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A Terceira Velocidade do Direito Penal, Notas de estudo de Direito Penal

A Terceira Velocidade do Direito Penal: o Direito Penal do Inimigo

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 24/08/2010

Pernambuco
Pernambuco 🇧🇷

4.2

(47)

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Baixe A Terceira Velocidade do Direito Penal e outras Notas de estudo em PDF para Direito Penal, somente na Docsity! Alexandre Rocha Almeida de Moraes A Terceira Velocidade do Direito Penal: o “Direito Penal do Inimigo” VOLUME I DISSERTAÇÃO DE MESTRADO - Direito Penal Pontifícia Universidade Católica de São Paulo São Paulo 2006 Alexandre Rocha Almeida de Moraes A Terceira Velocidade do Direito Penal: o “Direito Penal do Inimigo” Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Direito Penal, sob orientação do Professor Doutor DIRCEU DE MELLO São Paulo 2006 AGRADECIMENTOS Agradeço ao meu pai Sérgio e minha avó Edith, que me ensinaram honra, dignidade e valor da vida; e aos meus queridos irmãos Andréa e Guilherme, companheiros na dor e na alegria. Agradeço ao Prof. Dr. Francisco de Camargo Lima por ter me despertado o prazer pelo Direito Penal. Agradeço à minha querida madrinha Tilene Almeida de Morais (in memorian), de quem herdei a vocação de ser Promotor. Agradeço ao artista da palavra Edilson Mougenot Bonfim, mestre que me mostrou o caminho dos clássicos, me despertou para o instigante tema deste trabalho e que me deixa orgulhoso por simplesmente me permitir compartilhar de sua amizade e conhecimento. Agradeço, também, ao Ministério Público do Estado de São Paulo, que me realiza, me resgata e me completa, em testemunho de gratidão. Agradeço, ainda, ao Prof. Dr. Dirceu de Mello, pelo inesgotável entusiasmo, pela busca incessante do perfeccionismo; pelo homem e profissional a quem quero com profunda afeição e admiração. Finalmente, agradeço à Flávia, a quem todo dia deveria dizer SIM; agradeço agora e sempre aos meus filhos Gabriel, Carolina e Helena. Enfim, a esta família preciosa, cuja presença e cumplicidade são decisivas para impedir que eu deixe de sonhar. HOMENAGENS (in memoriam) Dedico este trabalho a minha avó Ítala e à minha segunda mãe Tilene, pelos exemplos de amor. Dedico à minha mãe Selma e ao meu avô Saul, meus amados, que tanto me incentivaram, me compreenderam e me ensinaram e, principalmente, porque me fizeram um homem melhor. “.. Para que o povo não faça o papel do velho cão estúpido que morde a pedra que nele bate, em vez de procurar a mão que a arremessou...”. (Tobias Barreto, apud BONFIM, Edílson Mougenot. Direito Penal da Sociedade. São Paulo: Oliveira Mendes, Livraria Del Rey, 1997, notas do autor). SUMÁRIO Introdução... iirerrireeeeeeere rear rea eee cemertraere reservas 02 CAP. I. Contexto da sociedade pós-industrial e as novas demandas penais 13 1. Visão da sociedade pós-moderna. 13 2. Os novos sujeitos passivos e os novos gestores da moral..............tseere 18 3. Globalização... ne 20 23 5. A formatação da sociedade de riscos............cmseerereaeerenereeaeereneereremeeree 26 6. A institucionalização da insegurança. . 27 7. Expressão do Direito Penal na era da globalização.............. seen 31 8. Hipertrofia legislativa... 38 9. “Detalhe Brasileiro”: o des política... 41 10. Dilema do Direito Penal liberal: aumento da criminalidade de massa e da criminalidade organizada............ e eseerereaeereneerereneeseneerereneereneererenseres 47 CAP. II - Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann: o Direito como estabilização congruente de expectativas normativas....... 60 1. Introdução: o conceito de sociedade complexa. 60 2. Teoria dos Sistemas.............seremeremeeeeremeeeeeerereaeeseneererearesencererearesencerereanes 65 2.1. Apresentação... cereremeremeererereremeerereeeremeerereseerareseaceseacaeseaseensaes 65 2.2. Metodologia.............. rr teeereererereeererereeneerrereereeneereereaeeereerenee near serertess 69 2.2.1. Sistemas autopoiéticos............eceseseerereerereaeereneerereneeseneererearesencerereasereno n 2.2.2. Diferenciação funcional................ rc rierererare rare rare rare rare rererarenas 74 3. Função do Direito..... 76 4. Críticas à Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann......................... 78 5. Considerações fundamentais: a corrupção dos códigos e as frustrações..... 80 * Anexo I.. 85 CAP. II - O funcionalismo penal de Giinther Jakobs: o “Direito Penal do Cdadão”.............. eee 86 1. Escolas penais..............c e rerereremeeeeeeeeerareeeneerenearerencereneaserenses 86 2. Da teoria do delito: causalismo, neokantismo, finalismo e funcionalismo.. 95 2.1. Introdução: do causalismo ao finalismo...............ceeeereseereneerereaserenerenes 95 2.2. Apresentação do sistema funcionalista.............cesesereerereaeeremereeneeremeres 100 2.3. O funcionalismo penal de Giinther Jakobs................eeseseeseeerereaserenese 103 CAP. IV - Das clássicas teorias da pena à prevenção geral positiva......... 114 1. Teorias absolutas............... cs ereerereaeerereerereneesereerereneesencereneaeesensererearerenseess 117 2. Teorias relativa 119 2.1. Prevenção especial...............cereemeremeremeereremeerereeeremeecereeararesenceenearereases 121 2.2. Prevenção geral.............ceremeremeemeremeerereeeeremeerereeerarescaceneacaresencenereasereos 125 2.2.1. Teorias ecléticas: breves contornos................... 128 2.2.2. Prevenção geral positiva: a finalidade da pena para Giinther Jakobs..... 130 2.2.3. Críticas à teoria da prevenção geral positiva..... 139 3. Considerações fina! para o “Direito Penal do Inimigo”....... 144 CAP.V-A Terceira velocidade do Direito Penal: “O Direito Penal do Inimigo” . 148 1. Preliminarmente. 148 2. Origem, conceito e significado.............ceeeeereerereaeereneerereneeseneerereasereneerereos 153 3. O suporte filosófico............... eee rrerereereereereereererereeererrereeneercerearseneerenrearoa 159 4. Pessoa x Inimigo............eemerememeremerereeeremeerereeeerarercaceeaearesencerenearerenseess 162 4.1. O indivíduo como “pessoa”. 165 4.2. Os “inimigos” da sociedade..............eremerereeeremeeeereeeeeaeereneereneaserensererense 166 5. Principais características...........cerememeremerereeeeremeerereeeesaresencerereasesencererearereos 168 5.1. A antecipação da tutela penal..............cisereeesereerereaeereneerereneereneererensereo 170 5.1.1. A punição dos atos preparatórios e os tipos de mera condut: 171 5.1.2. Os tipos de perigo abstrato..............eeremerereeeeremeecererereaeereneerenearerenseenta 174 “O direito penal é o rosto do Direito, no qual se manifesta toda a individualidade de um povo, seu pensar e seu sentir, seu coração e suas paixões, sua cultura e sua rudeza. Nele se espelha a sua alma. O direito penal é o povo mesmo, a história do direito penal dos povos é um pedaço da humanidade” (Tobias Barreto)! O Direito existe enquanto existe sociedade minimamente organizada. É um instituto humano, um modo de vida social “até onde não é possível a vida pelo amor? Sem o sistema penal, já afirmara CARRARA, “seriam as cidades um contínuo teatro de lutas e de guerra sem limite. E aí está porque na tranquilidade reside, segundo meu modo de entender, o verdadeiro fim da pena”. ? Longe do mundo sonhado pelo homem de bem e preconizado por INGENIEROS, segundo o qual “todo ideal é uma fé na possibilidade mesma da perfeição”, o Direito figura como algo essencial, ou , “como uma das peças de torcer e ajeitar, em proveito da sociedade”. O Direito é, pois, antes de tudo, o raio-x da ética social. O Direito Penal, como medida extrema de manutenção da ordem e de pacificação social é, por excelência, o reflexo da moral de um povo. É, justamente por sua inexorável ligação à configuração social, o mais dinâmico dos ramos do Direito;º aquele que eterniza a dialética entre segurança da sociedade e liberdade do cidadão. As antigas concepções contratualistas de Estado preconizavam que o homem já nasce privado de parte da sua liberdade e, nesse sentido, sonhar com sua emancipação ainda é algo inatingível. BECCARIA, rememorado por GARCIA, já advertia que “o homem cede uma parcela mínima da sua liberdade, para tornar possível a vida em coletividade (...)". 7 Sendo assim, o Direito Penal com mínima intervenção torna-se um sonho cada vez 1 apud BONFIM, Edílson Mougenot. Direito Penal da Sociedade. São Paulo: Oliveira Mendes, Livraria Del Rey, 1997, p. 220 2 BARRETO, Tobias. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Landy, 2001, p. 34 3 CARRARA, Francesco. Programa do Curso de Direito Criminal: Parte Geral. Campinas: LZN, 2002, v. IL, p. 82 4 INGENIEROS, José. O Homem Mediíocre. Campinas: Edicamp, 2002, p. 8 5 BARRETO, Introdução... p. 34 6 MELLO, Dirceu de. São Paulo: Aula Proferida no Curso de Mestrado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1º sem. 2004 7 GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. 4º ed., v. 1, Tomo 1, 38º tir. São Paulo: Max Limonad, 1976, p. 54 mais distante, sobretudo em ciclos de crise de valores humanos. Contudo, o homem brasileiro também está em crise e imerso em circunstâncias que, de maneira crescente, exigem a intervenção do Direito para a efetiva tutela de bens garantidos pela Constituição Federal. Ao Direito ideal, aliás, bastaria uma Constituição da República, segundo CAPISTRANO DE ABREU, com dois únicos dispositivos: “art. 1º. Todo homem deve ter caráter e art. 2º. Revogam-se as disposições em contrário”. º Em vez de tal Constituição, o que se vê são ladrões que não têm mais a aparência de ladrões e pais e professores que já não constituem autoridades presumidas. Em vista de tal situação, é imperioso que o Direito cada vez mais regulamente os comportamentos humanos. O Direito é, e ainda será por muito tempo, “uma projeção humana, para o homem mesmo, àquele que ainda não chegou à sociedade fraterna a que nós todos almejamos, aquela “organização do amor pregada por Jesus, onde 'cada qual ganhará o pão com o suor do seu rosto' e “amará o próximo como a si mesmo”. º E qual o retrato da projeção humana nos tempos modernos? Que configuração social e que Direito Penal estão sendo projetados e criados e que, paradoxalmente, despertam tanta crítica? Com arrimo em BONFIM, “para falarmos em contemporaneidade, é mister uma análise filosófica do tempo em que vivemos”. !º O homem natural de Aristóteles, que deu lugar ao homem de fé e ao filho de Deus, abriu espaço para o homem racional (DESCARTES). O homem cartesiano, que passou a contestar o Direito feito pelo próprio homem, encontra-se agora fraturado em seu espírito e imerso em uma crise de valores, que o impede de encontrar o quê e a quem seguir, dando azo àquilo que ENRIQUE ROJAS denomina 'o homem light: “Do vir-a-ser do direito resta mera pretensão repousando inerte como papel borrado”,"! pois entre a concepção de um Direito Penal ideal e a sua consequente realização, há um homem em crise. BONFIM acertadamente descreve o homem atual como aquele que “prefere 8 apud BONFIM, Os Reflexos da Constituição Cidadã no Processo Penal. Campo Grande: Revista da OAB Mato Grosso do Sul, ano 1, n. 1, “Os Dez Anos da Constituição Cidadã e os seus reflexos nos demais ramos do Direito”, 1999 p. 71-88 9 BONFIM, Direito Penal..., p. 284 10 BONFIM, São Paulo: Discurso de Abertura do I Congresso Mundial do Ministério Público (2000). Disponível em: <http://www.emougenotbonfim .com/portuguese/index.htm>, Acesso em: 02 mai. 2005 1 apud BONFIM, id. o aplauso fácil à crítica sincera, o elogio vazio ao aplauso convicto, (...)”. Segundo o mesmo autor, “trata-se de um homem absolutamente transparente, porque inócuo; o seu conteúdo não existe, é apenas um vazio existencial emoldurado pelo continente físico”. '2 HUNGRIA, citando ALOÍSIO DE CARVALHO, já antecipava essa análise: O mundo contemporâneo passa por uma grave crise social e moral, que remonta a primeira Grande Guerra. Fendeu-se a camada de verniz que recobria os instintos egoísticos e violentos, e estes predominam na orientação da conduta humana. As normas de cultura que os séculos haviam sedimentado vêm sendo extirpadas pelas raízes ou abolidas com a mesma facilidade com que se repudiam hábitos recentes. Desintegra-se, cada vez mais, o espírito de cooperação, de ordem e de paz. A fé religiosa foi banida dos corações. Os escrúpulos e reservas ditados pelo velho Código moral saíram de voga, como o fraque e a barba ando, e um exacerbado egoísmo desembestou na steeple chase do “cada um para si, custe o que custar”. * A moral de um povo pode ser facilmente medida pela incidência do Direito. O mínimo ético de uma sociedade é proporcional ao Direito vigente: quanto maior a necessidade do uso do Direito, maior o indício de que o povo está moralmente em crise. É plausível, portanto, a suposição de que quanto menor a necessidade do uso do Direito, mais elevada está a virtude dos homens de determinada sociedade. E, no simples dizer de JEAN-CLAUDE GUILLEBAUD, “quando uma sociedade perde pontos de referência, quando os valores compartilhados — e, sobretudo, uma definição elementar do bem e do mal — se desvanecem, é o Código Penal que os substitui”, ainda que a um custo altíssimo para a liberdade. O discurso sonhador laxista e abolicionista, propugnando pelo fim do Direito Penal e pelo fim da pena privativa de liberdade, está logicamente dissociado da realidade. Constatada a crise do homem e a configuração da sociedade moderna, impossível dar crédito ao discurso que sonha sem os pés no chão”. O homem atual, solitário (e não solidário), sozinho (e não vizinho), conforme nos alerta BONFIM, está longe de ver nos olhos do próximo um irmão." Ademais, a sociedade rotulada de “pós-moderna”, 'pós-industrial e “globalizada” tem na comunicação instantânea, no avanço tecnológico e na crise do 12 A Repressão Penal. Publicado no periódico “O Jornal”, edição de 18 set. 1946 (apud HUNGRIA Hoffbauer, Nelson. Comentários ao Código Penal. 3º ed., v. I, tomo 1º. Rio de Janeiro: Forense, 1955, p. 53) 13 1d. 14 apud SÁNCHEZ, Jesús-Marfa Silva. A Expansão do Direito Penal: Aspectos da política criminal nas sociedades pós- industriais. São Paulo: Revista dos Tribunais, Série as Ciências Criminais no Século XXI — v. 11, Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha, 2002, p. 59 15 BONFIM, Os Reflexos..., p. 86 desfigura-se e desnatura-se: deixa de ser um tema político-filosófico para se transmudar dramaticamente em capítulo de patologia psíquica”.?! Ideal sem perspectiva de transformação, como lembra o autor, é ficar aprisionado, trancafiado no sonho, coagulando-se em pesadelo de frustração. 22 Este o dilema que vem vivendo, por exemplo, a sociedade brasileira: iludida pelo Poder Político que, em vez de implementar políticas públicas de caráter preventivo-penal efetivo, (rejeducando esse homem light, aumenta a carga simbólica do Direito Penal e gera expectativas que fatalmente irão se coagular em frustrações até que outro projeto de lei seja encaminhado ao Congresso Nacional. Tais premissas, e tantas outras que delineiam esse impreciso e lacônico conceito de “sociedade moderna” (ou 'pós-moderna”,, são essenciais para uma posição conciliadora entre laxismo e rigorismo, ou a posição de bom senso preconizada por HUNGRIA.? Só uma posição conciliadora impedirá que tanto o idealismo fantasioso e alienado que prega a extinção do Direito Penal e das penas de prisão quanto o rigorismo que preconiza o policiamento ostensivo de todo o comportamento humano, transformando a liberdade em simples tinta na Carta Magna, sucumbam de mãos dadas diante da realidade que se desenha de forma completamente divorciada das bandeiras, frustrando ainda mais as esperanças. Tais premissas também são necessárias para se entender como, a partir de GÚNTHER JAKOBS, delineou-se uma teoria que na prática já vem sendo aplicada no Brasil e no Direito alienígena há algum tempo: o "Direito Penal do Inimigo. Definir, segundo o sentido etimológico, é delimitar. * Através de uma análise preponderantemente zetética? da história das escolas do Direito Penal e, sobretudo, das escolas históricas das funções da pena, faz-se necessário situar o contexto em que se insere a possível legitimidade de um 21id. 22id. 23 HUNGRIA, Comentários..., v. 1, Tomo 1º, p. 56-57 24 PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes de Mera Conduta. 2* cd. