível. O acordo sobre o real exprime-se em juí- zos sobre o real conhecido ou presumido: tudo o que é admitido pelo auditório como facto, verdade ou presunção. O acordo sobre o que é preferível exprime-se em juízos que estabelecem uma preferência em termos de valor, hierarquia ou ainda nos lugares (comuns) do prefe- rível: quantidade (a maioria preferível à minoria), qualidade (o que é raro preferível ao que é banal), existente (prefere-se o que www.bocc.ubi.pt A Nova Retórica de Perelman 15 operam acentuando ora a inclusão das partes no todo, ora a divisão do todo em partes. Assim, por exemplo, e frequentemente, quando se quer argumentar a favor do cen- tralismo e contra a regionalização acentua-se a inclusão das diversas regiões no todo naci- onal. Pelo contrário, quando aquilo que se quer defender é a regionalização, faz-se no- tar que o todo nacional se divide em partes com a sua identidade própria e as suas dife- renças relativamente ao todo. A maior parte das vezes, porém, este tipo de argumento valoriza o todo em detrimento das partes; não há nenhum dirigente partidá- rio (et pour cause..., precisamente um "par- tido"é apenas uma parte) que não ponha os interesses do País acima do interesse partidá- rio, nenhum presidente que não o seja "de to- dos os portugueses"ou nenhum militante que não ponha os interesses do todo partidário acima dos seus interesses próprios ou da sua facção. No entanto o argumento da divisão tam- bém tem a sua eficácia quando se quer pôr em relevo as partes que constituem o todo obtendo um efeito retórico certo pela enume- ração exaustiva das partes constituintes do todo: "Portugal do Minho ao Algarve". An- tigamente ia até Timor. Procura-se assim provar a existência do conjunto obtendo o efeito de aumentar a presença das partes pela sua enumeração mais ou menos exaustiva. f) Comparação A comparação como argumento põe em confronto realidades diferentes para as avaliar umas em relação às outras. Quando se diz que Aveiro é a Veneza de Portugal está-se a comparar as duas cidades para obter um efeito de valorização do elemento mais fraco da comparação. Argumentos baseados na estrutura do real Enquanto os argumentos quase-lógicos procuram beneficiar da sua proximidade com princípios lógico-matemáticos dos quais re- tiram alguma força e credibilidade, os argu- mentos de que a seguir se tratará utilizam a estrutura do real para estabelecer uma liga- ção entre opiniões estabelecidas acerca dessa estrutura e outras de que se procura conven- cer o interlocutor . Mais uma vez há que sublinhar que quando se fala aqui de "realidade"não se está a referir o sentido ontológico do termo mas apenas as opiniões que existem e se formu- lam acerca da realidade; aquilo que é o resul- tado de uma construção social da realidade. Há que distinguir dois grupos: 1o- Os argumentos que se aplicam a re- lações de sucessão que ligam um aconteci- mento quer às suas causas quer às suas con- sequências. 2o- Os argumentos que usam relações de coexistência entre uma essência e as suas manifestações. 1 – Relação de sucessão A relação causal é, por assim dizer, o pro- tótipo da relação de sucessão. Dado um acontecimento procura-se encontrar uma ou várias causas antecedentes que o determi- nam. Assim em Portugal ainda hoje se discute sobre a descolonização de 1975 e o modo como ela aconteceu relacionando-a, em ter- mos de causalidade, segundo as correntes, www.bocc.ubi.pt 16 Tito Cardoso e Cunha quer à própria revolução do 25 de Abril, quer ao imobilismo salazarista que não soube pre- parar em devido tempo as independências. A mesma argumentação se aplica cor- rentemente ao relacionar a criminalidade (efeito) com a droga (causa). Por outro lado, o mesmo argumento pode ser usado para defender algo pondo em evi- dência os efeitos que daí resultam: eram deste tipo alguns dos argumentos que se uti- lizaram para defender a integração de Portu- gal na Comunidade europeia. Dizia-se que ela traria como efeito a irreversibilidade da democracia e o desenvolvimento. Partia-se obviamente do princípio que a esmagadora maioria do auditório perfilhava a opinião de que esses efeitos eram desejáveis. Um outro exemplo de argumentação fundada numa relação de sucessão entre causa e consequências, entre meio e fim, é o que se utiliza frequentemente nos debates sobre as vantagens e desvantagens dos diferentes sistemas eleitorais. Era costume utilizar o argumento das consequências desse regime quer para o criticar, quando se lhe atribuía a consequência da instabilidade governativa, quer para o apoiar quando se sublinhava como consequência uma maior representatividade democrática. 