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Guias e Dicas
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Manual Economia - Diplomata, Manuais, Projetos, Pesquisas de Economia

Manual do IRBR para candidato ao concurso de diplomata - matéria economia

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

Antes de 2010

Compartilhado em 14/08/2009

emerson-silva-25
emerson-silva-25 🇧🇷

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Baixe Manual Economia - Diplomata e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Economia, somente na Docsity! NOÇÕES DE ECONOMIA MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES Ministro de Estado Embaixador Celso Amorim Secretário-Geral Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães FUNDAÇÃO ALEXANDRE DE GUSMÃO Presidente Embaixador Jeronimo Moscardo INSTITUTO RIO BRANCO (IRBr) Diretor Embaixador Fernando Guimarães Reis A Fundação Alexandre de Gusmão, instituída em 1971, é uma fundação pública vinculada ao Ministério das Relações Exteriores e tem a finalidade de levar à sociedade civil informações sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomática brasileira. Sua missão é promover a sensibilização da opinião pública nacional para os temas de relações internacionais e para a política externa brasileira. Ministério das Relações Exteriores Esplanada dos Ministérios, Bloco H Anexo II, Térreo, Sala 1 70170-900 Brasília, DF Telefones: (61) 3411 6033/6034/6847 Fax: (61) 3411 9125 Site: www.funag.gov.br Apresentação ......................................................................................................................................................... 9 PARTE I: TEORIA ECONÔMICA ....................................................................................................................... 13 I.1 FUNDAMENTOS DE ECONOMIA ............................................................................................................................. 15 1. A Ciência Econômica: seu(s) objeto(s), método(s) e paradigmas ............................................................... 15 1.1 Introdução ......................................................................................................................................... 15 1.2 Do Consenso à Polêmica ................................................................................................................... 18 1.3 O Neoclassicismo (ou: o cartesianismo em Economia) ...................................................................... 21 1.4 O Estruturalismo (ou o kantismo em Economia) ................................................................................ 24 1.5. O Institucionalismo Histórico (ou: o hegelianismo em Economia) ................................................... 27 1.6 Conclusão: existe uma ciência econômica? ....................................................................................... 33 Apêndice ao Capítulo 1: A Revolução da Teoria dos Jogos e a Consolidação da Ciência Econômica ........................................................................................................................... 37 2. Estrutura e Desenvolvimento do Sistema Mercantil Capitalista ................................................................. 49 2.1 Introdução ......................................................................................................................................... 49 2.2 Características Gerais das Economias Mercantis .............................................................................. 50 2.3 Capitalismo, Assalariamento e Luta de Classes ................................................................................ 53 2.4 Crise, Ciclo e Tendência: uma introdução à dinâmica econômica capitalista .................................... 58 2.5 Conclusão .......................................................................................................................................... 67 3. Os Indicadores de Produto, Atividade e Bem-Estar Econômicos e suas Limitações .................................. 69 3.1 Introdução ......................................................................................................................................... 69 3.2 Produção, Produto Bruto e Produto Líquido ..................................................................................... 70 3.3 Produto e Renda ................................................................................................................................ 77 3.4 Uma Avaliação de Indicadores Selecionados de Atividade e Bem-Estar Econômicos ...................... 81 3.4.1. PIB e Renda ......................................................................................................................... 81 3.4.2 PIB e Renda per capita ........................................................................................................ 82 3.4.3 Taxa de Crescimento do PIB e da Renda ............................................................................. 83 3.4.4 Taxas de Emprego e Desemprego ......................................................................................... 83 3.4.5 Variação da Taxa de Desemprego ....................................................................................... 85 3.4.6 Índice de Desenvolvimento Humano ................................................................................... 86 3.5 Conclusão .......................................................................................................................................... 87 I.2 MICROECONOMIA ............................................................................................................................................... 89 4. Introdução à Microeconomia: Princípios Gerais da Determinação dos Preços .......................................... 89 4.1 Introdução: o objeto da Microeconomia ........................................................................................... 89 4.2 A Função Demanda e a Teoria do Consumidor ................................................................................. 90 SUMÁRIO 4.3 As Demais Variáveis Independentes da Função Demanda ............................................................... 96 4.3.1 A Relação Funcional entre Renda e Demanda do Consumidor ........................................ 96 4.3.2 Bens Substitutos e Complementares .................................................................................... 98 4.4 O Equilíbrio de Mercado e a Determinação de Preços: uma primeira aproximação ........................... 99 4.5 A Elasticidade-Preço da Demanda ................................................................................................... 102 5. A Função Oferta e o Equilíbrio da Firma em Concorrência Perfeita ........................................................... 105 5.1 Introdução: a complexidade imanente à função oferta .................................................................... 105 5.2 Determinação do Equilíbrio em Mercados Agrícolas (Concorrência Perfeita) ................................ 109 5.3 Algumas Derivações da Teoria do Equilíbrio da Firma em Concorrência Perfeita ........................... 116 6. Formação de Preços em Concorrência Imperfeita ..................................................................................... 119 6.1 Introdução ....................................................................................................................................... 119 6.2 A Vertente Cambridgeana ................................................................................................................ 123 6.2.1 Os fundamentos teórico-históricos da Vertente Cambridgeana ....................................... 123 6.2.2 A Precificação em Concorrência Imperfeita segundo a Vertente Cambrigeana ............. 128 6.2.3 A Curva de Oferta em Concorrência Imperfeita e a contribuição de Kalecki .................. 136 6.3. A Vertente Oxfordiana ..................................................................................................................... 146 6.3.1. O Princípio do Custo Total e os Fundamentos Empiristas da Vertente Oxfordiana ...... 146 6.3.2 A Curva de Demanda Quebrada ........................................................................................ 149 6.3.3 Barreiras à Entrada e Preço-Limite ................................................................................... 156 6.4 Conclusão: Para além de Canbridge e Oxford .................................................................................. 159 6.4.1 Os fundamentos da Contraposição “Cambridge x Oxford” ............................................. 159 Apêndice ao Capítulo 6 - Elasticidade, Concorrência Imperfeita e Precificação por “Mark-up”: uma leitura Cambridgeo-Kaleckiana ............................................................................ 163 7. Estrutura, Padrões de Precificação e Desenvolvimento dos Mercados de Estoques, Títulos e Ações ... 167 7.1 Introdução ....................................................................................................................................... 167 7.2 O Mercado de Títulos e Ações: uma visão geral ............................................................................. 169 7.3 O Modelo Neoclássico de Precificação de Ativos .......................................................................... 173 7.3.1 O Modelo Neoclássico Simplificado e a Centralidade da Taxa de Juros ....................... 173 7.3.2 Conhecimento Perfeito e Taxa de Juros de Longo Prazo ................................................. 178 7.4 Uma abordagem estruturalista da precificação no mercado de títulos: Keynes, Soros e as expectativas auto-confirmantes ............................................................................................... 180 7.5 Uma Análise Institucionalista-histórica: o papel do sistema financeiro na regulação da especulação bursátil .................................................................................................................... 190 I.3 MACROECONOMIA ............................................................................................................................................ 199 8. Teoria de Determinação da Renda ............................................................................................................. 199 8.1 Introdução ....................................................................................................................................... 199 8.2 Medidas da Atividade Econômica: retomando os conceitos básicos ............................................. 202 8.3 Flutuações da Renda no Curto Prazo e o Princípio da Demanda Efetiva ........................................ 211 8.3.1 Os Determinantes dos Gastos em Consumo ....................................................................... 213 8.3.2 Os Determinantes dos Gastos em Investimento ................................................................. 215 8.3.3 O Multiplicador da Renda em um Modelo Macroeconômico Simplificado ..................... 219 8.4 O Papel da Política Econômica na Determinação da Renda ............................................................ 220 8.5. A Determinação da Renda no Longo Prazo: crescimento versus desenvolvimento ...................... 225 8.5.1 A Emergência do Desenvolvimento Econômico como uma Área de Estudo .................... 228 8.5.2 Estado e Desenvolvimento .................................................................................................. 231 9. Moeda, Sistema Financeiro e Taxa de Juros .............................................................................................. 235 9.1 Introdução ....................................................................................................................................... 235 9.2 Moeda: origens e funções ............................................................................................................... 