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Guias e Dicas
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Contos - José Maria Eça de Queirós, Notas de estudo de Literatura

Contos - José Maria Eça de Queirós

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 25/08/2010

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izabele-caroline-rodrigues-gomes-4 🇧🇷

4.3

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Baixe Contos - José Maria Eça de Queirós e outras Notas de estudo em PDF para Literatura, somente na Docsity! Eça de Queirós Contos Ciberfil Literatura Digital Versão para Adobe Acrobat Reader por Rodolfo S. Cassaca Março de 2002 Permitida a distribuição Visite nosso site: www.ciberfil.hpg.ig.com.br ou mande-nos um e-mail: ciberfil@yahoo.com raízes, uns magros e agudos, de cerdas duras, outros redondos, com o focinho curto afogado em gordura, e os bacorinhos correndo em torno às tetas das mães, luzidios e cor-de-rosa. Frei Genebro pensou nos lobos e lamentou o sono do pastor descuidado. No fim da mata começava a rocha, onde os restos do castelo lombardo se erguiam, revestidos de hera, conservando ainda alguma seteira esburacada sobre o céu, ou, numa esquina de torre, uma goteira que, esticando o pescoço do dragão, espreitava por meio das silvas bravas. A cabana do ermitão, telhada de colmo que lascas de pedra seguravam, apenas se percebia, entre aqueles escuros granitos pela horta que em frente verdejava, com os seus talhões de couve e estacas de feijoal, entre alfazema cheirosa. Egídio não andaria afastado porque sobre o murozinho de pedra solta ficara pousado o seu cântaro, o seu podão e a sua enxada. E docemente, para o não importunar, se àquela hora da sesta estivesse recolhido e orando, Frei Genebro empurrou a porta de pranchas velhas, que não tinha loquete para ser mais hospitaleira. — Irmão Egídio! Do fundo da choça rude, que mais parecia cova de bicho, veio um lento gemido: — Quem me chama? Aqui, neste canto, neste canto a morrer!... A morrer, meu irmão! Frei Genebro acudiu em grande dó; encontrou o bom ermitão estirado num monte de folhas secas, encolhido em farrapos e tão definhado que sua face, outrora farta e rosada, era como um pedaço de velho pergaminho, muito enrugado, perdido entre os flocos das barbas brancas. Com infinita caridade e doçura, o abraçou. — E há quanto tempo, há quanto tempo, neste abandono, irmão Egídio? Louvado Deus, desde a véspera! Só na véspera, à tarde, depois de olhar uma derradeira vez para sol e para a sua horta, se viera estender naquele canto para acabar... Mas havia meses que com ele entrara um cansaço, que nem podia segurar a bilha cheia quando voltava da fonte. — E dizei, irmão Egídio, pois que o Senhor me trouxe, que posso fazer eu pelo vosso corpo? Pelo corpo, digo; que pela alma bastante tendes vós feito na virtude desta solidão! Gemendo, arrepanhando para o peito as folhas secas em que jazia, como se fossem dobras dum lençol, o pobre ermitão murmurou: — Meu bom frei Genebro, não sei se é pecado, mas toda esta noite, em verdade vos confesso, me apeteceu comer um pedaço de carne, um pedaço de porco assado... Mas será pecado? Frei Genebro, com a sua imensa misericórdia, logo o tranqüilizou. Pecado? Não, certamente. Aquele que, por tortura, recusa ao seu corpo um contentamento honesto, desagrada ao Senhor! Não ordenava ele aos seus discípulos que comessem as boas coisas da terra? O corpo é servo; e está na vontade divina que as suas forças sejam sustentadas, para que preste ao espírito, seu amo, bom e leal serviço. Quando Frei Silvestre, já tão doentinho, sentira aquela longo desejo de uvas moscatéis, o bom Francisco de Assis logo o conduziu à vinha, e por suas mãos apanhou os melhores cachos, depois de os abençoar para serem mais sumarentos e doces... — É um pedaço de porco assado que apeteceis? — exclamava risonhamente o bom Frei Genebro, acariciando as mãos transparentes do ermitão — Pois sossegai, irmão querido, que bem sei como vos contentar E imediatamente, com os olhos a reluzir de caridade e de amor, agarrou o afiado podão que pousava sobre o muro da horta. Arregaçando as mangas do hábito, e mais ligeiro que um gamo, porque era aquele um serviço do Senhor, correu pela colina até os densos castanheiros onde encontrara o rebanho de porcos. E aí, andando sorrateiramente de tronco para tronco, surpreendeu um bacorinho desgarrado que fossava a bolota, e desabou sobre ele, e enquanto lhe sufocava o focinho e os gritos, decepou, com dois golpes certeiros do podão, a perna por onde o agarrava. Depois, com as mãos salpicadas de sangue, deixando a rês a arquejar numa poça de sangue, o piedoso homem galgou a colina, correu à cabana, gritou dentro alegremente: — Irmão Egídio, a peça de carne já o Senhor a deu! E eu, em Santa Maria dos Anjos, era bom cozinheiro. Na horta do ermitão arrancou uma estaca do feijoal, que, como podão sangrento, aguçou em espeto. Entre duas pedras acendeu uma fogueira. Com zeloso carinho assou a perna do porco. Era tanta a sua caridade que para dar a Egídio todos os antegostos daquele banquete, raro em terra de mortificação anunciava com vozes festivas e de boa promessa: — Já vai aloirando o porquinho, irmão Egídio! A pele já tosta, meu santo! Entrou enfim na choça triunfalmente, com o assado que fumegava e rescindia, cercado de frescas folhas de alface. Ternamente ajudou a sentar o velho, que tremia e se babava de gula. Arredou das pobres faces maceradas os cabelos que o suor da fraqueza empastara. E, para que o bom Egídio não vexasse com a sua voracidade e tão carnal apetite, ia afirmando enquanto lhe partia as febras gordas, que também ele comeria regaladamente daquele excelente porco se não tivesse almoçado à farta na Locanda dos três Caminhos! — Mas nem bocado agora me podia entrar, meu irmão! Com uma galinha inteira me atochei! E depois uma fritada de ovos! E de vinho branco, um quartinho! E o santo homem mentia santamente — porque, desde madrugada, não provara mais que um magro caldo de ervas, recebido por esmola à cancela de uma granja. Farto, consolado, Egídio deu um suspiro, recaiu no seu leito de folha seca. Que bem lhe fizera, que bem lhe fizera! O Senhor, na sua justiça, pagasse a seu irmão Genebro aquele pedaço de porco!... E o ermitão, com as mãos postas, Genebro ajoelhado, ambos louvaram, ardentemente, o Senhor que, a toda necessidade solitária, manda de longe o socorro. Então, tendo coberto Egídio com um pedaço de manta e posto, a seu lado, a bilha cheia de água fresca, e tapado, contra as aragens da tarde, a fresta da cabana, Frei Genebro, debruçado sobre ele, murmurou: — Meu bom irmão, vós não podeis ficar neste abandono... Eu vou levado por obra de Jesus, que não admite tardança. Mas passarei no convento de Sambricena e darei recado para que um noviço venha e cuide de vós com amor, no vosso transe. Deus vos vele entretanto, meu irmão; Deus vos sossegue e vos ampare com a sua mão direita. Mas Egidio cerrara os olhos, nem se moveu, ou porque adormecera, ou porque seu espírito, tendo pago aquele derradeiro salário ao corpo, como a um bom servidor, para sempre partira, finda a sua obra na terra. Frei Genebro pensava quanto era magnânimo o Senhor em permitir que o homem, feito à sua imagem augusta, recebesse tão fácil consolação duma perna decerto assada entre duas pedras. Retornou a estrada, marchou para Terni. E prodigiosa foi, desde esse dia, a atividade de sua virtude. Através de toda a Itália, sem descanso, pregou o Evangelho Eterno, adoçando a aspereza dos ricos, alargando a esperança dos pobres. O seu imenso amor ia ainda para além dos que sofrem, até aqueles que pecam, oferecendo um alívio a cada dor, estendendo um perdão a cada culpa: e com a mesma caridade que tratava os leprosos, convertia os bandidos. Durante as invernias e a neve, vezes inumeráveis dava, aos mendigos, a sua túnica, as suas alpercatas; os abades dos mosteiros ricos, as damas devotas de novo o vestiam, para evitar o escândalo de sua nudez através das cidades; e, sem demora, na primeira esquina, ante qualquer esfarrapado, ele se despojava sorrindo. Para remir servos que penavam sob um amo feroz, penetrava nas igrejas, afirmando, jovialmente, que mais apraz a Deus uma alma liberta que uma tocha acesa. Cercado de viúvas, de crianças famintas, invadia as padarias, açougues, até as tendas dos cambistas, e reclamava imperiosamente, em nome de Deus, a parte dos deserdados. Sofrer, sentir a humilhação eram, para ele, as únicas alegrias completas: nada o deliciava mais do que chegar de noite molhado, esfaimado, tiritando, a uma opulenta abadia feudal, e ser repelido da portaria como um mau vagabundo; só então, agachado nos lodos do caminho, mastigando um punhado de ervas cruas, ele se reconhecia verdadeiramente irmão de Jesus, que não tivera também, como têm sequer os bichos do mato, um covil para se abrigar. Quando um dia, em Perusa, as confrarias saíram ao seu encontro, com bandeiras festivas, ao repique dos sinos, ele correu para um monte de esterco, onde se rolou e se sujou, para que daqueles que o vinham engrandecer, só recebesse compaixão e escárnio. Nos claustros, nos descampados, em meio das multidões, durante as lides mais pesadas, orava constantemente, não por obrigação, mas porque na prece encontrava um deleite adorável. Deleite maior, porém, era, para o franciscano, ensinar e servir. Assim, longos anos errou entre os