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Guias e Dicas
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Oração aos moços - Rui Barbosa, Notas de estudo de Direito

Edição popular anotada por Adriano da Gama Kury 5ª edição

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 28/08/2010

liih-neves-11
liih-neves-11 🇧🇷

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Pré-visualização parcial do texto

Baixe Oração aos moços - Rui Barbosa e outras Notas de estudo em PDF para Direito, somente na Docsity! ORAÇÃO AOS MOÇOS Rui Barbosa Oração aos Moços Edição popular anotada por Adriano da Gama Kury 5ª edição Casa de Rui BarbosaEdições Rio de Janeiro 1999 6 7 ADVERTÊNCIA Esgotada há tempos a edição crítica que preparei em 1956, quis a Direção da FCRB, em face da insistência de pedidos, se reimpri− misse a Oração aos Moços numa edição popular anotada. Tomando por base o texto de 1956, retirei−lhe o aparato crítico, multiplicando ao mesmo tempo as notas, destinadas a mais fácil entendimento do famoso discurso que Rui, por motivo de saúde, não pôde proferir em pessoa, em 1921, perante a turma de 1920 da Faculdade de Direito de São Paulo. Novo cotejo com os manuscritos permitiu se emendassem não apenas pequenos lapsos que haviam escapado nas colações anterio− res, senão ainda miúdas e raras gralhas tipográficas que se insinua− ram – não obstante o carinho com que se fez a revisão – naquela edição. Esperamos, todos quantos laboramos no preparo desta edição, reproduza ela, definitivamente, com a maior fidelidade, o texto de− sejado pelo alto Patrono desta Casa. Não se acolheram nas notas de rodapé aqueles numerosos ter− mos cuja significação se elucida mediante a simples consulta a um pequeno dicionário da língua (como sejam, por exemplo, inviso, excídio, pedilúvio, entre tantos mais): a preocupação constante foi, tão−somente, contribuir para a compreensão cabal das palavras de Rui à juventude brasileira – palavras de alento e de fé tão atuais e necessárias hoje em dia –, aclarando o sentido de expressões e cons− 8 truções menos usuais. A Homero Senna agradeço as sugestões sem− pre lúcidas. A Oração aos Moços prosseguirá na luminosa trajetória que o destino lhe traçou, agora numa edição singela, acessível ao grande público e, sobretudo, num texto de todo fidedigno. Rio de Janeiro, agosto de 1979. Adriano da Gama Kury Obs. – Nas notas de Rui Barbosa se utiliza o asterisco; as do preparador do texto são numeradas. 11 Senhores: Não quis Deus que os meus cinqüenta anos de consagração ao Direito viessem receber no templo do seu ensino em S. Paulo o selo de uma grande bênção, associando−se hoje com a vossa admissão ao nosso sacerdócio, na solenidade imponente dos votos, em que o ides esposar. Em verdade vos digo, jovens amigos meus, que o coincidir desta existência declinante com essas carreiras nascentes agora, o seu co− incidir num ponto de intersecção tão magnificamente celebrado, era mais do que eu mereceria; e, negando−me a divina bondade um mo− mento de tamanha ventura, não me negou senão o a que eu não devia ter tido a inconsciência de aspirar. Mas, recusando−me o privilégio de um dia tão grande, ainda me consentiu o encanto de vos falar, de conversar convosco, presente entre vós em espírito; o que é, também, estar presente em verdade. Assim que não me ides ouvir de longe, como a quem se sente arredado por centenas de quilômetros, mas de ao pé, de em meio a vós, como a quem está debaixo do mesmo tecto, e à beira do mesmo lar, em colóquio de irmãos, ou junto dos mesmos altares, sob os mesmos campanários, elevando ao Criador as mesmas orações, e professando o mesmo credo. Direis que isto de me achar assistindo, assim, entre os de quem me vejo separado por distância tão vasta, seria dar−se, ou supor que se está dando, no meio de nós, um verdadeiro milagre? 12 Será. Milagre do maior dos taumaturgos. Milagre de quem respi− ra entre milagres. Milagre de um santo, que cada qual tem no sacrário do seu peito. Milagre do coração, que os sabe chover1 sobre a criatu− ra humana, como o firmamento chove1 nos campos mais áridos e tristes a orvalhada das noites, que se esvai, com os sonhos de antemanhã, ao cair das primeiras frechas de oiro2 do disco solar. Embora o realismo dos adágios teime no contrário, tolerem−me3 o arrojo de afrontar uma vez a sabedoria dos provérbios. Eu me abalanço a lhes3 dizer e redizer de não4. Não é certo, como corre mundo, ou, pelo menos, muitas e muitíssimas vezes, não é verdade, como se espalha fama, que “longe da vista, longe do coração”. O gênio dos anexins, aí, vai longe de andar certo. Esse prolóquio tem mais malícia que ciência, mais epigrama que justiça, mais enge− nho que filosofia. Vezes sem conto5, quando se está mais fora da vista dos olhos, então (e por isso mesmo) é que mais à vista do cora− ção estamos; não só bem à sua vista, senão bem dentro nele6. 1 que os sabe chover; o firmamento chove ... a orvalhada – O verbo chover, habitualmente impessoal e intransitivo, emprega−o Rui, aqui por duas vezes, com sujeito (que = o coração; o firmamento) e objeto direto (os = milagres; a orvalhada). 2 oiro: ouro. – Nos vocábulos em que se apresenta a alternância oi/ou, a forma preferida de Rui é, no geral, a mais raramente usada entre nós. Em dois e coisa, entretanto, Rui emprega a forma usual hoje em dia, se bem que, na língua escrita do seu tempo, fossem mais comuns dous e cousa. 3 tolerem−me ...; a lhes dizer. – Rui vem usando, e assim o faz até o fim da Oração aos Moços, o tratamento de segunda pessoa do plural. Causa estranheza, portanto, a um exame superficial, esta mudança para a terceira pessoa do plural, explicável, contudo, se atentarmos a que o orador, nesta passagem, se dirige a um auditório mais geral, especialmente aos seus futuros leitores. 4 dizer e redizer de não: dizer e redizer que não. 5 sem conto. – Variante menos comum da locução sem conta. 