236 9.3 Sistemas de Garantia e Conversibilidade das Moedas .................................................................... 241 9.4 Oferta e Demanda de Moeda ........................................................................................................... 244 9.5 O Sistema Financeiro e a Determinação da Taxa de Juros de Curto Prazo ...................................... 250 9.5.1 Considerações Conceituais e Teóricas ............................................................................. 250 9.5.2 A Formação das Taxas de Juros de Curto Prazo .............................................................. 250 Apêndice ao Capítulo 9 – O Multiplicador Bancário ................................................................................ 257 10. Balanço de Pagamentos: a análise das contas externas em economias abertas ..................................... 261 10.1 Introdução ..................................................................................................................................... 261 10.2 A Estrutura do Balanço de Pagamentos ........................................................................................ 261 10.3 Os Resultados em Conta Corrente e o Ajuste do Balanço de Pagamentos .................................. 266 10.3.1 A Ótica do Endividamento ............................................................................................... 267 10.3.2 A Abordagem da Absorção e a Diferença entre PIB e PNB ............................................ 269 10.3.3 Abordagem da Poupança e do Investimento .................................................................. 271 10.3.4 O Ajustamento do Balanço de Pagamentos ..................................................................... 273 11. Comércio Internacional e Investimento Direto Estrangeiro .................................................................... 279 11.1 Introdução ..................................................................................................................................... 279 11.2 Teorias do Comércio e o Papel das Políticas Comerciais ............................................................... 281 11.2.1 Teorias Clássicas do Comércio Internacional ................................................................ 282 11.2.2 Teorias Neoclássicas do Comércio Internacional .......................................................... 287 11.2.3 As Novas Teorias do Comércio Internacional ................................................................. 289 11.2.4 Até Onde Divergem os Modelos de Comércio? ................................................................ 289 11.3 Teorias do Investimento Direto Estrangeiro .................................................................................. 290 11.3.1 Determinantes do Investimento Direto Estrangeiro ....................................................... 290 11.3.2 Efeitos do Investimento Direto Estrangeiro ..................................................................... 293 11.4 Possibilidades e Limites da Atuação do Estado ............................................................................ 297 Apêndice ao Capítulo 11 – Aprofundando a Análise das Vantagens Comparativas ................................ 301 12. Determinação da Taxa de Câmbio ............................................................................................................ 309 12.1 Introdução ..................................................................................................................................... 309 12.2 Pagamentos Internacionais e Conversibilidade das Moedas ........................................................ 311 12.3 Mercado Cambial e Tipos de Taxa de Câmbio ............................................................................... 313 12.3.1 O Mercado Cambial ......................................................................................................... 313 12.3.2 Tipos de Taxas de Câmbio ................................................................................................. 315 12.4 Os Regimes Cambiais e Impactos Domésticos das Variações nas Taxas de Câmbio .................... 317 12.4.1 Regime de Câmbio Flexível (Flutuante ou “Livre”) ....................................................... 317 10 De outro lado, não é possível pretender que um livro que se quer introdutório e instrumental de Economia esmiúce os aparentemente intermináveis debates internos a esta ciência e abdique de tomar uma posição acerca da melhor resposta ao conjunto de questões com as quais se depara. A relevância e a complexidade das questões postas pelo caráter polêmico e pluri- paradigmático da Economia são tamanhas, que dedicamos todo o primeiro capítulo do livro ao mesmo. Contudo, já cabe antecipar a tese central que abraçamos e a forma como ela se desdobra numa estratégia particular de exposição. Do nosso ponto de vista, a Economia é uma ciência muito menos controversa do que vulgarmente se pensa (inclusive entre Economistas). A dificuldade em se ver a unidade subjacente à diversidade se encontra no fato de que muitos modelos e teorias pretendem ter uma generalidade que, de fato, não têm1. Ora, não podemos apresentar aqui os argumentos necessários à compreensão e validação das assertivas acima. Para tanto, buscamos, particularmente no capítulo 1, mostrar as origens dos diferentes paradigmas, ressaltando suas diferenças, mas, simultaneamente, procurando identificar a relevância dos distintos planos de análise. Isto traduz o nosso compromisso com a instrumentalidade deste manual e com a consistência e aderência empírica dos modelos aqui apresentados2. Acreditamos que nenhuma construção teórica das principais escolas de Economia que tenha conquistado consenso entre seus adeptos pode ser uma construção “puramente ideológica”, sem qualquer consistência lógica ou aderência empírica. Na realidade – insistimos no ponto – a dimensão ideológica de algumas destas construções não se encontra nelas mesmas, mas na pretensão de que elas sejam pertinentes a um leque de questões muito mais amplo do que, de fato, podem abarcar. Antes de concluir esta Apresentação, cabe fazer ainda três pontuações. A primeira diz respeito à seleção dos modelos apresentados aqui. A literatura econômica é abundante, e se se fosse fazer justiça a todos os modelos canônicos de precificação e de dinâmica econômica não teríamos um manual introdutório, mas um compêndio3. Nossa opção foi a de apresentar aqui exclusivamente 1 Este é o caso, por exemplo, daquele que, para muitos, é o primeiro e mais universal princípio da Economia: a manifestação de rendimentos decrescentes quando se incorporam novos fatores de produção (mão-de-obra, sementes, etc.) variáveis a um processo produtivo em que um determinado fator (terra, por exemplo) é mantido fixo. Na quase totalidade dos manuais de Microeconomia, esta lei é apresentada a partir de um exemplo de produção agrícola, onde a terra é o fator fixo e, normalmente, o trabalho é o fator variável. Esta recorrência não tem nada de casual. Ela simplesmente explicita o fato (intuído por todos, sabido por muitos, mas muito raramente reconhecido) de que a lei dos rendimentos decrescentes só tem plena vigência na agropecuária. Assim como todas as suas derivações canônicas; dentre as quais se sobressai o formato tradicional da função oferta (positivamente inclinada e simétrica à função demanda). Voltaremos a este ponto no capítulo quinto (dedicado ao equilíbrio da firma e à função oferta em concorrência perfeita), e sexto (dedicado à formação de preços nos mercados de concorrência imperfeita). 2 O que é o mesmo que dizer que nos recusamos ao formalismo (dominante entre economistas da tradição neoclássica) daqueles que privilegiam a consistência matemática de um sistema em detrimento de sua aderência à realidade e de seu potencial explicativo e preditivo. Para uma excelente crítica do formalismo em Economia, veja-se o trabalho clássico de Ward (1975). 3 É a ambição em dar conta de praticamente toda a literatura consolidada que determina que tantos manuais de Introdução à Economia sejam tão grandes e maçantes que se tornam um convite à não-leitura. Nós simplesmente abrimos mão desta ambição. Não queremos oferecer tudo, mas tão somente o que nos parece realmente essencial. 11 aqueles modelos que nos parecem particularmente úteis; seja porque (do nosso ponto de vista) eles são os que melhor explicam o comportamento dos mercados e da economia; seja porque eles são amplamente disseminados na literatura, e desconhecê-los implicaria em estar impossibilitado de dialogar/ discutir com interlocutores potenciais. O que nos conduz à segunda pontuação anunciada acima: a estrutura dos Anexos. Ao contrário do usual em manuais mais ambiciosos, não deslocamos para os Anexos os temas menos relevantes ou os demasiado complexos para o leitor iniciante, mas aqueles que exigem mais tempo dos leitores para sua compreensão efetiva. Por fim, um esclarecimento a respeito da estrutura do livro. A despeito de nossa pretensão de inovar na apresentação dos temas, optamos por manter a classificação e divisão tradicional da Economia. Assim, a Primeira Parte do livro – dedicada à Teoria Econômica – se subdivide em três seções, que intitulamos “Fundamentos de Economia”, “Microeconomia” e “Macroeconomia”; enquanto a Segunda Parte – dedicada à Economia Brasileira – se subdivide em “Formação Econômica do Brasil” e “Economia Brasileira Contemporânea”. Com isto procuramos, simultaneamente, facilitar a utilização do manual e sua comparação com outros livros-textos por parte dos leitores, e aproveitar os diferenciais de formação e especialização dos dois autores. Ao Prof. Dr. Carlos Aguedo Paiva, coube a redação dos capítulos 1 a 7 e 14 a 16; enquanto ao Prof. Dr. André Moreira Cunha coube a redação dos capítulo 8 a 13 e 17. Para além da divisão de trabalho na redação final, contudo, cada capítulo foi objeto de leitura e discussão exaustiva pelos dois autores, de forma que o livro como um todo é um produto de ambos. Este livro não teria sido possível sem o apoio e compreensão – para com os prazos que se iam esgotando – da Fundação Alexandre de Gusmão. Da mesma forma, sua realização é fruto de anos de dedicação ao ensino e à pesquisa por parte dos seus autores o que, evidentemente, implica na existência de uma dívida de gratidão para com os mestres, colegas e alunos com quem tivemos a oportunidade de interagir e aprender. Mesmo sabendo que qualquer lista acaba por cometer injustiças aos que eventualmente não foram nominados, gostaríamos de destacar nossa gratidão para com os(as) amigos(as) que estiveram mais ligados a este projeto. Da parte de Carlos Paiva não podem ser esquecidos Salvatore Santagada, Pedro Almeida, José Alonso, Raul Bastos, Fernando Dias, Gilmar Hermes, Leo Maltchik, Gisele Ferreira, Rodrigo Araújo, Jonas Carlos, os alunos do Curso do Diplomata e a Direção da FEE, pelo apoio recebido. André Cunha agradece a Paulo Vizentini, Pedro Fonseca, Fernando Ferrari Filho, Gentil Corazza, Carlos Horn, Ricardo Dathein, Daniela Prates, Julimar da Silva Bichara, Marianne Wiesebron, Andrés Ferrari e Marcos Lélis. Por fim, gostaríamos de dedicar este livro aos que nos são mais caros e de quem roubamos um tempo precioso de convívio para que chegássemos até aqui. Para Caio, Samuel e Isadora. Para Leila e João Pedro. 