homens, vertendo seu coração como a água de um rio, oferecendo os seus braços como alavancas incansáveis; e tão depressa, numa ladeira deserta, aliviava uma pobre velha de sua carga de lenha, como numa cidade revoltada, onde reluzissem armas, se adiantava, com o peito aberto, e amansava as discórdias. inexprimível amor e terror. E na estática mudez, a vasta mão, através das alturas, lançou um gesto que repelia... Então o anjo, baixando a face compadecida, alargou os braços e deixou cair, na escuridão do Purgatório, a alma de Frei Genebro. O Senhor Diabo Como está provado que sou redondamente inapto para escrever Revistas, dizer finamente das Modas, e falar da literatura contemporânea herdeira honesta do defunto sr. Prudhomme, é justo, ao menos, que de vez em quando conte uma história amorosa, uma daquelas historias femininas e macias, que nos seroes de Trieste faziam adormecer nas suas cadeiras douradas as senhoras arquiduquesas de Áustria. Conhecem o Diabo? Não serei eu quem lhes conte a vida dele. E, todavia, sei de cor a sua legenda trágica, luminosa, celeste, grotesca e suave! O Diabo é a figura mais dramática da História da Alma. A sua vida é a grande aventura do Mal. Foi ele que inventou os enfeites que enlanguescem a alma, e as armas que ensangüentam o corpo. E todavia, em certos momentos da história, o Diabo é o representante imenso do direito humano. Quer a liberdade, a fecundidade, a força, a lei. É então uma espécie de Pã sinistro, onde rugem as fundas rebeliões da Natureza. Combate o sacerdócio e a virgindade; aconselha a Cristo que viva, e aos místicos que entrem na humanidade jr. É incompreensível: tortura os santos e defende a Igreja. No século 16 é o maior zelador da colheita dos dízimos. É envenenador e estrangulador. É impostor, tirano, vaidoso e traidor. Todavia, conspira contra os imperadores da Alemanha; consulta Aristóteles e Santo Agostinho, e suplicia Judas que vendeu Cristo e Bruto que apunhalou César. O Diabo ao mesmo tempo tem uma tristeza imensa e doce. Tem talvez nostalgia do Céu! Ainda novo, quando os astros lhe chamavam Lúcifer, o que leva a luz, revolta-se contra Jeová e comanda uma grande batalha entre as nuvens. Depois tenta Eva, engana o profeta Daniel, apupa Jó, tortura Sara e em Babilônia é jogador, palhaço, difamador, libertino e carrasco. Quando os deuses foram exilados, ele acampa com eles nas florestas úmidas da Gália e embarca expedições olímpicas nos navios do imperador Constâncio. Cheio de medo diante dos olhos tristes de Jesus, vem torturar os monges do Ocidente. Escarnecia S. Macário, cantava salmos na igreja de Alexandria, oferecia ramos de cravos a Santa Pelágia, roubava as galinhas do abade de Cluny, espicaçava os olhos de S. Sulpício e à noite vinha, cansado e empoeirado, bater à portaria do convento dos dominicanos em Florença e ia dormir na cela de Savonarola. Estudava o hebreu, discutia com Lutero, anotava glosas para Calvino, lia atentamente a Bíblia e vinha ao anoitecer para as encruzilhadas da Alemanha jogar, com os frades mendicantes, sentados na relva, sobre a sela do seu cavalo. Intentava processos contra a Virgem; e era o pontífice da missa negra, depois de ter inspirado os juízes de Sócrates. Nos seus velhos dias, ele que tinha discutido com Átila planos de batalha, deu-se ao pecado da gula. E Rabelais, quando o viu assim, fatigado, engelhado, calvo, gordo e sonolento, apupou-o. Então o demonógrafo Wier escreve contra ele panfletos sanguinolentos e Voltaire criva-o de epigramas. O Diabo sorri, olha em roda de si para os calvários desertos, escreve suas memórias e num dia enevoado, depois de ter dito adeus aos seus velhos camaradas, os astros, morre enfastiado e silencioso. Então Ceranger escreve-lhe o epitáfio. O Diabo foi celebrado, na sua morte, pelos sábios e pelos poetas. Proclus ensinou a sua substância, Presul as suas aventuras da noite, S. Tomás revelou seu destino. Torquemada disse a sua maldade, e Pedro de Lancre a sua inconstância jovial. João Dique escreveu sobre sua eloquência e Jacques I de Inglaterra fez a corografia de seus estados. Milton disse a sua beleza e Dante a sua tragédia. Os monges ergueram-lhe estátuas. O seu sepulcro é a Natureza. O Diabo amou muito. Foi namorado gentil, marido, pai de gerações sinistras. Foi querido, na Antigüidade, da mãe de César e na Meia Idade foi amado da bela Olímpia. Casou no Brabante com a filha de um mercador. Tinha entrevistas lânguidas com Fredegonda, que assassinou duas gerações. Era o namorado das frescas serenatas das mulheres dos mercadores de Veneza. Escrevia melancolicamente às monjas dos conventos da Alemanha. Feminae in illius amore delectantur, diz tragicamente o abade César de Helenbach. No século 12, tentava com olhares cheios de sol as mães melodramáticas dos Burgraves. Na Escócia havia grande miséria sobre os montes: o Diabo comprava por 15 shillings o amor das mulheres dos highlanders e pagava com o dinheiro falso que fabricava em companhia de Filipe I, de Luís VI, de Luís VII, de Filipe, o Belo, do rei João, de Luís XI, de Henrique II, com o mesmo cobre de que se faziam as caldeiras onde eram cozidos vivos os moedeiros falsos. Mas eu quero só contar a história de um amor infeliz do Diabo, nas terras do Norte. Ó mulheres! Vós todas que tendes dentro do peito o mal que nada cura, nem os simples, nem os bálsamos, nem os orvalhos, nem as rezas, nem o pranto, nem o sol, nem a morte, vinde ouvir essa história florida! Era na Alemanha, onde nasce a flor do absinto. AA casa era de pau, bordada, rendilhada, cinzelada, como a sobrepeliz do senhor arcebispo de Ulm. Maria, clara e loura, fiava na varanda, cheia de vasos, de trepadeiras, de ramagens, de pombas e de sol. No fundo da varanda havia um Cristo de marfim. As plantas limpavam piedosamente com as suas mãos de folhas, o sangue das chagas, as pombas, com o calor do E ergueu para a varanda os seus olhos terríveis e desoladores, como blasfêmias de luz. Maria tinha levantado a sua roca e só havia na varanda as aves, as flores e Jesus. — A toutinegra voou — disse jovialmente. E indo para Jusel: — É que talvez sentisse a vizinhança do abutre. Que diz o Bacharel? Jusel, com os olhos serenos, desfolhava a margarida. — No meu tempo, senhor Suspiro — disse o homem dos olhos negros, cruzando lentamente os braços — já havia aqui duas espadas, a fazer rebentar na sombra flores de faíscas. Mas os heróis vão-se, e os homens nascem cada vez mais da dor das mulheres. Vejam isso! É um coração com gibão e gorra. Mas coração branco, pardo, alvacento, de todas as cores, menos vermelho e sólido. Pois bem! Aquela rapariga tem uns cabelos louros que dizem bem com os meus cabelos pretos. As cintas delgadas querem braços fortes. Os lábios vermelhos de desejam gostam as armas vermelhas de sangue. É minha a dama, senhor Bacharel! Justel tinha descido as suas grandes pálpebras elegíacas e via as pétalas arrancadas da margarida caírem como desejos assassinados, desprendidos do seu peito. O homem dos olhos resplandecentes tomou-lhe rigidamente a mão. — Bacharel Ternura — disse — há aqui perto um lugar onde os goivos nascem expressamente para os inocentes que morrem. Se tens alguns bens a deixar, recomendo-te este excelente Rabil. — Era o pajem. — É necessário proteger as aves da noite. Os abutres bocejam desde que findou a guerra. Vou-lhes dar ossos tenros. Se queres deixar o coração à bem-amada, à moda dos trovadores, eu me encarrego de lho trazer, bem embalsamado, em lama, na ponta da espada. Tu és formoso, amado, branco, delicado, perfeito. Vê-me isto, Rabil. É uma farsa bem feita ao Compadre lá de cima dos sóis, dilacerar-lhe esta beleza! Se namoravas alguma estrela, eu lhe mandarei por bom portador os teus últimos adeuses. Enquanto aos sacramentos, são inúteis; eu me encarrego de te purificar pelo fogo. Rabil, toca na guitarra o rondoó de defuntos: anuncia no Inferno, o Bacharel Suspiro! A caminho, meus filhos! Ah! Mas em duelo secreto, armas honradas! E batendo heroicamente nos copos da espada: — Eu tenho aqui esta debilidade, onde está a tua força? — Ali! — respondeu Jusel, mostrando Cristo na varanda, entre a folhagem, agonizante entre as palpitações das asas. — Ah! — disse cavamente o homem da flor de cacto. A mim, Rabil! Lembras-te de Actéon, de Apolo, de Derceto, de Íaco e de Marte? — Eram os meus irmãos — disse lentamente o pajem, hirto como uma figura de pedra. — Pois bem, Rabil, para a frente, através da noite. Cheira-me aqui às terras de Jerusalém. Na noite seguinte havia pela Alemanha um grande luar purificador. Maria estava debruçada na varanda. Era a hora celeste em que os jasmins concebem. Em baixo, o olhar de Jusel, que estava encostado aopilar, suspirava para aquele corpo feminino e branco, como nos jardins a água que sobe em repuxo suspira para o azul. Maria disse suspiradamente: — Vem. Jusel subiu à varanda, radioso. Sentaram-se ao pé da imagem. O ar estava tão sereno como na pátria das armas. Os dois corpos dobraram-se, um para o outro, como se estivessem aproximando os braços de um Deus. As folhagens escuras que envolviam Cristo estendiam-se sobre as duas cabeças louras com gestos de bênção. Havia na moleza das sombras um mistério nupcial. Jusel tinha as mãos dela presas como pássaros cativos e dizia: — Queria bem ver-te, assim, ao pé de mim. Se soubesses! Tenho receios infinitos. És tão loura, tão branca! Tive um sonho que me assustou. Era num