6 dentro nele: dentro dele. – A locução dentro em hoje só é freqüente na expres− são dentro em pouco. Rui, no entanto, quase sempre a preferia, a exemplo dos clássi− cos. 13 Não, filhos meus (deixai−me experimentar, uma vez que seja, convosco, este suavíssimo nome); não: o coração não é tão frívolo, tão exterior, tão carnal quanto se cuida. Há, nele, mais que um assombro fisiológico: um prodígio moral. É o órgão da fé, o órgão da esperança, o órgão do ideal. Vê, por isso, com os olhos d’alma7, o que não vêem os do corpo. Vê ao longe, vê em ausência, vê no invisível, e até no infinito vê. Onde pára o cérebro de ver, outorgou− lhe o Senhor que ainda veja; e não se sabe até onde. Até onde che− gam as vibrações do sentimento, até onde se perdem os surtos da poesia, até onde se somem os vôos da crença: até Deus mesmo, inviso como os panoramas íntimos do coração, mas presente ao céu e à terra, a todos nós presente, enquanto nos palpite, incorrupto, no seio, o músculo da vida e da nobreza e da bondade humana. Quando ele já não estende o raio visual pelo horizonte do invisí− vel, quando sua visão tem por limite a do nervo óptico, é que o coração, já esclerótico, ou degenerescente, e saturado nos resíduos de uma vida gasta no mal, apenas oscila mecanicamente no interior do arcaboiço8, como pêndula de relógio abandonado, que agita, com as derradeiras pancadas, os vermes e a poeira da caixa. Dele se reti− rou a centelha divina. Até ontem lhe banhava ela de luz todo esse espaço, que nos distanceia9 do incomensurável desconhecido, e lan− çava entre este e nós uma ponte de astros. Agora, apagados esses luzeiros, que o inundavam de radiosa claridade, lá se foram, com o extinto cintilar das estrelas, as entreabertas do dia eterno, deixando− nos, tão−somente, entre o longínquo mistério daquele termo e o ani− quilamento da nossa miséria desamparada, as trevas de outro éter, 7 d’alma. – São omissas, para situações como esta, as regras sobre o emprego do apóstrofo nas normas oficiais (V. “Instruções para a Organização do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa”, cap. XIII, anexas ao Pequeno Vocabulário Or− tográfico da Língua Portuguesa, publicado pela Academia Brasileira de Letras – Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1943). – Conservamos essa notação gráfica, uma vez que a sua supressão implicaria uma alteração formal de todo desaconselhável. 8 arcaboiço: arcabouço. – V. nota 2. 9 distanceia: distancia. – Preferência, hoje evitada, pela variante menos comum. 16 Tão pouco medeia do Rio a S. Paulo! Por que16 não consegui− remos enxergar de um a outro cabo, em linha tão curta? Tente− mos. Vejamos. Estendamos as mãos, entre os dois pontos que a limitam. Deste àquele já se estabeleceu a corrente. Rápida como o pensamento, corre a emanação magnética desta extremidade à oposta. Já num aperto se confundiram as mãos, que se procura− vam. Já, num amplexo de todos, nos abraçamos uns aos outros. Em S. Paulo estamos. Conversemos, amigos, de presença a pre− sença. Entrelaçando a colação do vosso grau com a comemoração jubi− lar da minha, e dando−me a honra de vos ser eu paraninfo, urdis, desta maneira, no ingresso à carreira que adotastes, um como víncu− lo sagrado entre a vossa existência intelectual, que se enceta, e a do vosso padrinho em Letras17, que se acerca do seu termo. Do ocaso de uma surde18 o arrebol da outra. Mercê, porém, de circunstâncias inopinadas, com o encerro do meu meio século de trabalho na jurisprudência se ajusta o remate dos meus cinqüenta anos de serviços à nação. Já o jurista começava a olhar com os primeiros toques de saudade para o instrumento, ed. de 1981, feita pelo Prof. Rocha Lima): “Destes cimos, … o Colégio Anchieta nos estende à distância os braços”; na Queda do Império (vol. I, Rio, 1921) : “Achava−se ali à distância um amigo, que me aguardava.” (pág. LXX) ; “Mais fácil é sempre um não à distância que rosto a rosto.”(pág. LXXII). – Esse é o uso dos nossos melhores escritores. 16 por que. – No correr de toda a Oração aos Moços Rui escreve separadamente, por que, tanto na interrogação direta quanto na indireta, coincidindo nisso com as normas ortográficas oficiais, contestadas por muitos, uma vez que varia o uso dos escritores a esse respeito. 17 Letras. – Na sua visão humanística, devia Rui achar inseparável do cabal estudo do Direito o pleno domínio da língua. Daí falar em “padrinho em Letras”, e não “em Ciências Jurídicas e Sociais”. – Lembrem−se, a propósito, estes dizeres de San Tiago Dantas: “A língua está para o advogado assim como o desenho para o arquiteto.” 18 surde (do v. surdir): resulta, provém. 17 que, há dez lustros, lhe vibra entre os dedos, lidando pelo direito, quando a consciência lhe mandou que despisse as modestas armas da sua luta, provadamente inútil, pela grandeza da pátria e suas li− berdades, no parlamento. Essa remoção da metade total de um século de vida laboriosa para o desentulho do tempo não se podia consumar sem abalo sen− sível numa existência repentinamente decepada. Mas a comoção foi salutar; porque o espírito encontrou logo seu equilíbrio na convic− ção de que, afinal, chegava eu a conhecer a mim mesmo, reconhe− cendo a escassez de minhas reservas de energia, para acomodar o ambiente da época às minhas idéias de reconciliação da política na− cional com o regímen19 republicano. Era presunção, era temeridade, era inconsciência insistir na insana pretensão da minha fraqueza. Só um predestinado poderia arrostar empresa tamanha. Desde 1892 me empenhava eu em lutar com esses mares e ventos. Não os venci. Venceram−me eles a mim. Era natural. Deus nos dá sempre mais do que merecemos. Já me não era pouco a graça (pela qual erguia as mãos ao céu) de abrir os olhos à realidade evidente da minha impotência, e poder recolher as velas, navegante desenganado, antes que o naufrágio me arrancasse das mãos a ban− deira sagrada. Tenho o consolo de haver dado a meu país tudo o que me estava ao alcance: a desambição, a pureza, a sinceridade, os excessos de atividade incansável, com que, desde os bancos acadêmicos, o servi, e o tenho servido até hoje. Por isso me saí da longa odisséia sem créditos de Ulisses20. Mas, se o não soube imitar nas artes medrançosas de político fértil em meios e manhas, em compensação tudo envidei por inculcar ao 19 regímen. – Prefere sempre Rui a forma alatinada à usual regime. 20 Ulisses, herói do poema épico grego Odisséia, de Homero, era extremamente astucioso e fértil em estratagemas contra os troianos, seus inimigos. A esses atributos liga−se o adjetivo medrançosas da linha seguinte (que Rui deve ter conhecido no escri− tor português Antônio Feliciano de Castilho), aqui significando aproximadamente “engenhosas, produtivas”. 