15 I.1 FUNDAMENTOS DE ECONOMIA Capítulo 1 – A Ciência Econômica: seu(s) objeto(s), método(s) e paradigmas O verdadeiro e o falso pertencem aos pensamentos determinados que, privados de movimento, valem como essências próprias que permanecem cada uma no seu lugar, isoladas e fixas, sem se comunicar uma com a outra. ... Assim como não há um mal, assim também não há um falso. G.W.F. Hegel, A fenomenologia do espírito 1.1 INTRODUÇÃO Pelo menos nove entre dez textos de Introdução à Economia iniciam pela apresentação do objeto e do método desta Ciência. E oito entre dez os apresentam como se não houvesse qualquer polêmica acerca da caracterização destes temas. Via de regra, o objeto da Economia é apresentado da seguinte forma: A Economia estuda o comportamento de agentes racionais na alocação de recursos escassos entre fins alternativos. Ou, de forma mais clara e detalhada: A Economia estuda a alocação de recursos escassos (dinheiro, capacidade de trabalho, energia, etc.) entre fins alternativos (lazer, segurança, sucesso, etc.) por parte dos proprietários de recursos que buscam obter o máximo benefício por unidade de dispêndio. O termo-chave desta definição do objeto da Economia é agente racional. Ele está no centro da primeira versão da definição acima. Mas ele só não está explicitado na segunda versão porque aí ele é desdobrado e explicado: é racional o agente que busca obter o máximo benefício por unidade de dispêndio de seus recursos escassos. Vale dizer: racionalização e maximização de benefício por unidade de dispêndio são sinônimos. O comportamento do homem racional- maximizador é, em síntese, o objeto econômico. 16 Ora, esta é uma caracterização bastante útil do objeto da Economia, e não é gratuito que tenha se universalizado. Contudo, ela tem que ser adequadamente interpretada e relativizada. Desde logo, ninguém age o tempo todo de forma racional. Inúmeras vezes, agimos por impulso, sem medir as conseqüências de nossos atos. Outras tantas vezes, agimos por mero hábito, por condicionamento social, porque “é assim que sempre se fez”. E, normalmente, mesmo quando procuramos ser racionais, não deixamos de ser influenciados pela cultura e por nossas pulsões (tantas vezes, inconscientes) avessas à racionalização. Vale dizer: não agimos, normalmente, como puros agentes maximizadores. De forma que o “homem econômico racional” tem que ser tomado como uma construção ideal, e não como uma representação realista da ação humana. O que não significa – insistamos – que esta representação seja inútil. Pelo contrário: é ela que dá as bases mais gerais do Método da Economia. Senão vejamos. Na medida em que é uma Ciência Humana e Social, a Economia não é apenas uma Ciência com um objeto particularmente complexo, multifacetado e dinâmico. É, também, uma Ciência à qual estão fechadas as possibilidades de experimentos laboratoriais. Mesmo quando distintos gestores públicos ou privados replicam políticas econômicas essencialmente iguais, não se pode pretender que se esteja refazendo uma experiência em condições equivalentes. À diferença da replicagem laboratorial – onde todas as condições relevantes são postas sob controle – a replicagem de políticas econômicas se faz em tempos distintos – sob outras condições políticas, tecnológicas, competitivas, de integração internacional, etc. – e/ou em mercados e/ou territórios e/ou nações distintos – com histórias, valores, padrões organizacionais, etc. distintos. De forma que resultados heterogêneos para políticas homogêneas sempre podem ser explicados pelas circunstâncias distintas dentro das quais aquelas políticas foram aplicadas. Escapar desta limitação estrutural envolve a construção de um referencial analítico estável, que independa de determinações facilmente mutáveis e alheias ao campo da Economia. Uma referência que é conquistada pela construção ideal de modelos baseados na hipótese restritiva de que os agentes econômicos são estritamente racionais-maximizadores, vale dizer, são “homens econômico-racionais”. Os modelos econômicos são uma espécie de construção ficcional. Só que, ao contrário da ficção literária, os economistas extraem de seus personagens suas características “demasiado humanas”: suas paixões e pulsões irracionais, suas ambivalências e contradições, seus valores e padrões comportamentais condicionados culturalmente e carentes de qualquer universalidade. O que não implica a subtração de toda e qualquer diferença. Ficam as diferenças de propriedade 17 – os agentes racionais são ricos, pobres, empresários, trabalhadores, banqueiros, rentistas, latifundiários, camponeses, sem-terra, etc. – e de interesses – alguns privilegiam a tranqüilidade, outros a acumulação, outros o lazer e o prazer imediato, outros o sucesso público, outros a segurança, etc. E, com estas diferenças de propriedade e de interesses – que, a princípio, devem reproduzir de forma simplificada as diferenças objetivamente observadas em economias concretas –, constroem-se ficções bem comportadas, onde agentes estritamente racionais-maximizadores, partindo dos recursos de que dispõem, interagem com outros agentes igualmente racionais- maximizadores, buscando extrair das circunstâncias dadas o máximo de benefício por unidade de dispêndio. Estas construções dedutivo-ficcionais, estes “modelos”, não devem ser, porém, o produto último da Ciência Econômica. Eles apenas nos informam como o mundo seria se os homens se comportassem de forma inteiramente racional. Mas, já sabemos, os homens reais não são integralmente racionais. O que nos impede de tomar os modelos como instrumentos de predição e projeção de tendências. Antes de fazê-lo é preciso introduzir nos mesmos aquelas determinações não-especificamente-racionais que foram (por assim dizer) subtraídas no momento de sua construção ideal. Uma operação que se faz através da confrontação dos resultados preditos pelos modelos com os resultados empiricamente observados em situações reais similares. As distorções sistemáticas entre os resultados preditos e os resultados empiricamente observados nos fornecem as pistas para impor ajustamentos e desenvolvimentos ao modelo original em direção a sistemas teóricos mais realistas e de capacidade preditiva superior4. Assim, o Método da Economia pode ser apresentado a partir de seus quatro momentos fundamentais: 1) Observação e sistematização da estrutura fundamental de um dado sistema econômico; 2) Construção dedutiva de um modelo de reprodução econômica com agentes estritamente racionais; 3) Confronto das predições do modelo original com a dinâmica concreta do sistema econômico sob observação; 4) Crítica e desenvolvimento indutivo do modelo original. Ou, se se preferir uma versão sintética articulada discursivamente, podemos caracterizar o Método da Economia como segue: 4 Voltaremos a este ponto (mais complexo e polêmico do que poderia parecer) logo adiante. 20 Ciência Econômica. Cada um destes três paradigmas se estrutura sobre uma referência filosófico- metodológica específica: o cartesianismo, o kantismo e o hegelianismo. É a partir destas referências filosófico-metodológicas distintas – e seguindo a ordem cronológica de emergências das mesmas, iniciando por Descartes (1596-1650), passando a Kant (1724-1804), e finalizando com Hegel (1770-1831) – que vamos apresentar as três alternativas de resposta às questões expostas no parágrafo anterior. Vale observar que nossa opção por apresentar os três paradigmas tradicionais da Ciência Econômica na ordem cronológica de suas referências filosófico-metodológicas envolve subverter a forma tradicional em que os mesmos são apresentados: a ordem cronológica da consolidação dos mesmos. Esta subversão não é gratuita. Como procuramos demonstrar em outro trabalho5, os três paradigmas são tão antigos quanto a Ciência Econômica, emergindo quase simultaneamente na segunda metade do século XVIII6. A partir dos anos 70 do século XIX, contudo, o paradigma cartesiano, vai conquistar uma hegemonia, que – malgrado períodos excepcionais7 –, persiste inconteste até os dias de hoje. Ora, esta conquista tardia da hegemonia pelos cartesianos é usualmente confundida, nas versões tradicionais da História do Pensamento Econômico (HPE), com a emergência tardia deste paradigma. Subliminarmente, a idéia que se procura passar é que o pensamento econômico evoluiu, desde o simples e ideológico – que caracterizaria o pensamento de economistas de inflexão kantiana (como David Ricardo, 1772-1823), ou hegeliana (como Karl Marx – 1818-1883) –, até o complexo e científico – que caracterizaria o pensamento de economistas de inflexão cartesiana (como León Walras- 1834-1910)8. O que torna este raciocínio mais perigoso é que ele comporta alguma verdade. Não pode restar qualquer dúvida de que a Ciência Econômica evoluiu muito. Sabemos muito mais hoje do que sabíamos nos séculos XVIII e XIX, e qualquer proposta de recuperação dos toscos instrumentais 5 Vide Paiva (2007); em especial, as duas primeiras seções do Capítulo V. 6 Isto envolve pretender que o kantismo e o hegelianismo tenham emergido na Ciência Econômica antes mesmo de Kant e Hegel produzirem e/ou consolidarem seus sistemas filosóficos. Com o perdão da contradição, é exatamente este o nosso ponto de vista. E isto não só porque para se ser cartesiano, kantiano ou hegeliano não é preciso haver-se lido qualquer um destes autores. Na esteira de Hegel, acreditamos que “a coruja de Minerva só alça vôo ao entardecer”. Vale dizer: os sistemas filosóficos se seguem aos desenvolvimentos das ciências e da cultura em geral, sistematizando-os ex post festum e apenas subsidiária e topicamente influenciando o desenvolvimento destas duas últimas esferas do saber. 7 Como o breve período entre as duas Grandes Guerras, em que a crise mundial abalou a confiança em todos os dogmas e ampliou audiência de leituras heterodoxas, como as propostas por Keynes, Kalecki, Harrod, Schumpeter, Sweezy, Steindl, entre tantos outros. 8 Esta oposição entre antigos e modernos se consolida pelo uso frouxo e sub-determinado, corrente nos atuais livros-texto de HPE, da categoria “Economia Clássica”. Marx denominava “clássicos” (em contraposição aos “vulgares”) àqueles economistas de inflexão metodológica kantiana ou hegeliana que lhe antecederam e o influenciaram. Hoje em dia, contudo, tornou-se usual caracterizar como “clássicos” a todos os economistas que produziram no intervalo que medeia a crise do Mercantilismo e a consolidação da hegemonia, Say, Ricardo, Senior, Marx ou Stuart Mill, a despeito das profundas diferenças teóricas e metodológicas que caracterizam suas cartesiana na Ciência Econômica. Assim, são incorporados em uma mesma categoria autores como Quesnay, Smith, Bentham, Malthus obras. Com vistas a evitar confusão, não utilizaremos a categoria “clássico” neste capítulo, nem no sentido de Marx, nem no sentido usual nos livros de HPE. O termo “clássico” ou “escola clássica” eventualmente aparecerá nos próximos capítulos nos termos usualmente tratados nos manuais de economia. 21 analíticos dos primeiros economistas em detrimento dos instrumentais analíticos modernos só pode ser vista como uma manifestação de ignorância e primitivismo intelectual. Contudo – e este é o ponto crucial – este desenvolvimento teórico-analítico não se deu em função da hegemonia cartesiana, mas, num certo sentido, a despeito dela. Para que se entenda esta assertiva, as três próximas seções deste capítulo inicial vão se voltar à apresentação dos alicerces mais gerais sobre os quais se erguem os três grandes paradigmas da Ciência Econômica. Antes, porém, parece-nos necessário prevenir o leitor para as dificuldades do percurso que se inicia. Apresentar os fundamentos das polêmicas que dividem os economistas, contrapondo-os em três grandes grupos, antes mesmo de havermos apresentado o instrumental analítico consensuado entre nós, tem um quê de “carroça na frente dos bois”. Em nossa defesa, só podemos dizer que não há uma única porta para o ingresso na Economia, como não há para o ingresso em qualquer ciência. Para o leitor que já teve algum contato com polêmicas de ordem metodológica, a porta que agora abrimos será, muito provavelmente, a que vai lhe permitir seguir o percurso do livro com o máximo de segurança e tranquilidade. Para outros, talvez seja melhor ir direto para o capítulo segundo, e só retornar a esta discussão quando as repetidas referências às nossas polêmicas internas despertarem o desejo de compreender seus fundamentos primeiros. Qualquer que seja a opção, contudo, uma coisa deve ficar clara: as idéias apresentadas aqui buscam preparar o leitor para a longa caminhada que se inicia. Mas elas só poderão ser plenamente assimiladas quando tivermos atingido o ponto de chegada. 