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968, p. 15 25“A distinção entre um modo de pensar dogmático e um modo de pensar zetético é utilizada por Vichweg pela primeira vez em um artigo publicado em 1968 e é proposta como uma maneira de entender a complexidade gerada pela amplitude que o fenômeno jurídico abrange e que coloca ao jurista tarefas que vão desde uma análise de um determinado ordenamento jurídico até investigações de caráter científico ou filosófico. Viehweg propõe que se considere, na análise de como podem surgir âmbitos do conhecimento como âmbitos temáticos, a estes âmbitos como esquemas de perguntas e respostas. Constrói- se, assim, um campo de problemas suficientemente descritível e se oferecem respostas que, de acordo com procedimentos de prova a serem precisados, são finalmente aceitas ou rechaçadas. Nestes esquemas de perguntas e respostas é possível conferir maior importância às perguntas ou às respostas. Quando conferimos maior relevância às perguntas a estrutura aponta para a investigação ou zetética. Quando salientamos as respostas, para a dogmática” (VIEHWEG, Theodor. Problemas Sistémicos en la Dogmática Jurídica y en la Investigación Jurídica, Tópica y Filosofia del Derecho. Barcelona: Gedisa, 1991, p. 75) “Direito Penal do Inimigo”, sem preconceitos, sem pré-julgamentos, “sem juízos apriorísticos, sem manietamentos da inteligência a messiânicas e dogmáticas correntes filosóficas/penais (...)”. Além disso, é fundamental aquilatar se o “Princípio dos Princípios! — o da Proporcionalidade - legitimaria um “Direito Penal do Inimigo”, sem antecipação do julgamento e lembrando que “(...) verdades absolutas e as interpretações unilaterais da vida que há um século anunciavam a revolução do homem”, hoje, no dizer acertado de BONFIM, “não são mais que lembranças doces das vias cordianas”. 2 OLAVO DE CARVALHO bem acentuara que Se porém o especialista, o professor, o homem investido de autoridade acadêmica apresenta sua opinião solta, isolada, sem os nexos que a ligam positivamente ou negativamente ao consenso e à tradição, o público leigo fatalmente a tomará como se fosse ela mesma a expressão desse consenso, e dará às palavras de um só indivíduo — ou do grupo que ele representa — o valor e o peso de uma verdade universalmente admitida pelos homens cultos. Assim, esta será a metodologia utilizada — descrever, ainda que de forma fragmentada, os principais aspectos da história do Direito Penal, conjugando-os com o contexto atual, na esteira da lição de LYRA: “no Direito Penal, primeiro historiar, depois conceituar, porque os conceitos básicos evoluíram com a história, em função dela. O conceito depende da história. Para chegar ao conceito atual é preciso percorrer e marcar o campo em que o objeto do estudo teve origem e desenvolvimento”. 2 Com a noção do passado, será possível delinear o presente e verificar a pertinência, diante das novas demandas enfrentadas pelo Direito Penal da 'modernidade”, de se adotar um modelo de Direito Penal exclusivamente clássico. Daí, percorrer os caminhos e temas que constituem objeto da perene dialética entre laxistas e rigoristas: hipertrofia legislativa, tipos de perigo abstrato e tipos omissivos impróprios em uma sociedade de risco, de um lado; e de outro, a retomada de um Direito garantista e com intervenção mínima. Tal percurso será apresentando sob uma nova forma, ou melhor, sob uma forma pré-paradigmática de se pensar o Direito — a Teoria de Sistemas de NIKLAS LUHMANN e o modelo funcionalista sistêmico preconizado por GUNTHER JAKOBS, 26 BONFIM, Direito Penal..., p. 93 27 CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições. São Paulo: Realizações, 2004, p. 32 28 LYRA, Roberto. Guia do Ensino e do Estudo de Direito Penal. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1956, p. 17 algo diverso dos princípios defendidos pelas escolas clássica, positivista e finalista. Por que se faz necessária essa digressão histórica? Por que a compreensão do “Direito Penal do Inimigo” passa pela análise do atual contexto da sociedade e por uma nova leitura das Teorias das Penas? É legítimo, à luz do Princípio da Proporcionalidade, cogitar-se de tratamento diferente ao cidadão e ao “inimigo'? O “inimigo' é o indivíduo que cognitivamente não aceita submeter-se às regras básicas do convívio social. Para ele, dirá JAKOBS, deve-se pensar em um Direito Penal excepcional, de oposição, um Direito Penal consubstanciado na flexibilização de direitos e garantias penais e processuais. Há que se pensar em um novo tratamento que a sociedade imporá àquele que se comporta, cognitivamente, como seu inimigo. Um tratamento que não se amolda às diretrizes do Direito Penal clássico, mas que poderia ser, em tese, legitimado constitucionalmente. Para se compreender uma formulação como esta, no entanto, será necessária uma viagem pela história, de modo a se aferir institutos semelhantes já utilizados no passado, voltados para a prevenção geral ou para um Direito Penal essencialmente preventivo. Além da análise histórica, será necessário verificar a dialética entre o pensamento moral rigorista e o pensamento laxista e, também, como os ciclos de maior repressão do Estado têm impulsionado ciclos com discursos e propostas marcadamente mais liberais e vice-versa. Ademais, entender a complexidade da sociedade atual, em crise e geradora de novas demandas ao Direito Penal, é essencial para a compreensão da nova escola emergente: o funcionalismo penal — ponto de partida de JAKOBS para reformular a Teoria da Pena (prevenção geral positiva ou integradora) e chegar à sua concepção de “Direito Penal do Inimigo”. Inicia-se, pois, o presente estudo, com o primeiro objetivo do Direito Penal, com a proposição de BINDING de obter a compreensão do Direito do seu tempo? com a concepção de que todo conhecimento depende do contexto histórico.?º É certo também que qualquer pesquisa resulta de uma seleção arbitrária e fragmentária de informações?! e, conforme lição de RUSSEL, “antes de tudo, 29 BONFIM, Direito Penal... p. 59 30 JAKOBS, Giinther. Ciência do Direito e Ciência do Direito Penal, in Coleção Estudos de Direito Penal. v. 1. São Paulo: Manole, Trad. Maurício Antonio Ribeiro Lopes, 2003, p. 5 31 BONFIM, Direito Penal..., p. 11 Surge com a Teoria do “Direito Penal do Inimigo”, o conceito de terceira velocidade do Direito Penal. O modelo clássico (pena de prisão e garantias penais e processuais clássicas) já dera espaço ao Direito de segunda velocidade (mitigação da pena privativa de liberdade e alternativa à pena de prisão, ainda que a custo do devido processo legal) e agora assiste ao surgimento teórico do que antes já impregnava as legislações, ou seja, de um Direito de terceira velocidade, em que se conjugam a flexibilização de garantias penais e processuais e a pena privativa de liberdade. A 'terceira velocidade” passa, então, a ser criticada,” de um lado, pelas novas demandas e novos bens sujeitos à tutela penal, que vêm permitindo, com frequência, flexibilizações dos tipos, inserções de novas figuras de perigo abstrato e omissivas impróprias (sociedade do risco), antecipações da tutela penal etc.; e, defendida, de outro lado, pela sensação de insegurança que vem bradando por um maior rigorismo por parte dos Poderes Legislativo e Judiciário. Isto tudo traz à tona a dificuldade de se discutir a legitimidade de um “Direito Penal do Inimigo” alheio ao Princípio da Proporcionalidade. Atacado por aqueles que sonham com uma realidade inexistente e pregam um Direito inapto para manter uma convivência social mínima e endossado por outros de forma automática e sistemática, contaminando, já há algum tempo, a legislação com modelos de tutelas díspares e incongruentes. Será necessário, enfim, buscar um “Direito Penal da Sociedade” que, à luz do Princípio da Proporcionalidade, tutele de forma legítima tanto a liberdade como os outros bens protegidos pela Constituição (vida, patrimônio, integridade física etc.). Enfim, a discussão do tema é apaixonante, porém há que se cuidar para que as críticas não sejam divorciadas da realidade, não sejam bandeiras inócuas e superficiais e “... para que o povo não faça o papel do velho cão estúpido que morde a pedra que nele bate, em vez de procurar a mão que a arremessou (...). *º 37 CONDE, v.g., tem discursado sobre o tema por todo o mundo nos últimos anos, proferindo conferências e palestras na Espanha, Portugal, Itália, Alemanha, Chile, México, Uruguai, Nicarágua, Brasil, Estados Unidos e Japão (apud CONDE, Francisco Murioz. De nuevo sobre el “Derecho Penal del enemigo”. Buenos Aires: Hammurabi, 2005, p. 34) 38 BARRETO, apud BONFIM, Direito Penal... notas do autor 12 CAP. I - CONTEXTO DA SOCIEDADE PÓS AS NOVAS DEMANDAS PENAIS “Os pretensos sábios de hoje invejarão os calouros dos jardins de infância do amanhã”. (ROBERTO LYRA) ' 1. VISÃO DA SOCIEDADE PÓS-MODERNA A apresentação, ainda que de forma fragmentada, dessas novas características da sociedade moderna são fundamentais para se aferir se há espaço em um Estado Democrático para um “Direito Penal do Inimigo”. Criticar as bandeiras que diferenciam e delimitam o conceito de “Direito Penal do Inimigo”, ignorando os novos paradigmas que permeiam a sociedade moderna, é criticar superficialmente, sem o necessário respaldo científico. A complexidade e contingência da atualidade e a forma inadequada com que se vem legislando, máxime diante das novas demandas da sociedade pós- industrial (interesses difusos, criminalidade organizada, lavagem de dinheiro eic.), têm permitido que uma legislação com sinais de “Direito Penal do Inimigo” se infiltre, de forma contumaz, no direito pátrio e estrangeiro, sem clara delimitação com o Direito penal clássico, pautado por garantias e prerrogativas típicas de um “Direito Penal do Cidadão”. O conceito de sociedade moderna e complexa? é, pois, fundamental para se entender a evolução do Direito, as consequências de seus almejados objetivos e a profunda transformação dos fins da sanção penal, de modo a antecipar uma I LYRA, Roberto. Guia do Ensino e do Estudo do Direito Penal. Rio Janeiro: Revista Forense, 1956, p. 19 2 BOBBIO, MATTEUCCI e PASQUINO lembram que “a complexidade é consegiiência, por um lado, da diversificação do aparelho produtivo em três setores (monopólio, concorrencial e estatal) e da consegiente segmentação do mercado de trabalho; por outro, da multiplicação de aspirações, necessidades e comportamentos no campo da reprodução da força- trabalho, a que há de corresponder uma ação política profundamente diversificada. Ao tradicional aparelho político- representativo do Estado agregam-se assim funções econômicas, orientadas à valorização dos div tores do capital, ou i social, a integração da “econômico” foi a origem da crise dos princípios fundamentais do Estado legislativo de direito: a) do princípio da supremacia do poder legislativo; b) da legalidade da atividade executiva do Estado, que há de dar-se segundo as formas preestabelecidas da lei universal e abstrata; c) do controle de legitimidade, isto é, da conformidade com a lei, exercido pela atividade iária”. (apud BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 6º. ed. v. : UNB, 1994, p. 405-406) 13 conclusão: o Direito Penal moderno? vem operando com códigos corrompidos e buscando metas que estão além de seus limites operativos. São marcas dos novos paradigmas que marcam a realidade atual: a) a ineficiência do Estado em executar políticas públicas básicas, o que acentua os índices de criminalidade; b) a ineficiência do Estado em fiscalizar e executar adequadamente o sistema penitenciário, o que vem ensejando a mitigação do Direito Penal clássico, com a adoção do Direito de segunda velocidade (mitigação da pena de prisão e adoção de penas alternativas, como substituição ao pesado custo do sistema carcerário e fiscalizador), o que, ademais, vem contribuindo para o aumento da reincidência; c) o aumento da sensação subjetiva de insegurança da população, em virtude do avanço tecnológico dos meios de comunicação (hoje, com a televisão, internet eic., se sabe em São Paulo de um crime de latrocínio ocorrido há alguns minutos no subúrbio do Rio de Janeiro, aumentando a sensação de insegurança coletiva). Isso tudo agravado pela forma sensacionalista com que a mídia antecipa julgamentos e veicula notícias — como um autêntico produto de mercado”; d) uma sociedade marcada pelo risco, em decorrência dos avanços da tecnologia (novos meios de transportes, de comunicação etc.), incrementando, na legislação penal, novos tipos de perigo abstrato e omissivos impróprios como respostas aparentemente adequadas para evitar tais riscos; e) aumento considerável da demanda penal, diante da tutela dos interesses difusos e coletivos e outros decorrentes das “novidades! da era pós-industrializada (econômicos, de informática, etc.); f) globalização econômica que vem intensificando as desigualdades sociais e incrementando no Direito, novos conceitos, com novos tipos penais, com o abandono de consagradas figuras, tudo em nome da eficiência econômica; 9) a utilização do Direito Penal como instrumento para soluções aparentemente eficazes a curto prazo, mediante o fisiologismo de políticos que acabam hipertrofiando o sistema penal, criando uma colcha de retalhos legislativa incongruente e despropositada; h) o desprestígio de outras instâncias para a solução de conflitos que poderiam ser, a princípio, retirados da tutela do Direito Penal (como o Direito Administrativo)*; i) o considerável aumento do descrédito da população nas instituições e na possibilidade de mudança a curto prazo que, acentuadas pela crise do próprio homem, vem fomentando a criação de “Estados paralelos”, à margem da ordem jurídica posta, aumentando e fortalecendo organizações criminosas, proliferando a justiça “pelas próprias mãos” (linchamentos, grupos de extermínio etc.), desmobilizando os movimentos sociais e desarticulando os mecanismo de resistência à miséria etc. RUSSELL advertiu que qualquer tentativa de enquadrar a história em 3 Expressão cunhada por WINFRIED HASSEMER (apud CONDE, Francisco Muhioz. De nuevo sobre el “Derecho Penal del enemigo”. Buenos Aires: Hammurabi, 2005, p. 16) 4 “Pesquisa elaborada pelo Datafolha e divulgada no início de 2000 demonstra que a sensação de violência supera os dados reais. “Os números mostram que, apesar do percentual de pessoas assaltadas ou roubadas na cidade ter ficado estável nos últimos meses, 79% dos entrevistados achavam que esses crimes haviam aumentado em novembro (de 1999). Só 18% opinaram que o número de furtos, roubos e agressões continuou igual (Folha, 06/02/2000, p. 3-3 (apud GOMES, Luiz Flávio; BIANHINI, Alice. O Direito Penal na Era da Globalização. Série As Ciências Criminais no Século XXI, vol. 10, São Paulo: Revisa dos Tribunais, 2002, p. 76) 5 SÁNCHEZ, Jesús-Marfa Silva. A Expansão do Direito Penal: Aspectos da política criminal nas sociedades pós- industriais, in Série as Ciências Criminais no Século XXI. São Paulo: Revista dos Tribunnais, v. 11, Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha, 2002, p. 57 6 CAMPILONGO, Celso Fernandes. O Direito na Sociedade Complexa. Apresentação e ensaio de Raffacle De Giorgi, São Paulo: Max Limonad, 2000, p.54 14 racionalmente difíceis, tanto no tocante à seleção desses bens, quanto no tocante à técnica para positivação que, como se demonstrará, tem sido utilizada na forma de antecipação da tutela: tipificação de atos preparatórios e adoção de tipos de perigo abstrato, normas penais em branco, tipos omissivos impróprios e infrações de mera conduta, entre outros. Aliás, esses são justamente alguns dos traços do modelo que GUÚNTHER JAKOBS denominará 'Direito Penal do Inimigo”. Ainda que pareça lógica a ilação de que “fatos considerados crimes numa época não o são em outra”,º estaria o Direito Penal apto a tutelar e proteger fatos e bens que a 'pós-modernidade' tem-lhe alçado como demandas necessárias? O Direito Penal moderno vem, efetivamente, refletindo as demandas sociais, seus sentidos, suas paixões e seu caráter? A história do Direito Penal que vem sendo desenhada ainda é um “fragmento da psyehologia da humanidade”, como já o disse HyGINO?!º Tais questionamentos somente podem ser enfrentados com uma efetiva análise do contexto da sociedade 'pós-industrial, delineando-se as novas demandas penais e a forma como vem se alterando a moderna dogmática penal. A busca de respostas a esses questionamentos pode demonstrar a necessidade da adoção de uma política criminal mais racional e eficaz, sob pena da deslegitimação de garantias penais e processuais e da institucionalização de um Direito Penal eminentemente preventivo, que legitimará, em qualquer circunstância, um “Direito Penal do Inimigo”. MORAES Jr. adverte que “enquanto a política criminal não for pensada a partir de uma realidade viva, nua e crua, em momento histórico dado e em função de exigências morais ainda vigorantes (...); enquanto inversamente, for concebida como material especulativo, livresco, acadêmico, o laxismo penal continuará transitando com desenvoltura, vendendo suas fantasias e entoando seu canto de sereia.” Acrescente-se de outro lado, que enquanto a prática legislativa, atendendo aos anseios da mídia sensacionalista e concretizando a política de falso e repentino abafamento da sensação de insegurança, a irracionalidade aquecerá ainda mais a eterna dialética laxista-rigorista. Como alerta CAVALCANTI, o legislador penal brasileiro, ao som insistente do mundo midiático, logo produz uma criminalização ilusória. “O que se vê, portanto, é uma absorção simbólica das inseguranças 18 GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. 