campo. Tu estavas de pé, imóvel. Ouviu-se um coro que cantava dentro do teu coração! Em redor andava uma dança nebulosa de espíritos. E diziam uns: “Aquele coro é dos mortos: são os amantes infelizes que choram no coração daquela mulheres.” Outros diziam: “Sim, aquele coro é de mortos: são os nossos deuses queridos que choram ali no exílio.” E então adiantei-me e disse: “Sim, aquele coro é dos mortos, são os desejos que ela teve por mim, que se lembram e que gemem.” Que sonho tão mau, tão mau! — Por que estás tu — dizia ela — todos os dias encostado ao pilar, com as mãos quase postas? — Estou a ler as cartas de luz que os teus olhos me escrevem. Calaram-se. Eles eram naquele momento alma florida da noite. — Quais são os meus olhos? Quais são os teus olhos? Dizia Jusel. — Nem eu sei! E ficaram calados. Ela sentia os desejos que se desprendiam dos olhos dele, virem, como pássaros feridos, que gemem, cair no fundo da sua alma, sonoramente. E inclinando o corpo: — Conheces meu pai? — disse ela. — Não. Que importa? — Ai, se tu soubesses! — Que importa? Estou aqui. Se ele te quer bem, há de gostar deste meu amor, sempre aos teus pés, como um cão. És uma santa. Os cabelos de Jesus nascem do teu coração. O que quero eu? Ter a tua alma presa, bem presa, como um pássaro esquivo. Esta paixão toda, deixa-te tão imaculada, que se morresses podias ser enterrada na transparência do azul. Os desejos são uma hera: queres que os arranque? Tu és o pretexto da minha alma. Se me não quisesses deixava-me andar esfarrapado. Tens lá a fé de Jesus e a saudade de tua mãe: deixa estar: damo-nos todos bem, lá dentro, contemplando o interior do teu olhar, como um céu estrelado. Que quero de ti? As tuas penas. Quando chorares, vem a mim. Farei a alma em farrapos para tu limpares os olhos. Queres tu? Casemo-nos no coração de Jesus. Dá-me essa agulheta, que tu prende o cabelo. Será a nossa estola. E com a ponta da agulheta, gravou sobre o peito de Cristo as letras dos dois nomes enlaçadas — J. e M. — É o nosso noivado — disse ele. O céu atira-nos os astros, confeitos de luz. Cristo não se esquecerá deste amor que chora aos seus pés. As exalações divinas que saírem do seu peito aparecerão, lá em cima, com a forma das nossas letras. Deus saberá este segredo. Que importa? Eu já lho tinha dito, a ele, às estrelas, às plantas, aos pássaros, porque, vês tu? As flores, as constelações, a graça, as pombas, tudo isso, toda esta efusão de bondade, de inocência, de graça, era simplesmente, ó adorada, um eterno bilhete de amor que eu te escrevia. E ajoelhados, extáticos, calados, sentiam misturar-se ao seu coração, às suas confidências, aos seus desejos, toda a vaga e imensa bondade da religião da graça. E as suas almas falavam cheias de mistério. — Vês tu? — dizia a alma dela — Quando te vejo, parece que Deus diminui, e se contrai, e se vem aninhar todo no teu coração; quando penso em ti, parece-me que o teu coração se alarga, se estende, abrange o céu, e os universos, e encerra por toda a parte Deus! — O meu coração — suspirava a alma dele — é uma concha. O teu amor é o mar. Muito tempo esta concha viverá afogada e perdida neste mar. Mas se tu expulsares de ti, como numa concha abandonada se ouve ainda o rumor do mar, no meu coração abandonado se escutará sempre o sussurro do meu amor! — Olha — dizia a alma dela — eu sou com um campo. Tenho árvores e relvas. O que há em mim de maternidade é árvore para te cobrir, o que há em mim de paixão é relva para tu pisares! — Sabes tu? — dizia a alma dele — No céu há uma floresta invisível de que apenas se vêem as pontas das raízes que são as estrelas. Tu eras a toutinegra daqueles arvoredos. Os meus desejos feriram-te. Eu, há muito que te vejo vir caindo pelo ar, gemendo, resplandecente, se o sol te alumia, triste, se a chuva te molha. Há muito que te vejo descendo — quando cairás tu nos meus braços? E a alma dela dizia: “Cala-te”. Não falavam. E as duas almas, desprendidas dos corpos bem-amados, subiam, tinham o céu por elemento, os seus risos eram os astros, a sua tristeza a noite, a sua esperança a madrugada, o seu amor a vida, e sempre mais ternas e mais vastas envolviam tudo o que do mundo sobre de justo, perfeito, casto, as orações, os prantos, os ideais, e estendiam-se por todo o céu, unidas e imensas — para Deus passar por cima! O Tesouro I Os três irmãos de Medranhos, Rui, Guanes e Rostabal, eram então, em todo o Reino das Astúrias, os fidalgos mais famintos e os mais remendados. Nos Paços de Medranhos, a que o vento da serra levara vidraça e telha, passavam eles as tardes desse Inverno, engelhados nos seus pelotes de camelão, batendo as solas rotas sobre as lajes da cozinha, diante da vasta lareira negra, onde desde muito não estalava lume, nem fervia a panela de ferro. Ao escurecer devoravam uma côdea de pão negro, esfregada com alho. Depois, sem candeia, através do pátio, fendendo a neve, iam dormir á estrebaria, para aproveitar o calor das três éguas lazarentas que, esfaimadas como eles, roíam as traves da manjedoura. E a miséria tornara estes senhores mais bravios que lobos. Ora, na Primavera, por uma silenciosa manhã de domingo, andando todos três na mata de Roquelanes a espiar pegadas de caça e a apanhar tortulhos entre os robles, enquanto as três éguas pastavam a relva nova de Abril — os irmãos de Medranhos encontraram, por trás de uma moita de espinheiros, numa cova de rocha, um velho cofre de ferio. Como se o resguardasse uma torre segura, conservava as suas três chaves nas suas três fechaduras. Sobre a tampa, mal decifrável através da ferrugem, corria um dístico em letras árabes. E dentro, até às bordas, estava cheio de dobrões de ouro! No terror e esplendor da emoção, os três senhores ficaram mais lívidos do que círios. Depois, mergulhando furiosamente as mãos no ouro, estalaram a rir, num riso de tão larga rajada que as folhas tenras dos olmos, em roda, tremiam... E de novo recuaram, bruscamente se encararam, com os olhos a flamejar, numa desconfiança tão desabrida que Guanes e Rostabal apalpavam nos cintos as cabos das grandes facas. Então Rui, que era gordo e ruivo, e o mais avisado, ergueu os braços, como um árbitro, e começou por decidir que o tesouro, ou viesse de Deus ou do Demônio, pertencia aos três, e entre eles se repartiria, rigidamente, pesando-se o ouro em balanças. Mas como poderiam carregar para Medranhos, para os cimos da serra, aquele cofre tão cheio? Nem convinha que saíssem da mata com o seu bem, antes de cerrar a escuridão. Por isso ele entendia que o mano Guanes, como mais leve, devia trotar para a vila vizinha de Retortilho, levando já ouro na bolsilha, a comprar três alforjes de couro, três maquias de cevada, três empadões de carne e três botelhas de vinho. Vinho e carne eram para eles, que não comiam desde a véspera: a cevada era para as éguas. E assim refeitos, senhores e cavalgaduras, ensacariam o ouro nos alforjes e subiriam para Medranhos, sob a segurança da noite sem lua. — Bem tramado! — gritou Rostabal, homem mais alto que um pinheiro, de longa guedelha, e com uma barba que lhe caía desde os olhos raiados de sangue até á fivela do cinturão. Mas Guanes não se arredava do cofre, enrugado, desconfiado, puxando entre os dedos a pele negra do seu pescoço de grou. Por fim, brutalmente: — Manos! O cofre tem três chaves... Eu quero fechar a minha fechadura e levar a minha chave! — Também eu quero a minha, mil raios! — rugiu logo Rostabal. Rui sorriu. Decerto, decerto! A cada dono do ouro cabia uma das chaves que o guardavam. E cada um em silêncio, agachado ante o cofre, cerrou a sua fechadura com força. Imediatamente Guanes, desanuviado, saltou na égua, meteu pela vereda de olmos, a caminho de Retortilho, atirando aos ramos a sua cantiga costumada e dolente: Olé! Olé! Sale la cruz de la iglesia, Vestida de negro luto... II Na clareira, em frente à moita que encobria o tesouro (e que os três tinham desbastado a cutiladas) um fio de água. brotando entre rochas: caía sobre uma vasta laje escavada, onde fazia como um tanque, claro e quieto, antes de se escoar para as relvas altas. E ao lado, na sombra de uma faia, jazia um velho pilar de granito, tombado e musgoso. Ali vieram sentar- se Rui e Rostabal, com os seus tremendos espadões entre os joelhos. As duas éguas retouçavam a boa erva pintalgada de papoulas e botões-de-ouro. Pela ramaria andava um melro a assobiar. Um cheiro errante de violetas adoçava o ar luminoso. E Rostabal, olhando o Sol, bocejava com fome. Então Rui, que tirara o sombreiro e lhe cofiava as velhas plumas roxas, começou a considerar, na sua fala avisada e mansa, que Guanes, nessa manhã, não quisera descer com eles à mata de Roquelanes. E assim era a sorte ruim! Pois que se Guanes tivesse quedado em Medranhos, só eles dois teriam descoberto o cofre, e só entre eles dois se dividiria o ouro! Grande pena! Tanto mais que a parte de Guanes seria em breve dissipada, com rufiões, aos dados, pelas tavernas. — Ah! Rostabal, Rostabal! Se Guanes, passando aqui sozinho, tivesse achado este ouro, não dividia conosco, Rostabal! O outro rosnou surdamente e com furor, dando um puxão às barbas negras: — Não, mil raios! Guanes é sôfrego... Quando o ano passado. se te lembras, ganhou os cem ducados ao espadeiro de Fresno, nem me quis emprestar três para eu comprar um gibão novo! — Vês tu? — gritou Rui, resplandecendo. Ambos se tinham erguido do pilar de granito, como levados