1.3 O NEOCLASSICISMO (OU: O CARTESIANISMO EM ECONOMIA) O cartesianismo é um racionalismo extremado. Para Descartes, não se pode tomar como verdade nada que não seja, rigorosa e indubitavelmente, racional. Mais do que isto: a existência efetiva (por oposição à aparência de existência, ilusória e falsa) é função da racionalidade. Só o que é racional é real. A máxima que empresta merecida fama ao grande filósofo francês – Penso (raciocino, duvido, critico, analiso), logo (por conseqüência, então, só assim) existo (sou efetivo, sou real) – já afirma esta prevalência do racional sobre o real. Mas ela ganha uma dimensão rigorosamente geral na filosofia de Descartes, que se estrutura sobre a fé metafísica no caráter ordenado do mundo. Para Descartes, a desordem, o desequilíbrio, o caos, só podem ser aparenciais. Eles não são atributos das coisas mesmas: são impressões que atribuímos às coisas em função das limitações de nossos sentidos e de nosso intelecto. Mas se nossos sentidos e intelecto podem nos enganar, se forem bem treinados e regrados, eles também podem nos conduzir à descoberta de relações lógicas e necessárias (vale dizer: verdadeiras) entre as coisas. É o que se demonstra diuturnamente na Ciência mais desenvolvida de todas, a Matemática (para a qual Descartes deu tantas contribuições), e cujo padrão analítico deve servir de 22 referência metodológica para todas as demais. Em particular, Descartes se propõe a seguir (e defende a validade universal) de quatro preceitos: “O primeiro era o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida. O segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las. O terceiro, o de conduzir por ordem os meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos e supondo mesmo uma ordem entre os que não se procedem naturalmente uns aos outros. E o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir. (Descartes, 1979, pp. 37/8). Estas regras – assim como toda a metafísica racionalista que as sustentam – são as regras metodológicas adotadas pelo Neoclassicismo. Para um economista neoclássico, a despeito do que possa parecer, o mundo é essencialmente ordenado e racional9. A função da Ciência Econômica é desvendar esta ordem, revelar como ela se impõe e se realiza independentemente da vontade e da consciência individual. Não é gratuito, assim, que a definição da Economia apresentada na abertura deste capítulo tenha sido proposta por economistas neoclássicos10 e só seja plenamente aceita – vale dizer, sem 9 Esta regra geral se impõe com diferenças sutis entre distintas correntes neoclássicas. Para um racionalista radical (os chamados novos-clássicos), o desequilíbrio é uma ilusão. Para os racionalistas menos rigorosos, contudo (como a maioria dos neoclássicos que admitem algum fundamento nos desenvolvimentos teóricos de Keynes), o desequilíbrio pode vigir momentaneamente, espasmodicamente, no curto prazo. No longo prazo, porém, na medida em que todas as forças do mercado se manifestam e se impõem, atinge-se, necessariamente, o equilíbrio. Voltaremos a estes tópicos nos capítulos sobre determinação da renda na seção “Macroeconomia”. 10 A identificação de Economia com uso parcimonioso, racional e maximizante de recursos, já aparece em Jean-Baptiste Say (1767-1832; 1983, p. 68) e vai dar a tônica das definições desta ciência oriundas daqueles economistas que – de acordo com a expressão em voga no século XIX – eram adeptos da “tradição francesa da Economia Política” (como Bastiat, Cournot, Auguste Walras, León Walras, etc.). A partir do último quartel desse mesmo século, contudo, todo um conjunto de desenvolvimentos e refinamentos analíticos da tradição francesa (vale dizer: da tradição cartesiana) vai contribuir para pôr em xeque a hegemonia das demais tradições (como o ricardianismo, o marxismo, a escola histórica, etc.) nos países de língua inglesa e alemã. Assim, e sob a influência de Menger (1840-1921), Böhm-Bawerk (1851-1914), Jevons (1835-1882) e, em particular, de Alfred Marshall (1842-1924), a antiga tradição francesa vai passar a ser conhecida como Escola Marginalista ou Escola Neoclássica. Não obstante suas raízes antigas e plurais, a definição da Ciência Econômica como a “ciência que estuda a alocação racional de recursos escassos entre fins alternativos” só vai emergir em 1932, em um trabalho de Lionel Robbins (1898-1984). Nos parece digno de nota - na medida em que revela quanto os economistas neoclássicos assumem o menosprezo cartesiano para com a realidade aparente - que o ano em que se consagra a definição da Economia como a ciência da administração racional da escassez de recursos corresponda ao ano em que a taxa de ociosidade (de redundância, de excesso) de recursos humanos e físicos tenha atingido o patamar mais elevado na Grande Depressão dos anos 30. 25 imperfeitos, sempre insuficientes, independentemente de sua consistência interna. Pior: é bastante possível que a máxima consistência interna não seja outra coisa do que a expressão da máxima racionalização perversora da verdadeira e legítima complexidade de um real incompreensível e inapropriável por nós. Como escapar deste imbróglio em que a ordem e a racionalização são, ao mesmo tempo, a condição da ciência e a possibilidade de ilusão? O caminho proposto por Kant será o da “Crítica da Razão”, através da qual este autor vai buscar determinar, tanto os limites estruturais e intransponíveis, quanto as potencialidades dinâmicas e criadoras deste instrumento humano de apropriação do mundo. Seus resultados serão tão ricos e complexos quanto inconclusivos. O que dará vazão a um amplo e díspare conjunto de seguidores e intérpretes, que buscarão contribuir para o desenvolvimento de suas reflexões originais nas mais distintas direções, a depender do privilegiamento que dão à dimensão negativa (como Schopenhauer, 1788-1860; Nietzsche, 1844-1900; e Deleuze, 1925-1995) ou da dimensão positiva (como Hegel; Marx; e Peirce, 1839-1914) da crítica kantiana da razão. Esta diversidade – e, no limite, oposição – entre linhas e tendências é inerente ao kantismo, e se manifesta em todas as áreas do conhecimento onde esta vertente filosófica tem expressão; inclusive na Economia. O que acaba determinando que, ao contrário dos “bem comportados” cartesianos que constituíram uma escola sólida, os kantianos se encontram em permanente conflito e disputa. Não obstante, é possível identificar um conjunto de autores que galvanizam a posição kantiana em Economia e que adotam padrões metodológicos marcadamente uniformes15. De Quesnay (1694- 1774) e Malthus (1766-1834) a Sraffa (1898-1983) e Leontief (1906-1999) uma longa e expressiva lista de autores poderia ser apresentada. Mas três personagens lideram, indubitavelmente, o campo kantiano em Economia, tendo sido responsáveis pela sistematização da metodologia estruturalista em nossa Ciência. São eles David Ricardo, Max Weber (1864-1920) e John Maynard Keynes (1883 – 1946)16. 15 Quer nos parecer que esta uniformidade se deva ao fato de que, por não serem eles mesmos filósofos (ou, pelo menos, por não haverem desenvolvido contribuições originais neste campo), eles não vão sequer tentar superar a ambivalência e equidistância kantiana vis-à-vis às dimensões positiva e negativa da crítica da razão. Vale lembrar, mais uma vez, que somos signatários do ponto de vista de que os grandes sistemas filosóficos (e, de forma particular, os problemas que eles buscam enfrentar) não são produto de uma única inteligência, mas são postos por uma época. Kant foi apenas o homem que deu expressão superior a um conjunto de questões e à uma certa solução para as mesmas que já se encontrava latente na reflexão dos maiores pensadores de sua época e de grande parte daqueles que lhe sucederam. 16 Não gratuitamente, estes três autores são as principais referências teóricas da Cepal – Comissão Econômica para a América Latina e Caribe – órgão da ONU que vai organizar e sistematizar a Escola Estruturalista no nosso sub-continente. Celso Furtado, Maria da Conceição Tavares e José Serra são alguns dos mais conhecidos economistas brasileiros filhados a esta escola do pensamento. Vale observar ainda que em nenhuma outra região do mundo (e em nenhuma outra literatura econômica) a expressão Escola Estruturalista é tão utilizada para caracterizar a tradição kantiana em Economia quanto na América Latina. Na Europa e nos Estados Unidos, as polêmicas internas que caracterizam a tradição kantiana (e a hegemonia neoclássica, que se beneficia da exposição dessas polêmicas) estimula os historiadores e teóricos do pensamento econômico a diferenciarem ricardianos, de weberianos, de keynesianos, etc. 26 O que caracteriza e aproxima as obras destes autores é, antes de mais nada, o padrão de construção do “modelo” original (aquele que deve ser objeto de crítica e re-determinação empírica). Ao contrário dos cartesianos, que constroem seus modelos utilizando-se quase que exclusivamente da dedução17, os kantianos entendem que é preciso partir da realidade empírica observada. Em particular, no caso das ciências sociais, onde a realidade é mutável: uma das principais derivações positivas da crítica kantiana da razão foi a demonstração de que ela não é apenas produtiva, mas desigualadora: a razão produz regras éticas e comportamentais que se impõem de forma diferenciada entre distintos grupos sociais, períodos históricos e territórios. Para os economistas, isto equivale a reconhecer que não é de grande utilidade partir de uma abstração como “o consumidor médio”, e que deveríamos partir de agentes mais determinados, como “o empresário industrial”, o “trabalhador”, o “camponês”, ou, até mesmo, “o operário inglês da primeira metade do século XIX”, “o banqueiro e financista norte-americano da segunda metade do mesmo século”, etc. Mas o fato de que devamos partir da “realidade” não significa que possamos fazê-lo. Basta ler o rol de agentes econômicos listados acima para que fique claro que a realidade só se apresenta para nós como uma construção mental. Como escapar deste imbróglio kantiano? Limitando os objetos- agentes a serem observados ao mínimo essencial e colocando o resultado deste processo de observação-construção imediatamente em teste. Que tipo de teste? O teste proposto no método da Economia apresentado na primeira seção deste capítulo: dados os fins e racionalidades18 observados- imputados aos agentes econômicos relevantes, constrói-se um modelo proto-ficcional em que estes últimos são postos em interação. Os desdobramentos lógico-teóricos extraídos deste modelo são confrontados com a dinâmica concreta do sistema que se busca representar. As discrepâncias entre o projetado e o efetivo devem servir para o refinamento e complexificação do modelo. Por fim, uma questão se impõe: se o método da Economia apresentado anteriormente é, de fato, o método adotado pelos signatários da tradição kantiana, qual o sentido da caracterização desta escola como “estruturalista”? O sentido se encontra nas peculiaridades da modelística da tradição kantiana. Uma “estrutura” é algo que não se define pelas suas partes, mas pelas relações que as 17 Afinal, o sistema cartesiano simplifica ao máximo o primeiro momento do método da Economia, referido à observação da realidade. Como todos os sistemas econômicos concretos são, por hipótese, expressão de um único sistema verdadeiro estritamente racional, e como é sempre possível dividir qualquer problema em tantas partes quantas forem necessárias para se definir uma questão passível de tratamento exaustivo e solução inquestionável não se faz necessária qualquer observação detalhada. Basta partir daquela parte mais simples e universal de qualquer sitema econômico - como, por exemplo, demandantes e ofertantes de um bem qualquer – e modelar a interação de agentes pressupondo-os plenamente racionais. 