4º ed. São Paulo: Max Limonad, 1976, v. I, Tomo I, p. 18 19 HYGINO Duarte Pereira, José apud VON LISZT, Tratado..., prefácio, p. LV-LVI 20 DIP; MORAES Jr., op.cit., p. 116 17 excessivamente divulgadas pela mídia, sem respeito a qualquer lembrança do passado e a qualquer perspectiva político-criminal para o futuro”?! A revolução mercantil e o colonialismo (séculos XV e XVI), a revolução industrial e o neocolonialismo (séculos XVIII e XIX) e, atualmente, a revolução tecnológica e a globalização (séculos XX e XXI) formam três momentos diferentes do poder planetário. Os períodos de inquisição (século XV), os períodos derivados do iluminismo penal (séculos XVIII e XIX) e os períodos do positivismo peligrosista dão lugar, agora, a um período de incerteza no Direito Penal. A única certeza que temos, como alerta DIP, é a inegável “crise do Direito Penal iluminista”.22 Tal crise parece se coadunar com aquilo que REALE denominou de “civilização do orgasmo, desenhando o modelo de um homem disponível, desprovido do sentido ético e disposto a tudo barganhar pelo prazer fácil e "2º e de um homem socializado, segundo SÁNCHEZ, numa sociedade que imediato já não é uma comunidade, “mas um conglomerado de indivíduos atomizados e narcisisticamente inclinados a uma íntima satisfação dos próprios desejos e interesses”! 2. OS NOVOS SUJEITOS PASSIVOS E OS NOVOS GESTORES DA MORAL A individualidade de massas” é o primeiro sinal característico da globalização e da sociedade 'pós-moderna”. Ao tratar desse tema, JAKOBS acentua que a sociedade moderna revela-se uma sociedade de massas, o que lhe atribui a tarefa de administrar os comportamentos em massa que são, ao mesmo tempo, distintos e uniformes. A título ilustrativo, pequenas agressões ao meio ambiente podem significar bagatelas se vistas de forma individual, porém assumem grandes proporções quando analisadas em conjunto: “el mayor dano posible del comportamiento individual permanece relativamente pequeno, pero a través de la masificación de pequefios 21 CAVALCANTI, op.cit. p. 33 22 DIP; MORAES Jr.. op.cit.. p. 159 23 REALE, Miguel, apud BONFIM, Edílson Mougenot. Direito Penal da Sociedade. São Paulo: Oliveira Mendes, Livraria Del Rey, 1997, p. 87 24 SÁNCHEZ, A Expansão..., p. 35 18 darios, la infraestructura pierde ciertamente estabilidad de manera considerable.” * Esse quadro implica a necessidade de uma visão coletiva e difusa. O american way of life, típico do Estado Social, não mais subsiste frente às novas demandas decorrentes dos novos sujeitos passivos da sociedade globalizada e pós- industrial. SÁNCHEZ, nesse diapasão, destaca que a sociedade moderna apresenta gestores atípicos da moral, ou seja, os tradicionais estamentos burgueses- conservadores que delineavam a 'moral média”, vêm dando lugar “às associações ecológicas, feministas, de consumidores, de vizinhos (contra os pequenos traficantes de drogas), pacifistas (contra propagação de ideologias violentas), antidiscriminatórias (contra ideologias racistas ou sexistas, por exemplo) ou, em geral, as organizações não-governamentais (ONGs) que protestam contra a violação de direitos humanos em todas as partes do mundo”. No caso brasileiro, todos esses novos gestores, amparados por uma Constituição (aparentemente) fixada em um Estado de Direito e fundados em uma Carta Política preponderantemente programática, encabeçam a tendência de uma progressiva ampliação do Direito Penal consubstanciada na busca constante de proteção de seus (novos) interesses. Em síntese, a moderna sociedade de bem-estar social se configura cada vez mais como uma sociedade de classes passivas — pensionistas, desempregados, destinatários de serviços públicos, consumidores, etc. que se convertem em “cidadãos?” e que passam a exigir do Poder Político a tutela dos seus novos interesses, até então, estranhos ao sistema jurídico. A emergência de novos bens jurídicos de titularidade coletiva, a aparição de meios de ataque diversos dos tradicionais e a desejável força adquirida por determinados movimentos sociais de emancipação, no acertado dizer de GÚNTHER, têm, inegavelmente, provocado “uma espécie de entusiasmo punitivo em importantes setores da opinião pública, e também em conspícuos operadores jurídicos, que parecem propugnar, ao invés do benemérito princípio de intervenção 25 JAKOBS, Ginther. La Ciencia Del Derecho Penal Ante Las Exigencias Del Presente. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, Centro de Investigaciones de Derecho Penal Y Filosofía del Derecho, Trad. Teresa Manso Porto, 2000, p. 21- 23 26 SÁNCHEZ, A expansão... p. 63-64 27 Ibid., p. 41 19 Com arrimo em LYRA, talvez tenha sido a “Carta de Direitos e Deveres Econômicos dos Estados”, aprovada pela assembléia geral das Nações Unidas de 12 de dezembro de 1974, o berço da globalização da economia, uma vez que pretendeu estabelecer nova ordem econômica mundial por meio da justiça econômica internacional. Porém, os princípios e metas almejados à época foram esquecidos completamente.* KUJAWSKI, por sua vez, destaca a influência da economia globalizada na modernidade, salientando que - a modernidade se vende à eficácia, acelerando a corrida para o futuro, e desfazendo os laços com as leis, as instituições, os direitos e toda aquela mística tradicionalista na qual se fundava o viver antigo. A modernidade fala como Marco Antônio: aquelas coisas veneradas por seus antepassados já não importam, não passam de antiqualhas e imbecilidades. Em outras palavras, na modernidade a eficácia se torna a medida de todos os valores, e todos os valores se subordinam a ela. A verdade é que a globalização econômica vem contaminando o sistema jurídico, ora propugnando pela descriminalização de condutas que atrapalhem a eficiência econômica, ora postulando pela adoção irracional de novos tipos aptos a tutelar interesses que impliquem maximização de riquezas. JAKOBS delimita muito bem alguns problemas da globalização no sistema jurídico, salientando a constante desespecificação de ordenamentos normativos, o conflito na relação entre os distintos ordenamentos específicos e, sobretudo, a ingerência jurídico-penal em ordenamentos alheios.” De outra parte, a globalização também não parece ser apenas o apregoado “mito”, tal qual previa BATISTA Jr., quando se constata a morte de diversas línguas, idiomas e identidades culturais. A esse respeito, BONFIM informa que “(...) a revista semanal americana New Scientist publicou um artigo sobre a morte iminente de milhares de idiomas que 35 Em suma, a Carta preconizava: “a) Os Estados têm o dever de velar para que a acumulação de capital não se faça em detrimento dos homens impedindo, mediante leis e regulamentos, que a formação cumulativa de meios de produção não destrua ou desvalorize seres humanos; b) Os Estados devem reconhecer que a moeda não é mais do que instrumento e que os equilíbrios monetários jamais podem ser considerados um fim em si; c) Os Estados avançados têm o dever de participar do desenvolvimento dos países menos desenvolvidos por todos os meios, notadamente pelo emprego regular de auxílios de solidariedade; d) Os Estados têm o direito e o dever de impor às grandes unidades implantadas ou às firmas nacionais a carga de participação no desenvolvimento local; e) Os Estados têm o direito e o dever de promover controles apropriados e efetivos da ação dos monopólios sobre os preços das matérias-primas e da energia” (cf. LYRA, Criminalidade Econômico- Financeira. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 71-73) 36 KUJAWSKI, Gilberto De Mello. Império e Terror. São Paulo: IBASA - Instituição Brasileira de Difusão Cultural Ltda., 2003, p.19 37 JAKOBS, La Ciência..., p. 36 22 ainda hoje são falados. (...) A diminuição da diversidade linguística demonstra ser inexorável. Milhares de identidades culturais e lingúísticas estão virando poeira no passado”. A velocidade da comunicação das mídias tende a priorizar o idioma inglês? e a nova “língua dos computadores. 4. MUDANÇAS DOS SISTEMAS ORGANIZACIONAIS, COMUNICATIVOS E TECNOLÓGICOS LYRA, recordando FRANCISCO CAMPOS, fez interessante destaque há algum tempo: “É intuitiva a consideração de que a ordem jurídica é, em grande parte ou na sua porção maior e mais importante, expressão e revestimento da ordem econômica”. É válido, ademais, registrar que como presidente da comissão revisora do projeto de Código Penal de autoria de HUNGRIA, LYRA propôs, já àquela época (1962), capítulo sobre os crimes contra a livre concorrência, tipificando, rigorosamente, os abusos do poder econômico.*? Hoje, é inegável que a ordem jurídica depende da ordem econômica. ZAFFARONI, com precisão didática, destaca as características mais marcantes da economia nesse contexto de globalização: a) revolução tecnológica (e sobretudo comunicacional); b) redução do poder regulador econômico, sob o argumento de favorecimento de um mercado mundial; c) aceleração da concentração de capital; d) redução dos custos por corte de pessoal; e) competição entre os poderes políticos para atrair investimentos, o que, paradoxalmente, reduz seus poderes, sobretudo em países periféricos; f) crescente desemprego e deterioração salarial; 9) perda da capacidade dos Estados na mediação entre capital e trabalho; h) especulação financeira que adota formas que dificultam os limites entre lícito e ilícito; i) institucionalização de refúgios fiscais para capitais de origem ilícita, sem 38 BONFIM, Direito Penal..., p. 228 39 LYRA, Guia do Ensin: 09 40 Menciova, em ordem alfabética, tipos e modalidades, como açambarcamento, bola de neve, “boom”, “bo “cutting prices”, “dumping”, duopólio, “duopsone”, “lock-out', mercado negro, monopólio, “monospson “oligopsone”, preço vil, trust, usura (neste sentido: LYRA, Criminalidade... p. 63) ott”, cartel, , oligopólio, 23 que haja efetivo e concreto interesse de combate, haja vista os interesses das instituições financeiras e bancárias em jogo; j) redução de precauções fiscais no afã de atrair capitais, etc. Como bem observa JAKOBS, “o sistema economia impõe-se, em caso de embate, com preponderância sobre todos os demais; colocar em risco a posição da economia é considerado um sacrilégio, algo comparável a provocar a ira dos deuses, e o poder econômico substitui o poder dos Estados: o que sucumbe não apenas é considerado incapaz em certos aspectos, mas marginalizado de forma geral.” “2 “Nadie puede soportar un espectáculo em que todos los valores — incluyendo el de la própria vida humana — se convierten en valores de mercado”, enfatiza ZAFFARONI.*º A incessante busca do lucro faz com que o mercado premie ofertas a preços especialmente baixos e, consequentemente, incite especuladores a buscar as fronteiras do permitido e a arriscar transgressões que se podem esconder. Impossível coibir essas ações, sobretudo porque não se dispõe, e dificilmente se disporá, de uma carta política global ou, ao menos, de um sistema jurídico universal que, de alguma forma, obste o crescimento econômico com base em uma pauta ética minimamente necessária. Essa incapacidade do sistema político, sobretudo nos países periféricos, em delimitar a busca incessante pelos “valores de mercado”, causa o inevitável esvaziamento do Estado. Para CAMPILONGO, a Democracia sofre as consequências do enfraquecimento da capacidade do sistema político para: a) regular o trabalho (daí a flexibilização dos direitos trabalhistas, a volatilidade do capital em busca de trabalhadores menos onerosos e o surgimento de formas novas e fragmentárias de prestação de serviço doméstico, terceirizado e informatizado); b) promover o bem-estar social (daí a expansão dos serviços privados de saúde e educação, a 'guerra fiscal" internacional pela atração de capitais e o declínio da arrecadação de tributos e da implementação de políticas sociais); e 41 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La Globalización y las Actuales Orientaciones de la Política Criminal. Belo Horizonte: Del Rey. Coleção JUS AETERNUN, v. 1., Coord. José Henrique Pierangeli, 2000, p. 14-15 42 JAKOBS, Ciência do Direito e Ciência do Direito Penal. São Paulo: Manole. Coleção Estudos de Direito Penal, v. 1, Trad. Maurício Antonio Ribeiro Lopes 43 ZAFFARONI, La Globalización..., p. 16 24 estrangeira, o 'Direito Penal do risco' vem permitindo a adoção de uma política criminal pautada pela preocupação incessante de criminalizar e prevenir a criminalidade organizada, a corrupção, o tráfico ilícito de entorpecentes, a criminalidade econômica, o terrorismo e os crimes contra a humanidade, primeiros sinais da tendência de perenizar um Direito Penal de “terceira velocidade” - o “Direito Penal do Inimigo”. Em síntese, os riscos modernos, acentuados pelas inovações trazidas à humanidade (globalização da economia e da cultura, meio ambiente, drogas, o sistema monetário, movimentos migratórios, aceleração do processamento de dados etc.), invariavelmente geram uma reação irracional e irrefletida por parte dos atingidos. Disso decorre a insegurança e o medo que têm impulsionado frequentes discursos postulantes de uma tutela da segurança pública, em detrimento de interesses puramente individuais. Nesse sentido, ALFLEN DA SILVA evidencia que tais circunstâncias têm ensejado a mudança de perspectivas da própria dogmática penal e do próprio fundamento do direito de punir: “... se se analisar os fins aos quais o Direito Penal do risco pretende servir sociologicamente segundo a idéia de risco, a saber, por um lado, a minimização do risco e, por outro, a produção de segurança, circunscrevendo-os na linguagem jurídico-penal, trata-se da idéia de prevenção, de proteção dos bens jurídicos através de uma orientação pelo risco e de estabilização da norma”.º Essa é, como se verá, a essência da finalidade do Direito para NIKLAS LUHMANN, no qual se baseia JAKOBS para sua teoria de prevenção geral positiva até a concepção do “Direito Penal do Inimigo. 6. A INSTITUICIONALIZAÇÃO DA INSEGURANÇA A sensação de insegurança decorrente deste modelo de 'sociedade de risco”, certamente é acentuada pela atuação da mídia. Já revelara LYRA que o julgamento deveria ser feito em uma atmosfera 52 JORGE FIGUEIREDO DIAS leciona: “Como se pode insistir na idéia de que o delito doloso de ação (...) constitui a forma “normal” e paradigmática de aparecimento do crime, quando a contenção dos grandes riscos exige, pelo contrário, uma criminalização expansiva dos delitos de negligência e de omissão? (O Direito Penal entre a sociedade industrial e a sociedade do risco. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, v. 9, n. 33, jan./mar. 2001, p. 45) 53 ALFLEN DA SILVA, op. cit., p. 95-97 27 serena, equilibrada, fechada às excitações e incitações: “muitas vezes, no teclado das versões estampadas e sensacionalizadas, nenhuma subsiste. São inegáveis os malefícios mesmo das verdades prematuras e incompletas ou tendenciosamente publicadas à feição da freguesia intoxicada e só em certos casos oferecidos à multidão”. * GOMES e BIANCHINI, nesse aspecto, ressaltam que, sobre a influência de cada momento histórico na renovação do Direito no Brasil, duas situações muito antigas são lembradas por JOSÉ DUARTE: A Lei 3.311, de 15.10.1886, que criminalizou o delito de incêndio e foi aprovada depois de anos de discussão, logo após a ocorrência de dois incêndios na cidade do Rio de Janeiro; e a Lei 2.033, de 20.09.1871, que passou a punir o homicídio imprudente depois de um acidente ferroviário na cidade de Jundiaí, Estado de São Paulo. “Mais recentemente, somente após a filmagem por um amador de cenas de tortura praticada por policiais em Diadema (caso Favela Naval) e que foram transmitidas por redes de televisão de todo o País é que o Congresso (prontamente) criminalizou a tortura (Lei 9.455/97)".& CAMPILONGO, no mesmo diapasão, alerta que “se a comunicação jurídica pretender ir além das suas fronteiras — por exemplo, decidindo de acordo com a voz das praças, e não com os instrumentos do direito - perderá consistência. Se a mídia, ao tematizar o sistema jurídico, avocar o papel de justiceira, decepcionará a audiência. É bom que cada parte observe a outra com os próprios olhos”. BATISTA também ressalta que “os saltos tecnológicos, que elevaram as telecomunicações à magnitude negocial e ao protagonismo político de que hoje desfrutam, também imprimem suas marcas: enquanto, anteriormente, germinaram instrumentos de proteção da intimidade e da vida privada, o novo sistema penal do Estado neoliberal, replicante do vigilantismo eletrônico, é extremamente invasivo e » 57 cultua a delação, cujo estatuto ético virou-se pelo avesso”. O mesmo autor ainda enfatiza o papel que a mídia vem exercendo no Brasil: Antes de mais nada, a mídia não apenas se adequou, mas colaborou definitivamente na expansão de uma mentalidade penal que imobiliza toda a riqueza e complexidade dos conflitos sociais na episteme binária e simplória do infracional: é assim que a questão da reforma agrária pode ser reduzida a delito 54 LYRA, Direito Penal Normativo. 