18 povo os costumes da liberdade e à república as leis do bom governo, que prosperam21 os Estados, moralizam as sociedades, e honram as nações. Preguei, demonstrei, honrei a verdade eleitoral, a verdade consti− tucional, a verdade republicana. Pobres clientes estas, entre nós, sem armas, nem oiro, nem consideração, mal achavam, em uma nacio− nalidade esmorecida e indiferente, nos títulos rotos do seu direito, com que habilitar o mísero advogado a sustentar−lhes com alma, com dignidade, com sobrançaria, as desprezadas reivindicações. As três verdades não podiam alcançar melhor sentença no tribunal da corrupção política do que o Deus vivo no de Pilatos. Quem por uma causa destas combateu, abraçado com ela, em vinte e oito anos da sua Via Dolorosa, não se pode ter habituado a maldizer, senão a perdoar, nem a descrer, senão a esperar. Descrer da cegueira humana, sim; mas da Providência, fatal nas suas soluções, bem que (ao parecer) tarda nos seus passos, isso nunca. Assim que22 a bênção do paraninfo não traz fel. Não lhe encontrareis no fundo nem rancor, nem azedume, nem despeito. Os maus só lhe inspiram tristeza e piedade. Só o mal é o que o inflama em ódio. Porque o ódio ao mal é amor do bem, e a ira contra o mal, entusiasmo divino. Vede Jesus despejando os vendilhões do templo, ou Jesus provando a esponja amarga no Gólgota. Não são o mesmo Cristo, esse ensangüentado Jesus do Calvário e aqueloutro, o Jesus iroso, o Jesus armado, o Jesus do látego inexorável? Não serão um só Jesus, o que morre pelos bons, e o que açoita os maus? O Padre Manuel Bernardes pregava, numa das suas Silvas: “Bem pode haver ira, sem haver pecado: Irascimini, et nolite peccare. E às vezes poderá haver pecado, se não houver ira: por− quanto a paciência, e silêncio, fomenta23 a negligência dos maus, e 21 prosperam: fazem prosperar. – V. também a nota 77. 22 Assim que: assim é que. 23 porquanto a paciência, e silêncio, fomenta a negligência dos maus. – A con− cordância do verbo no singular justifica−se pelo fato de os dois termos do sujeito 21 pátria à cobardia, à inconfidência, ou à traição? Quem, senão ela, ela a cólera do celeste inimigo dos vendilhões e dos hipócritas? a cólera do justo, crucifixo entre ladrões? a cólera do Verbo da verda− de, negado pelo poder da mentira? a cólera da santidade suprema, justiçada pela mais sacrílega das opressões?29 Todos os que nos dessedentamos nessa fonte, os que nos sacia− mos desse pão, os que adoramos esse ideal, nela vamos buscar a chama incorruptível. É dela que, ao espetáculo ímpio do mal tripudiante sobre os reveses do bem, rebenta em labaredas a indig− nação, golfa a cólera em borbotões das fráguas da consciência, e a palavra sai, rechinando, esbraseando, chispando como o metal can− dente dos seios da fornalha. Esse metal nobre, porém, na incandescência da sua ebulição, não deixa escória. Pode crestar os lábios, que30 atravessa. Poderá infla− mar por momentos o irritado coração, de onde30 jorra. Mas não o degenera, não o macula, não o resseca, não o caleja, não o endurece; e, no fundo são da urna31 onde tumultuam essas procelas, e donde 29 Todo este parágrafo é exemplo vivo dos procedimentos retóricos utilizados por Rui Barbosa, especialmente no campo da REITERAÇÃO, tendo em vista obter sobre os ouvintes efeito imediato: a INTERROGAÇÃO RETÓRICA – puramente afetiva, e da qual não se espera resposta; a ANÁFORA – repetição de termos no início de cada oração; a GRADAÇÃO ou CLÍMAX – repetição ampliada de termos de significado cada vez mais intenso; a REITERAÇÃO da idéia contida na palavra motivadora – ira –, seja por meio de um sinônimo (cólera), seja do pronome substitu− to (ela); enfim a ANTÍTESE (justo – ladrões, verdade – mentira, santidade suprema – a mais sacrílega das opressões). É de imaginar o impacto de tais recursos – constantes na obra oratória de Rui – sobre o jovem auditório. – Observe−se ainda o emprego de minúsculas em seguida aos pontos−de−interrogação que separam as várias frases com− ponentes dos dois blocos em que se divide o parágrafo. (V. também a nota 12.) 30 lábios, que atravessa; coração, de onde jorra – Na última fase de sua produção escrita, Rui Barbosa, quase invariavelmente, separa por vírgula do substantivo ante− cedente o pronome relativo que o segue, se bem que a norma (já então seguida em geral) seja somente usá−la quando se trate de oração adjetiva explicativa. 31 urna onde tumultuam. – V. nota 27. 22 borbotam essas erupções, não assenta um rancor, uma inimizade, uma vingança. As reações da luta cessam, e fica, de envolta com o aborrecimento ao mal, o relevamento dos males padecidos. Nest’alma32, tantas vezes ferida e traspassada tantas vezes, nem de agressões, nem de infamações, nem de preterições, nem de ingra− tidões, nem de perseguições, nem de traições, nem de expatriações perdura o menor rasto, a menor idéia de revindicta. Deus me é teste− munha de que tudo tenho perdoado. E, quando lhe digo, na oração dominical: “Perdoai−nos, Senhor, as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores”33, julgo não lhe estar mentindo; e a consciência me atesta que, até onde alcance a imperfeição huma− na, tenho conseguido, e consigo todos os dias obedecer ao sublime mandamento. Assim me perdoem, também, os a quem tenho agra− vado, os com quem houver sido injusto, violento, intolerante, malig− no, ou descaridoso. Estou−vos abrindo o livro da minha vida. Se me não quiserdes aceitar como expressão fiel da realidade esta versão rigorosa de uma de suas páginas, com que mais me consolo, recebei−a, ao menos, como ato de fé, ou como conselho de pai a filhos, quando não como o testamento de uma carreira, que poderá ter discrepado, muitas vezes, do bem, mas sempre o evangelizou com entusiasmo, o procu− rou com fervor, e o adorou com sinceridade. Desde que o tempo começou, lento lento, a me decantar o espíri− to do sedimento das paixões, com que o verdor dos anos e o amargor das lutas o enturbavam, entrando eu a considerar com filosofia nas leis da natureza humana, fui sentindo quanto esta necessita da con− tradição, como a lima dos sofrimentos a melhora, a que ponto o acerbo das provações a expurga, a tempera, a nobilita, a regenera. Então vim a perceber vivamente que imensa dívida cada criatura da 32 Nest’alma. – V. nota 7. 33 Assim era enunciado este trecho do tradicional “Padre−Nosso”, hoje “Pai− Nosso”(“Perdoai−nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido.”). 