18 Racionalidades (no plural!) não mais necessariamente idênticas, uma vez que as inserções sociais dos distintos grupos de agentes, em distintos territórios e momentos históricos, circunscrevem e determinam o alcance daquelas. Para uma definição de racionalidade circunscrita e sua contraposição à racionalidade substantiva dos cartesianos, veja-se Simon, 1980. O reconhecimento de que, dadas a multiplicidade de objetivos (por vezes contraditórios) e as limitações e assimetrias de informação dos agentes, não existe um único padrão de racionalidade (a maximizante), mas múltiplos padrões, está no centro da tolerância (mais do que apoio) estruturalista para com a definição neoclássica de objeto da Economia enquanto “ciência do comportamento racional”. 27 partes estabelecem entre si, definindo um todo que é maior do que a mera soma dos componentes (como o diamante vis-à-vis os átomos de carbono). Ora, num certo sentido, todo o modelo econômico é uma estrutura, pois revela como a interação de agentes individuais racionais e essencialmente egoístas conduz a resultados que, de uma forma ou de outra, transcendem seus objetivos conscientes. Não obstante, assim como podemos identificar diferentes estruturas de átomos de carbono – p. ex.: o carvão, o grafite e o diamante – e reconhecer que a discrepância entre o todo e as partes é maximizada nesta última forma, também podemos hierarquizar os distintos modelos teóricos em Economia em função do “grau de discrepância” entre as partes e o todo. Neste caso, quanto mais simples e em menor número fossem as partes componentes do modelo, e quanto mais complexos e surpreendentes fossem os seus desdobramentos sistêmicos, tão mais estruturalistas eles seriam. É neste sentido que os modelos produzidos pelos economistas kantianos são “estruturalistas”. Ao admitirem que a realidade é cambiante e que a modelagem nunca corresponde à realidade, os kantianos se tornam extremamente parcimoniosos na introdução de variáveis. Qualquer complexificação inessencial envolve uma perda de pureza, clareza, e testabilidade. E só é essencial aquilo que, por estar em relação com as demais partes do modelo, afeta as demais partes e (re)determina os resultados de sua presença; vale dizer, para os kantianos, só é essencial e modelável o que é estruturante. Mas que se entenda bem: o “essencialismo parcimonioso” dos modelos estruturalistas não pode ser confundido com simplismo ou auto-circunscrição referencial. O reconhecimento de que a razão é (para além de limitada) plástica e mutável e que, por conseqüência, os sistemas sociais e econômicos são múltiplos e diferenciados, implica o reconhecimento de que a modelagem da “estrutura essencial” de cada sistema pressupõe uma pesquisa ampla e multi-referenciada de suas manifestações produtivas, culturais, políticas, etc. Por isto mesmo, usualmente, os economistas estruturalistas transitam com muito mais desenvoltura entre as demais Ciências Sociais e as chamadas “humanidades” que os cartesianos, enquanto estes últimos tendem a privilegiar e a apresentar um domínio muito superior de técnicas e instrumentos de modelagem lógica, matemática e estatística. 1.5. O INSTITUCIONALISMO HISTÓRICO (OU: O HEGELIANISMO EM ECONOMIA) Se já é estranha a pretensão de que, mesmo sem o saber, a maior parte dos economistas é cartesiana, e uma minoria expressiva é kantiana, ainda mais estranha deve ser a pretensão de que parcela não desprezível seja hegeliana. Afinal, enquanto Descartes e Kant são filósofos conhecidos e respeitados, Hegel não é apenas pouco conhecido: até mesmo pensadores renomados – como Bertrand Russel, 1872-1970 (Russel, 1982, p. 274 e segs.) – classificam as teses desse autor como incompreensíveis ou absurdas. 30 A questão é que não estão dadas as condições para que todos exercitem simultaneamente seus direitos à experiência científica. E, por isto mesmo, a responsabilidade de cada filósofo e de cada cientista é a de transcender o senso comum, interpretando o mundo em que vive, apontando alternativas de superação de suas contradições, de enfrentamento de seus problemas e de desenvolvimento racional. E deve fazê-lo apresentando claramente suas hipóteses, e correndo os riscos de vê-las negadas pelos fatos e pela lógica superior de antagonistas. É a consciência desta responsabilidade que autoriza Hegel a, por exemplo, saudar um invasor estrangeiro (Napoleão, cuja ocupação da cidade alemã de Iena foi observada pelo filósofo em 1806) como a “razão que anda a cavalo”. A mesma consciência de responsabilidade para com a sociedade que autoriza Smith a defender (simultânea e dialeticamente) o livre comércio e as políticas públicas de apoio às indústrias de interesse nacional; que autoriza Marx a conclamar os operários do mundo à união; e que autoriza Schumpeter a criticar as políticas de controle da concorrência e a defender as políticas públicas de apoio ao desenvolvimento científico-tecnológico e à inovação empresarial. Do ponto de vista destes autores, a expressão transparente das derivações normativas de suas leituras sobre a sociedade e a economia não os afasta da ciência, nem os torna autocratas: seria preciso adotar uma perspectiva ultra idealista e romântica para imputar a intelectuais – que não passam de indivíduos que realizam um trabalho especializado –, a responsabilidade sobre os rumos da História. E aqui, talvez, a diferença crucial entre hegelianos, kantianos e cartesianos. Para os últimos, o desenvolvimento histórico, ou é uma ilusão (pois todas as sociedades são essencialmente iguais), ou se encerra com a afirmação do espírito científico na modernidade e o abandono das utopias teológicas e metafísicas22. Da mesma forma, para os kantianos, ou o desenvolvimento histórico não existe (só existem estruturas sociais alternativas, que não podem ser hierarquizadas), ou ele traduz o desenvolvimento moral e intelectual dos indivíduos e da coletividade. Em suma: ou não há História, ou ela é um processo ético-intelectual. Para Hegel, a História existe e acompanha o desenvolvimento da razão. Mas a razão não é a fonte supra-histórica da História. Ela só se desenvolve na medida em que, respondendo a estímulos e demandas objetivamente postos, cria novos estímulos e demandas sobre si mesma. Marx traduziu esta leitura numa expressão: o homem é um toolmaking animal (Marx, 1980a, p. 204). Ele cria seus instrumentos (de caça, de produção, de abrigo, etc.) com vistas a ampliar seu domínio sobre a natureza e, consequentemente, seu bem-estar. Mas, na medida em que estes instrumentos vão sendo utilizados, reproduzidos e acumulados, eles põem novos problemas, 22 Esta é a perspectiva de Auguste Comte (1798-1857), pai do projeto cartesiano da Sociologia e do programa filosófico positivista. Sua influência sobre os líderes da revolução republicana no Brasil (e, de forma particular e perene, sobre os ideólogos das Forças Armadas) se faz notar ainda hoje pela presença do lema positivista – Ordem e Progresso – na bandeira nacional. Vale observar que o evolucionismo mecanicista e autoritário de Comte é, muitas vezes, confundido com o evolucionismo dialético de Hegel e Marx por críticos pouco rigorosos (quando não, por pretensos seguidores) destes últimos. 31 associados à diferenciação social, à constituição e regulação da propriedade sobre os mesmos, etc.. Estas novas questões solicitam a produção de instrumentos especificamente sociais, como regras, instituições, valores, etc. Estes, por sua vez, rebatem mais uma vez sobre as condições de vida; que redefinem as possibilidades de desenvolvimento das forças produtivas. E assim por diante. A centralidade ocupada pela questão do desenvolvimento das forças produtivas na tradição teórica hegeliana não pode, pois, ser subestimada. Não gratuitamente, os três maiores economistas desta escola – Smith, Marx e Schumpeter – são teóricos das condições de desenvolvimento das forças produtivas materiais. Mas é preciso não confundir o núcleo que organiza o tratamento que estes autores dão ao seu objeto com o próprio objeto. O que interessa a Smith, Marx e Schumpeter (bem como a seus seguidores, intérpretes e críticos hegelianos) não é o “progresso técnico”23, mas as determinações sociais, institucionais e culturais do desenvolvimento das forças produtivas, bem como suas consequências previsíveis nos planos da dinâmica econômica, da distribuição da renda e da propriedade, da consciência e da organização social, etc. Em última instância, o objeto da Economia para esses autores é a dinâmica de longo prazo dos sistemas econômicos concretos: suas determinações institucionais, sua evolução observada e projetada e seus desafios prováveis. A ambição totalizante de um tal objeto, surpreende, incomoda e é, usualmente, criticada pelos (sem dúvida, mais parcimoniosos) economistas cartesianos e kantianos. Mas o hegelianismo fornece o recurso que permite o enfrentamento do desafio que ele mesmo se impõe: a apropriação “crítica-superativa-desrespeitosa” de construções que, originalmente, não pertencem ao campo do institucionalismo histórico. Vale dizer: de uma perspectiva hegeliana (ou institucionalista-histórica), as construções cartesianas (ou neoclássicas) e as construções kantianas (ou estruturalistas) não são construções equivocadas, que devem ser enfrentadas e negadas. Elas são apenas insuficientes, limitadas. Mas, nem por isto, deixam de ser fontes de hipóteses, informações, insights, instrumentos analíticos e, last, but not least, de “teses” e “antíteses” que solicitam sínteses teóricas. A importância deste ponto (raramente compreendido, mesmo por economistas que se querem “dialéticos”) é suficientemente grande para merecer um tratamento específico, objeto do Anexo ao Capítulo Primeiro. Mas antes de passarmos às considerações finais, cabe uma última observação sobre a tradição “institucionalista histórica” no pensamento econômico. A grandiosidade do objeto, o direito auto-outorgado ao estabelecimento das mais diversas apropriações e sínteses de modelos teóricos antagônicos, o compromisso assumido com a identificação das tendências do sistema, a tolerância 23 Até porque, como bem o sabe qualquer leitor de Smith e/ou Marx e/ou Schumpeter, o desenvolvimento das forças produtivas – identificada, aqui, à ampliação da produtividade do trabalho – é irredutível ao “progresso técnico”. Alterações extremamente simples (e, via de regra, amplamente conhecidas) nos padrões de divisão do trabalho e organização da produção, nos padrões de concorrência e/ou de crédito e financiamento aos empreendimentos, nos padrões de organização comercial e distributiva, podem ser tão ou mais alavancadores da produtividade sistêmica que o (usualmente arriscado, complexo e custoso) “progresso técnico”. E os principais determinantes do cerceamento da adoção de padrões superiores de produtividade são as estruturas culturais, os padrões de organização de mercado, as políticas públicas inadequadas; em suma: as instituições. 