2 – Relação de coexistência Enquanto na ligação de sucessão os ele- mentos se situam a um mesmo nível dentro de uma relação temporal, na relação de co- existência os elementos estão em níveis dis- tintos e a dimensão temporal é irrelevante. O argumento fundado na relação de coe- xistência estabelece uma ligação de coexis- tência entre uma essência e as suas manifes- tações. Assim se argumenta que os actos praticados coexistem com a pessoa que os pratica. Assim qualquer político, primeiro- ministro ou presidente de câmara, estabele- cerá a ligação de coexistência entre a sua pessoa e os actos que lhe convém fazer res- saltar como manifestação de si: as estrada, as pontes, etc. E lá fica a placa para perpetuar essa coexistência. É também com este argumento que estabelece a relação de coexistência entre um criminoso e os seus actos, a menos que seja considerado ininputável, caso em que a argumentação consistirá em mostrar que essa coexistência não existe. Será preciso então mostrar que, no momento do crime, o indivíduo em causa não estava "no pleno uso das suas faculdades mentais". Isto é que o acto cometido não era manifestação da sua essência enquanto pessoa consciente e livre. Argumentos que fundam a estrutura do real Neste tipo de argumentação um caso parti- cular é utilizado, generalizando-o como que indutivamente, para estabelecer aquilo que se acredita ser uma estrutura do real social- mente construído. Mas há que distinguir variantes deste tipo de argumento: 1 – Exemplo O exemplo pretende generalizar esta- belecendo uma regra a partir de um caso concreto: o exemplo de um indivíduo de etnia cigana implicado num caso de tráfico de droga é utilizado como argumento para generalizar e estabelecer uma regra segundo a qual todos os ciganos são traficantes. O que justifica a sua expulsão de Ponte de www.bocc.ubi.pt A Nova Retórica de Perelman 17 Lima, por exemplo. 2 – Ilustração A ilustração como argumento procura reforçar a adesão à crença numa regra já estabelecida. Ilustra-se a regra com casos particulares que tornam a regra mais pre- sente. Como diz Perelman, "os exemplo servem para provar a regra, as ilustrações para a tornar clara."13 3 – Modelo O uso do modelo na argumentação propõe a sua imitação. O comportamento de um grande homem é frequentemente utilizado como modelo que se pretende deve suscitar a imitação: "o valor da pessoa, previamente reconhecido, constitui a premissa de onde se tirará uma conclusão preconizando um comportamento particular."14 Analogia e metáfora A analogia é, consabidamente, um dos procedimentos mais utilizados pelo raciocí- nio. Estabelece uma relação de similitude entre duas relações que unem duas entidades. Não se trata portanto de uma semelhança en- tre as entidades mas entre as relações que li- gam cada um dos pares: "não é uma relação de semelhança; é uma semelhança de rela- ção". A analogia postula que a relação entre A e B é semelhante à relação entre C e D. Por isso a analogia pode fundar uma me- táfora. Aliás, na perspectiva de Perelman o 13Idem, ibidem, p.481 14Idem, ibidem, p.488 valor argumentativo da metáfora vem-lhe da analogia que lhe subjaze e ela esconde. Assim por exemplo, o verso de Rui Ve- loso que diz: "A primavera da vida é bela de viver"esconde uma analogia que sustenta a metáfora "primavera da vida"referida à ado- lescência. A analogia enunciar-se-ia assim: "a primavera está para a natureza como a ju- ventude está para a - vida". Isto é: Primavera A C Juventude ............ = ............ Natureza B D Vida Há pois uma assimilação do que é desco- nhecido (a juventude da vida) ao que é des- conhecido (a primavera da natureza). Pode-se assim fazer um uso argumentativo da analogia na medida em que desloca a ade- são do espírito daquilo que é conhecido para o que é desconhecido. A metáfora é aliás, classicamente, definida precisamente como um transporte de sentido de uma palavra para outra. Argumentar pode também consistir em sustentar uma analogia mostrando a sua ade- quação. É pois função da analogia esclarecer o segundo termo da comparação (juventude, vida) pelo primeiro (primavera, natureza). A relação entre primavera e natureza é análoga à relação entre juventude e vida. A mesma analogia poderia sustentar uma outra metáfora menos habitual do género "juven- tude da natureza". Acontece no entanto que as metáforas se usam, perde-se-lhes a origem e esquece-se o seu carácter metafórico. Perelman dá como exemplo a expressão "o ∼ da cadeira"que se www.bocc.ubi.pt
Docsity logo



Copyright © 2024 Ladybird Srl - Via Leonardo da Vinci 16, 10126, Torino, Italy - VAT 10816460017 - All rights reserved