2º ed. Rio de Janeiro: José Konfino, 1977, p. 111 55 GOMES; BIANHINI, op. cit., p. 111 56 CAMPILONGO, O Direito..., p. 164 57 BATISTA, Nilo. Novas Tendências do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 83-85 28 contra a propriedade de integrantes do MST, por um lado, e aos 'excessos' policiais contra eles (chacinas) de outro. Ao processo de desmerecimento do setor público, funcional para a implementação das privatizações, correspondeu a criminalização midiática da vida política. No núcleo ideológico deste movimento está não apenas um discurso criminológico único — que assume preponderância e influência muito superior ao acadêmico, e cujas toscas contradições e inconsistências não encontram canal de questionamento — mas principalmente uma novidade perigosa: o exercício direto de funções características das agências policiais do sistema penal. Mas não é somente esse aspecto que merece ser ressaltado. Além de policiar, por vezes, violando direitos e garantias penais e processuais, a mídia - amparada pela tecnologia que acelerou o processo de divulgação e informação por todo o mundo, pela “ilimitada” liberdade de expressão e pelo “irrestrito” direito à informação - acentua a sensação de insegurança coletiva. O atentado terrorista do “1 de setembro" transmitido ao vivo em todo o planeta também espalhou o terror e o medo por todas as partes do mundo, até mesmo em países com realidades díspares e distantes dos Estados Unidos. É, portanto, incontestável a correlação estabelecida entre a sensação de insegurança diante do delito e a atuação dos meios de comunicação. A imprensa, de forma geral, transmite uma imagem da realidade que mistura o que está distante com o que está próximo, confundindo a percepção do telespectador. Essa percepção errônea aproxima o cidadão da cena do crime, aumentando sua sensação de impotência. Ademais, é necessário o registro da afirmação de SÁNCHEZ no tocante à forma pela qual se dá a vivência dos riscos: -.a própria diversidade e complexidade social, com sua enorme pluralidade de opções, com a existência de uma abundância informativa a que se soma a falta de critérios para a decisão sobre o que é bom e o que é mau, sobre em que se pode e em que não se pode confiar, constitui uma fonte de dúvidas, incertezas, ansiedade e insegurança. A revolução das comunicações dá lugar a uma perplexidade derivada da falta, sentida e possivelmente real — de domínio do curso dos acontecimentos. A vivência subjetiva dos riscos é claramente superior à própria existência objetiva dos mesmos. Expressado de outro modo, existe uma elevadíssima 'sensibilidade ao risco. Outrossim, embora o desenvolvimento da tecnologia tenha induzido a mentalidade de que o homem pode dominar todas as coisas do seu mundo, 58 Id. 59 SÁNCHEZ, A expansão..., p. 33-37 29 resquícios da idéia de vingança, através dos efeitos retributivos da pena. * GOMES e BIANCHINI, em sua obra “O Direito Penal na Era da Globalização”,*” apontam as características do atual contexto da sociedade 'pós- industrial, 'de risco" e “globalizada”: - a deliberada política de criminalização; - as frequentes e parciais alterações pelo legislador da Parte Especial do Código Penal através de leis penais especiais, com intensificação dos movimentos de descodificação; - a proteção funcional dos bens jurídicos, com preferência para os bens difusos, forjados muitas vezes de forma vaga e imprecisa; - a ampla utilização da técnica dos delitos de perigo abstrato, com uma relativização do conceito de bem jurídico-penal; - O menosprezo ao princípio da lesividade ou ofensividade; - o uso do Direito Penal como instrumento de “política de segurança”, em contradição com sua natureza subsidiária e fragmentária; - a transformação funcionalista de clássicas diferenciações dogmáticas (autoria e participação, consumação e tentativa, dolo e imprudência etc.) fundadas na imputação objetiva e subjetiva do delito, inclusive porque a imputação individual acaba constituindo obstáculo para a eficácia da nova política criminal de prevenção; - a responsabilidade penal da pessoa jurídica; º - o endurecimento da fase executiva da pena, inclusive por meio de inconstitucionais medidas provisórias; - a privatização e terceirização da Justiça.” Ademais, para alcançar a meta da efetividade, o próprio processo penal está sofrendo profundas alterações, quase sempre orientadas para a aceleração do procedimento, agilização da instrução e rapidez da Justiça, desrespeitando direitos e garantias fundamentais em nome da operatividade da intervenção penal. Dessas características mencionadas, duas devem ser ressaltadas como marcas desse período: a tipificação vaga dos novos bens e interesses e a utilização imprecisa e ampla da técnica de tipificação de delitos de perigo abstrato. É inegável que nesse contexto da sociedade pós-industrial, além das novas demandas de criminalização, o prevencionismo tem ditado uma política criminal eficientista, por vezes criminalizando infrações meramente administrativas, 66 PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes de Mera Conduta. 2º ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968, p. 172-173 67 GOMES; BIANCHINI, op. cit. p. 25-33 68 O Código Criminal de 1830, fruto do espírito codificador, deu lugar, no século XX à proliferação de leis específicas, elaboradas de acordo com a força dos grupos prejudicados e do maior ou menor apoio da imprensa. 5 3º da Constituição Federal e cf. arts 3º, 22 e 23 da Lei Federal nº 9.605/98 hi isória nº 28/2002, editada para ampliar o poder dos diretores de presídios e agravar as penas de condenados que vierem a ser culpados por infrações ao regime prisional a que estão sujeitos. 71 cf. v.g. Penitenciária Industrial Regional do Cariri (PIRC), de Juazeiro do Norte/CE e as unidades de Curitiba, Londrina, Cascavel, Foz do Iguaçu e Guarapuava/PR 32 tipificando meros atos preparatórios e abusando do uso dos tipos omissivos impróprios e de normas penais em branco. FOUCAULT, pautado no modelo clássico e iluminista que, ao que parece, é incongruente com este cenário atual, já advertia: -.. É preciso que as infrações sejam bem definidas e punidas com segurança, que nessa massa de irregularidades toleradas e sancionadas de maneira descontínua com ostentação sem igual seja determinado o que é infração intolerável, e que lhe seja infligido um castigo de que ela não poderá escapar. Com as novas formas de acumulação de capital, de relações de produção e de estatuto jurídico da propriedade, todas as práticas populares que se classificavam, seja numa forma silenciosa, cotidiana, tolerada, seja numa forma violenta, na ilegalidade dos direitos, são desviadas à força para a ilegalidade dos bens. 2 Contudo, a utilização exclusiva da técnica legislativa do Direito Penal clássico aparenta não se coadunar com a natureza dos bens jurídicos transindividuais, com a necessidade de repressão dos graves crimes transnacionais (terrorismo, organizações criminosas, lavagem de capitais etc.) e com as novas figuras inerentes aos avanços tecnológicos da modernidade (crimes de informática etc.). DAMÁSIO já ensinara, com auxílio de COUTURE, que o comportamento humano ilícito é descrito de maneira ampla ao contrário do que ocorre no Direito Penal, em que o tipo é fechado, definindo antes a conduta antijurídica: “a técnica legislativa é, de certa forma, diversa da empregada pelo legislador penal. Daí dizer EDUARDO J. COUTURE que a estrutura formal da lei penal, ao contrário da lei civil, 'não se nos apresenta a numerus apertus, mas sim a numerus clausus. Não existem delitos senão aqueles definidos; os delitos são cunhados em tipos e não há atitude humana que não seja ou ato lícito ou delito. Se a conduta dos homens não se adaptar à descrição típica do legislador, deve ser considerada como lícita, repudiando-se, então, a idéia do delito”.”º Do mesmo modo, LYRA asseverou que a lei deveria regular intervenção pré-delitual com minúcia e prudência. Do contrário, segundo ele, “as condições da vida moderna, cada vez mais entrelaçada nacional e internacionalmente, hão de coonestar as crescentes intromissões policiais até no fundo da consciência do 72 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 25º ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2002, p. 73-74 73 JESUS, DAMÁSIO Evangelista de. Direito Penal - Parte Geral, 16º ed. São Paulo: Saraiva, v. 1, 1992, p. 11 33 homem”. CERVINI, por sua vez, adverte do perigo da irrestrita adoção de tipos amplos e abertos: Cuando el objeto no está suficientemente definido, los médios serán necesariamente ambíguos. Por el contrario, la nitidez del objeto lleva a la nitidez de los médios y com ello por lo general a la eficiência normativa y a la seguridad jurídica. ... Cuanto más abstracto, ambíguo o nebuloso se conciba el bien jurídico, tanto más será posible que cualquier acción que se involucre con él, por más remota que sea, pueda ser considerada como en si misma generadora de peligro. Ultimamente, existe la tendencia no ya de antecipar la tipificación de uma acción relativamente remota al bien jurídico, sino de aproximar este, mediante uma óptica de amplificación conceptual que, al mismo tiempo que lo atrae hacia la acción, le hace perder la necesaria nitidez hasta bordear la delincuescencia. Veja-se, a título ilustrativo, a redação dada aos seguintes tipos na legislação brasileira: art. 4º, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86 (criminaliza a gestão temerária de instituição financeira); arts. 66 e 69 da Lei nº 8.078/90 (instituem o crime de omitir informação relevante e deixar de organizar dados fáticos, técnicos e científicos que dão base à publicidade); art. 1º da Lei nº 7.643/87 (proíbe a pesca ou qualquer outra forma de molestamento intencional de toda espécie de cetáceo nas águas jurisdicionais brasileiras); art. 25 de Lei Complementar nº64/90 (constitui crime eleitoral a argúição de inelegibilidade, ou a impugnação de registro de candidato feito por interferência do poder econômico, desvio ou abuso do poder de autoridade, deduzida de forma temerária ou com manifesta má-fé). De outra parte, assinala ALFLEN DA SILVA que “a realidade social passou a exigir uma particular flexibilização na redação e formulação dos tipos penais já logo após a metade do século XX com os problemas e as novas formas jurídicas resultantes da chamada “economia de guerra”.”º Nesse diapasão, as leis penais em branco, 'cegas' ou 'abertas' (idealizadas por BINDING), cuja exequibilidade depende do complemento de outras normas jurídicas ou da futura expedição de certos atos administrativos (regulamentos, portarias, editais), têm marcado a moderna dogmática penal. Além disso, a já aludida “individualidade de massas”, ou o que JAKOBS denomina de “possibilidade de contatos relativamente anônimos” (leia-se: aptidão 74 LYRA, Novíssimas..., p. 306-307 75 CERVINI, Raúl. Criminalidad Organizada Y Lavado de Dinero. Belo Horizonte: Del Rey, Coord. José Henrique Pierangeli, Direito Criminal - Coleção JUS AETERNUN, v. 1, 2000, p. 81-82 76 ALFLEN DA SILVA, op. cit., p. XXII 77 HUNGRIA, Comentários..., v. 1, Tomo I, p. 96 34 influenciado transformações na legislação pátria de forma absolutamente irracional que, a médio prazo, aumentaram a sensação de insegurança e os clamores por uma política criminal ainda mais severa. BONFIM, em apertada síntese, simboliza este aspecto, aduzindo que - OS novos movimentos penalísticos querem enxugar a gordura estatal do intervencionsimo nos espaços de liberdade do cidadão, aduzindo que o Estado não suporta a carga das causas penais que recebe à solução, daí as questões de Política Criminal e seus consectários: a descriminalização de certas condutas (face aos costumes da época, retira-se a previsão de tipicidade penal sobre certas infrações); os delitos bagatelares (questão ligada ao princípio da insignificância, de Claus Roxin, que complementa a teoria da adequação social, de Hans Welzel) e a discussão do princípio da oportunidade no processo penal; a despenalização (substituição da pena de prisão por outras sanções punitivas); a desjudicialização (supressão da competência do poder judiciário penal, deslocando-se determinadas ações para apreciação pelas esferas civis ou administrativas) ... Algumas das novas regras de Direito, pautadas pela negociação, flexibilização, consenso e pragmática, sob o pretenso argumento da intervenção mínima, procuraram resolver problemas de ineficiência do Estado, seja sob o enfoque preventivo (dentre outros na adoção de políticas públicas), seja sob o enfoque repressivo (alto custo e poucos “louros políticos” na construção de colônias agrícolas, casas de albergado e presídios). No Brasil, a política do barganing representou a própria banalização da tipificação dos delitos rotulados como 'infrações de menor potencial ofensivo”. Na prática, é mais cômodo elaborar um termo circunstanciado, ainda que ausentes os elementos do tipo e remetê-lo prontamente ao Poder Judiciário, atolando pautas e gerando a sensação de ineficiência da Justiça. Hoje qualquer 'se cuida” se transforma em audiência preliminar por crime de ameaça, banalizando o tipo? e a Justiça criminal e fomentando a sensação de insegurança. O que se insere no alargado e desajuizado rótulo de 'menor potencial ofensivo” é o que mais atinge a comunidade em seu dia-a-dia: brigas domésticas, de trânsito e de vizinhos; acidentes automobilísticos; ameaças; perturbações do sossego e da tranqúilidade etc. É evidente que diante da sistematização de um ordenamento jurídico tal 87 BONFIM, Direito Penal... p. 96 88 DARCY PAULILO PASSOS define o crime de ameaça como “ a manifestação idônea da intenção maléfica”, definição esta que parece inexistir, em regra, no Juizado Especial Criminal (PASSOS, Darcy Paulilo dos. Da Ameaça, Revista Justitia nº22, 3º Trimestre de 1958) 37 qual se dá no país, a pena, por si só, não se revela um critério suficiente para definir 'menor potencial ofensivo”. Assim, a legislação penal confusa e incongruente (tanto para a menor quanto para a maior ofensividade) alimenta o descrédito da população, aumentando a sensação de impunidade e insegurança. A classe política e os discursos criminológicos de “baixo custo fomentam novas leis assistemáticas e incongruentes, criando um autêntico círculo vicioso. 8. HIPERTROFIA LEGISLATIVA O círculo vicioso é hodiernamente acentuado pelo “direito denúncia”. O que JOSÉ EDUARDO FARIA denomina “direito denúncia! (direito ambiental, do consumidor, da saúde, da infância etc.) atua em um nível de complexidade mais elevado do que o direito sistema (aquele pautado por tutela de interesses tipicamente individuais).*º A complexidade e a velocidade com que se apresentam esses novos interesses fazem com que o ordenamento seja paulatinamente substituído por uma legislação 'descodificada”, que rompe com as noções de unidade formal do ordenamento e aponta na direção de múltiplos sistemas normativos. Nesse esteio, CAMPILONGO ressalta que “o legislador atual, premido pela complexidade das matérias objeto de regulação e pela velocidade das demandas, é menos o porta-voz dos “interesses gerais que tinham acesso ao Parlamento do século XIX, ou seja, exclusivamente a burguesia, e mais um representante de interesses corporativos e contraditórios." ºº É fundamental repisar: o Direito Penal está apto a processar tais demandas? A forma pela qual o Poder Político vem instrumentalizando esse “direito denúncia” é racional? GOMES e BIANCHINI asseveram, acertadamente, que a simples admissão do bem jurídico não representa, por si só, uma condição suficiente para a obtenção de um adequado sistema penal, ainda que possa ser considerada uma condição 89 apud CAMPILONGO, Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 113 90 Ibid., p 39 38 necessária.”! Ademais, valendo-se da lição de BENTHAN, destacam que nada mais escapa do seu âmbito de visão e incidência: “o Direito penal ao longo dos anos, mas especialmente agora na era da globalização, passou a ser o Grande Irmão (o big brother de Orwell), que controla (ou tem a pretensão de controlar) tudo e todos, embora se saiba que, na prática, em geral somente uma camada da população — os mais desfavorecidos — é que sofre suas consequências”. Aliás, HUNGRIA já tratava o costume brasileiro de “legislar por legislar”, chamando-o de “prurido legiferante” ou “coceira de urticária”.