32 para com toda a ordem de discursos normativos, tudo leva a que os hegelianos sejam – e, acima de tudo, pareçam - um grupo ainda mais heterogêneo que os kantianos. Esta heterogeneidade não impede que os maiores pensadores desta tradição percebam a unidade que lhe subjaz: Marx se orgulhava de ser discípulo de Smith, assim como Schumpeter, da grande influência de Marx. Mas a compreensão que os líderes têm de suas obras raramente é compartilhada por seus seguidores mais dogmáticos. Em frontal oposição ao método hegeliano, os discípulos dogmáticos se aprisionam às categorias e modelos analíticos deste ou daquele pensador, fechando-se às apropriações plurais, às superações dialéticas de teses “contrário-idênticas”, às sínteses teóricas. E, com a dogmatização e engessamento das construções dos mestres, perde-se completamente a capacidade de perceber a identidade metodológica que subjaz às conclusões plurais (quando não antagônicas) de pensadores da estatura de Smith, Marx e Schumpeter. O que, de fato, surpreende é que o comportamento de discípulos deste calibre não leve à asfixia do institucionalismo histórico. Mas se não o faz é porque este paradigma se desenvolva por uma espécie de “revolução permanente”: cada nova contribuição ao institucionalismo histórico tende a ser lida como a emergência de uma nova escola, como uma ruptura radical com o passado, como uma revolução. O que, sem ser totalmente falso, não chega a ser sequer uma meia verdade. Mas que aparece como uma verdade inteira quando a metafísica dominante (abraçada inconscientemente até por aqueles que pretendem já a haver superado) ainda é a cartesiana. O desdobramento objetivo deste quadro é que não há qualquer nomenclatura consensuada para os hegelianos em Economia. Mais: pouquíssimos economistas se identificariam como um “institucionalista histórico”. Muitos, sem dúvida, se identificariam como institucionalistas; outros, como marxistas; outros, ainda, como evolucionistas; outros, como (neo)schumpeterianos; alguns, como materialistas históricos; outros, apenas como historiadores econômicos; um número menor, como dialéticos ou hegelianos, etc. Mas o próprio fato destes termos consagrados identificarem grupos de economistas, que, usualmente, pactuam de hipóteses e instrumentos analíticos e adotam padrões de pesquisa uniformes, consolidados e estáveis, nos impede de tomá-los aqui para referenciar e agrupar aquelas construções teóricas e aqueles autores que têm em comum “apenas” o fato de terem por objeto a interpretação científica e racional do desenvolvimento histórico e de adotarem por método a superação permanente dos falsos antagonismos teóricos e das falsas linhas divisórias nas Ciências Sociais, que pretendem separar o estudo das “instituições” do estudo dos “mercados” (como se estes mesmos não fossem uma instituição histórica!). Em respeito ao este objeto e método é que optamos por denominá-los institucionalistas históricos. De quebra, homenageamos aquele que é, do nosso ponto de vista, o maior de todos os institucionalistas históricos vivos: Douglass North. A despeito de, decepcionado com a União Soviética, haver renegado o marxismo, nunca abandonou o objeto dos hegelianos. A partir de um conjunto de 35 crise, de irracionalidade, de alternativas abertas), o que existe é o homem econômico racional, egoísta e hedonista, buscando a maximização de seu prazer, com um mínimo de dispêndio de recursos. Sabendo que todos agem de acordo com o mesmo padrão essencial todo o tempo, bastam as informações sobre disponibilidade/distribuição dos recursos, para se projetar as conseqüências desta ou daquela política econômica, desta ou daquela “alteração das regras do jogo”. Mais: de ante-mão é possível dizer que políticas voltadas à subversão das regras “naturais” do jogo econômico estão fadadas ao fracasso e envolvem um dispêndio não racional de recursos escassos. Por oposição, os economistas kantianos partem do princípio de que, para além das determinações estáveis e recorrentes, existem particularidades institucionais e culturais, que afetam os resultados de qualquer política econômica. Mais: como os agentes são essencialmente plásticos (seus fins e padrões de racionalidade não são, nem únicos, nem estáveis), alguns sistemas são particularmente propensos a apresentar instabilidade dinâmica. De forma que os estruturalistas vão tender a se contrapor aos cartesianos em duas frentes: 1) vão defender a necessidade de políticas regulatórias públicas que limitem (à la Keynes) a instabilidade estrutural dos sistemas econômicos e/ou (à la Ricardo) a manifestação de tendências dinâmicas perversas de longo prazo nos mesmos; 2) vão insistir nos limites estruturais de qualquer projeção sobre o futuro, pois não existe, nem ordem natural, nem tendências inexoráveis nos sistemas econômicos. Por fim, os economistas hegelianos partem da hipótese de que as mudanças históricas são racionais; vale dizer, respondem a determinações objetivas, e, como tal, são passíveis de compreensão científica. Como regra geral, as mudanças devem ser a resposta socialmente viável a demandas e pressões contraditórias, que impedem a sustentação do status quo ante. De forma que, só com a adequada compreensão dos conflitos de interesses internos a um dado sistema (envolvendo o padrão de estratificação social e seu grau de assimilação e aceitação na coletividade atual e potencial27) e da sua institucionalidade histórica específica (envolvendo o conjunto das regras, instituições e padrões competitivos que sancionam e/ou limitam a transformação das forças produtivas materiais e da apropriação-distribuição-circulação do produto) é que se pode circunscrever as trajetórias de desenvolvimento efetivamente abertas e hierarquizá-las em função de suas probabilidades objetivas. Em suma: ao contrário do que pretenderiam neoclássicos e estruturalistas, nem a modelística hiper-racionalista e a- histórica dos primeiros, nem a modelística simplificada e sub-determinada dos segundos, é suficiente para apoiar (ou para negar validade a) qualquer prognóstico sobre as conseqüências de distintas políticas econômicas. Tais prognósticos pressupõem a identificação das tendências 27 A referência à coletividade potencial se explica pela importância das pressões demográficas – quer se originem por crescimento vegetativo, quer se originem de correntes migratórias (que ainda introduzem novos elementos culturais e reposicionam as equações de poder) - para a transformação histórica. 36 sistêmicas e só podem ser considerados científicos se construídos nos marcos totalizantes do institucionalismo histórico28. Postos nestes termos, o embate entre os três paradigmas parece não ter fim. E, de fato, não terá fim enquanto os nossos conhecimentos sobre o homem e a sociedade não atingirem um patamar de determinação lógico-empírica que nos permita a construção de um consenso rigorosamente científico sobre aqueles temas que, hoje, impõem a utilização de “muletas metafísicas”. Mas reconhecer este fato não implica negar a cientificidade da Economia. Em primeiro lugar, porque as referências metafísicas de cada paradigma são – pelo menos não para os verdadeiros cientistas, por oposição aos discípulos dogmáticos e ideólogos acríticos – meros pontos de partida da investigação, e as hipóteses que fornecem devem ser postas sob crítica interna e confrontação com os desenvolvimentos dos paradigmas “rivais”. Essa é a única estratégia capaz de levar à superação de polêmicas, e ela já mostrou ser de grande utilidade para a Economia ao longo de seus quase três séculos de vida. E o mais importante é que, via de regra, as construções teóricas que conquistaram consenso em Economia – superando os tratamentos parciais e polêmicos que vicejavam até então – receberam contribuições das três grandes tradições do pensamento econômico. Cada uma, na sua especialidade. Via de regra, os cartesianos – com seu proverbial pendor matemático e analítico – desenvolvem inovações instrumentais; os estruturalistas – atentos para realidades e problemas específicos – exploram as inovações na modelagem de sistemas “mal comportados” e derivam conseqüências inusitadas das mesmas; e os hegelianos – voltados para o desvendamento da lógica da História – revelam as condições institucionais que alimentam a emergência das contradições modeladas pelos estruturalistas, bem como as condições que permitem a superação das mesmas. Este padrão de colaboração já se manifestou inúmeras vezes. Mas raras vezes com a intensidade e transparência presente no movimento que levou a Teoria dos Jogos do matemático von Neumann a se constituir numa das principais peças do Institucionalismo Histórico de Douglass North. A história desta colaboração é o tema do Anexo a este capítulo. 28 Vale lembrar – quanto mais não seja, para sermos acusados de sempre “deixar a última palavra” com a corrente teórica com a qual mais nos identificamos - que a resposta cartesiana e kantiana ao ambicioso projeto científico hegeliano é que o mesmo é impossível. Para cartesianos e kantianos, o que define a cientificidade de uma construção não é seu realismo e abrangência, mas sua “infirmabilidade” (a possibilidade de testar e negar um modelo). Para os cartesianos, um modelo é testado e descartado se se mostrar logicamente inconsistente. Para os kantianos, um modelo é testado e negado se se mostra inconsistente com a trajetória empírica do sistema particular que se busca representar. Para os hegelianos, as contradições são parte da realidade e devem fazer parte de seus sistemas, e toda a sistematização de uma dada realidade histórica é parcial e insuficiente, devendo comportar sempre novas determinações. O resultado é que o projeto hegeliano alimenta sistemas teóricos que não se deixam criticar ou negar facilmente, e, como tal, extrapolariam o campo da ciência. Para os que se interessam em aprofundar esta vertente crítica ao projeto hegeliano, recomendamos a leitura de Popper, 1980. 37 Apêndice ao Capítulo 1 – A Revolução da Teoria dos Jogos e a Consolidação da Ciência Econômica 1. INTRODUÇÃO A Teoria dos Jogos impôs uma revolução na Teoria Econômica que ainda não foi plenamente reconhecida pela totalidade dos observadores e analistas do desenvolvimento desta Ciência. Esta relativa falta de reconhecimento não é gratuita. A Teoria dos Jogos foi desenvolvida no interior de um paradigma teórico específico – o neoclássico – visando enfrentar as críticas estruturalistas e institucionalistas à inconsistência empírica da modelagem ortodoxa da concorrência dentro dos cânones mais rigorosos do cartesianismo29. O que envolveu o desenvolvimento de um instrumental específico e inovador que só veio a se consolidar a partir da segunda metade do século passado com a contribuição de alguns dos mais brilhantes e afamados matemáticos do período, como Von Neumann e John Nash. Ora, a despeito da relativa simplicidade deste instrumental, sua utilização pressupõe o domínio de um aparato matemático específico que só veio a ser incorporado nos currículos das principais escolas de Economia do mundo nas últimas décadas do século XX. Uma incorporação que usualmente se dá a partir da apresentação das soluções ortodoxas aos problemas internos da construção neoclássica. O que acaba alimentando a ilusão de que a Teoria dos Jogos seria um instrumental de utilização relativamente restrita, porquanto sobrecarregado de hipóteses teóricas que, consistentes com a tradição neoclássica, seriam inconsistentes com as perspectivas estruturalista e institucionalista da racionalidade econômica e da tomada de decisões em ambientes competitivos. Do nosso ponto de vista, esta avaliação crítica da Teoria dos Jogos está essencialmente equivocada. Na realidade, acreditamos que, não fosse a resistência de parcela expressiva dos estruturalistas e institucionalistas a formalizarem matematicamente seus modelos e construções teóricas e a operarem com o ferramental analítico neoclássico, já estaria claro que a Teoria dos Jogos tem um papel crucial na demonstração: 1) da insuficiência do paradigma neoclássico; e 2) do rigor e consistência de algumas das teses nucleares das vertentes kantiana e hegeliana em Economia. Ou, para sermos mais claros: acreditamos que a grande contribuição da Teoria dos Jogos é a demonstração cabal e rigorosa de que a interação de agentes econômicos privados que buscam o máximo benefício por unidade de dispêndio dos seus recursos pode resultar em equilíbrios sub-ótimos; vale dizer, em resultados estáveis (porquanto ninguém pode se mover da situação em que se 29 O modelo competitivo padrão, que organiza o sistema teórico neoclássico, é a concorrência perfeita, que será apresentado no capítulo quinto. As críticas a este modelo competitivo, bem como as respostas alternativas às mesmas articuladas dentro e fora do maistream (vale dizer: dentro e fora da ortodoxia neoclássica) serão objeto do capítulo sexto. 