23 nossa espécie deve aos seus inimigos e desfortunas. Por mais desagrestes34 que sejam os contratempos da sorte e as maldades dos homens, raro nos causam mal tamanho, que nos não façam ainda maior bem. Ai de nós, se esta purificação gradual, que nos deparam as vicissitudes cruéis da existência, não encontrasse a colaboração providencial da fortuna35 adversa e dos nossos desafetos. Ninguém mete em conta o serviço contínuo, de que lhes está em obrigação. Diríeis, até, que, mandando−nos amar aos nossos inimigos, em boa parte nos quis o divino legislador entremostrar o muito, de que eles nos são credores. A caridade com os que nos malquerem, e os que nos malfazem, não é, em bem larga escala, senão pago dos bene− fícios, que, mal a seu grado, mas muito deveras, eles nos granjeiam. Destarte, não equivocaremos a aparência com a realidade, se, nos dissabores que malquerentes e malfazentes nos propinam, discernirmos a quota de lucro, com que eles, não levando em tal o sentido, quase sempre nos favorecem. Quanto é pela minha parte, o melhor do que sou, bem assim o melhor do que me acontece, freqüentemente acaba o tempo convencendo−me de que não me vem das doçuras da fortuna propícia, ou da verdadeira amizade, senão sim que o devo, principalmente, às maquinações dos malévolos e às contradições da sorte madrasta. Que seria, hoje, de mim, se o veto dos meus adversários, sistemático e pertinaz, me não houvesse pou− pado aos tremendos riscos dessas alturas, “alturas de Satanás”, como as de que fala o Apocalipse, em que tantos se têm perdido, mas a que tantas vezes me tem tentado exalçar o voto dos meus amigos? Ami− gos e inimigos estão, amiúde, em posições trocadas. Uns nos querem mal, e fazem−nos bem. Outros nos almejam o bem, e nos trazem o mal. Não poucas vezes, pois, razão é lastimar o zelo dos amigos, e agradecer a malevolência dos opositores. Estes nos salvam, quando 34 desagrestes: muito agrestes. – O prefixo des− é aqui intensivo, e não negativo. Cf. nota 39. 35 fortuna: sorte, destino. 26 A parte da natureza varia ao infinito. Não há, no universo, duas coisas41 iguais. Muitas se parecem umas às outras. Mas todas entre si diversificam. Os ramos de uma só árvore, as folhas da mesma planta, os traços da polpa de um dedo humano, as gotas do mesmo fluido, os argueiros do mesmo pó, as raias do espectro de um só raio solar ou estelar. Tudo assim, desde os astros no céu, até os micróbios no sangue, desde as nebulosas no espaço, até aos aljôfares do rocio na relva dos prados. A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigual− mente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desi− gualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desi− guais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo, não dar a cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem. Esta blasfêmia contra a razão e a fé, contra a civilização e a hu− manidade, é a filosofia da miséria, proclamada em nome dos direi− tos do trabalho; e, executada, não faria senão inaugurar, em vez da supremacia do trabalho, a organização da miséria. Mas, se a sociedade não pode igualar os que a natureza criou desiguais, cada um, nos limites da sua energia moral, pode reagir sobre as desigualdades nativas, pela educação, atividade e perseve− rança. Tal a missão do trabalho. Os portentos, de que esta força é capaz, ninguém os calcula. Suas vitórias na reconstituição da criatura maldotada só se comparam às da oração. Oração e trabalho são os recursos mais poderosos na criação moral do homem. A oração é o íntimo sublimar−se d’alma pelo contacto com Deus. O trabalho é o inteirar, o desenvolver, o apurar 41 coisas. – V. nota 2. 27 das energias do corpo e do espírito, mediante a ação contínua de cada um sobre si mesmo e sobre o mundo onde labutamos. O indivíduo que trabalha, acerca−se continuamente do autor de todas as coisas, tomando na sua obra uma parte, de que depende também a dele. O criador começa, e a criatura acaba a criação de si própria. Quem quer, pois, que trabalhe, está em oração ao Senhor. Ora− ção pelos atos, ela emparelha com a oração pelo culto. Nem pode ser que uma ande verdadeiramente sem a outra. Não é trabalho dig− no de tal nome o do mau; porque a malícia do trabalhador o conta− mina. Não é oração aceitável a do ocioso; porque a ociosidade a dessagra. Mas, quando o trabalho se junta à oração, e a oração com o trabalho, a segunda criação do homem, a criação do homem pelo homem, semelha às vezes, em maravilhas, à criação do homem pelo divino Criador. Ninguém desanime, pois, de que o berço lhe não fosse generoso, ninguém se creia malfadado, por lhe minguarem de nascença have− res e qualidades. Em tudo isso não há surpresas, que se não possam esperar da tenacidade e santidade no trabalho. Quem não conhece a história do P.e Suárez, o autor do tratado Das Leis e de Deus Legis− lador, De Legibus ac Deo Legislatore, monumento jurídico, a que os trezentos anos de sua idade ainda não gastaram o conceito de honra das letras castelhanas? De cinqüenta aspirantes, que, em 1564, soli− citavam, em Salamanca, ingresso à Companhia de Jesus, esse foi o único rejeitado, por curto de entendimento e revesso ao ensino. Ad− mitido, todavia, a insistências suas, com a nota de “indiferente”, embora primasse entre os mais aplicados, tudo lhe eram, no estudo, espessas trevas. Não avançava um passo. Afinal, por consenso de todos, passava por invencível a sua incapacidade. Confessou−a, por fim, ele mesmo, requerendo ao reitor, o célebre P.e Martín Gutiérrez, que o escusasse da vida escolar, e o entregasse aos misteres corporais de irmão coadjutor. Gutiérrez animou−o a orar, persistir, e esperar. De repente se lhe alagou de claridade a inteligência. Mergulhou−se, então, cada vez mais no estudo; e daí, com estupenda mudança, co− 28 meça a deixar ver o a que era destinada aquela extraordinária cabe− ça, até esse tempo submersa em densa escuridade. Já é mestre insigne, já encarna todo o saber da renascença teoló− gica, em que brilham as letras de Espanha42. Sucessivamente ilustra as cadeiras de Filosofia, Teologia e Cânones nas mais famosas uni− versidades européias: em Segóvia, em Valhadolid, em Roma, em Alcalá, em Salamanca, em Ávila, em Coimbra. Nos seus setenta anos de vida, professa as Ciências Teológicas durante quarenta e sete, escreve cerca de duzentos volumes, e