pela mesma idéia, que os deslumbrava. E, através das suas largas passadas, as ervas altas silvavam. — E para quê — prosseguia Rui. — Para que lhe serve todo o ouro que nos leva? Tu não o ouves, de noite, como tosse? Ao redor da palha em que dorme, todo o chão está negro do sangue que escarra! Não dura até ás outras neves, Rostabal! Mas até lá terá dissipado os bons dobrões que deviam ser nossos, para levantarmos a nossa casa, e para tu teres ginetes, e armas, e trajes nobres, e o teu terço de solarengos, como compete a quem é, como tu, o mais velho dos de Medranhos... — Pois que morra, e morra hoje! — bradou Rostabal. — Queres? Vivamente, Rui agarrara o braço do irmão e apontava para a vereda de olmos, por onde Guanes partira cantando: — Logo adiante, ao fim do trilho, há um sítio bom, nos silvados. E hás-de ser tu, Rostabal, que és o mais forte e o mais destro. Um golpe de ponta pelas costas. E é justiça de Deus que sejas tu, que muitas vezes, nas tavernas, sem pudor, Guanes te tratava de «cerdo» e de «torpe», por não saberes a letra nem os números. — Malvado! — Vem! Foram. Ambos se emboscaram por trás de um silvado que dominava o atalho, estreito e pedregoso como um leito de torrente. Rostabal, assolapado na vala, tinha já a espada nua. Um vento leve arrepiou na encosta as folhas dos álamos — e sentiram o repique leve dos sinos de Retortilho. Rui, coçando a barba, calculava as horas pelo Sol, que já se inclinava para as serras. Um bando de corvos passou sobre eles, grasnando E Rostabal, que lhes seguira o roo, recomeçou a bocejar, com tome, pensando nos empadões e no vinho que o outro trazia nos alforjes. Enfim! Alerta! Era, na vereda, a cantiga dolente e rouca, atirada aos ramos: Olé! Olé! Sale la cruz de la iglesia, Vestida de negro luto... Rui murmurou: — Na ilharga! Mal que passe! — O chouto da égua bateu o cascalho. uma pluma num sombrero vermelhejou por sobre a ponta das silvas. ao velho droguista judeu o veneno que, misturado ao vinho, o tornaria a ele, a ele somente, dono de todo o tesouro. Anoiteceu. Dois corvos, de entre o bando que grasnava além nos silvados, já tinham pousado sobre o corpo de Guanes. A fonte, cantando. lavava o outro morto. Meio enterrado na erva negra, toda a face de Rui se tornara negra. Uma estrelinha tremeluzia no céu. O tesouro ainda lá está, na mata de Roquelanes. A Aia Era uma vez um rei, moço e valente, senhor de um reino abundante em cidades e searas, que partira a batalhar por terras distantes, deixando solitária e triste a sua rainha e um filhinho, que ainda vivia no seu berço, dentro das suas faixas. A lua cheia que o vira marchar, levado no seu sonho de conquista e de fama, começava a minguar, quando um dos seus cavaleiros apareceu, com as armas rotas, negro do sangue seco e do pó dos caminhos, trazendo a amarga nova de uma batalha perdida e da morte do rei, trespassado por sete lanças entre a flor da sua nobreza, à beira de um grande rio. A rainha chorou magnificamente o rei. Chorou ainda desoladamente o esposo, que era formoso e alegre. Mas, sobretudo, chorou ansiosamente o pai, que assim deixava o filhinho desamparado, no meio de tantos inimigos da sua frágil vida e do reino que seria seu, sem um braço que o defendesse, forte pela força e forte pelo amor. Desses inimigos o mais temeroso era seu tio, irmão bastardo do rei, homem depravado e bravio; consumido de cobiças grosseiras, desejando só a realeza por causa dos seus tesouros, e que havia anos vivia num castelo sobre os montes, com uma horda de rebeldes, à maneira de um lobo que, de atalaia no seu fojo, espera a presa. Ai! a presa agora era aquela criancinha, rei de mama, senhor de tantas províncias, e que dormia no seu berço com seu guizo de ouro fechado na mão! Ao lado dele, outro menino dormia noutro berço. Mas era um escravozinho, filho da bela e robusta escrava que amamentava o príncipe. Ambos tinham nascido na mesma noite de verão. O mesmo seio os criara. Quando a rainha, antes de adormecer, vinha beijar o principezinho, que tinha o cabelo louro e fino, beijava também, por amor dele, o escravozinho, que tinha o cabelo negro e crespo. Os olhos de ambos reluziam como pedras preciosas. Somente, o berço de um era magnífico de marfim entre brocados, e o berço de outro, pobre e de verga. A leal escrava, porém, a ambos cercava de carinho igual, porque, se um era o seu filho, o outro seria o seu rei. Nascida naquela casa real, ela tinha a paixão, a religião dos seus senhores. Nenhum pranto correra mais sentidamente do que o seu pelo rei morto à beira do grande rio. Pertencia, porém, a uma raça que acredita que a vida da terra se continua no céu. O rei seu amo, decerto, já estaria agora reinando em outro reino, para além das nuvens, abundante também em searas e cidades. O seu cavalo de batalha, as suas armas, os seus pajens tinham subido com ele às alturas. Os seus vassalos, que fossem morrendo, prontamente iriam, nesse reino celeste, retomar em torno dele a sua vassalagem. E ela, um dia, por seu turno, remontaria num raio de lua a habitar o palácio do seu senhor, e a fiar de novo o linho das suas túnicas, e a acender de novo a caçoleta dos seus perfumes; seria no céu como fora na terra, e feliz na sua servidão. Todavia, também ela tremia pelo seu principezinho! Quantas vezes, com ele pendurado do peito, pensava na sua fragilidade, na sua longa infância, nos anos lentos que correriam, antes que ele fosse ao menos do tamanho de uma espada, e naquele tio cruel, de face mais escura que a noite e coração mais escuro que a face, faminto do trono, e espreitando de cima do seu rochedo entre os alfanjes da sua borda! Pobre principezinho da sua alma! Com uma ternura maior o apertava nos braços. Mas o seu filho chalrava ao lado, era para ele que os seus braços corriam com um ardor mais feliz. Esse, na sua indigência, nada tinha a recear a vida. Desgraças, assaltos da sorte má nunca o poderiam deixar mais despido das glórias e bens do mundo do que já estava ali no seu berço, sob o pedaço de linho branco que resguardava a sua nudez. A existência, na verdade, era para ele mais preciosa e digna de ser conservada que a do seu príncipe, porque nenhum dos duros cuidados com que ela enegrece a alma dos senhores roçaria sequer a sua alma livre e simples de escravo. E, como se o amasse mais por aquela humildade ditosa, cobria o seu corpinho gordo de beijos pesados e devoradores, dos beijos que ela fazia ligeiros sobre as mãos do seu príncipe. No entanto, um grande temor enchia o palácio, onde agora reinava uma mulher entre mulheres. O bastardo, o homem de rapina, que errava no cimo das serras, descera à planície com a sua horda, e já através de casais e aldeias felizes ia deixando um sulco de matança e ruínas. As portas da cidade tinham sido seguras com cadeias mais fortes. Nas atalaias ardiam lumes mais altos. Mas à defesa faltava disciplina viril. Uma roca não governa como uma espada. Toda a nobreza fiel perecera na grande batalha. E a rainha desventurosa apenas sabia correr a cada instante ao berço do seu filhinho e chorar sobre ele a sua fraqueza de viúva. Só a ama leal parecia segura, como se os braços em que estreitava o seu príncipe fossem muralhas de uma cidadela que nenhuma audácia pode transpor. Ora uma noite, noite de silêncio e de escuridão, indo ela a adormecer, já despida, no seu catre, entre os seus dois meninos, adivinhou, mais que sentiu, um curto rumor de ferro e de briga, longe, à entrada dos vergéis reais. Embrulhada à pressa num pano, atirando os cabelos para trás, escutou ansiosamente. Na terra areada, entre os jasmineiros, corriam passos pesados e rudes. Depois houve um gemido, um corpo tombando molemente, sobre lajes, como um fardo. Descerrou violentamente a cortina. E além, ao fundo da galeria, avistou homens, um clarão de lanternas, brilhos de armas... Num relance tudo compreendeu: o palácio surpreendido, o bastardo cruel vindo roubar, matar o seu príncipe! Então, rapidamente, sem uma vacilação, uma dúvida, arrebatou o príncipe do seu berço de marfim, atirou-o para o pobre berço de verga, e, tirando o seu filho do berço servil, entre beijos desesperados, deitou- o no berço real que cobriu com um brocado. Bruscamente um homem enorme, de face flamejante, com um manto negro sobre a cota de malha, surgiu à porta da câmara, entre outros, que erguiam lanternas. Olhou, correu o berço de marfim onde os brocados luziam, arrancou a criança como se arranca uma bolsa de oiro, e, abafando os seus gritos no manto, abalou furiosamente. O príncipe dormia no seu novo berço. A ama ficara imóvel no silêncio e na treva. Mas brados de alarme atroaram, de repente, o palácio. Pelas janelas perpassou o longo flamejar das tochas. Os pátios ressoavam com o bater das armas. E desgrenhada, quase nua, a rainha invadiu a câmara, entre as aias, gritando pelo seu filho! Ao avistar o berço de marfim, Singularidades de uma Rapariga Loura I Começou por me dizer que o seu caso era simples — e que se chamava Macário... Devo contar que conheci este homem numa estalagem do Minho. Era alto e grosso: tinha uma calva larga, luzidia e lisa, com repas brancas que se lhe eriçavam em redor: e os seus olhos pretos, com a pele em roda engelhada e amarelada, e olheiras papudas, tinham uma singular clareza e rectidão — por trás dos seus óculos redondos com aros de tartaruga. Tinha a barba rapada, o queixo saliente e resoluto. Trazia uma gravata de cetim