40 Este jogo, com seus resultados possíveis e seu resultado efetivo, está representado abaixo. Jogo 1: Solução Única com Estratégia Dominante Estratégias Agressivo Busca Agressivo Aguarda Lento Busca 0, 300 0, 300 Lento Aguarda 200, 100 0, 0 Cada jogador tem duas estratégias alternativas (busca a bola ou aguarda o lançamento do juiz). Mas cada um deles tem uma estratégia dominante; pois se Lento for buscar a bola ele está fadado a perder e a não receber nada, de forma que ele sempre aguarda. De outro lado, se Agressivo também aguarda, o tempo do jogo se esgota e nenhum dos dois recebe qualquer valor. De forma que Agressivo é obrigado a buscar a bola, mesmo sabendo que suas chances de receber mais do que 100 dólares são mínimas. As estratégias dominantes são representadas pelos valores “negritados” na representação acima. E a solução está representada na célula em que os valores recebidos por cada jogador estão “negritados”32. O interessante deste jogo é que o seu resultado “surpreendente” - o vencedor é o pior jogador – se impõe a partir de determinações estritamente racionais. Pois é estritamente racional para Agressivo buscar a bola, se ele não quiser acabar o jogo sem receber nada. O que, do nosso ponto de vista, já demonstra o caráter científico e crítico da Teoria dos Jogos: a hipótese da estrita racionalidade e da adstrição às regras não é suficiente para gerar resultados rigorosamente “justos”: quem ganha aqui é o pior jogador, o mais oportunista e o que menos se esforça. Mas isto não é tudo: é preciso ter claro que o resultado obtido depende da modelagem que fazemos do processo de definição de “ganhos” para os jogadores. O benefício de cada jogador pode até ser - mas usualmente não é – meramente monetário. Na verdade, o que se representa no interior das células dos jogos é a “utilidade” auferida por cada jogador a partir de uma dada combinação de estratégias. Ele envolve uma avaliação a respeito das vantagens gerais de um dado resultado. Por exemplo: se o nosso jogador Agressivo valorizasse a vitória (e desvalorizasse a derrota) mais do que 32 Note-se que o resultado derivado da combinação de estratégias “Lento busca” e “Agressivo Aguarda” – 0, 300 – não apresenta nenhum valor negritado. E isto na medida em que, a despeito desta ser uma boa combinação de estratégias para Agressivo, ela resulta da combinação das duas estratégias não-dominantes dos jogadores, das estratégias descartadas pelos mesmos. 41 o prêmio financeiro, ele não jogaria “para ficar em segundo lugar”. Ele se recusaria a ir buscar a bola, e o jogo terminaria empatado. A “vitória” de Agressivo seria impedir que Lento ganhasse o jogo “injustamente”. Jogo 2: Solução Única com Estratégia Dominante Estratégias Agressivo Busca Agressivo Aguarda Lento Busca 0, 300 0, 300 Lento Aguarda 200, -100 0, 100 Neste caso, ambos os jogadores tem uma única estratégia dominante – aguardar. E o resultado é um empate, em que ninguém recebe qualquer prêmio monetário, mas Agressivo se beneficia do fato de não ter deixado Lento vencê-lo apesar de ser um jogador medíocre. Ora, o fato de que os “ganhos” sejam irredutíveis aos benefícios monetários amplia enormemente a abrangência da Teoria dos Jogos. O que se está afirmando é que os “valores” que estão em “jogo” não são pré-definidos. A depender do padrão de valoração dos agentes – que não são estritamente individuais, mas socialmente determinados – chegamos a resultados muito distintos. Porém, este ganho de abrangência envolve, simultaneamente, a imposição de um desafio: uma modelagem consistente pressupõe o reconhecimento explícito do padrão valorativo adotado pelos contendores33. Vamos avançar, agora, para um exemplo propriamente econômico. Imaginemos dois agentes A e B, cujas capacidades de trabalho estão subempregadas e que possuem uma pequena poupança. Ambos estão em busca de alternativas para a aplicação destes recursos e identificam uma demanda potencial para “rãs”. A ocupação deste nicho de mercado daria rendimentos significativos se os empresários pudessem contar com o volume de recursos necessários para ingressar, tanto na produção desta mercadoria, quanto na sua comercialização. Contudo, com os seus recursos financeiros (que definem a capacidade de endividamento dos mesmos), os jogadores só podem ingressar numa das duas pontas da cadeia, ou na produção, ou na comercialização. Esta restrição não chega a inviabilizar o ingresso. Porém, se qualquer um dos jogadores ingressar numa ponta cadeia e o outro agente não se instalar na ponta complementar, o ingressante terá, ou de se 33 Voltaremos a tratar da categoria “utilidade” no primeiro capítulo da seção de Microeconomia. 42 utilizar dos canais de comercialização disponíveis (o que envolve vender seu produto a preços aviltados), ou disputar a mercadoria com outros comerciantes (o que conduziria ao ingressante a um prejuízo capaz de obrigá-lo a abandonar o mercado). De outro lado, se os dois agentes ingressarem em pontas complementares da cadeia, ambos auferirão rendimentos significativos, equivalentes ao dobro (no caso do ingresso ser na produção), ou ao triplo (no caso do ingresso ser na comercialização) do que os jogadores auferem hoje enquanto rentistas sub-empregados. Este jogo encontra-se representado na tabela abaixo. Jogo 3: Múltiplos equilíbrios com solução sub-ótima Estratégias A1: Aplica na Poup A2: Produz Rã A3: Vende Rã B1: Aplica na Poup 2, 2 1, 2 -1, 2 B2: Produz Rã 2, 1 -4, -4 6, 4 B3: Vende Rã 2, -1 4, 6 -5, -5 Como se pode ver acima, ao contrário do que ocorria em nosso Basquete, os jogadores não têm nenhuma estratégia dominante. A cada estratégia do concorrente, muda a estratégia preferencial do outro jogador. O que, dadas as características deste jogo particular, acaba gerando três equilíbrios alternativos, grifados em negrito na tabela acima. Pergunta-se, então: para qual destes equilíbrios alternativos o sistema tende? Depende... Mais especificamente, depende das probabilidades que os jogadores imputam a cada uma das estratégias alternativas dos seus adversários e do grau de confiança dos mesmos jogadores em torno daquela distribuição de probabilidades. Expliquemo-nos. Suponhamos que o jogador A tenha informações que o levam a crer que o jogador B vai produzir rã. Neste caso, a melhor opção para o jogador A é comercializar rã e o sistema tenderá para o equilíbrio representado por A3, B2 (que gera os rendimentos 6, 4). Contudo, o caso mais freqüente (e mais problemático) é aquele em que os jogadores não alcançam definir probabilidades confiáveis para as estratégias alternativas dos seus adversários. Neste caso, dizemos que os jogadores são obrigados a definir suas estratégias sob condição de incerteza. E, sob incerteza, a estratégia preferencial é aquela que minimiza as chances de prejuízo. Se voltarmos ao quadro com representação do Jogo 2, veremos que, tanto para o jogador A, quanto para o jogador B, a estratégia que minimiza a possibilidade de prejuízo é “aplicar na 45 proporciona um lucro de “1”, que é superior ao prejuízo de “-2” que obteria jogando B1. Vale dizer: seja qual for a estratégia adotada por A, é sempre melhor para B jogar B2, criando o laboratório privado. O problema é que a mesma lógica se impõe para A: seja qual for a estratégia adotada por B – apoiar o laboratório coletivo ou criar laboratório privado – será sempre melhor para A criar um laboratório privado. E o resultado é que cada um dos dois jogadores, justamente por ser racional, adota a estratégia da criação do laboratório privado. O que conduz ao equilíbrio “A2, B2”. Um equilíbrio que corresponde ao pior resultado em termos sociais (representado pela soma dos lucros dos concorrentes) e a um resultado individual significativamente inferior ao que cada um deles obteria se ambos tivessem colaborado com o laboratório coletivo. O mais interessante deste “jogo” é que é muito fácil para os agentes perceberem o círculo vicioso em que se envolvem e que a decisão de colaborar seria a mais eficaz para ambos caso houvesse confiança. A questão que fica é: como constituir a fidúcia, o “credere”? ... Diversas respostas foram dadas a esta pergunta. Mas o que tem ficado cada vez mais claro, desde que os primeiros teóricos da RAND se dedicaram ao problema de uma perspectiva estritamente lógica, até as pesquisas empíricas de sociólogos contemporâneos como Putnam (1996), passando pelas reflexões de Elster (1991) e de todo o marxismo analítico, é que as possibilidades de escapar da solução perversa passa pela intensidade e freqüência de outros laços de sociabilidade entre os agentes concorrentes. O cerne da explicação de Putnam para o desenvolvimento acelerado da Terceira Itália encontra-se, justamente, na solidez do que este autor denominou a “comunidade cívica” na região nordeste italiana. Por “comunidade cívica” o autor entende o conjunto de instituições não especificamente econômicas responsáveis pela socialização e desenvolvimento do senso de comunidade entre agentes de uma região, instituições estas que vão de Associações Culturais e Recreativas a Grupos Filantrópicos, passando por Jornais regionais, grupos folclóricos e desportivos, partidos políticos, sindicatos e associações profissionais, etc., etc., etc. É Elster, contudo, quem melhor teoriza esta relação empírica apontada por Putnam. Para Elster, na medida em que as sanções especificamente econômicas à ação oportunista são totalmente ineficientes, e a simples proibição legal do exercício de uma lógica racional individualista é contraditória com os próprios fundamentos da ordem econômica mercantil, então somente sanções postas no plano da sociabilidade e da cultura podem permitir que se escape do ciclo vicioso imposto pelo “dilema do prisioneiro”. De outro lado, tanto Elster, quanto Putnam, apontam para a importância do setor público estatal no apoio e consolidação da “comunidade cívica”. Em particular este último autor, chama a atenção para o fato de que a constituição de instâncias político-institucionais regionalizadas na Itália após a Segunda Guerra foi um dos fundamentos das dinâmicas marcadamente diferenciadas das distintas regiões italianas desde então. Mais do que isto: Putnam vai chamar a atenção para 46 o fato de que as regiões italianas mais bem sucedidas no pós-Segunda Guerra serão justamente aquelas onde se consolidou uma hegemonia de partidos políticos que tinham como princípio programático fundamental o apoio ao desenvolvimento da solidariedade entre agentes econômicos36. O reconhecimento deste ponto, contudo, não é suficiente para que possamos definir o papel exato que cabe ao Estado37 na administração de jogos econômicos complexos e no enfrentamento de soluções perversas dos recorrentes “dilemas de prisioneiro”. E isto na medida em que, se o Estado é necessário ao encaminhamento de uma solução não perversa para os inúmeros dilemas do prisioneiro, nada nos garante que ele seja capaz de fazê-lo da forma mais eficiente e socialmente justa; vale dizer, que seja capaz de vigiar e punir sem discriminação e privilégios e sem impor um custo tão elevado ao processo que torne os seus benefícios inferiores aos seus custos. Ou, como diz Putnam (citando Gambetta e North): “Parte da dificuldade consiste no fato de que a coerção é onerosa: ‘As sociedades que enfatizam muito o uso da força costumam ser menos eficientes, mais sacrificantes e menos satisfatórias do que aquelas onde a confiança é mantida por outros meios’. O maior problema, porém, é que a coerção imparcial é em si mesma um bem público, estando sujeita ao mesmo dilema básico que ela busca resolver. A coerção de um terceiro exige que este seja confiável, mas que força garante que o poder soberano não irá desertar? ‘Em suma, se o Estado tem força coercitiva, então os que o dirigem [poderão usar] essa força em proveito próprio [ou de aliados preferenciais], a expensas do resto da sociedade’. .... No jargão da teoria dos jogos [diz-se que] a coerção imparcial de um terceiro não constitui geralmente um ‘equilíbrio estável’, isto é, aquele em que nenhum jogador tem motivos para modificar seu comportamento.” (Putnam, 1996, p. 175)38 4. CONCLUSÃO Tal como procuramos demonstrar acima, a Teoria dos Jogos é muito mais do que uma modelagem matemática de padrões competitivos oligopólicos. Ela vem cumprindo um papel proeminente na atualização do debate sobre o papel do Estado na regulação dos conflitos de interesse, bem como dos fundamentos do contrato social economicamente consistente. Ao traduzir 36 Mormente entre micro e pequenos empresários, incapazes de se inserir de forma competitiva e sustentável no mercado sem o estabelecimento de elos de cooperação estrutural. A este respeito vide Putnam, 1996, em especial o capítulo segundo e a seção final do capítulo quarto. 