morre comparado com Santo Agostinho e S. Tomás, abaixo de quem houve quem o consi− derasse “o maior engenho, que tem tido a igreja” *; sendo tal a sua nomeada, ainda entre os protestantes, que deste jesuíta, como teó− logo e filósofo, chegou a dizer Grócio que “apenas havia quem o igualasse”. Já vedes que ao trabalho nada é impossível. Dele não há extre− mos, que não sejam de esperar. Com ele nada pode haver, de que desesperar. Mas, do século XVI ao século XX, o que as ciências cresceram, é incomensurável. Entre o currículo da Teologia e Filosofia, no pri− meiro, e o programa de um curso jurídico, no segundo, a distância é infinita. Sobre os mestres, os sábios e os estudantes de agora pesam montanhas e montanhas mais de questões, problemas e estudos que quantos, há três ou quatro séculos, se abrangiam no saber humano. O trabalho, pois, vos há de bater à porta dia e noite; e nunca vos negueis às suas visitas, se quereis honrar vossa vocação, e estais dis− postos a cavar nos veios de vossa natureza, até dardes com os tesoiros43, que aí vos haja reservado, com ânimo benigno, a dadivo− 42 de Espanha. – Rui, seguindo os clássicos da língua, dispensa o artigo antes do nome de países e regiões familiarmente ligados a Portugal, como Espanha, França, Inglaterra, África. Lembrem−se as suas Cartas de Inglaterra. * P. e Francisco Suárez: Tratado de las Leyes y de Dios Legislador. Ed. de Madrid, 1918. Tomo I, pág. XXXVII. 43 tesoiros. – V. nota 2. 31 Quantos serão os que acreditam que os melhores trabalhadores se− jam os melhores madrugadores? que os mais estudiosos não sejam os que oferecem ao estudo os sobejos do dia, mas os que o honram com as primícias da manhã? Dirão que tais trivialidades, cediças e corriqueiras, não são para contempladas46 num discurso acadêmico, nem para escutadas entre doutores, lentes e sábios. Cada um se avém como entende, e faz o que pode. Mas eu, nisto aqui, faço ainda o que devo. Porque, vindo pregar−vos experiência, cumpria que relevasse mais a que mais so− bressai na minha estirada carreira de estudante. Estudante sou. Nada mais. Mau sabedor, fraco jurista, mesqui− nho advogado, pouco mais sei do que saber estudar, saber como se estuda, e saber que tenho estudado. Nem isso mesmo sei se saberei bem. Mas, do que tenho logrado saber, o melhor devo às manhãs e madrugadas. Muitas lendas se têm inventado, por aí, sobre excessos da minha vida laboriosa. Deram, nos meus progressos intelectuais, larga parte ao uso em abuso do café e ao estímulo habitual dos pés mergulhados n’água47 fria. Contos de imaginadores. Refratário sou ao café. Nunca recorri a ele como a estimulante cerebral. Nem uma só vez na minha vida busquei num pedilúvio o espantalho do sono. Ao que devo, sim, o mais dos frutos do meu trabalho, a relativa exabundância da sua fertilidade, a parte produtiva e durável da sua safra, é às minhas madrugadas. Menino ainda, assim que entrei ao 46 não são para contempladas: para serem contempladas; para escutadas: para serem escutadas. Elipse usual do verbo auxiliar ser na linguagem clássica. Cf. Camões, Os Lusíadas, X, 152: “Fazei, Senhor, que nunca os admirados Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses Possam dizer que são pera mandados, Mais que pera mandar os Portugueses.” 47 n’água. – V. nota 7. 32 colégio48 alvidrei eu mesmo a conveniência desse costume, e daí avante o observei, sem cessar, toda a vida. Eduquei nele o meu cérebro, a ponto de espertar exatamente à hora, que comigo mesmo assentara, ao dormir. Sucedia, muito amiúde, encetar eu a minha solitária ban− ca de estudo à uma ou às duas da antemanhã. Muitas vezes me man− dava meu pai volver ao leito; e eu fazia apenas que lhe obedecia, tornando, logo após, àquelas amadas lucubrações, as de que me lem− bro com saudade mais deleitosa e entranhável. Tenho, ainda hoje, convicção de que nessa observância persisten− te está o segredo feliz, não só das minhas primeiras vitórias no tra− balho, mas de quantas vantagens alcancei jamais levar aos meus con− correntes, em todo o andar dos anos, até à velhice. Muito há que já não subtraio tanto às horas da cama, para acrescentar às do estudo. Mas o sistema ainda perdura, bem que largamente cerceado nas an− tigas imoderações. Até agora, nunca o sol deu comigo deitado e, ainda hoje, um dos meus raros e modestos desvanecimentos é o de ser grande madrugador, madrugador impenitente. Mas, senhores, os que madrugam no ler, convém madrugarem também no pensar. Vulgar é o ler, raro o refletir. O saber não está na ciência alheia, que se absorve, mas, principalmente, nas idéias pró− prias, que se geram dos conhecimentos absorvidos, mediante a transmutação, por que passam, no espírito49 que os assimila. Um sabedor não é armário de sabedoria armazenada, mas transforma− dor reflexivo de aquisições digeridas. Já se vê quanto vai do saber aparente ao saber real. O saber de aparência crê e ostenta saber tudo. O saber de realidade, quanto mais real, mais desconfia, assim do que vai aprendendo, como do que elabora. Haveis de conhecer, como eu conheço, países, onde quanto me− nos ciência se apurar, mais sábios florescem. Há, sim, dessas regiões 48 entrei ao colégio. – Regência rara, em lugar da usual entrei para o colégio. 49 no espírito que os assimila. – Outra das raras ocasiões em que a oração adjetiva restritiva não vem separada por vírgula do seu substantivo. – V. nota 27. 33 por este mundo além. Um homem (nessas terras de promissão) que nunca se mostrou lido ou sabido em coisa nenhuma, tido e havido é por corrente e moente50 no que quer que seja; porque assim o acla− mam as trombetas da política, do elogio mútuo, ou dos corrilhos pessoais, e o povo subscreve a néscia atoarda. Financeiro, adminis− trador, estadista, chefe de Estado, ou qualquer outro lugar de ingen− te situação e assustadoras responsabilidades, é a pedir de boca51 , o que se diz mão de pronto desempenho52 , fórmula viva a quaisquer dificuldades, chave de todos os enigmas. Tenham por averiguado que, onde quer que o colocarem, dará conta o sujeito das mais árduas empresas e solução aos mais emara− nhados problemas. Se em nada se aparelhou, está em tudo e para tudo aparelhado. Ninguém vos saberá informar por quê. Mas todo o mundo vo−lo dará por líquido e certo. Não aprendeu nada, e sabe tudo. Ler, não leu. Escrever, não escreveu. Ruminar, não ruminou. Produzir, não produziu. É um improviso onisciente, o fenômeno de que poetava Dante: “In picciol tempo gran dottor si feo”. * 53 A esses homens−panacéias, a esses empreiteiros de todas as em− preitadas, a esses aviadores de todas as encomendas, se escancelam os portões da fama, do poderio, da grandeza, e, não contentes de lhes aplaudir entre os da terra a nulidade, ainda, quando Deus quer, a mandam expor à admiração do estrangeiro. Pelo contrário, os que se tem por notório e incontestável excede− 50 corrente e moente. – A expressão antiga moente e corrente, nesta ordem registrada nos dicionários, significa “em bom estado de uso”, ou então “muito habitual”. Aqui, invertendo os termos, Rui quer dizer, sem dúvida, “entendido, capaz, habilitado.” 