negro apertada por trás com uma fivela; um casaco comprido cor de pinhão, com as mangas estreitas e justas e canhões de veludilho. E pela longa abertura do seu colete de seda, onde reluzia um grilhão antigo — saíam as pregas moles de uma camisa bordada. Era isto em Setembro; já as noites vinham mais cedo com uma friagem fina e seca e uma escuridão aparatosa. Eu tinha descido da diligência, fatigado, esfomeado, tiritando num cobrejão de listras escarlates. Vinha de atravessar a serra e os seus aspectos pardos e desertos. Eram oito horas da noite. Os céus estavam pesados e sujos. E, ou fosse um certo adormecimento cerebral produzido pelo rolar monótono da diligência, ou fosse a debilidade nervosa da fadiga, ou a influência da paisagem escarpada e chata, sobre côncavo silêncio nocturno, ou a opressão da electricidade que enchia as alturas, o facto é que eu — que sou naturalmente positivo e realista — tinha vindo tiranizado pela imaginação e pelas quimeras. Existe no fundo de cada um de nós, é certo — tão friamente educados que sejamos — um resto de misticismo; e basta às vezes uma paisagem soturna, o velho muro de um cemitério, um ermo ascético, as emolientes brancuras de um luar — para que esse fundo místico suba, se alargue como um nevoeiro, encha a alma, a sensação e a ideia, e fique assim o mais matemático, ou o mais crítico, tão triste, tão visionário, tão idealista — como um velho monge poeta. A mim, o que me lançara na quimera e no sonho fora o aspecto do Mosteiro de Restelo, que eu tinha visto, na claridade suave e outonal da tarde, na sua doce colina. Então, enquanto anoitecia, a diligência rolava continuamente ao trote esgalgado dos seus magros cavalos brancos, e o cocheiro, com o capuz do gabão enterrado na cabeça, ruminava no seu cachimbo — eu pus-me elegiacamente, ridiculamente, a considerar a esterilidade da vida: e desejava ser um monge, estar num convento, tranquilo, entre arvoredos, ou na murmurosa concavidade de um vale, e enquanto a água da cerca canta sonoramente nas bacias de pedra, ler a «Imitação», e, ouvindo os rouxinóis nos loureirais, ter saudades do Céu. — Não se pode ser mais estúpido. Mas eu estava assim, e atributo a esta disposição visionária a falta de espírito — a sensação — que me fez a história daquele homem dos canhões de veludinho. A minha curiosidade começou à ceia, quando eu desfazia o peito de uma galinha afogado em arroz branco, com fatias escarlates de paio — e a criada, uma gorda e cheia de sardas, fazia espumar o vinho verde no copo, fazendo-o cair de alto de uma caneca vidrada: o homem estava de fronte de mim, comendo tranquilamente a sua geleia: perguntei-lhe, com a boca cheia, o meu guardanapo de linho de Guimarães suspenso nos dedos — se ele era de Vila Real. — Vivo lá. Há muitos anos — disse-me ele. — Terra de mulheres bonitas, segundo me consta — disse eu. O homem calou-se. — Hem? — tornei. O homem contraiu-se num silêncio saliente. Até aí estivera alegre, rindo dilatadamente; loquaz e cheio de bonomia. Mas então imobilizou o seu sorriso fino. Compreendi que tinha tocado a carne viva de uma lembrança. Havia de certo no destino daquele velho uma «mulher». Aí estava o seu melodrama ou a sua farsa, porque inconscientemente estabeleci-me na ideia de que o «facto», o «caso» daquele homem, devera ser grotesco. e exalar escárnio. De sorte que lhe disse: — A mim têm-me afirmado que as mulheres de Vila Real são as mais bonitas do Minho. Para olhos pretos Guimarães, para corpos Santo Aleixo, para tranças os Arcos: é lá que se vêem os cabelos claros cor de trigo. O homem estava calado, comendo, com os olhos baixos. — Para cinturas finas Viana, para boas peles Amarante — e para isto tudo Vila Real. Eu tenho um amigo que veio casar a Vila Real. Talvez conheça. O Peixoto, um alto, de barba loura, bacharel. — O Peixoto, sim — disse-me ele, olhando gravemente para mim. — Veio casar a Vila Real como antigamente se ia casar à Andaluzia — questão de arranjar a fina-flor da perfeição. — À sua saúde. Eu evidentemente constrangia-o, porque se ergueu, foi à janela com um passo pesado, e eu reparei então nos seus grossos sapatos de casimira com sola forte e atilhos de couro. E saiu. Quando eu pedi o meu castiçal, a criada trouxe-me um candeeiro de latão lustroso e antigo e disse; — O senhor está com outro. E no nº3. Nas estalagens do Minho, às vezes, cada quarto é um dormitório impertinente. — Vá — disse eu. O nº 3 era no fundo do corredor. Às portas dos lados os passageiros tinham posto o seu calçado para engraxar: estavam umas grossas botas de montar, enlameadas, com esporas de correia; os sapatos brancos de um caçador, botas de proprietário, de altos canos vermelhos; as botas de um padre, altas, com a sua borla de retrós; os botins cambados de bezerro, de um estudante; e a uma das portas, o nº15, havia umas botinas de mulher, de duraque, pequeninas e finas, e ao lado as pequeninas botas de uma criança, todas coçadas e batidas, e os seus canos de pelica-mor caíam-lhe para os lados com os atacadores desatados. Todos dormiam. Defronte do nº3 estavam os sapatos de casimira com atilhos: e quando abri a porta vi o homem dos canhões de veludilho, que amarrava na cabeça um lenço de seda estava com uma jaqueta curta de ramagens, uma meia de lã, grossa e alta, e os pés metidos nuns chinelos de ourelo. — O senhor não repare — disse ele. — À vontade. — E para estabelecer intimidade tirei o casaco. Não direi os motivos por que ele daí a pouco, já deitado, me disse a sua história. Há um provérbio eslavo da Galícia que diz: «O que não contas à tua mulher, o que não contas ao teu amigo, conta-lo a um estranho, na estalagem.» Mas ele teve raivas inesperadas e dominantes para a sua larga e sentida confidência. Foi a respeito do meu amigo, do Peixoto, que fora casar a Vila Real. Vi-o chorar, àquele velho de quase sessenta anos. Talvez a história seja julgada trivial: a mim, que nessa noite estava nervoso e sensível, pareceu-me terrível — mas conto-a apenas como um acidente singular da vida amorosa... Começou pois por me dizer que o seu caso era simples e que se chamava Macário. Perguntei-lhe então se era de uma família que eu conhecera, que tinha o apelido de «Macário». E como ele me respondeu que era primo desses, eu tive logo do seu carácter uma ideia simpática, porque os Macários eram uma antiga família, quase uma dinastia de comerciantes, que mantinham com uma severidade religiosa a sua velha tradição de honra e de escrúpulo. Macário disse-me que nesse tempo, em I8z; ou ;g, na sua mocidade, seu tio Francisco tinha, em Lisboa, um armazém de panos, e ele era um dos caixeiros. Depois o tio compenetrara-se de certos instintos inteligentes e do talento prático e aritmético de Macário, e deu-lhe a escrituração. Macário tornou-se o seu «guarda-livros». Disse-me ele que sendo naturalmente linfático e mesmo tímido, a sua vida tinha nesse tempo uma grande concentração. Um trabalho escrupuloso e fiel, algumas raras merendas no campo, um apuro saliente de fato e de roupas brancas, era todo o interesse da sua vida. A existência, nesse tempo, era caseira e apertada. Uma grande simplicidade social aclarava os costumes: os espíritos eram mais ingénuos, os sentimentos menos complicados. Jantar alegremente numa horta, debaixo das parreiras, vendo correr a água das regas — chorar com os melodramas que rugiam entre os bastidores do Salitre, alumiados a cera, eram contentamentos que bastavam à burguesia cautelosa. Além disso, as tempos eram confusos e revolucionários: e nada torna o homem recolhido, conchegado à lareira, simples e facilmente amoroso, porque denotava na mãe uma cumplicidade equívoca. Ele confessou-se «que nem pensava em tal». O que fez foi chegar ao balcão e dizer estupidamente: — Sim, senhor, vão bem servidas, estas casimiras não encolhem. E a loura ergueu para ele o seu olhar azul e foi como se Macário se sentisse envolvido na doçura de um céu. Mas quando ele ia a dizer-lhe uma palavra reveladora e veemente, apareceu ao fundo do armazém o tio Francisco, com o seu comprido casaco de pinhão, de botões amarelos. Como era singular e desusado achar-se o senhor guarda-livros vendendo ao balcão e o tio Francisco, com a sua crítica estreita e celibatária, escandalizar-se, Macário começou a subir vagarosamente a escada de caracol que levava ao escritório, e ainda ouviu a voz delicada da loura dizer brandamente: — Agora queria ver lenços da Índia. E o caixeiro foi buscar um pequenino pacote daqueles lenços, acamados e apertados numa tira de papel dourado. Macário, tinha visto naquela visita uma revelação de amor, quase uma «declaração», esteve todo o dia entregue às impaciências amargas da paixão. Andava distraído abstracto, pueril, não deu atenção à escrituração, jantou calado, sem escutar o tio Francisco que exaltava as almôndegas, mal reparou no seu ordenado que lhe foi pago em pintos ás três horas e não entendeu bem a recomendações do tio e a preocupação dos caixeiros sobre o desaparecimento de um pacote de lenços da Índia. — É o costume de deixar entrar pobres no armazém — tinha dito no seu laconismo majestoso o tio Francisco. — São doze mil réis de lenços. Lance à minha conta. Macário, no entanto, ruminava secretamente uma carta, mas sucedeu que ao outro dia, estando ele á varanda, a mãe, a de cabelos pretos, veio encostar-se ao peitoril da janela, e neste momento passava na rua um amigo de Macário, que, vendo aquela senhora, afirmou-se e tirou-lhe, como uma cortesia toda risonha, o seu chapéu de palha. Macário ficou radioso: logo nessa noite procurou o seu amigo, e abruptamente, sem meia-tinta: — Quem é aquela mulher que tu hoje cumprimentaste defronte do armazém? — É a Vilaça. Bela mulher. — É a filha? — A filha? — Sim, uma loura, clara, com um leque chinês. — Ah! sim. É filha. — É o que eu dizia... — Sim e então? — É bonita. — É bonita. — É gente de bem, hem? — Sim gente de bem. — Está bom! Tu conhece-las muito? — Conheço-as. Muito não. Encontrava-as dantes em casa de D. Cláudia. — Bem, ouve lá. E Macário, contando a história do seu coração acordado e exigente e falando do amor com as exaltações de então, pediu-lhe como a glória da sua vida «que achasse um meio de o encaixar lá». Não era difícil. As Vilaças costumavam ir aos sábados a casa de um tabelião muito rico na Rua dos Calafates: eram assembleias simples e pacatas, onde se cantavam motetes ao cravo, se glosavam motes e havia jogos de prendas do tempo da senhora D. Maria I, e às nove horas a criada servia a orchata. Bem. Logo no primeiro sábado Macário, de casaca azul, calças de ganga com presilhas de trama de metal, gravata de cetim roxo, curvava-se diante da esposa do tabelião, Sr.