º No caso brasileiro, essa irracionalidade legislativa é claramente exemplificada: os institutos da Lei nº 9.099/95 que utilizam somente a pena em abstrato como critério objetivo de aferição do 'menor potencial ofensivo'; a Lei 9.268/96 que extinguiu a pena de multa e criou discussões das mais variadas quanto à legitimação ativa para a execução da sanção pecuniária; a Lei nº 9.271/96 que tratou, concomitantemente, de matéria penal e processual, trazendo questionamentos sobre sua irretroatividade; a Lei nº 9.455/97 (Tortura), que permitiu a progressão de regime nos crimes que elenca, mesmo sendo tipificados como hediondos na Lei nº 8.072/90; a Lei nº 9.677/98 (Lei dos Remédios) que pune a adulteração e falsificação de cosméticos, com a mesma intensidade aplicada aos remédios propriamente ditos; a Lei nº 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento) que, em relação à data de vigência, permitiu a formação de quatro correntes jurisprudenciais e que, no tocante a algumas figuras típicas, veda a concessão de liberdade provisória, sem impor, por coerência lógica, um possível regime integral fechado; a Lei nº 9.714/98 (Lei das Penas Alternativas), cujo rol de impropriedades e ausência de rigor técnico é maior do que a própria lei; impropriedades do Código de Trânsito brasileiro, como a hipótese de lesão corporal culposa na condução de veículos automotores com penas em abstrato completamente incongruentes e desproporcionais à lesão corporal culposa prevista no Código Penal; a injúria manifestada com a utilização de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem punida com pena de reclusão e equivalente à pena de detenção do crime de 91 GOMES; BIANCHINI, op. cit., p. 78-80 92 Ibid., p. 83-84 93 apud BONFIM, Direito Penal..., p. 219 39 menor es el nivel de elaboración discursiva com que se pretende legitimarlo".'! É justamente por isso que é mais fácil o Poder Público brasileiro alçar demandas, com menor custo, aos braços do Direito Penal. De outro lado, o crescente descrédito em relação aos instrumentos de proteção da Administração Pública, máxime pela tendência a buscar, mais do que meios de proteção, cúmplices de delitos sócio-econômicos de várias espécies, por ora torna a busca de um Direito Penal de mínima intervenção e/ou com tutela exclusiva de certos bens pela Administração Pública, uma expectativa ainda longe de ser atendida. Isso gera um resultado desalentador. Por um lado, porque a visão do Direito Penal como único instrumento eficaz de pedagogia político-social e “como mecanismo de socialização, de civilização, supõe uma expansão ad absurdum da outrora ultima ratio e, principalmente porque tal expansão é em boa parte inútil, na medida em que transfere ao Direito Penal um fardo que ele não pode carregar”;'?2 de outro, o Poder Público e o Direito administrativo carecem, no momento, de legitimidade para assumir parte da demanda penal. Diante desse dilema da sociedade moderna, complexa e globalizada, a irracionalidade e a hipertrofia legislativa evidenciam-se em fatos, como a criação de infrações meramente administrativas, utilização indiscriminada de conceitos amplos e vagos, abuso das leis penais em branco, antecipação exagerada da tutela penal, perda da certeza da configuração típica e adoção de tipos de mera desobediência. Tal irracionalidade viola, em tese, postulados político-criminais típicos do Direito Penal iluminista (intervenção mínima, subsidiariedade, fragmentariedade) e os princípios fundamentais de um Direito Penal cidadão, típico do Estado Constitucional de Direito (legalidade, certeza, ofensividade etc.). A problemática se agrava, ainda mais, no caso brasileiro. Primeiramente, porque há no plano interno a evidente percepção de que o Estado não consegue desenvolver uma pauta mínima de políticas públicas essenciais (saúde, educação, segurança, emprego, meio ambiente, finanças públicas, justiça etc.) Concomitantemente, destaca CAMPILONGO, no plano externo, as organizações multilaterais e o sistema financeiro internacional adotam um discurso que cobra 101 ZAFFARONI, La Globalizaci 102 SÁNCHEZ, À expansão... p. 61 vp. 22 42 essas mesmas coisas, mas acresce ao jogo um componente perverso, pois sugere políticas econômicas e cartilhas de reformas que estimulam o fluxo oportunista de capital, indústria e serviço entre países, provocando desemprego e recessão e comprometendo a agenda social.'ºº Nesse cenário, é inconcebível aceitar que no Brasil esteja efetivamente consolidado um Estado Democrático de Direito. A Revolução Francesa no século XVIII impôs a democracia, governo do povo, pelo povo e para o povo, impôs-se como a forma mais adequada de governo, ainda que não houvesse outra opção legitimamente cabível. Ocorre que uma aparente democracia, uma “democracia de fachada, pautada pelas injustiças sociais!º* de uma sociedade competitiva, com bolsões de desemprego e marginalidade, aumenta ainda mais a exigência de uma Política legislativa e criminal que atenda a um mínimo de racionalidade. A ordem constitucional brasileira, apesar de seu aparente espírito igualitário, não é capaz de reverter o contexto de iniguidade social nem sequer de criar as condições políticas para a inclusão de setores expressivos da população nos quadros da cidadania formalmente regulada." A democracia política e o direito positivo, idéias associadas ao advento da modernidade e diferenciadas pelo constitucionalismo, destaca CAMPILONGO, “com a globalização, acabam se sobrepondo de modo disforme e corrompido: os sistemas político e jurídico parecem se transformar em apêndices do sistema econômico e em mero reflexo do processo de acumulação”. 8 Diante desse quadro, resta evidente que essa ilusória democracia passa por crise profunda de legitimidade, seja porque a fé na democracia brasileira está abalada, seja porque não há acordo pacífico sobre quem é o 'povo”. Seria a soma de todas as classes sociais? Ou a classe dos pobres em confronto com os ricos? Ou a massa, a grande maioria da população, contraposta à minoria, à elite? Ou seria o conjunto de massa e minoria? Como se conceber, pois, um Estado Democrático de 103 CAMPILONGO, O Direit 120 104 O Brasil continua a ter uma das piores distribuições de renda do mundo, superando apenas Serra Leoa, na África, segundo recente estudo divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) 105 CAMPILONGO, O Direito... p. 56 106 Ibid., p. 126 43 Direito em circunstâncias tais? !7 BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS ainda arrola, dentro deste panorama tupiniquim, a não-aplicação da lei, a sua aplicação seletiva, a instrumentalização da lei para fins diversos dos oficiais, a não-regulamentação de direitos constitucionais e a ausência de dotação de meios humanos e financeiros para a implantação de políticas públicas. Essa atuação do Estado, lembra ele, “implica a total desvalorização dos direitos sociais, da Constituição e do Estado Democrático de Direito”, ou seja, “é a “técnica informal" que retira eficácia à lei".'º Enfim, é preciso reviver LYRA, para quem o “legislador não é responsável pelas tarefas do poder judiciário e do poder executivo, tanto vale dizer para a aplicação das normas e o aparelhamento carcerário e assistencial, quanto para a execução das penas e medidas de segurança!'”. Ademais, é necessário ressaltar a lição de VON LISZT, no sentido de que sob “constituições diversas (Estado sacerdotal, Escola comercial, monarquia absoluta, república democrática etc.), muito diverso pode ser o valor do mesmo bem; e, de outro lado, que, quando não bastam os efeitos do direito privado em consequência da irreparabilidade do bem jurídico (vida, honra da mulher, etc.), a punição da lesão impõe-se com uma certa regularidade em diversos tempos e em diversos povos”. !!º Como seria então possível propugnar por descriminalização ou, ao menos, por uma Política Criminal racional em uma democracia apenas aparente e em um Estado em que 'Democrático de Direito” é apenas um rótulo? Como enxergar a racionalidade de um legislador constituinte que recebeu demandas típicas da modernidade sob a forma de programas a serem cumpridos pelo Estado e concomitantemente consagrou garantias e direitos fundamentais que foram usados como subterfúgio por delinquentes contumazes, perigosos e corruptos, aumentando a impunidade e fomentando a criminalidade?! BONFIM, sobre este último aspecto, bem delineou a situação: O Estado Brasileiro, fruto de todas as políticas, de todas as épocas, promulgador 107 SANTOS, BOAVENTURA DE SOUZA. O Estado e a Sociedade em Portugal (1974-1988); Afrontamento (1990), apud CAMPILONGO, O Direito..., p. 62 108 Id. 109 LYRA, Direito Penal Normativo, p. 56-57 10 VON LISZT, Tratado... p. 303-304 44 dilema de equacionar o aumento da criminalidade organizada e transnacional e limitar a hipertrofia legislativa pautando-se primordialmente pelo modelo penal clássico? 10. DILEMA DO DIREITO PENAL LIBERAL: AUMENTO DA CRIMINALIDADE DE MASSA E DA CRIMINALIDADE ORGANIZADA Entre outros fatores, a ausência de políticas públicas e uma política criminal irracional somadas à alta impunidade, por certo, representam fatores de aumento da criminalidade. Enquanto nos países desenvolvidos a crescente criminalidade de rua e os novos bolsões de criminalidade têm resultado em movimentos, como o de “Lei e Ordem,” e na adoção de políticas criminais, como a da “Tolerância Zero" ou “Broken Windows”,''8 no Brasil adotou-se - de forma incongruente e desproporcional - critérios alternativos à pena privativa de liberdade. Ademais, como bem acentua MORAES Jr., as pesquisas sobre vitimização indicam que o Brasil emerge como campeão da subnotificação, ou seja, somente 4 (um quarto) dos crimes perpetrados são efetivamente cientificados aos Poderes Públicos e órgãos de repressão policial. Elas representam, pois, “o subproduto da impunidade que, aos olhos de gente ordeira, assume também a forma de punição insuficiente.”!'º O aumento desse tipo de criminalidade, à qual o Direito Penal clássico já estava adaptado, por si só, vem ensejando novos brados para adoção de posturas legislativas e repressivas mais rigorosas. Imagine-se, agora, como se apresentam os clamores diante de uma realidade que o Direito Penal iluminista não está apto a 117 Movimento iniciado nos EUA que busca o endurecimento no trato das questões penais, indo desde a penalização severa de diversas condutas, com o agravamento das reprimendas, até a execução, em sistemas mais rígidos (v. neste sentido: ARAÚJO JUNIOR, João Marcello de. Os grandes movimentos de política criminal de nosso tempo — Aspectos, Sistema Penal para o terceiro milênio. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 70; SANTORO FILHO, Antonio Carlos. Bases Críticas do Direito Criminal. São Paulo: Editora de Direito, 2000, p.130-136; SHECARIA, Sérgio Salomão; CORRÊA Jr., Alceu. Teoria da Pena - Finalidades, Direito Positivo, Jurisprudência e outros estudos de Ciência Criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 141-142) 118 A “broken windows theory” e a operação “tolerância zero” idealizadas por James Q. Wilson and George Kelling (cf. estudo The Police and Neiborghood Safety, publicado na revista Atlantic Monthly), sustentavam que se uma janela de uma fábrica ou de um escritório fosse quebrada e não fosse imediatamente consertada, as pessoas que por ali passassem concluiriam que ninguém se importava com isso e que, naquela localidade, não havia autoridade responsável pela manutenção da ordem. Em pouco tempo, algumas pessoas começariam a atirar pedras para quebrar as demais janelas ainda intactas. Logo, todas as janelas estariam quebradas. Diante disso, seria necessária uma efetiva política pública de combate aos pequenos delitos com mínima tolerância. 119 DIP; MORAES Jr., op. cit. p. 119 47 enfrentar: narcotráfico internacional, crimes transnacionais econômicos e de network, lavagem de dinheiro, novas organizações criminosas etc. Inicia-se, dentro de todo o contexto já traçado, a institucionalização de políticas públicas que divergem completamente do modelo clássico (pena de prisão com amplas garantias penais e processuais) e do modelo de Direito Penal de 'segunda velocidade" (mitigação de garantias penais e processuais, consensos, barganhas e penas alternativas à prisão). Começa, pois, a aparecer, silenciosamente, nas legislações e modernas políticas de combate a estas formas de criminalidade, o que GUNTHER JAKOBS denominaria Direito Penal do Inimigo”. Trata-se do advento de um Direito de “terceira velocidade” pautado por flexibilização de direitos e garantias penais e processuais, antecipação da tutela penal, adoção de tipos de perigo abstrato e normas penais em branco, concomitantemente com a adoção de regimes rigorosos de cumprimento de penas privativas de liberdade. Estamos assistindo ao despertar das primeiras acepções das políticas criminais voltadas ao combate dos “inimigos”. DEL OLMO, nessa esteira, recorda que o discurso oficial urídico- transnacional" surgiu na década de 70, mas progressivamente se converteu em discurso “geopolítico”. Já naquela época, segundo a autora, o discurso norte- americano se construía em torno do “inimigo externo dos EUA, ao qual se batiza com o nome de 'narcotráfico”, termo que se converte em um “ut il comodiín político — por su imprecisión semântica — y paso a paso em sinônimo del “Cartel de Medelin'.'?º Desde então, as políticas propostas passaram a girar em torno da militarização da política criminal. Já na década de 80, segundo DEL OLMO, precisamente em 06 de março de 1981, o Presidente Ronald Reagan classificou o abuso de drogas como um dos mais graves problemas a ser enfrentado e que, sem um combate efetivo, implicaria o “risco de perder uma grande parte de toda uma geração”. '?! Esse diagnóstico, feito pela Casa Branca e registrado na Estratégia de 1984, legitimaria o que seria a guerra contra as drogas” na administração Reagan. Mais tarde, a própria Casa Branca (1992), já diante da nova ordem global, passou a analisar o problema do tráfico de drogas como um desafio mundial, dada a natureza 120 DEL OLMO, Rosa. Las Drogas Y Sus Discursos, Direito Criminal. Belo Horizonte: Del Rey, Coleção JUS ETERNUN, v. 5, Coord. José Enrique Pierangeli, 2003, p. 131 121 Ibid., p. 129 48 multinacional da ameaça. A partir de então, a comunidade política global passou a reconhecer que os agentes do tráfico de entorpecentes já não estão mais dedicados exclusivamente a uma atividade criminal: são agora empresas multinacionais que se ocupam do comércio de mercadorias ilícitas, cujas operações misturam-se com mercados legítimos já existentes. O discurso político passou a revelar uma preocupação fundamental com a economia, razão pela qual a questão passou a ser qualificada como 'econômico-transnacional" e como um “inimigo global a ser enfrentado. Essa transnacionalização, segundo CERVINI, é o ponto alto da criminalidade organizada contemporânea, diante da qual os Estados, isoladamente, se vêem reduzidos à impotência. Ademais, destaca o autor que Ilegados a este punto, debe resaltarse uma paradoja cuya previa comprensión resulta fundamental. Ciertos procedimientos operativos de cobertura y transacciones ilícitas, entre ellas las de lavado de dinero, por su misma naturaleza, se desarrollan em circunstancias que excluyen muy frecuentemente uma de las características esenciales de los modernos mercados capitalistas: la impersonalidad de los intercâmbios. Por eso, para el deito transnacional resulta mucho más econômico y seguro confiar em determinados canales privilegiados de comunicación e intercambio, capaces de garantizar un cierto 'estándar de fiabilidad ilícita' para todos los miembros del circuito clandestino.'2 Essas novas figuras típicas, inegavelmente, colocaram à prova a soberania dos Estados. “Com maior evidência, os Direitos nacionais somente em algumas ocasiões apresentam semelhanças, e no mais das vezes expressam importantes divergências culturais ou de tradições jurídicas. Isso situa qualquer abordagem conjunta do problema da criminalidade da globalização ante importantes dificuldades adicionais”.'? Não é demasiado afirmar, portanto, que a era da globalização revelou-se, por excelência, a era da delinguência organizada. Ninguém ignora que o crime organizado tem finalidade precipuamente econômica. Por isso, parece apropriado dizer que o crime organizado é o crime dos poderosos (crimes of the powerful. É o que acentua SÁNCHEZ ao tratar desse aspecto: -.. sua delinquência é predominantemente econômica, em sentido amplo, ou seja, tem por objeto de estudo delitos diversos do paradigma clássico (homicídio, crimes patrimoniais tradicionais etc) — crimes of powerful; além disso, a delinquência dela 122 CERVINL, op. cit. p. 67 123 SÁNCHEZ, À expansão... p. 81 49 marés das categorias jurídicas. Elas provêm dos reflexos e influência que os dados econômicos e sociais concernentes a questão criminal — recolhidos e trabalhados pela criminologia — e a luta das concepções político-criminais introduzem nas teorias da pena e do delito. Nossa torre de marfim caiu, e, cá entre nós, já era tempo”. 