51 a pedir de boca: conforme se deseje, se peça. 52 mão de pronto desempenho, etc.: indivíduo apto a desempenhar sua tarefa, a resolver qualquer problema. * Paradiso, XII, 85. 53 “Em pouco tempo grão doutor se fez.” 36 dadeiramente, não há lei, não o há, moral, política ou juridicamente falando. Considerai, pois, nas dificuldades, em que se vão enleiar57 os que professam a missão de sustentáculos e auxiliares da lei, seus mestres e executores. É verdade que a execução corrige, ou atenua, muitas vezes, a legislação de má nota. Mas, no Brasil, a lei se deslegitima, anula e torna inexistente, não só pela bastardia da origem, senão ainda pe− los horrores da aplicação. Ora, dizia S. Paulo que boa é a lei, onde se executa legitimamen− te. “Bona est lex, si quis ea legitime utatur.”* Quereria dizer: Boa é a lei, quando executada com retidão. Isto é: boa será, em havendo no executor a virtude, que no legislador não havia. Porque só a moderação, a inteireza e a eqüidade, no aplicar das más leis, as po− deriam, em certa medida, escoimar da impureza, dureza e maldade, que encerrarem. Ou, mais lisa e claramente, se bem o entendo, pre− tenderia significar o apóstolo das gentes que mais vale a lei má, quan− do inexecutada, ou mal executada (para o bem), que a boa lei, sofis− mada e não observada (contra ele). Que extraordinário, que imensurável, que, por assim dizer, estu− pendo e sobre−humano, logo, não será, em tais condições, o papel da justiça! Maior que o da própria legislação. Porque, se dignos são os juízes, como parte suprema, que constituem, no executar das leis – em sendo justas, lhes manterão eles a sua justiça, e, injustas, lhes poderão moderar, se não, até, no seu tanto, corrigir a injustiça. De nada aproveitam leis, bem se sabe, não existindo quem as ampare contra os abusos; e o amparo sobre todos essencial é o de uma justiça tão alta no seu poder, quanto na sua missão. “Aí temos as leis”, dizia o Florentino. “Mas quem lhes há de ter mão?58 Nin− guém.” 57 enleiar – V. nota 40. * S. Paulo: I Tim. I, 8. 58 Quem lhes há de ter mão?: Quem garantirá o seu cumprimento? 37 “Le leggi son, ma chi pon mano ad esse? Nullo”* Entre nós não seria lícito responder assim tão em absoluto à in− terrogação do poeta. Na Constituição brasileira, a mão que ele não via na sua república e em sua época, a mão sustentadora das leis, aí a temos, hoje, criada, e tão grande, que nada lhe iguala a majestade, nada lhe rivaliza o poder. Entre as leis, aqui, entre as leis ordinárias e a lei das leis, é a justiça quem decide, fulminando aquelas, quando com esta colidirem. Soberania tamanha só nas federações de molde norte−americano cabe ao poder judiciário, subordinado aos outros poderes nas de− mais formas de governo, mas, nesta, superior a todos. Dessas democracias, pois, o eixo é a justiça, eixo não abstrato, não supositício, não meramente moral, mas de uma realidade pro− funda, e tão seriamente implantado no mecanismo do regímen, tão praticamente embebido através de todas as suas peças, que, falsean− do ele ao seu mister, todo o sistema cairá em paralisia, desordem e subversão. Os poderes constitucionais entrarão em conflitos insolú− veis, as franquias constitucionais ruirão por terra, e da organização constitucional, do seu caráter, das suas funções, das suas garantias apenas restarão destroços. Eis o de que nos há de preservar a justiça brasileira, se a deixa− rem sobreviver, ainda que agredida, oscilante e malsegura, aos ou− tros elementos constitutivos da república, no meio das ruínas, em que mal se conservam ligeiros traços da sua verdade. Ora, senhores, esse poder eminencialmente necessário, vital e sal− vador tem os dois braços, nos quais agüenta a lei, em duas institui− ções: a magistratura e a advocacia, tão velhas como a sociedade huma− na, mas elevadas ao cem−dobro, na vida constitucional do Brasil, pela estupenda importância, que o novo regímen veio dar à justiça. Meus amigos, é para colaborardes em dar existência a essas duas instituições que hoje saís daqui habilitados. Magistrados ou advoga− * Dante: Purgatório, XVI, 97−98. 38 dos sereis. São duas carreiras quase sagradas, inseparáveis uma da outra, e, tanto uma como a outra, imensas nas dificuldades, respon− sabilidades e utilidades. Se cada um de vós meter bem a mão na consciência, certo que tremerá da perspectiva. O tremer próprio é dos que se defrontam com as grandes vocações, e são talhados para as desempenhar. O tremer, mas não o descorçoar. O tremer, mas não o renunciar. O tremer, com o ousar. O tremer, com o empreender. O tremer, com o confiar. Confiai, senhores. Ousai. Reagi. E haveis de ser bem−sucedi− dos. Deus, pátria e trabalho. Metei no regaço essas três fés, esses três amores, esses três signos santos. E segui, com o coração puro. Não hajais medo a que a sorte vos ludibrie. Mais pode59 que os seus aza− res a constância, a coragem e a virtude. Idealismo? Não: experiência da vida. Não há forças, que mais a senhoreiem, do que essas. Experimentai−o, como eu o tenho experi− mentado. Poderá ser que resigneis certas situações, como eu as te− nho resignado. Mas meramente para variar de posto, e, em vos sen− tindo incapazes de uns, buscar outros, onde vos venha ao encontro o dever, que a Providência vos haja reservado. Encarai, jovens colegas meus, nessas60 duas estradas, que se vos patenteiam. Tomai a que vos indicarem vossos pressentimentos, gos− tos e explorações, no campo dessas nobres disciplinas, com que lida a ciência das leis e a distribuição da justiça. Abraçai a que vos sentirdes indicada pelo conhecimento de vós mesmos. Mas não primeiro que hajais buscado na experiência de outrem um pouco da que vos é mister, e que ainda não tendes, para eleger a melhor derrota61, entre as duas que se oferecem à carta de idoneidade, hoje obtida. 