ª D. Maria da Graça, pessoa seca e aguçada, com um vestido bordado a matiz, um nariz adunco uma enorme luneta de tartaruga, a pluma de marabout nos seus cabelos grisalhos. A um canto da sala já lá estava, entre um frufru de vestidos enormes, a menina Vilaça, a loura, vestida de branco, simples, fresca, com o seu ar de gravura colorida. A mãe Vilaça, a soberba mulher pálida, cochichava com um desembargador de figura apopléctica. O tabelião era homem letrado, latinista, e amigo da musas; escrevia num jornal de então, a «Alcofa das Damas»: porque era sobretudo galante, e ele mesmo se intitulava, numa ode pitoresca, «moço escudeiro de Vénus». Assim, as suas reuniões eram ocupadas pelas belas-artes — e, numa noite, um poeta do tempo devia vir ler um poemeto intitulado «Elmira ou a Vingança do Venesiano»!... Começavam então a aparecer as primeiras audácias românticas... As revoluções da Grécia principiavam a atrair os espíritos romanescos e saídos da mitologia para os países maravilhosos do oriente. Por toda a parte se falava no paxá de Janina. E a poesia apossava-se vorazmente deste mundo novo e virginal de minaretes, serralhos, sultanas cor de âmbar, piratas do Arquipélago, e salas rendilhadas, cheias do perfume do aloés onde paxás decrépitos acariciam leões. De sorte que a curiosidade era grande — e quando o poeta apareceu com os cabelos compridos, o nariz adunco e fatal, o pescoço entalado na alta gola do seu fraque à Restauração e um canudo de lata na mão — o Sr. Macário é que não teve sensação alguma, porque lá estava todo absorvido, falando com a menina Vilaça. E dizia-lhe meigamente: — Então, noutro dia, gostou das casimiras? — Muito — disse ela baixo. E, desde esse momento, envolveu-os um destino nupcial. No entanto, na larga sala, a noite passava-se espiritualmente. Macário não pôde dar todos os pormenores históricos e característicos daquela assembleia. Lembrava-se apenas que um corregedor de Leiria recitava o «Madrigal a Lídia»: lia-o de pé, com uma luneta redonda aplicada sobre o papel, a perna direita lançada para diante, a mão na abertura do colete branco de gola alta, e em redor, formando círculo, as damas, com vestidos de ramagens, cobertas de plumas, as mangas estreitas, terminadas num fofo de rendas, mitenes de retrós cheias da cintilação dos anéis, tinham sorrisos ternos, cochichos, doces murmurações, risinhos, e um brando palpitar de leques recamados de lantejoulas. «Muito bonito», diziam, «muito bonito!» E o corregedor, desviando a luneta, cumprimentava sorrindo — e via-se-lhe um dente podre. Depois, a preciosa D. Jerónima da Piedade e Sande, sentando-se com maneiras comovidas ao cravo, cantou a sua voz roufenha a antiga ária de Sully: Oh Ricardo, oh meu rei, O mundo te abandona. O que obrigou o terrível Gaudêncio, democrata de 20 e admirador de Robespierre, a rosnar rancorosamente junto de Macário: — Reis-víboras!... Depois o cónego Saavedra cantou uma modinha de Pernambuco muito usada no tempo do senhor D. João VI: « Lindas moças, lindas moças.» E a noite ia assim correndo, literária, pachorrenta erudita, requintada e toda cheia de musas. Oito dias depois, Macário era recebido em casa da Vilaça, num domingo. A mãe convidara-o dizendo-lhe: — Espero que o vizinho honre esta choupana. E até o desembargador apoplético, que estava ao lado, exclamou: — Choupana! Diga alcáçar! Formosa dama! Estavam, nesta noite, o amigo do chapéu de palha, um velho cavaleiro de Malta, trôpego, estúpido e surdo, um beneficiado da Sé, ilustre pela sua voz tiple, e as manas Hilárias, a mais velha das quais, tendo assistido, como aia de uma senhora da Casa da Mina, à tourada de Salva — terra, em que morreu o conde dos Arcos, nunca deixara de narrar os episódios pitorescos daquela tarde: a figura do conde dos Arcos de cara rapada e uma fita de cetim escarlate no rabicho; o soneto que um magro poeta, parasita da Casa de Vimioso, recitou quando o conde entrou, fazendo ladear o seu cavalo negro, arreado à espanhola, com um xairel onde as suas armas estavam lavradas em prata; o tombo que nesse momento um frade de S. Francisco deu na trincheira alta, e a hilariedade da corte, que até a senhora condessa de Povolide apertava as mãos nas ilhargas; depois el-rei, o senhor D. José I, vestido de veludo escarlate, recamado de ouro, todo encostado ao rebordo do seu palanque, fazendo girar entre os dedos a sua caixa de rapé cravejada, e atrás, imóveis, o físico Lourenço e o frade seu confessor; depois o rico aspecto da praça cheia de gente de Salvaterra, maiorais, mendigos dos arredores, frades, lacaios, e o grito que houve quando D. José I entrou: — Viva el-rei, nosso senhor! — E o povo ajoelhou, e el-rei tinha-se sentado, comendo doces, que um criado trouxe num saco de veludo atrás dele. Depois a morte do conde dos Arcos, os desmaios, e até el-rei todo debruçado, batendo com a mão no parapeito, gritava na confusão, e o capelão da Casa dos Arcos que tinha corrido a buscar a extrema-unção. Ela, Hilária ficara atarracada de que tinha numa asa do nariz, a dureza da sua voz, a sua austera e majestosa tranquilidade, os seus princípios antigos, autoritários e tirânicos e a brevidade telegráfica das suas palavras. Quando Macário lhe disse, uma manhã, ao almoço, abruptamente, sem transições emolientes: «Peço-lhe licença para casar», o tio Francisco, que deitava o açúcar no seu café, ficou calado, remexendo com a colher, devagar, majestoso e terrível: e quando acabou de solver pelo pires, com grande ruído, tirou do pescoço o guardanapo, dobrou-o, aguçou com a faca o seu palito, meteu-o na boca e saiu: mas à porta da sala parou, e voltando-se para Macário, que estava de pé, junto da mesa, disse secamente: — Não. — Perdão, tio Francisco! — Não. — Mas ouça, tio Francisco... — Não. Macário sentiu uma grande cólera. — Nesse caso, faço-o sem licença. — Despedido de casa. — Sairei. Não haja dúvida. — Hoje. — Hoje. E o tio Francisco ia a fechar a porta, mas voltando-se : — Olá! — disse ela a Macário. que estava exasperado, apopléctico, raspando nos vidros da janela. Macário voltou-se com uma esperança. — Dê-me daí a caixa do rapé — disse o tio Francisco. Tinha-lhe esquecido a caixa! Portanto estava perturbado. — Tio Francisco... — começou Macário. — Basta. Estamos a doze. Receberá o seu mês por inteiro. Vá. As antigas educações produziam estas situações insensatas. Era brutal e idiota. Macário afirmou-me que era assim. Nessa tarde Macário achava-se no quarto de uma hospedaria da Praça da Figueira com seis peças, o seu baú de roupa branca e a sua paixão. No entanto estava tranquilo. Sentia o seu destino cheio de apuros. Tinha relações e amizades no comércio. Era conhecido vantajosamente: a nitidez do seu trabalho, a sua honra tradicional, o nome da família, o seu tacto comercial, o seu belo cursivo inglês, abriam-lhe, de par em par, respeitosamente, todas as portas dos escritórios. No outro dia foi procurar alegremente o negociante Faleiro, antiga relação comercial da sua casa. — De muito boa vontade, meu amigo — disse-me ele. — Quem mo dera cá. Mas, se o recebo, fico de mal com o seu tio, meu velho amigo de vinte anos. Ele declarou-mo categoricamente. Bem vê. Força maior. Eu sinto, mas... E todos a quem Macário se dirigiu, confiado em relações sólidas, receavam «ficar de mal com seu tio, meu velho amigo de vinte anos». E todos «sentiam, mas...». Macário dirigiu-se então a negociantes novos, estranhos à sua casa e à sua família, e sobretudo aos estrangeiros: esperava encontrar gente livre da amizade de vinte anos do tio. Mas, para esses, Macário era desconhecido, e desconhecidos por igual a sua dignidade e o hábil trabalho. Se tomavam informações, sabiam que ele fora despedido de casa do tio repentinamente, por causa de uma rapariga loura, vestida de cassa. Esta circunstância tirava as simpatias a Macário. O comércio evita o guarda livros sentimental. De sorte que Macário começou a sentir-se num momento agudo. Procurando, pedindo, rebuscando, o tempo passava, sorvendo, pinto a pinto, as suas seis peças. Macário mudou para uma estalagem barata, e continuou farejando. Mas, como fora sempre de temperamento recolhido, não