'º5 Nesse sentido, ainda seria realista um discurso que pregasse o respeito intransigente a Princípios de uma Constituição programática e de falsa democracia sem o congruente balanceamento de bens? Não seria conveniente e oportuno aceitar, com a devida delimitação e estrita legalidade, um modelo de Direito Penal e Processual diverso do modelo clássico-iluminista e apto ao eficaz combate da alta e hodierna criminalidade? Não seria hora de rigoristas e laxistas abandonarem o mero discurso acadêmico e sentarem-se à mesa para exigir uma pauta mínima a ser cumprida pelo Poder Público, de modo a não frustrar as expectativas com o limitado alcance do Direito Penal? O paradigma do Direito Penal clássico é o homicídio com autor individual. Já o da globalização é o delito econômico organizado tanto na modalidade empresarial, como na macrocriminalidade: terrorismo, narcotráfico ou criminalidade organizada. Para esse tipo, conforme se aventará, ou se assinalam menos garantias pela menor gravidade das sanções ou, através de uma legislação 'excepcional, assinalam-se menos garantias pelo enorme potencial de perigo que contém. Ainda tratando dessa transição do modelo clássico, GOMES e BIANCHINI destacam o simbolismo das tendências modernas, salientando que na base do atual Direito penal, consequentemente, além de uma crise evidente, parece residir uma irrefutável contradição: por um lado, justamente porque se pretende que ele cumpra um papel (missão) de tutela de bens jurídicos para a manutenção da paz social, foi gradualmente transformando-se em um instrumento de prevenção político-social; por outro, quanto mais se incrementa essa função, mais a sociedade se dá conta da falta de operatividade do sistema e da ausência de uma verdadeira tutela dos bens jurídicos. Com isso, o que resulta de concreto é uma função puramente simbólica de proteção, que se caracteriza então não só pela flexibilização dos princípios jurídicos e das garantias, senão especialmente pela antecipação da intervenção penal. Já ALFLEN DA SILVA acredita que efetivamente “as novas tendências revelam a total impenetrabilidade dos conceitos clássicos aos novos tempos”, '*” 135 BATISTA, Novas Tendência: 136 GOMES; BIANCHINI, op. 137 ALFLEN DA SILVA, op. 52 enquanto SÁNCHEZ assim delineia seu prognóstico: “... o Direito Penal da globalização econômica e da integração supranacional será um Direito já crescentemente unificado, mas também menos garantista, no qual se flexibilizarão as regras de imputação e se relativizarão as garantias político-criminais, substantivas e processuais”. "º O panorama mundial também é traçado por HASSEMER, que observa que a idéia de prevenção se desprende de seu sabor terapêutico, social ou individual, estruturando-se como instrumento efetivo e altamente intervencionista na luta contra a violência e o delito. A partir dessa perspectiva, segundo ele, “há uma tendência do delinquente a converter-se em inimigo, e o direito penal, em um direito penal para inimigo”. E continua: Acontecendo isso, tem-se um retorno à velha visão da criminologia clássica, que concebia o delito como um enfrentamento formal, simbólico e direto entre dois rivais — o Estado e o infrator -, os quais travam um maniqueísta conflito do bem contra o mal. Um personificava o lado bom da sociedade, sem máculas, perfeito, congregando os justos e pacíficos; o outro, o perigoso delinquente, tumor a ser extirpado o mais rápido possível, com o fito de sanear novamente o corpo social." Como se vê, é indubitável que esses novos paradigmas da modernidade fomentam a sensação do “terror. Mas, tais paradigmas, por si sós, já conferem legitimidade a teorias como 'O Direito Penal do Inimigo” ou seria possível questionar a legitimidade de tal pensamento no atual contexto? Para LUHMANN, o homem vive em num mundo constituído sensorialmente, que lhe apresenta uma multiplicidade de possibilidades de experiências e ações, contrapondo-se ao seu limitado potencial perceptivo de assimilação de informações e ação atual e consciente. Assim, cada experiência concreta apresenta um conteúdo evidente que remete a outras possibilidades que são ao mesmo tempo complexas e contingentes? Esse número elevado de possibilidades complexas e contingentes, inegavelmente, dificulta a tomada de decisões e aumenta a sensação de insegurança. Seria, então, possível frear essa sensação e facilitar as escolhas do homem e do Estado? 138 SÁNCHEZ, A expansão..., p. 75 139 HASSEMER, El Destino de los derechos del ciudadano en um derecho penal eficaz, Estúdios Penales y Criminológicos, n. XV/183 e II (apud BONFIM, Direito Penal.... p. 113) 140 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo Universitário, v. 75, Tempo Brasileiro, 1983, passim 53 Antes de enfrentar tais questões, é preciso repisar: no debate acerca da legitimidade ou não de um direito repressor (ou 'do inimigo”), serão superficiais as análises formuladas sem a compreensão clara das mudanças de paradigmas sociais, sem o entendimento adequado das premissas utilizadas por GUNTHER JAKOBS para reformular a Teoria da Pena. Tais premissas, como se verá, foram pautadas na Teoria dos Sistemas de NIKLAS LUHMANN que, elaborou uma teoria social com a finalidade de solucionar esse problema do Direito moderno: como diferenciar o Direito dos outros sistemas de modo a evidenciar que ele não pode operar adequadamente com demandas a que não está apto a atender. Com a flexibilização dos conceitos jurídicos e a consequente criação de inevitável instabilidade interna do sistema jurídico, parece que a legitimação do Direito para novos conflitos vem sendo ignorada por boa parte dos pensadores do Direito Penal moderno. A complexidade da sociedade, além de motivar novas demandas e conflitos penais, fatalmente vem desencadeando a instabilidade interna do sistema jurídico e insegurança ao meio, fomentando, pois, a crescente produção de legislações esdrúxulas e decisões judiciais alheias aos limites operacionais do Direito Penal. Proliferam as leis e o medo continua... MORAES JÚNIOR e DIP, neste diapasão, advertem: A hiperinflação de leis penais e, sobretudo — o que é seu consequente — a instabilidade da ordem jurídico-penal em concreto respondem, em parte, por um descrédito na segurança pública. (...) Quando muita coisa se criminaliza normativamente, parece que o delito se trivializa na ordem concreta. Além disso, leis que se sucedem vertiginosamente são leis que sempre estão a exigir um tempo de ponderação, de amadurecimento, para que suas normas implícitas sejam compreendidas pelos juristas (e leigos) e, depois disso, interpretadas diante da ordem jurídica concreta: o interregno é um campo muito propício para a insegurança. A modernidade passou, portanto, a utilizar diferentes conceitos: “Economia de Mercado Globalizada”, 'Política' (ao invés de Estado) e “Direito Moderno" com diferenciações operacionais gritantes e com linguagens díspares. Em relação ao número, à diversidade e à interdependência das ações possíveis, a sociedade moderna é muito complexa e a complexidade e contingência 141 DIP; MORAES Jr., op. cit., p. 221 54 Costumeiramente em nosso país, o aumento de pena é visto como solução de problemas que, a rigor, não são da alçada do Direito. A Política não pode ter a pretensão de invadir o sistema jurídico, da forma que o faz a nossa irracional Política Criminal. Em vez de construir presídios, de investir em educação e de criar programas sociais, a Política invade o mundo do Direito, ora protagonizando decisões judiciais alheias ao código lícito/ilícito, ora fomentando legislações que afastam as penas privativas de liberdade, gerando a sensação de insegurança que, em um círculo vicioso, faz com que a sociedade reclame da ineficiência do Direito Penal e da Justiça Criminal. O Direito Penal, que não se presta, por si só, a diminuir a criminalidade (futuro incerto) e não consegue reeducar os condenados (futuro incerto, agravado pela contingência e complexidade social), acaba gerando frustrações que, como já brevemente assinalado, ou ativam a produção de legislações esdrúxulas, ou formatam Magistrados “políticos”, 'economistas”, “sociólogos” e 'benevolentes com a pobre situação do encarcerado”. A mesma advertência foi feita por CAMPILONGO em artigo veiculado no Jornal “Folha de São Paulo”: “para garantir expectativas que não se ajustam às desilusões, compete aos tribunais exercer o papel de afirmar o direito, não confirmar o poder. Para isso devem estar protegidos contra pressões que procuram enfraquecer suas estruturas ou tentam processar questões que não se amoldam à técnica jurídica”. 4º Nélson HUNGRIA lembrou CARRARA para quem “sempre que a política entra pelas portas do templo da justiça, esta foge espavorida pela janela para livrar- se ao céur.!” Especialistas da 'modernidade periférica” ainda acentuam: O problema das periferias está ligado a uma exposição tão grande e promíscua com o ambiente que, muitas vezes, podendo não decidir, o sistema jurídico acaba decidindo de modo que, sem comprometer o fechamento operativo do sistema, subtrai dos Tribunais um auto-isolamento cognitivo que, nos países centrais, é muito mais forte do que o isolamento do legislador ou daqueles que estipulam contratos (...).'º Entender e questionar a legitimidade de um Direito Penal para o “inimigo da 146 CAMPILONGO, A função política do STF. Folha de São Paulo, 22 nov.1999, p. 3 147 HUNGRIA. Comentários..., v. 1, Tomo I, op.cit. 148 CAMPILONGO. Política, Sistema..., p. 172 57 sociedade” pressupõe, pois, entender o contexto da realidade do Direito Penal; pressupõe entender como o Direito vem sendo contaminado por idéias estranhas ao seu código operativo e como novas demandas decorrentes dos avanços tecnológicos, da globalização e da aceleração da comunicação vêm modificando o Direito Penal clássico. Como, então, em um contexto de aparente Democracia na maior parte da civilização, surgem teorias como a do “Direito Penal do Inimigo'? Um Direito excepcional que trata parte dos criminosos como inimigo, buscando positivar e legitimar a flexibilização de garantias típicas do Direito Penal de contorno iluminista, seria legítimo? Certo está que a resposta a tais indagações carece, por completo, de substrato e fundamento se desacompanhadas da consciência do contexto histórico, da atual realidade e das novas demandas alçadas ao Direito Penal. Neste último aspecto, vale destacar a lição de BONFIM: O Brasil jurisdicionalizado transformou-se em um imenso e babélico cipoal ideológico, doutrinário, 'dogmático”, configurando a grande 'colcha de retalhos” que é nosso ordenamento jurídico-penal, fruto de todos os traumas e de todas as não- soluções, onde testamos muito da doutrina importada — muitas sem eco sequer em seu País de origem — e lastreamo-nos em uma legislação muitas vezes misericordiosa, noutra de terror, acentuando a inaplicabilidade de um produto estranho, à uma realidade toda própria.* Como se vê, esta é a nova representação social: a frustração advinda com a implementação de um “Direito Penal mágico" e a insatisfação com o suposto papel do Direito Penal em diminuir a criminalidade vêm desencadeando essa inversão de valores. Conforme se almeja demonstrar, a solução para tal inversão reside em parte na Teoria dos Sistemas de NIKLAS LUHMANN que, paradoxalmente, constituiu o ponto de partida de JAKOBS para definir sua Teoria e seu conceito de finalidade da sanção penal até chegar à concepção do “Direito Penal do Inimigo”. Enfim, política criminal efetivista tendencialmente antigarantista, caos normativo, instrumentalização e simbolismo do Direito penal, excessiva antecipação da tutela penal, descodificação, flexibilização das garantias penais, processuais e execucionais e explosão carcerária são questões a serem enfrentadas juntamente com o aumento da criminalidade de massa, com as modernas demandas penais e 149 BONFIM, Direito Penal... p. 161 58 com a criminalidade organizada e transnacional. Os laxistas e os rigoristas têm pensado em uma solução razoável e realista para o Direito Penal? Mais que isso, o Direito Penal tem a função de controlar e transformar a sociedade ou a sua função é apenas promover a estabilização das expectativas normativas? A Teoria Sociológica dos Sistemas de NIKLAS LUHMANN, ponto de partida do funcionalismo sistêmico de GÚNTHER JAKOBS, tenta responder essas questões, ainda que com enfoque pré-paradigmático. 59 capítulo anterior. O panorama já traçado, associado aos inerentes riscos da sociedade moderna, delinearam o conceito de “sociedade de risco” (Weltrisikogesellschaft) . LUHMANN salienta que “todas estas reflexiones se pueden resumir en la fórmula final del riesgo. La sociedad moderna vive su futuro en la forma del riesgo de las decisiones”. A própria transição do risco na mudança dos modelos de Estado é essencial para a compreensão do atual contexto. No Estado liberal, o risco assumia a forma de acidente, ou seja, “de um acontecimento exterior e imprevisto, de um acaso, golpe do destino, e é simultaneamente individual e repentino” * , embora perceptível pelos sentidos. Na segunda fase, destaca ALFLEN DA SILVA, “surge a emergência da noção de prevenção, entendendo-se como tal a atitude coletiva, racional e voluntarista que se destina a reduzir a probabilidade de ocorrência e a gravidade de um risco (...): cada pessoa vê ser-lhe reconhecido um direito generalizado à segurança”. E arremata que atualmente, “na terceira fase da história do risco, fala-se do risco enorme, catastrófico, irreversível, pouco ou nada previsível, que “frustra as nossas capacidades de prevenção e domínio, trazendo desta vez a incerteza ao coração dos nossos saberes e dos nossos poderes”. 5 Essa transição se refletiu diretamente na sociedade: “enquanto na sociedade de classes o ideal é a igualdade, na sociedade do risco o ideal é a segurança, na medida em que nesta a 'visão do medo” marca a época”. O tema 'sociedade de risco' é, portanto, essencial para se compreender a metodologia empregada por NIKLAS LUHMANN.” Na pós-modernidade, observa CAVALCANTI, “os riscos se acentuam devido, sobretudo, à incapacidade metodológica da Modernidade. A convincente relação causa e efeito desmanchou-se 3 LUHMANN, Niklas. Complejidad y Modernidad: De la Unidad a la Difrencia. Madri: Trotta, Trad. Josetxo Berian e José María García Blancop, 1998, p. 162 4 ALFLEN DA SILVA, Pablo Rodrigo. Leis Penais em Branco e o Direito Penal do Risco: aspectos críticos e fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 87-88 SId. 6 Ibid, p.92 7 NIKLAS LUHMANN é natural de Liineburg, na baixa Saxônia, nascido em 08 de dezembro de 1927. Formou-se em na Universidade de Direito de Freiburg, onde ademais ocupou cargo na Administração Pública, assim como no Ministério da Cultura em Hannover. Em Harvard, em 1960, após ter contato com Haberm: “gue o curso de Parsons, sociólogo de fama mundial, e, em consegiiência deste encontro, decide dedicar-se às ciências sociais. Em 1968 tornou-se professor de Sociologia na Universidade de Bielefeld. Autor de inúmeras obras e autor da moderna Teoria dos Sistemas autopoiéticos, faleceu em 06 de novembro de 1998 (apud ALCOVER, Pilar Giménez. El Derecho en la Teoría de la Sociedad de Niklas Luhmamn. Barcelona: José Maria Basch Editor, 1993, p. 11-14) 62 no ar e o que resta são apenas possibilidades. O desejo de segurança e de tranquilidade, não mais suprido pela técnica cartesiana, abre espaço para o sentimento de insegurança e intranquilidade, muitas vezes superior à própria realidade de insegurança e intranqjilidade sociais.” º Em síntese, a causalidade e a segurança na tomada de decisões dão lugar à possibilidade, e até mesmo à necessidade, de se conviver com a insegurança. Assim, a diversidade e a interdependência das ações possíveis tornam a sociedade moderna muito complexa. Essa complexidade aliada à contingência são elementos cada vez mais presentes na sociedade dita 'pós-industrial que desestruturam e dificultam os processos de tomada de decisão no sistema jurídico. Assim, era inevitável que o Direito sofresse os impactos desses novos paradigmas e, em especial, o modelo clássico de Direito Penal. As novas demandas do Estado de Bem-Estar Social (direitos dos trabalhadores e das mulheres, proteção do meio ambiente, interesses das minorias, combate ao racismo e delitos do colarinho branco) seriam, irremediavelmente, novas demandas alçadas ao Direito Penal. E este quadro, conforme já assinalado, foi agravado pelos avanços tecnológicos e pela criminalidade organizada. Diante deste panorama, lembra SÁNCHEZ, somente uma firme persistência na necessidade de manter escrupulosamente as garantias político-criminais do