59 Mais pode ... a constância, a coragem e a virtude. – Concordância do verbo anteposto (pode) com o primeiro dos termos (constância) do sujeito composto, con− siderados, no seu conjunto, como um todo. 60 Encarai ... nessas duas estradas. – Regência incomum do verbo encarar, mais habitualmente transitivo direto. 61 derrota: rota. 41 contacto dos pleiteantes, recebendo−os com má sombra64, em lugar de os ouvir a todos com desprevenção, doçura e serenidade. Não imiteis os que, em se lhes oferecendo o mais leve pretexto, a si mesmos põem suspeições rebuscadas, para esquivar responsabili− dades, que seria do seu dever arrostar sem quebra de ânimo ou de confiança no prestígio dos seus cargos. Não sigais os que argumentam com o grave das acusações, para se armarem de suspeita e execração contra os acusados; como se, pelo contrário, quanto mais odiosa a acusação, não houvesse o juiz de se precaver mais contra os acusadores, e menos perder de vista a presunção de inocência, comum a todos os réus, enquanto não liqui− dada a prova e reconhecido o delito. Não acompanheis os que, no pretório, ou no júri, se convertem de julgadores em verdugos, torturando o réu com severidades ino− portunas, descabidas, ou indecentes; como se todos os acusados não tivessem direito à proteção dos seus juízes, e a lei processual, em todo o mundo civilizado, não houvesse por sagrado o homem, sobre quem recai acusação ainda inverificada. Não estejais com os que agravam o rigor das leis, para se acredi− tar com o nome de austeros e ilibados. Porque não há nada menos nobre e aplausível que agenciar uma reputação malignamente obti− da em prejuízo da verdadeira inteligência dos textos legais. Não julgueis por considerações de pessoas, ou pelas do valor das quantias litigadas, negando as somas, que se pleiteiam, em razão da sua grandeza, ou escolhendo, entre as partes na lide, segundo a situ− ação social delas, seu poderio, opulência e conspicuidade. Porque quanto mais armados estão de tais armas os poderosos, mais incli− nados é de receiar65 que sejam à extorsão contra os menos ajudados da fortuna66; e, por outro lado, quanto maiores são os valores de− 64 com má sombra: de má catadura. 65 receiar. – V. nota 40. 66 fortuna. – V. nota 35. 42 mandados e maior, portanto, a lesão argüida, mais grave iniqüidade será negar a reparação, que se demanda. Não vos mistureis com os togados, que contraíram a doença de achar sempre razão ao Estado, ao Governo, à Fazenda; por onde os condecora o povo com o título de “fazendeiros”. Essa presunção de terem, de ordinário, razão contra o resto do mundo, nenhuma lei a reconhece à Fazenda, ao Governo, ou ao Estado. Antes, se admissível fosse aí qualquer presunção, havia de ser em sentido contrário; pois essas entidades são as mais irresponsáveis, as que mais abundam em meios de corromper, as que exercem as perse− guições, administrativas, políticas e policiais, as que, demitindo fun− cionários indemissíveis, rasgando contratos solenes, consumando lesões de toda a ordem (por não serem os perpetradores de tais aten− tados os que os pagam), acumulam, continuamente, sobre o Tesoiro público terríveis responsabilidades. No Brasil, durante o Império, os liberais tinham por artigo do seu programa cercear os privilégios, já espantosos, da Fazenda Na− cional. Pasmoso é que eles67, sob a República, se cem−dobrem ainda, conculcando−se, até, a Constituição, em pontos de alto melindre, para assegurar ao Fisco esta situação monstruosa, e que ainda haja quem, sobre todas essas conquistas, lhe68 queira granjear a de um lugar de predileções e vantagens na consciência judiciária, no foro íntimo de cada magistrado. Magistrados futuros, não vos deixeis contagiar de contágio69 tão maligno. Não negueis jamais ao Erário, à Administração, à União os seus direitos. São tão invioláveis, como quaisquer outros. Mas o direito dos mais miseráveis dos homens, o direito do mendigo, do escravo, do criminoso, não é menos sagrado, perante a justiça, que o do mais alto dos poderes. Antes, com os mais miseráveis é que a justiça deve ser mais atenta, e redobrar de escrúpulo; porque são os 67 eles: os privilégios. 68 lhe: ao Fisco, à Fazenda. 69 contagiar de contágio: repetição enfática. 43 mais maldefendidos, os que suscitam menos interesse, e os contra cujo direito conspiram a inferioridade na condição com a míngua nos recursos. Preservai, juízes de amanhã, preservai vossas almas juvenis des− ses baixos e abomináveis sofismas. A ninguém importa mais do que à magistratura fugir do medo, esquivar humilhações, e não conhecer cobardia. Todo o70 bom magistrado tem muito de heróico em si mesmo, na pureza imaculada e na plácida rigidez, que a nada se dobre, e de nada se tema, senão da outra justiça, assente, cá embai− xo, na consciência das nações, e culminante, lá em cima, no juízo divino. Não tergiverseis com as vossas responsabilidades, por mais atribulações que vos imponham, e mais perigos a que vos exponham. Nem receieis71 soberanias da terra: nem a do povo, nem a do poder. O povo é uma torrente, que rara vez se não deixa conter pelas ações magnânimas. A intrepidez do juiz, como a bravura do soldado, o arrebatam e fascinam. Os governos investem contra a justiça, pro− vocam e desrespeitam a tribunais; mas, por mais que lhes72 espu− mem contra as sentenças, quando justas, não terão, por muito tem− po, a cabeça erguida em ameaça ou desobediência diante dos magis− trados, que os enfrentem com dignidade e firmeza. Os presidentes de certas repúblicas são, às vezes, mais intoleran− tes com os magistrados, quando lhes resistem, como devem, do que os antigos monarcas absolutos. Mas, se os chefes das democracias de tal jaez se esquecem do seu lugar, até o extremo de se haverem, quando lhes pica o orgulho, com os juízes vitalícios e inamovíveis de hoje, como se haveriam com os ouvidores e desembargadores del−Rei Nosso Senhor, frágeis instrumentos nas mãos de déspotas 70 Todo o bom magistrado: qualquer bom magistrado. – Hoje em dia procura−se distinguir todo o (= “inteiro”) de todo (= “qualquer”), o que não faziam os clássicos, que Rui gostava de tomar por modelo. 71 receieis. – V. nota 40. 