criara amigos. De modo que se encontrava desemparado e solitário — e a vida aparecia-lhe como um descampo. as peças findaram. Macário entrou, pouco, na tradição antiga da miséria. Ela tem solenidades fatais e estabelecidas: começou por empenhar. Depois vendeu. Relógio, anéis, casaca azul, cadeia, paletó de alamares, tudo foi levando pouco a pouco, embrulhado debaixo do xale, uma velha seca e cheia de asma. No entanto via Luísa de noite, na saleta escura que dava para o patamar: uma lamparina ardia em cima da mesa; era feliz ali naquela penumbra, toda sentado castamente: não a via de dia porque trazia já a roupa usada, as botas cambadas e não queria mostrar à fresca Luísa, toda mimosa nas suas cambraias assentadas, a sua miséria remendada: ali, àquela luz ténue e esbatida, ele exaltava a sua paixão crescente e escondia o seu fato decadente. Segundo me disse Macário — era muito singular o temperamento de Luísa . Tinha o carácter louro como o cabelo — se é certo que o louro é uma cor fraca e desbotada: falava pouco, sorria sempre com os seus brancos dentinhos, dizia a tudo «pois sim»; era mais simples, quase indiferente, cheia de transigências. Amava decerto Macário, mas com todo o amor que podia dar a sua natureza débil, aguada, nula. Era como uma estriga de linho, fiava-se como se queria: e às vezes, naqueles encontros nocturnos, tinha sono. Um dia, porém, Macário encontrou-a excitada: estava com pressa, o xale traçado à toa, olhando sempre para a porta interior. — A mamã percebeu — disse ela. E contou-lhe que a mãe desconfiava, ainda rabugenta e áspera, e que decerto farejava aquele plano nupcial tramado como uma conjuração. — Porque não me vens pedir à mamã? — Mas, filha, se eu não posso! Não tenho arranjo nenhum. Espera. É mais um mês talvez. Tenho agora aí um negócio em bom caminho. Morríamos de fome. Luísa calou-se, torcendo a ponta do xale, com os olhos baixos. — Mas ao menos — disse ela — enquanto eu te não fizer sinal da janela, não subas mais, sim ? Macário rompeu a chorar, os soluços saíam violentos e desesperados. — Chut! — dizia-lhe Luísa. — Não chores alto!... Macário contou-me a noite que passou, ao acaso pelas ruas, ruminando febrilmente a sua dor, e lutando, sob a nudenta friagem de Janeiro, na sua quinzena curta. Não dormiu, e logo pela manhã, ao outro dia, entrou como uma rajada no quarto do tio Francisco e disse-lhe abruptamente, secamente: — É tudo o que tenho. — E mostrava-lhe três pintos. — Roupa, estou sem ela. Vendi tudo. Daqui a pouco tenho fome. O tio Francisco, que fazia a barba à janela, com o lenço da Índia amarrado na cabeça, voltou-se e, pondo os óculos, fitou-o. — A sua carteira lá está. Fique — e acrescentou com um gesto decisivo — solteiro. — Tio Francisco, ouça-me!... — Solteiro, disse eu — continuou o tio Francisco, dando o fio à navalha numa tira de sola. — Não posso. — Então, rua! Macário saiu, estonteado. Chegou a casa, deitou-se, chorou e adormeceu. Quando saiu, à noitinha, não tinha resolução, nem ideia. Estava como uma esponja. Deixava-se ir. De repente uma voz disse de dentro de uma loja: — Eh! pst! olá! Era o amigo do chapéu de palha: abriu grandes braços pasmados. — Que diacho! Desde manhã que te procuro. E contou-lhe que tinha chegado da província, tinha sabido a sua crise e trazia-lhe um desenlace. — Queres? — Que quer? — gritou-lhe o tio. — Vinha dizer-lhe adeus; volto para Cabo Verde. — Boa viagem. E o tio Francisco, voltando-se as costas, foi rufar na vidraça. Macário ficou imóvel, deu dois passos no quarto, todo revoltado, e ia sair. — Onde vai, seu estúpido? — gritou-lhe o tio. — Vou-me. — Sente-se ali! E o tio Francisco falava, com grandes passadas pelo quarto: — O seu amigo é um canalha! Loja de ferragens! Não está má! O senhor é um homem de bem. Estúpido, mas homem de bem. Sente-se ali! Sente-se! O seu amigo é um canalha! O senhor é um homem de bem! Foi a Cabo Verde! Bem sei! Pagou tudo. Está claro! Também sei! Amanhã faz favor de ir para a sua carteira, lá para baixo. Mandei pôr palhinha nova na cadeira. Faz favor de pôr na factura Macário & Sobrinho. E case. Case, e que lhe preste! Levante dinheiro. O senhor precisa de roupa branca e de mobília. E meta na minha conta. A sua cama lá está feita. Macário queria abraçá-lo, estonteado, com lágrimas nos olhos, radioso. — Bem, bem. Adeus! Macário ia sair. — Oh! burro, pois quer-se ir desta sua casa? E indo a um pequeno armário trouxe geleia, um covilhete de doce, uma garrafa antiga de Porto e biscoitos. — Coma. E sentando-se ao pé dele, e tornando a chamar-lhe estúpido, tinha uma lágrimas a correr- lhe pelo engelhado da pele. De sorte que o casamento foi decidido para dali a um mês. E Luísa começou a tratar do seu enxoval. Macário estava então na plenitude do amor e da alegria. Via o fim da sua vida preenchido, completo, radioso. Estava quase sempre em casa da noiva, e um dia andava-a acompanhando, em compras, pelas lojas. Ele mesmo lhe quisera fazer um pequeno presente, nesse dia. A mãe tinha ficado numa modista, num primeiro andar da Rua do Ouro, e eles tinham descido, alegremente, rindo, a um ourives que havia em baixo, no mesmo prédio, na loja. O dia estava de Inverno, claro, fino, frio, com um grande céu azul-ferrete, profundo, luminoso, consolado. — Que bonito dia! — disse Macário. E com a noiva pelo braço, caminhou um pouco, ao comprido do passeio. — Está! — disse ela. — Mas podem reparar; nós sós... — Deixa, está tão bom... — Não, não. E Luísa arrastou-o brandamente para a loja do ourives. Estava apenas um caixeiro, trigueiro, de cabelo hirsuto. Macário disse-lhe: — Queria ver anéis. — Com pedras — disse Luísa — e o mais bonito. — Sim, com pedras — disse Macário. — Ametista, granada. Enfim, o melhor. E, no entanto, Luísa ia examinando as montras forradas de veludo azul, onde reluziam as grossas pulseiras cravejadas, os grilhões, os colares de camafeus, os anéis de armas, as finas alianças frágeis como o amor , e toda a cintilação de pesada ourivesaria. — Vê, Luísa — disse Macário. O caixeiro tinha estendido, na outra extremidade do balcão, em cima do vidro da montra, um reluzente espalhado de anéis de ouro, de pedras, lavrados, esmaltados; e Luísa, tomando- os e deixando-os com a ponta dos dedos, ia-os correndo e dizendo: — É feio. É pesado. É largo. — Vê este — disse-lhe Macário. Era um anel de pequenas pérolas. — É bonito — disse ela. — É lindo! — Deixa ver se serve — disse Macário. E tomando-lhe a mão, meteu-lhe o anel devagarinho, docemente, no dedo; e ela ria, com os seus brancos dentinhos finos, todos esmaltados. — É muito largo — disse Macário. — Que pena! — Aperta-se, querendo. Deixe a medida. Tem-no pronto amanhã. — Boa ideia — disse Macário — sim senhor. Porque é muito bonito. Não é verdade? As pérolas muito iguais, muito claras. Muito bonito! E esses brincos? — acrescentou, indo ao fundo do balcão, a outra montra. — Estes brincos com um concha? — Dez moedas — disse o caixeiro. E, no entanto, Luísa continuava examinando os anéis, experimentando-os em todos os dedos, revolvendo aquela delicada montra, cintilante e preciosa. Mas, de repente, o caixeiro fez-se muito pálido, e afirmou-se em Luísa, passando vagarosamente a mão pela cara. — Bem — disse Macário, aproximando-se — então amanhã temos o anel pronto. A que horas? O caixeiro não respondeu e começou a olhar fixamente para Macário. — A que horas? — Ao meio-dia. — Bem, adeus — disse Macário. E iam sair. Luísa trazia um vestido de lã azul, que arrastava um pouco, dando uma ondulação melodiosa ao seu passo, e as suas mãos pequenas estavam escondidas num regalo branco. -.Perdão! — disse de repente o caixeiro. Macário voltou-se. — O senhor não pagou. Macário olha para ele gravemente. — Está claro que não. Amanhã venho buscar o anel, paga amanhã. — Perdão! — disse o caixeiro.— Mas o outro... — Qual outro? — disse Macário com uma voz surpreendida, adiantando-se para o balcão. — Essa senhora sabe — disse o caixeiro. — Essa senhora sabe. Macário tirou a carteira lentamente. — Perdão, se há uma conta antiga... O caixeiro abriu o balcão, e com aspecto resoluto: — Nada, meu caro Senhor, é de agora. É um anel com dois brilhantes que aquela senhora leva. — Eu?! — disse Luísa, com a voz baixa, toda escarlate. — Que é? Que está a dizer? E Macário, pálido, com dentes cerrados, contraído, fitava o caixeiro colericamente. O caixeiro disse então: — Essa senhora tirou dali o anel. — Macário ficou imóvel, encarando-o. — Um anel com dois brilhantes. Vi perfeitamente. — O caixeiro estava tão excitado, que a sua voz gaguejava, prendia-se espessamente. — Essa senhora não sei quem é. E tirou-o dali... Macário, maquinalmente, agarrou-lhe o braço, e voltando-se para Luísa com a palavra abafada, gotas de suor na testa, lívido: — Luísa, dize... — Mas a voz cortou-se-lhe. O Suave Milagre Nesse tempo Jesus ainda se não afastara da Galileia e das doces, luminosas margens do lago de Tiberíade — mas a nova dos seus milagres penetrara já até Enganim, cidade rica, de muralhas fortes, entre olivais e vinhedos, no país de Issacar. Uma tarde um homem de olhos ardentes e deslumbrados passou no fresco vale, e anunciou que um novo profeta, um rabi formoso, percorria os campos e as aldeias da Galileia, predizendo a chegada do Reino de Deus, curando todos os males humanos. E, enquanto descansava, sentado à beira da Fonte dos Vergéis, contou ainda que esse rabi, na estrada de Magdala, sarara