Estado de Direito e as regras clássicas de imputação, também na luta contra a antipática ou inclusive odiosa macrocriminalidade, poderia evitar um dos elementos determinantes em maior medida de 'expansão” do Direito Penal. (...) Nisso influi, sem dúvida, a constatação da limitada capacidade do Direito Penal clássico de base liberal (com seus princípios da taxatividade, imputação individual, presunção de inocência etc.) para combater fenômenos de macrocriminalidade. Seria, nesse diapasão, inevitável que as novas demandas e o combate à macrocriminalidade exigissem uma intervenção profilática que não esperasse a produção de lesões de direitos: “mediante responsabilidade coletiva, que renuncia a imputação individual; mediante inversão do ônus da prova e delitos de mera suspeita que desprezam a presunção de inocência e o princípio in dubio pro reo; mediante a dotação das instituições de persecução penal de competências análogas a dos 8 CAVALCANTI, op. ci 151 9 SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. A Expansão do Direito Penal - Aspectos da política criminal nas sociedades pós- industriais. São Paulo: Revista dos Tribunais. Série as Ciências Criminais no Século XXI, v. 11, Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha, 2002, p. 68 63 serviços secretos, que somente podem ser controladas judicialmente de modo limitado”! Daí a desestruturação dos Códigos, o desenvolvimento de microssistemas jurídicos e a produção legislativa exarcebada. Assim, é oportuno reiterar alguns dos questionamentos de CAVALCANTI: O problema metodológico refere-se ao seguinte questionamento: podem-se estabelecer critérios objetivos para o legislador penal no momento do processo de criminalização? A problemática em questão demarca outras indagações: qual a relação entre a criminalização/descriminalização e o processo social, histórico e cultural de cada sociedade? Como se firma o processo de criminalização a partir dos primeiros passos da Modernidade? Como os desdobramentos contemporâneos do projeto inacabado da Modernidade, conhecido como Pós-Modernidade, interferem no processo de criminalização? Pois bem, delineada a passagem do Estado liberal ao Estado social, indaga-se: como essa transformação influiu para a exagerada corrida criminalizadora? ! O Estado passou a ser visto como o próprio instrumento de mudança social, intervindo em todas as esferas consideradas essenciais à propulsão do bem comum. Em termos precisos, o Estado passou a ter a responsabilidade de criar empregos e não apenas distribuir riquezas, de gerenciar a economia e não apenas corrigir distorções, de fomentar a saúde, a educação, a cultura e a moradia. A mão invisível do mercado foi sendo substituída pela mão bem visível da providência do Estado. E como imaginar o Estado social sem a intervenção do Direito Penal? 12 Ainda neste aspecto, SÁNCHEZ acha possível afirmar que o modelo público de Direito Penal se encontra no limite de sua eficácia preventivo-integradora. Segundo ele, para que a eficácia do Direito Penal seja preservada, é preciso que ele se mantenha público e formalizado, norteado por um conjunto de princípios gerais que impeça a sua aplicação arbitrária. Além disso, o Poder Judiciário deve guardar uma certa distância das tensões sociais." As respostas a tais dilemas de certa forma foram buscadas pela Teoria dos Sistemas de NIKLAS LUHMANN, e a pretensão luhmanniana foi utilizada por GÚNTHER JAKOBS para justificar sua metodologia funcionalista e a finalidade preventivo-integradora da sanção penal: o Direito somente pode desempenhar a função garantidora de expectativas normativas. 10 1d. 11 CAVALCANTI, op. cit. prefácio 12 Ibid, p. 117 13 SÁNCHEZ, A expansão..., p. 72 pré-paradigmáticas. ALFLEN DA SILVA também reconhece a mudança, salientando: O Direito Penal contemporâneo, tanto na teoria como na práxis, está passando da formalização e da vinculação aos princípios valorativos a uma tecnologia social, e paulatinamente vai se convertendo em um instrumento político de manobra social. Pode-se dizer que se trata de uma “dialética da modernidade”, (...) um Direito Penal inspirado nas modernas teorias sociológicas orientadas segundo um modelo globalizante, que no Direito Penal tem se refletido segundo a perspectiva do risco, em relação à qual se fala mais recentemente de uma Risikostrafrhecht (Direito Penal do Risco).” Para tal momento de transição, LUHMANN apresenta a Teoria dos Sistemas Autopoiéticos, cujas bases, conforme já dito, repousam no conceito de sociedade complexa. Uma das principais mudanças foi a substituição do conceito sistema aberto/fechado pelo conceito de autopoiese. No caso do (sistema) Direito, LUHMANN diz que, sendo autopoiético, prevalece o código de referência lícito/ilícito como condição de sua autorreferência sistêmica. Isso quer dizer que a identidade operacional e a autonomia funcional do sistema jurídico, seus requisitos básicos são sustentados por aquele código binário, formando o que se pode chamar de núcleo ou cerne da autopoiese do Direito.?2 O próprio LUHMANN destacou o significado deste avanço metodológico: El avance de teoria consiste en la afirmación de que para que el sistema construya su propia complejidad es necesaria la clausura de operación — frecuentemente esto se formula como condición para extraer 'orden del ruido”. La cerradura no deberá entenderse como aislamiento. Esta teoría no discute que existan relaciones causales entre el sistema y el entorno (auque las afirma a su manera) y que las interdependencias causales sean necesarias estructuralmente para el sistema? Las comunicaciones jurídicas tienen, siempre, como operaciones del sistema del derecho una doble función: ser factores de producción y ser conservadores de las estructuras. Estas comunicaciones establecen condiciones de enlace para operaciones subsiguientes y con ello confirman o modifican, a la vez, las estructuras dadas. De esta manera los sistemas autopoiéticos son siempre sistemas históricos, que parten del estado inmediatamente anterior que ellos mismos han creado. No hay, con palabras, ninguna determinación estructural que provenga de fuera. Sólo el derecho puede decir lo que es derecho?! 21 ALFLEN DA SILVA, op. cit., p. 85 22 WINTER DE CARVALHO, Délton. O Direito como um sistema social autopoiético: auto-referência, circularidade e paradoxos da teoria e prática do Direito. Disponível em <http:/Avww.google.com/search?q=cache:xfiJbfFJS34] :www.ihj org br/artigos/professores/delton.pdf+D9%C3%>, Acesso em: 03 mai 2005 23 LUHMANN, Nilkas. O Direito da Sociedade (Das Recht Der Gesellschaft). Barcelona, trad. provisória: Javier Torres Nafarrete, 2000, p. 28 24 Tbid, p. 33 67 Segundo esse mesmo autor, “si la sociedad moderna puede ser descrita como un sistema social funcionalmente diferenciado, entonces nos encontramos ante una sociedad caracterizada tanto por la desigualdad como por la simetria en las relaciones entre sus sistemas parciales. Como consecuencias de ello, estos sistemas rechazan asumir como premisas de sus recíprocas relaciones todas aquellas que vinieran formuladas a nivel de la sociedad globar 2 e adverte que “en su estadio moderno, por consiguiente, la sociedad no se puede seguir concibiendo como una 'comunidad perfecia', que proporciona a los seres humanos una autorrealización plena. La sociedad es, más bien, una muy diferenciada y abstracta red comunicativa, que proporciona poco más que unas muy laxas condiciones de compatibilidad sociar 28 Nesse esteio, justamente porque complexidade e contingência são elementos cada vez mais característicos da sociedade pós-moderna, desestruturando e dificultando os processos de tomada de decisões no sistema jurídico, LUHMANN passou a buscar na Teoria Autopoiética, uma visão ampla e complexa do funcionamento do Direito. Apoiado na auto-observação do sistema jurídico, pretendeu alcançar as formas pelas quais o sistema oculta e neutraliza os paradoxos da auto-referência, dando continuidade à sua operacionalidade (fechada) e orientando sua funcionalidade específica de maneira cognitivamente aberta ao ambiente social. No entanto, em se tratando de relações sociais, a escolha das possibilidades não depende somente de um indivíduo, mas também dos outros. Assim, o risco de frustrações aumenta e a estrutura do Direito (formada por expectativas) deve, com sua funcionalidade específica, reduzir a complexidade apresentada pela sociedade (ambiente do sistema do Direito) e caracterizar-se como uma generalização congruente de expectativas normativas. Em suma, para LUHMANN o Direito “é um sistema especializado na generalização congruente de expectativas normativas”. O sistema do Direito seria constituído, na concepção luhmanniana, com a função de reduzir a complexidade apresentada pela sociedade, através da 25 LUHMANN, Complejidad..., p. 15 26 Ibid, p. 16 2714. 27 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. São Paulo: Biblioteca Tempo Universitário, v. 75, 1983, passim 68 generalização de expectativas normativas com vistas a manter o sistema estável. LUHMANN entende, portanto, que o Direito não pode ter a pretensão de fazer uma reengenharia social, diante da interação constante com outros sistemas. Assim agindo, estaria trabalhando com códigos diversos de 'lícito/ilícito*, perdendo o horizonte dos seus limites operativos e gerando inevitáveis frustrações. Compreender a metodologia de NIKLAS LUHMANN supõe, entretanto, repisar que se trata de uma teoria pré-paradigmática com novas soluções para o estudo do Direito e da sociedade. 2.2. Metodologia ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR ecionam que, como teórico da sociedade industrial avançada, “Luhmann considera que o ambiente é composto de subsistemas (humanos) cada vez mais diferenciados (fenômeno diverso daquele que ocorreria nas sociedades primitivas, tese originária de Durkheim), mas ao mesmo tempo mais necessitados de dependência. O progresso aumentaria a incompatibilidade e a dependência entre os seres humanos, exigindo uma permanente reelaboração do sistema para manter seu equilíbrio diante da crescente complexidade social” 2º E recordam esta complexidade, afirmando: A complexidade que o ambiente opõe ao sistema é a multiplicidade de vivências dos humanos, que pluraliza expectativas díspares. Isso, porém, é complexo para o sistema, porque ele sente necessidade de harmonizá-las, a fim de estabilizar-se, de modo que será sempre o sistema aquele que determina o que é o complexo e o que dele deve ser selecionado e reduzido. Assim, o sistema vai selecionando seus próprios limites, bem como harmonizando as expectativas mediante uma simplificação daquelas selecionadas, com o estabelecimento de normas generalizantes e com crescente distribuição de papéis a serem desempenhados em relação às concretas expectativas dos humanos. Em síntese: toda a teoria se sustenta na necessidade de controle que se legitima por si mesma e age de acordo com um contínuo fortalecimento dos papéis. Surge aqui uma clara manifestação de organicismo extremo: as consciências — ou seja, as seleções individuais — devem subordinar-se aos papéis que as tornam funcionais para o sistema, assim como o equilíbrio. TAVARES, neste mesmo sentido, salienta que a Teoria dos Sistemas (...) é, no fundo, uma teoria estruturalista, pois busca fundar o método científico na 29 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro. 2º ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, v. 1, p. 623-625 30 Id. 69 sistêmico no sentido de suplantar as tradicionais matrizes epistemológicas do Direito. Para tanto, a Teoria Sistêmica de cunho autopoiético, possibilita a tomada de decisões por parte dos sistemas frente a ambientes amplamente complexos e contingentes. * Primeiramente, influenciado pela Teoria Estruturalista-Funcional de seu mestre TALCOTT PARSONS, NIKLAS LUHMANN traça todo um instrumental que caracteriza de forma bastante abrangente e complexa a estrutura que constitui o sistema do Direito. Esse instrumental teria a função de reduzir o grau de complexidade da sociedade através da generalização de expectativas normativas com vistas a manter o sistema estável. CAMPILONGO destaca que, por trás dessa tentativa refinada de descrição do Direito como sistema, encontra-se uma crítica ao iluminismo racionalista: O velho iluminismo estaria orientado por uma “racionalidade da ação" assentada em pressupostos ontológicos, verdades, princípios e certezas. O novo iluminismo — o iluminismo sociológico de que fala LUHMANN — opta por uma 'racionalidade do sistema”. Princípios funcionais permitiriam compreender e reduzir a complexidade do mundo moderno. Passa-se de uma racionalidade do sujeito para uma racionalidade do sistema: a modernidade envolve múltiplas possibilidades de ação, escolha e eventos. São necessárias seleções que reduzam a totalidade dos comportamentos possíveis. Os sistemas diferenciados funcionalmente são produtos dessas seleções. Envolvem sempre uma “redução de complexidade". * A redução da complexidade dependeria da própria estrutura do sistema, ou daquilo que será denominado 'autopoiese”. A partir dos anos oitenta, dois biólogos chilenos - HUMBERTO MATURANA e FRANCISCO VARELA -, revolucionam as Ciências Biológicas com sua Teoria Autopoiética!? (autopoiesis, do grego auto - por si próprio e poiesis - criação). Estes autores buscavam a resposta para um problema histórico da ciência e da filosofia: a vida. Através de pesquisas neurofisiológicas, os biólogos descobriram que todo sistema vivo apresenta no seu circuito interno uma interação fechada dos elementos que o constituem, o que possibilita a auto-organização e autoprodução 38 WINTER DE CARVALHO, op. cit. 39 CAMPILONGO, Política..., p. 20 40 Os biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela, em “De Máquinas y Seres Vivos”, de 1973, visando superar a tradicional antinomia entre os mecanicistas e os vitalistas, apontam uma terceira via de defesa de uma organização auto- referencial dos seres vivos, em que a respectiva ordem interna é gerada a partir da interação dos seus próprios elementos e da auto-reprodução. A palavra autopoiesis vem do grego auto (por si próprio) e poiesis (criação, produção, poesia). O vocábulo sistema tem origem grega (systema) e significa reunião, conjunto, métodos, organização, totalidade. Pode-se definir sistema como um conjunto de dois ou mais elementos que satisfazem três condições: a) o comportamento de cada elemento afeta o comportamento do todo; b) o comportamento dos elementos e dos seus efeitos no todo são interdependentes; c) nenhum dos elementos tem um efeito autônomo. 72 desses elementos. Em adequada síntese de WINTER DE CARVALHO, tais circunstâncias acarretam uma autonomia do sistema, sem que haja inter-relações diretas com os demais sistemas.” A partir de uma diferenciação (peculiar ao sistema), obtém-se a idéia de identidade/não identidade que estabelece os limites entre o sistema e o seu ambiente (o que está fora do sistema). Entretanto, o sistema interage com seu ambiente, mantendo um processo de acoplamento através de uma espécie de decodificação das irritações causadas pelo ambiente efetuada mediante a utilização de suas próprias interações internas, circularmente organizadas em resposta aos ruídos externos (order from noise) e operacionalmente fechados.*? Este também é o paradoxo luhmanniano transportado para as ciências sociais: um método para redução da complexidade interna do sistema que, invariavelmente, aumentará a complexidade externa. Esse método não tem por objetivo alcançar um modelo ideal ou a perfeição, mas tão somente garantir as condições para a convivência racional com tal complexidade. O que diferenciará o sistema jurídico será sua estrutura, ou o que LUHMANN denomina código operativo” — lícito/ilícito ou direito/não-direito. A identificação do código, como se verá, permitirá saber se uma informação transmitida por outro sistema, como o Político, é capaz de ser efetivamente processada pelo sistema jurídico e se essa percepção diminuirá as frustrações. Exemplificando: seria plausível alçar ao sistema do Direito Penal o fim de “ressocialização das penas'? O Direito, com sua limitação estrutural (código lícito/ilícito), por si só, seria capaz de garantir a ressocialização de um criminoso ou isto seria tarefa de outro sistema como o Político (através da adoção de políticas públicas, penitenciárias etc.)