72 lhes espumem contra as sentenças: espumem contra as suas sentenças. 46 am, hoje, os destroços da civilização meio destruída. Esse fatal excídio está clamando por Deus. Quando ele tornar a nós, as nações abandonarão a guerra, e a paz, então, assomará entre elas, a paz das leis e da justiça, que o mundo ainda não tem, porque ainda não crê. À justiça humana cabe, nessa regeneração, papel essencial. Assim o saiba ela honrar. Trabalhai por isso os que abraçardes essa carreira, com a influência da altíssima dignidade, que do seu exercício recebereis. Dela vos falei, da sua grandeza e dos seus deveres, com a incompetência de quem não a tem exercido. Não tive a honra de ser magistrado. Advogado sou, há cinqüenta anos, e, já ago− ra, morrerei advogado. É, entretanto, da advocacia no Brasil, da minha profissão, do que nela, em experiência, acumulei, praticando−a, que me não será dado agora tratar. A extensão já demasiadíssima deste colóquio em desalinho não me consentiria acréscimo tamanho. Mas que perdereis, com tal omissão? Nada. Na missão do advogado também se desenvolve uma espécie de magistratura. As duas se entrelaçam, diversas nas funções, mas idênticas no objeto e na resultante: a justiça. Com o advo− gado, justiça militante. Justiça imperante, no magistrado. Legalidade e liberdade são as tábuas da vocação do advoga− do. Nelas se encerra, para ele, a síntese de todos os mandamen− tos. Não desertar a justiça, nem cortejá−la. Não lhe faltar com a fidelidade, nem lhe recusar o conselho. Não transfugir da le− galidade para a violência, nem trocar a ordem pela anarquia. Não antepor os poderosos aos desvalidos, nem recusar patrocí− nio a estes contra aqueles. Não servir sem independência à jus− tiça, nem quebrar da verdade76 ante o poder. Não colaborar Não há justiça sem Deus – continha realmente cinco palavras. Alterando−a depois, esqueceu−se Rui de que a nova frase possui mais duas palavras. 76 quebrar da verdade. – Emprego incomum do verbo quebrar, no sentido de 47 em perseguições ou atentados, nem pleitear pela iniqüidade ou imoralidade. Não se subtrair à defesa das causas impopulares, nem à das perigosas, quando justas. Onde for apurável um grão, que seja, de verdadeiro direito, não regatear ao atribulado o consolo do amparo judicial. Não proceder, nas consultas, senão com im− parcialidade real do juiz nas sentenças. Não fazer da banca balcão, ou da ciência mercatura. Não ser baixo com os grandes, nem arro− gante com os miseráveis. Servir aos opulentos com altivez e aos indigentes com caridade. Amar a pátria, estremecer o próximo, guardar fé em Deus, na verdade e no bem. Senhores, devo acabar. Quando, há cinqüenta anos, saía eu da− qui, na velha Paulicéia, solitária e brumosa, como hoje saís da trans− figurada metrópole do máximo Estado brasileiro, bem outros eram este país e todo o mundo ocidental. O Brasil acabava de varrer do seu território a invasão paraguaia, e, na América do Norte, poucos anos antes, a guerra civil limpara da grande república o cativeiro negro, cuja agonia esteve a pique de a soçobrar77 despedaçada. Eram dois prenúncios de uma alvo− rada, que doirava os cimos do mundo cristão, anunciando futuras vitórias da liberdade. Mas, ao mesmo tempo, a invasão germânica alagava terras de França, deixando−a violada, traspassada no coração e cruelmente mutilada, aos olhos secos e indiferentes das outras potências e mais nações européias, grandes, ou pequenas. Ninguém percebeu que se estavam semeando o cativeiro e a subversão do mundo. Daí a menos de cinqüenta anos, aquela atroz exacerbação do egoísmo político envolvia culpados e inocentes numa série de convulsões, tal, que acreditaríeis haver−se despejado o inferno entre as nações da terra, dando ao inaudito fenômeno humano proporções quase capazes de representar, na sua espanto− sa imensidade, um cataclismo cósmico. Parecia estar−se desman− “desviar−se de”, “infringir”. 77 soçobrar: fazer soçobrar. – V. também a nota 21. 48 chando e aniquilando o mundo. Mas era a eterna justiça que se mostrava. Era o velho continente que principiava a expiar a velha política, desalmada, mercantil e cínica, dos Napoleões, Metternichs e Bismarcks, num ciclone de abominações inenarráveis, que bem depressa abrangeria, como abrangeu, na zona das suas tremendas comoções, os outros continentes, e deixaria revolvido o orbe intei− ro em tormentas catastróficas, só Deus sabe por quantas gerações além dos nossos dias. O Briareu78 do inexorável mercantilismo que explorava a hu− manidade, o colosso do egoísmo universal, que, durante um sécu− lo, assistira impassível à entronização dos cálculos dos governos sobre os direitos dos povos, o reinado ímpio da ambição e da força rolava, e se desfazia, num desmoronamento pavoroso, levando por aí a rojo impérios e dinastias, reis, domínios, constituições e trata− dos. Mas a medonha intervenção dos poderes tenebrosos do nosso destino mal estava começada. Ninguém poderia conjecturar ainda como e quando acabará. Neste canto da terra, o Brasil “da hegemonia sul−americana”, entreluzida com a guerra do Paraguai, não cultivava tais veleida− des, ainda bem que, hoje, de todo em todo extintas. Mas encetara uma era de aspirações jurídicas e revoluções incruentas. Em 1888 aboliu a propriedade servil. Em 1889 baniu a coroa, e organizou a república. Em 1907 entrou, pela porta de Haia, ao concerto das nações. Em 1917 alistou−se na aliança da civilização, para empe− nhar a sua responsabilidade e as suas forças navais na guerra das guerras, em socorro do direito das gentes, cujo código ajudara a organizar na Segunda Conferência da Paz. Mas, de súbito, agora, um movimento desvairado parece estar− nos levando, empuxados de uma corrente submarina, a um recuo inexplicável. Diríeis que o Brasil de 1921 tendesse, hoje, a repudiar o Brasil de 1917. Por quê? Porque a nossa política nos descurou 78 Briareu: gigante da mitologia greco−romana, provido de 50 cabeças e 100 braços. 51 não buscando salvadores. Ainda vos podereis salvar a vós mesmos. Não é sonho, meus amigos: bem sinto eu, nas pulsações do sangue, essa ressurreição ansiada. Oxalá não se me fechem os olhos, antes de lhe ver os primeiros indícios no horizonte. Assim o queira Deus. Composto na Casa de Rui Barbosa com fontes Sabon Linotype 10/13. Acabou−se de imprimir em dezembro de 1999.
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