da lepra o servo de um decurião romano, só com estender sobre ele a sombra das suas mãos; e que noutra manhã, atravessando numa barca para a terra dos Gerasenos, onde começava a colheita do bálsamo, ressuscitara a filha de Jairo, homem considerável e douto que comentava os livros na sinagoga. E como em redor, assombrados, seareiros, pastores, e as mulheres trigueiras com a bilha no ombro, lhe perguntassem se esse era, em verdade, o Messias da Judeia, e se diante dele refulgia a espada de fogo, e se o ladeavam, caminhando como as sombras de duas torres, as sombras de Gog e de Magog — o homem, sem mesmo beber daquela água tão fria de que bebera Josué, apanhou o cajado, sacudiu os cabelos, e meteu pensativamente por sob o aqueduto, logo sumido na espessura das amendoeiras em flor. Mas uma esperança, deliciosa como o orvalho nos meses em que canta a cigarra, refrescou as almas simples: logo, por toda a campina que verdeja até Áscalon, o arado pareceu mais brando de enterrar, mais leve de mover a pedra do lagar: as crianças, colhendo ramos de anémonas, espreitavam pelos caminhos se além da esquina do muro, ou de sob o sicômoro, não surgiria uma claridade, e nos bancos de pedra, às portas da cidade, os velhos, correndo os dedos pelos fios das barbas, já não desenrolavam, com tão sapiente certeza, os ditames antigos. Ora então vivia em Enganim um velho, por nome Obed, de uma família pontifical de Samaria, que sacrificara nas aras do monte Ebal, senhor de fartos rebanhos e de fartas vinhas — e com o coração tão cheio de orgulho como seu celeiro de trigo. Mas um vento árido e abrasado, esse vento de desolação que ao mando do Senhor sopra das torvas terras de Assur, matara as reses mais gordas das suas manadas, e pelas encostas onde as suas vinhas se enroscavam ao olmo, e se estiravam na latada airosa, só deixara, em torno dos olmos e pilares despidos, sarmentos de cepas mirradas, e a parra roída de crespa ferrugem. E Obed, agachado à soleira da sua porta, com a ponta do manto sobre a face, palpava a poeira, lamentava a velhice, ruminava queixumes contra Deus cruel. Apenas ouvira porém desse novo rabi da Galileia que alimentava as multidões, amedrontava os demónios, emendava todas as desventuras — Obed, homem lido, que viajara na Fenícia, logo pensou que Jesus seria um desses feiticeiros, tão costumados na Palestina, como Apolónio, ou rabi Ben-Dossa, ou Simão, «o Subtil». Esses, mesmo nas noites tenebrosas, conversam com as estrelas, para eles sempre claras e fáceis nos seus segredos; com uma vara afugentam de sobre as searas os moscardos gerados nos lodos do Egipto; e agarram entre os dedos as sombras das árvores, que conduzem, como toldos bené6cos, para cima das eiras, à hora da sesta. Jesus da Galileia, mais novo, com magias mais viçosas decerto, se ele largamente o pagasse, sustaria a mortandade dos seus gados, reverdeceria os seus vinhedos. Então Obed ordenou aos seus servos que partissem, procurassem por toda a Galileia o rabi novo, e com promessa de dinheiros ou alfaias o trouxessem a Enganim, no país de Issacar. Os servos apertaram os cinturões de couro — e largaram pela estrada das caravanas, que, costeando o lago, se estende até Damasco. Uma tarde, avistaram sobre o poente, vermelho como uma romã muito madura, as neves 6nas do monte Hérmon. Depois, na frescura de uma manhã macia, o lago de Tiberíade resplandeceu diante deles, transparente, coberto de silêncio, mais azul que o céu, todo orlado de prados floridos, de densos vergéis, de rochas de pórfiro, e de alvos terraços por entre os palmares, sob o voo das rolas. Um pescador que desamarrava preguiçosamente a sua barca de uma ponta de relva, assombreada de aloendros, escutou, sorrindo, os servos. O rabi de Nazaré? Oh! desde o mês de Ijar, o rabi descera, com os seus discípulos, para os lados para onde o Jordão leva as águas. Os servos correndo, seguiram pelas margens do rio, até adiante do vau, onde ele se estira num largo remanso, e descansa, e um instante dorme, imóvel e verde, à sombra dos tamarindos. Um homem da tribo dos Essénios, todo vestido de linho branco, apanhava lentamente ervas salutares, nela beira da água, com um cordeirinho branco ao colo. Os servos humildemente saudaram-no, porque o povo ama aqueles homens de coração tão limpo, e claro, e cândido como as suas vestes cada manhã levadas em tanques purificados. E sabia ele da passagem do novo rabi da Galileia que, como os Essénios, ensinava a doçura, e curava as gentes e os gados? O Essénio murmurou que o rabi atravessara o oásis de Engaddi, depois se adiantara para além... — Mas onde, além? — Movendo um ramo de flores roxas que colhera, o Essénio mostrou as terras de além-Jordão, a planície de Moab. Os servos vadearam o rio — e debalde procuravam Jesus, arquejando pelos rudes trilhos, até às fragas onde se ergue a cidadela sinistra de Makaur... No Poço de Jacob repousava uma larga caravana, que conduzia para o Egipto mirra, especiarias e bálsamos de Gilead, e os cameleiros, tirando a água com os baldes de couro, contaram aos servos de Obed que em Gadara, pela lua nova, um rabi maravilhoso, maior que David ou Isaías, arrancara sete demónios do peito de uma tecedeira, e que, à sua voz, um homem degolado pelo salteador Barrabás se erguera da sua sepultura e recolhera ao seu horto. Os servos, esperançados, subiram logo açodadamente pelo caminho dos peregrinos até Gadara, cidade de altas torres, e ainda mais longe até às nascentes de Amalha... Mas Jesus, nessa madrugada, seguido por um povo que cantava e sacudia ramos de mimosa, embarcara no lago, num batel de pesca, e à vela navegara para Magdala. E os servos de Obed, descoroçoados, de novo passavam o Jordão na Ponte das Filhas de Jacob. Um dia, já com as sandálias rotas dos longos caminhos, pisando já as terras da Judeia Romana, cruzaram um fariseu sombrio, que recolhia a Efraim, montado na sua mula. Com devota reverência detiveram o homem da Lei. Encontrara ele, por acaso, esse profeta novo da Galileia que, como um deus passeando na Terra, semeava milagres? A adunca face do fariseu escureceu enrugada — e a sua cólera retumbou como um tambor orgulhoso: — Oh escravos pagãos! Oh blasfemos! Onde ouvistes que existissem profetas ou milagres fora de Jerusalém? Só Jeová tem força no seu Templo. De Galileia surdem os néscios e os impostores... E como os servos recuavam ante o seu punho erguido, todo enrodilhado de dísticos sagrados — o furioso doutor saltou da mula e, com as pedras da estrada, apedrejou os servos de Obed, uivando: «Racca! Racca!» e todos os anátemas rituais. Os servos fugiram para Enganim. E grande foi a desconsolação de Obed, porque os seus gados morriam, as suas vinhas secavam — e todavia, radiantemente, como uma alvorada por detrás de serras, crescia, consoladora e cheia de promessas divinas, a fama de Jesus da Galileia. Por esse tempo, um centurião romano, Públio Sétimo, comandava o forte que domina o vale de Cesareia, até à cidade e ao mar. Públio, homem áspero, veterano da campanha de Tibério contra os Partos, enriquecera durante a revolta de Samaria com presas e saques, possuía minas na Ática e gozava, como favor supremo dos deuses, a amizade de Flaco, legado imperial da Síria. Mas uma dor roía a sua prosperidade muito poderosa como um verme rói um fruto muito suculento. Sua filha única, para ele mais amada que vida ou bens, definhava com um mal subtil e lento, estranho mesmo ao saber dos esculápios e mágicos que ele mandara consultar a Sídon e a Tiro. Branca e triste como a lua num cemitério, sem um queixume, sorrindo palidamente a seu pai definhava, sentada na alta esplanada do forte, sob um velário, alongando saudosamente os negros olhos tristes pelo azul do mar de Tiro, por onde ela navegara de Itália, numa galera enfestoada. Ao seu lado, por vezes, um legionário, entre as ameias, apontava vagarosamente ao alto a flecha, e varava uma grande águia, voando de asa serena, no céu rutilante. A filha de Sétimo seguia um momento a ave torneando até bater morta sobre as rochas — depois, mais triste, com um suspiro, e mais pálida, recomeçava a olhar para o mar. Então Sétimo, ouvindo contar, á mercadores de Chorazim, deste rabi admirável, tão potente sobre os espíritos, que sarava os males tenebrosos da alma, destacou três decúrias de soldados para que o procurassem por Galileia, e por todas as cidades da Decápole, até à costa e até Áscalon. Os soldados enfiaram os escudos nos sacos de lona, espetaram nos elmos ramos de oliveira – e as suas sandálias ferradas apressadamente se afastaram, ressoando sobre as lajes de basalto da estrada romana que desde Cesareia até ao lago cona toda a tetrarquia de Herodes. As suas armas de noite, brilhavam no topo das colinas, por entre a chama ondeante dos archotes erguidos. De dia invadiam os casais, rebuscavam a espessura dos pomares, esfuracavam com a ponta das lanças a palha das medas: e as mulheres, assustadas, para os amansar, logo acudiam com bolos de mel, figos novos, e malgas cheias de vinho, que eles bebiam de um trago, sentados à sombra dos sicômoros. Assim correram a Baixa Galileia — e, do rabi, só encontraram o sulco luminoso nos corações. Enfastiados com as inúteis marchas, desconfiando que os Judeus sonegassem o seu feiticeiro para que os Romanos não aproveitassem do superior feitiço, derramavam com tumulto a sua cólera, através da piedosa
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