? Aí está, pois, uma importante virtude da Teoria que, delimitando os sistemas, aclara para o intérprete do Direito a função do sistema jurídico. De outra parte, limitam-se as frustrações, aclarando-se uma reivindicação racional, pois, os efetivos responsáveis passam a ser cobrados, evidenciando-se quais os sistemas estão aptos a processar determinadas demandas. Entre as estruturas e as operações de cada sistema, segundo LUHMANN, 41d. 42 WINTER DE CARVALHO, op. cit. 73 subsiste uma relação circular, de tal modo que as estruturas só podem ser construídas e sofrer variações através dessas operações. Como bem destaca TAVARES, a teoria do sistema fechado de comunicações operativas é, assim, uma teoria abrangente da sociedade e se se compreende também o sistema jurídico como um subsistema do sistema social, ficam excluídas as pretensões dominantes tanto pragmáticas quanto estruturais. O sistema se produz e se reproduz por ele mesmo. Tendo em vista esta circularidade do sistema, fica abstraída para a definição de seus elementos, qualquer relação de causalidade entre o sistema e o ambiente. Nisso assume particular importância o conceito de autopoiese, que justamente indica essa particularidade do sistema: um sistema operativamente fechado de normas se caracteriza pelo fato de que, para a produção de suas operações, se remete à rede de suas próprias operações e, nesse sentido, se reproduz. Considerando-se sua operatividade fechada, sua reprodução autopoiética e a autonomia do sistema jurídico, transparece a questão acerca de que comunicações trata esse sistema e onde se situam seus limites. Portanto, será justamente a diferenciação funcional decorrente da delimitação do sistema jurídico (autopoiese) que, segundo LUHMANN, possibilitará à sociedade moderna e complexa escolhas racionais que diminuam suas frustrações. 2.2.2. Diferenciação funcional Todas as questões ventiladas no capítulo anterior por certo refletem a complexidade da sociedade moderna. Para LUHMANN, a questão é tratada em termos comunicativos, ou seja, a complexidade determina a contínua existência de mais possibilidades do que o seu potencial de realização. Já a contingência, é o “perigo de desapontamento e necessidade de assumir riscos”. Para a assimilação da complexidade e contingência em que estamos inseridos na modernidade, desenvolvem-se estruturas correspondentes de assimilação da experiência com o objetivo de absorver e controlar ambas. Criam-se, assim, certas premissas da experimentação e do comportamento para possibilitar uma qualidade no processo seletivo. Como consegiúência, há uma estabilização relativa frente aos desapontamentos das expectativas. * Foram justamente esses aspectos que nortearam o funcionalismo de GUNTHER JAKOBS. 43 TAVARES, op. cit. p. 69-71 44 LUHMANN, Complejidad..., p. 46 45 WINTER DE CARVALHO, op. cit. 74 O próprio LUHMANN visando facilitar a compreensão da finalidade que destaca ao Direito, assevera: O comportamento social em um mundo altamente complexo e contingente exige a realização de reduções que possibilitem expectativas comportamentais recíprocas e que não orientadas a partir das expectativas sobre tais expectativas. Na dimensão temporal essas estruturas de expectativas podem ser estabilizadas contra frustrações através da normatização. Frente à crescente complexidade social isso pressupõe uma diferenciação entre expectativas cognitivas (disposição à assimilação) e normativas, além da disponibilidade de mecanismos eficientes para o processamento de desapontamentos, frustrações. Na dimensão social essas estruturas de expectativas podem ser institucionalizadas, ou seja, apoiadas sobre o consenso esperado a partir de terceiros. Dada a crescente complexidade social isso exige cada vez mais suposições fictícias do consenso e também a institucionalização do ato de institucionalizar através de papéis especiais. (...) Dada a crescente complexidade social isso exige uma diferenciação dos diversos planos da abstração. Em síntese, segundo LUHMANN, o direito promove a generalização congruente de expectativas normativas. 'Generalização' equivale a dizer que o critério para a compreensão do sistema jurídico não pode ser individual ou subjetivo. Quando um ordenamento subsiste independentemente de eventos individuais, ocorre a 'generalização'. Já 'congruente” significa a generalização da segurança do sistema em três dimensões: temporal (segurança contra as desilusões, enfrentada pela positivação); social (segurança contra o dissenso, tratada pela institucionalização de procedimentos); material (segurança contra as incoerências e contradições, obtida por meio de papéis, instituições, programas e valores que fixem o sentido da generalização). “Expectativas normativas”, arremata CAMPILONGO, “são aquelas que resistem aos fatos, não se adaptam às frustrações ou, na linguagem de LUHMANN, não estão dispostas à aprendizagem". Para LUHMANN, portanto, o Direito aspira somente assegurar as expectativas. Em um mundo, que em princípio é incontrolável, têm-se ao menos duas certezas: as expectativas em relação ao Direito e as posturas que podem contar com consenso social. De uma parte, assevera LUHMANN, assegura-se algo que se pode esperar, indicando com seus elementos que não se deve aceitar um comportamento que provoca desilusão, mantendo, entretanto, a própria expectativa também contra o fato: de modo contrafactual. De outra parte, a norma autoriza a 51 LUHMANN, Sociologia. 52 CAMPILONGO, Política. p. 109-110 19 mn reagir com o interesse de se adequar uma realidade ao Direito - seja para prevenir um desvio, seja para reparar os efeitos de um dano. Neste sentido, vale registrar sua própria ilustração: Na medida em que o sentido da norma não sustenta mais a unidade da segurança das expectativas e do guia de comportamento, a sociedade reage com a diferenciação e a especificação da função. A pretensão do jurista concernente à função de engenharia social se demonstra como colocada apressadamente. A questão não é se o direito pode assumir a função de programação social e de guia de comportamento, mas como o direito pode se adequar ao fato de que estas funções devem ser desenvolvidas em medida crescente 'em outro âmbito da sociedade”. (...) Quando o legislador se propõe a proteger um bosque, edita uma lei. Porém, se não se verificar os efeitos (direito, ou sociais) previstos, mas justamente os não previstos, quando a função de guia de comportamento não se realiza, esta situação é tomada como um efeito factual externo ao direito. Com isto o direito não se torna não direito ou injusto, e disto não decorre a invalidade da norma. Se confirma, na realidade, a função da normatividade: estabilizar em caso de desilusão e imunizar quanto as consequências (segurança de expectativas). * Sabendo, no entanto, que em se tratando de relações sociais, não temos uma contingência simples, mas sim uma dupla contingência (expectativas sobre expectativas), isto é, a seletividade das possibilidades não se baseia apenas na pessoa que faz a escolha, mas nas possibilidades que o mundo coloca à sua disposição, aumentando, assim, o risco de frustrações. A estrutura do Direito (formada por expectativas) deve, com sua funcionalidade específica de reduzir a complexidade apresentada pela sociedade, caracterizar-se como uma generalização congruente de expectativas normativas.” Tais premissas metodológicas são evidentemente difíceis para qualquer estudioso da obra de NIKLAS LUHMANN, quanto mais para alguém que faça uma primeira leitura de forma desavisada. Tanto o conhecimento superficial da Teoria, quanto as radicais mudanças de paradigmas por ela sugeridas, geraram inevitáveis críticas. 4. CRÍTICAS À TEORIA DOS SISTEMAS DE NIKLAS LUHMANN O grande problema da teoria de LUHMANN, segundo seus críticos, é a sua despreocupação com os aspectos materiais dos conflitos de interesses que ocorrem 53 LUHMANN, La Differenziazione del Diritto. Bologna: Il Mulino, 1990, p. 81-101 54 LUHMANN, O Direito..., p. 102 78 no meio social e o seu desprezo pelas desigualdades materiais existentes entre os membros da coletividade. Além disso, segundo os críticos, LUHMANN partiria da premissa tida como equivocada de que os indivíduos aceitarão as decisões do aparelho estatal somente porque tiveram acesso ao procedimento. Contanto, é justamente a visão externa do sistema operacionalmente fechado que permite à Teoria dos Sistemas definir os limites operativos do sistema jurídico e as distorções decorrentes do desrespeito a essa diferenciação funcional entre os sistemas. ALCOVER, refutando as referidas críticas, registra que el hombre de esta sociedad que trata los valores formal oportunista y no integrada no es, para Luhmann, un hombre alienado ni estandarizado como 'hombre-masa'. La sociedad moderna da al hombre mayor relevancia social y protección de la nunca alcanzada por otras sociedades. La indiferencia ante la persona que caracteriza a la mayoría de nuestras comunicaciones rutinarias de la vida diaria y la falta de tiempo que impide conocer las vidas de las innumerables personas con las que nos encontramos cada día no han de verse como impedimentos, sino que permiten romper las cadenas de la dependencia personal, crear un ámbito de libertad propia y potenciar la individualidad. De outro lado, aponta ZAFFARONI que as construções teóricas do Direito e, especificamente do Direito Penal na forma de sistemas fechados, “adiantam o que os científicos vislumbram como risco de a inteligência artificial na robótica do futuro e que chamam rizos de retroalimentación que enloquecen el sistema. Na mão do juiz, seria um robô de fabricar sentenças”. CONDE, por sua vez, ressalta que a teoria sistêmica representa uma descrição asséptica e tecnocrática do modo de funcionamento do sistema, e não uma valoração ou uma crítica a esse sistema. Segundo ele, a teoria sistêmica conduz para uma concepção preventiva integradora do direito penal em que o centro da gravidade da norma jurídico-penal em que passa da subjetividade do indivíduo para a subjetividade do sistema. (...) Quando desde a teoria sistêmica se fala em "funcionalidade" da norma jurídico-penal, nada se diz sobre a forma específica de seu funcionamento nem sobre o sistema social para o qual a norma é funcional. Desde esta perspectiva, o conceito de função é demasiadamente neutro é realmente não serve para compreender a essência do fenômeno jurídico punitivo. (...) Em última instância, a teoria sistêmica conduz para substituição do conceito de bem jurídico pelo de funcionalidade do sistema social” perdendo a ciência do direito penal o último ponto de apoio que existe para a crítica do direito penal positivo. 55 ALCOVER, op. cit. p. 339 56 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La Globalización y las Actuales Orientaciones de la Política Criminal. Belo Horizonte: Del Rey. Coleção JUS AETERNUN, Coord. José Henrique Pierangeli, 2000, v. 1, p. 30 57 CONDE, Francisco Muhioz. Direito Penal e Controle Social. Rio de Janeiro: Forense, Trad. Cíntia Toledo Miranda Chaves, 2005, p. 13-15 79 máxime no atual contexto de mundo globalizado, ressaltando que: Sem a estabilização de instituições políticas e legais (que continuam sendo importantes para as relações internacionais), o peso dos controles tecnológicos, informacionais e financeiros tende a esvaziar e confundir as distinções funcionais entre os sistemas políticos, jurídico e econômico. Os limites duramente fixados pelo constitucionalismo e pelos direitos fundamentais no plano interno não gozam da mesma operacionalidade, eficácia e "vontade geral! nas relações internacionais. Ficam expostos a perigos também no plano nacional. Assim, partindo-se das premissas constatadas em nossa sociedade atual, máxime o alto grau de indeterminação da comunicação, o Direito não pode almejar eliminar tal perplexidade, mas tão somente estabilizar as expectativas. Assim, a norma jurídica, ainda que tenha certa previsibilidade, somente tem o condão de viabilizar escolhas, diminuir incertezas e riscos, satisfazendo as expectativas ao longo do tempo. Jamais, como pretende a teoria econômica, pode ter a função de orientar comportamentos. Enfim, para LUHMANN quando o Direito é usado como instrumento de guia de comportamento, ele age como um mágico e as frustrações daí advindas serão superiores às expectativas. A inobservância dos limites do sistema irremediavelmente gera uma busca pela solução simplista do aumento de penas ou pelos recursos ao Direito Penal como forma de solucionar problemas que, a rigor, fogem de sua alçada. De outra parte, a interferência indevida de outro sistema pode gerar frustrações incompatíveis com o sistema jurídico. A Política não pode ter a pretensão de invadir o sistema jurídico, da forma como faz muitas vezes a irracional Política Criminal brasileira que, em vez de se preocupar com a construção de presídios, investimento em educação e criação de programas sociais, invade a seara do Direito. Ora protagoniza decisões judiciais alheias ao código lícito/ilícito, ora fomenta legislações que afastam as penas privativas de liberdade, gerando a sensação de insegurança que alimenta um círculo vicioso. Para responder ao clamor de uma sociedade que não se conforma com a ineficiência do Direito Penal e da Justiça Criminal, vão-se criando legislações irracionais que, a curto prazo, desencadearão novas frustrações. De outra parte, ZAFFARONI destaca a inegável e crescente impotência do sistema Político para resolver problemas sociais derivados da exclusão e da degradação dos serviços sociais, que incluem até mesmo a segurança pública: La eclosión comunicacional produce um perfil de político por completo nervoso. Se trata de personas que hablan como si tuviessen poder, lanza sus escuetos slogans 61 CAMPILONGO, Celso Fernandes. O Direito na Sociedade Complexa. Apresentação e ensaio de Raffaele De Giorgi, São Paulo: Max Limonad, 2000, p.127 82 ante las câmaras, disimulan como pueden su impotência y prometen lo que saben que no tienen poder para hacer. (...) Las capacidades actoraes se agotan, crece la descontfianza de la opinión públicas hacia estos perfiles y toda la actividad política se desacredita (...), se transforma em pura comunicación sin contenido (...) La política criminal del Estado espectáculo no puede ser outra cosa que un espectáculo. No mesmo sentido, sentencia CAMPILONGO, “grande parte dos problemas de “judiciarização da política” e de 'politização do direito” decorre da falta de percepção dessa diferenciação funcional, sem a qual, por exemplo, o sistema político sobrecarrega o sistema jurídico e, com isso, aumenta a liberdade e a discricionariedade do juiz diante da lei."*º A evidente tendência do processo de diferenciação funcional do Direito, que se processa simultaneamente às mudanças no quadro legislativo, político e econômico, é a crescente orientação da dogmática jurídica e da atividade judicial para as consequências das decisões. Contudo, um sistema jurídico voltado para o futuro, um Direito de “consequência” pressupõe sua ampla abertura ao ambiente e uma suposta coerência nas relações inter-sistêmicas, “ensejando, pois, a desfiguração do próprio sistema jurídico que não mais reconhece seus limites internos nem as condições auto-referenciais dos demais sistemas”. Esse quadro - repita-se - passa a exigir recursos cognitivos excessivos e inatingíveis, como ocorre no atual tema da “Teoria das Penas. O Direito Penal que, por si só, não basta para diminuir a criminalidade (futuro incerto) e que, por si só, não consegue reeducar os condenados (futuro incerto, agravado pela contingência e complexidade sociais), acaba gerando frustrações que ativam a produção de legislações esdrúxulas ou formatam Magistrados políticos”, “economistas” e “sociólogos. E como, então, fugir da pretensão de buscar no Direito um guia de comportamentos? A questão, segundo LUHMANN, não é se o Direito pode assumir a função de guia de comportamentos, mas como ele pode se adequar ao fato de que estas novas demandas e funções a ele alçadas devem ser desenvolvidas em medida crescente em outro sistema ou âmbito da sociedade.& 62 ZAFFARONI, La Globalización..., p. 24 63 CAMPILONGO, Política. 89 64 1d. 65 LUHMANN, La Differenziazione..., p. 81-101 83 CAMPILONGO sintetiza a função restrita apresentada por LUHMANN, aduzindo que “sua tarefa é a de garantir e manter expectativas quanto aos interesses tutelados pelo direito e oferecer respostas, claras e justificadas, no caso de conflito. Daí a definição luhmanniana de direito como "generalização congruente de expectativas normativas'. Com base em expectativas normativas estabilizadas, os programas do sistema jurídico implementam o valor do código do direito (lítico/ilícito)”.* É este o ponto de apoio em que se baseou JAKOBS para reescrever a sua “Teoria do Delito' que, como se verá, está intimamente ligada à finalidade preventivo- integradora da sanção penal. Segundo ele próprio, “... o Direito da atualidade não garante tanto conteúdos fixos, mas, ao contrário, condições de funcionamento de uma sociedade pluralista.” 66 CAMPILONGO, Política. 78-19 67 JAKOBS, Giinther. Ciência do Direito e Ciência do Direito Penal. São Paulo: Manole. Coleção Estudos de Direito Penal, v. 1., Trad. Maurício Antonio Ribeiro Lopes, 2003, p. 27 84
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