37 Entendido aqui em seu sentido mais restrito, como o conjunto de instituições que estabelecem relações de poder e autoridade (por oposição a “relações de intercâmbio livremente pactuadas”) para com todo e qualquer membro de uma determinada sociedade. 38 As citações – marcadas por aspas simples - são, na ordem de aparição, de Gambetta, 1988, p. 216 e de North, 1990, p. 58. 47 num sistema matemático rigoroso e operativo alguns dos dilemas clássicos da Filosofia e da Ciência Política, vem contribuindo para a determinação das condições necessárias ao equacionamento dos mesmos. Sem dúvida, ainda estamos muito longe de uma compreensão satisfatória, seja das soluções lógicas, seja das soluções histórico-empíricas, dos referidos dilemas. Mas não pode restar qualquer dúvida que o (re)equacionamento dos problemas clássicos nos termos propostos pela modelagem da Teoria dos Jogos tem sido uma alavanca poderosa para a avaliação crítica das distintas respostas que a Filosofia e a Ciência Política vêm dando aos mesmos desde Platão até os institucionalistas modernos. De outro lado, para além dos desenvolvimentos teóricos que a utilização deste poderoso ferramental vem alavancando, nos interessa chamar a atenção aqui para a sua contribuição específica à superação da fragmentação da Ciência Econômica em paradigmas antagônicos. Afinal, depois da Teoria dos Jogos não há mais espaço para o hiper-cartesianismo que, identificando o real ao racional, virtualmente sacraliza o status quo. Nem, tampouco, há espaço para o hiper-kantismo, cuja crítica acerba do entendimento acaba se resolvendo na virtual negação da racionalidade das estruturas sociais. Na contramão do hiper-racionalismo e do irracionalismo, o que a Teoria dos Jogos demonstra é que os resultados mais surpreendentes e contraditórios podem brotar da interação de agentes rigorosamente racionais que operam dentro das mais estritas regras socialmente estabelecidas. O postulado da racionalidade não é suficiente para garantir a consecução de equilíbrios ótimos no sentido de Pareto. E o postulado da irracionalidade (ou de qualquer circunscrição da racionalidade) não é necessário para demonstrar que a interação das forças de mercado é capaz de conduzir a resultados social e economicamente perversos. Mas se a Teoria dos Jogos recusa as versões dogmáticas e hipertrofiadas do cartesianismo e do kantismo, ela, ao mesmo, tempo se assenta nestas duas tradições. Afinal, na esteira dos cartesianos, insiste em tomar a racionalidade como referência da tomada de decisões dos agentes em todos e quaisquer jogos (econômicos, de “azar”, políticos, etc.) que busca modelar. Ao mesmo tempo em que, na esteira dos kantianos, reconhece e busca demonstrar a insuficiência da racionalidade instrumental-maximizadora privada para a consecução de resultados econômicos social e economicamente satisfatórios. O que não pode deixar de se resolver no reconhecimento de que, como pretendem os hegelianos, a racionalidade não é um dado, mas um processo indissociável do desenvolvimento da moralidade subjetiva e das instituições que asseguram a vigência da mesma. Afinal, recusar o caráter processual da racionalidade envolveria pretender que estamos fadados às soluções sub-ótimas geradas por jogos do tipo “prisioneiro”. Uma conclusão que, com toda a certeza, não seria aceita pelos próceres da Teoria dos Jogos. Como bons matemáticos, Von Neumann e Nash são demasiadamente cartesianos para admitirem que o mundo é (crônica e irreversivelmente) irracional. Estamos de pleno acordo. 50 Ora, nosso objeto neste capítulo são as características gerais deste padrão de ordenamento econômico que os neoclássicos querem generalizar e que os marxistas querem transformar (e, no limite, destruir). A questão que fica é: dadas as divergências de leitura e avaliação do sistema mercantil- capitalista é possível apresentar as características gerais do mesmo sem nos submeter (e submeter o leitor) a um padrão interpretativo eleito arbitrariamente? É possível fazer uma avaliação do sistema mercantil capitalista que seja minimamente objetiva? Ou somos obrigados a optar entre o silêncio (alienado), a crítica (utópica) ou o elogio (ideológico)? Mais uma vez, a resposta a esta questão é mais simples do que poderia se pensar. E isto porque, a despeito do que pretende o senso comum, os economistas concordam muito mais sobre as características gerais, qualidades e defeitos do sistema capitalista e do que poderia parecer. Mesmo Marx – usualmente tomado como o maior crítico deste sistema – é um grande admirador do mesmo. E os argumentos que usa em sua defesa são muito próximos daqueles esgrimidos, seja por neoclássicos, seja por outros institucionalistas, como Schumpeter e North. A diferença específica encontra-se no fato de que – tal como Keynes, e para além deste – Marx percebe contradições no interior do sistema, e acredita que as mesmas tendem a se desenvolver de forma particularmente perversa. Ora, esta peculiaridade da leitura marxista – simultaneamente crítica e elogiosa – vai nos ajudar a estruturar o texto deste capítulo, que se divide em quatro seções (para além desta Introdução). Na próxima seção, vamos apresentar as características mais gerais (que são, também, as características propulsivas e positivas) das economias mercantis em geral39; na seção subseqüente, apresentamos os fundamentos históricos da ordem mercantil e seu desenvolvimento em direção a um sistema de assalariamento e crescente desigualdade em termos de renda e propriedade40; na terceira seção avaliamos os desdobramentos do sistema salarial e da concentração da renda para a dinâmica econômica41; finalmente, na seção conclusiva apresentamos algumas considerações gerais sobre a atualidade (ou não) das leituras clássicas expostas aqui. 2.2 CARACTERÍSTICAS GERAIS DAS ECONOMIAS MERCANTIS No início dos anos 1980 um grande banco alemão fez uma listagem de seus maiores correntistas. Para a surpresa dos responsáveis pela pesquisa, alguns dos clientes com depósitos mais vultosos 39 Nesta seção estaremos trabalhando na confluência do pensamento neoclássico com o institucionalismo histórico de Marx e de Schumpeter. Vale observar que, malgrado nossa principal referência bibliográfica neste capítulo ser o Manifesto Comunista, de autoria de Marx e Engels, usualmente nos referimos apenas a Marx como autor da interpretação sobre a estrutura e dinâmica capitalista que orienta nossa leitura aqui. Esta opção não é uma mera concessão à tradição que cunhou o termo “marxismo” para se referir à contribuição teórica destes dois grandes colaboradores intelectuais. Para além disso, a interpretação que fazemos aqui do Manifesto Comunista está pautada em O Capital, obra de autoria exclusiva de Marx. 40 Aqui, nosas referências fundamentais são Weber e Marx. 41 Aqui, nossas referências fundamentais são Marx, Keynes, Kalecki e Schumpeter. 51 eram pensionistas do Estado que, a despeito de receberem valores pouco expressivos, não retiravam seus rendimentos há anos. Informado, o serviço previdenciário alemão foi atrás destes correntistas e descobriu que a quase totalidade havia falecido, muitos deles dentro de suas próprias residências, sem que ninguém registrasse suas faltas. O episódio re-alimentou um debate tão antigo quanto o capitalismo: o debate acerca da alienação e isolamento que caracteriza a sociedade moderna. Vivemos num mundo em que todos são, de uma forma ou de outra, ligados a todos os demais. O computador em que escrevo é composto de centenas de peças que foram produzidas a partir da interação de milhares de pessoas que nunca conhecerei; a roupa que visto foi produzida a partir de fios naturais e sintéticos cuja origem e processamento desconheço, mas que muito provavelmente envolveram a participação de trabalhadores de diversos continentes; a energia elétrica que alimenta a lâmpada que ilumina o ambiente é gerada em uma usina localizada a centenas de quilômetros e que é operada por trabalhadores que desconheço, assim como eles desconhecem os produtores das turbinas que operam. Estamos todos ligados, uns aos outros. Mas convivemos com uma fração diminuta das pessoas às quais estamos ligados por laços de dependência, e nenhum de nós é essencial ao funcionamento do sistema em qualquer sentido do termo. Para que a questão fique mais clara, pode ser útil uma representação ficcional. Imaginemos um personagem: um trabalhador que veio do interior em busca de trabalho na cidade e que, pouco a pouco, vai perdendo parentes e contato no mundo rural. Tímido, ele não chega a fazer amigos no ambiente urbano. Diariamente, ele sai de casa, entra na fábrica, bate o ponto e começa a trabalhar numa linha de montagem qualquer. Muitas são as pessoas que se beneficiarão de sua competência e algumas sofrerão as conseqüências de sua inépcia inicial; mas nenhuma delas o conhecerá. Saindo da fábrica, ele passa no supermercado e compra tudo o que precisa sem conversar com ninguém. Vai para casa de ônibus, e não precisa dizer para o motorista ou para o cobrador onde mora. Entra no prédio sem cumprimentar o porteiro que nem sabe o seu nome. Um dia ele cai no banho, bate a cabeça e morre. Depois de uma semana sem ir ao trabalho, é demitido por justa causa. Talvez a moça que trabalha no caixa do supermercado se aperceba que ele deixou de passar por ali; mas vai imaginar que ele passou a freqüentar outro supermercado. O porteiro nem se apercebe da ausência do mal- educado, que deve estar de férias ou ter voltado para a terra natal. Este é o mundo do mercado, o mundo da impessoalidade. Antes de qualquer outra característica, a sociedade mercantil é aquela em que todas as pessoas se relacionam obrigatoriamente através de um único instrumento: o dinheiro. Podemos (e devemos, para manter nossa saúde mental!) nos relacionar de outras formas, também. Mas, fora da vida privada, vale dizer, fora do ambiente reservado à reprodução material da espécie (a família), nenhum outro vínculo social é impositivo para além daqueles estabelecidos nos diversos mercados. Vender – comprar – vender: esta é a única condição universal de vínculo e reprodução de todos os produtores numa sociedade mercantil. 52 A dimensão negativa – vale dizer: a dimensão alienante, isolacionista, geradora de tanto sofrimento e solidão nas metrópoles e cidades populosas – do padrão mercantil de relação social fica evidente nas histórias contadas acima dos aposentados alemães e do nosso operário fictício. Mas ela não é única dimensão, nem a mais importante. Na verdade, a própria alienação que se expressa no desconhecimento de indivíduos reciprocamente dependentes comporta alguma positividade. Quantas pessoas não vêm do campo ou das pequenas cidades para as metrópoles em busca de um pouco de privacidade? Uma privacidade que lhes permite afrontar códigos tradicionais e expressar – em ambientes reservados ao olhar de seus vizinhos, parentes, chefes, colegas de trabalho, autoridades locais, etc. – preferências políticas, sexuais ou culturais heterodoxas42. Mas isto não é tudo. Um mundo em que a condição de reprodução de todos é a venda das mercadorias produzidas por cada um é um mundo onde a conquista do cliente – vale dizer, do dinheiro do comprador potencial - é condição de sobrevivência dos produtores. Para além de qualquer modismo, o mundo do mercado é o mundo onde “o cliente tem sempre razão”. Seja ele branco ou negro, mulher ou homem, jovem ou velho, “quatrocentão” ou filho de mãe solteira, judeu ou católico: o outro lado da alienação, da desconsideração pela individualidade, é a consagração da igualdade formal. Os sistemas mercantis – ou, para ser mais exato, os sistemas onde o dinheiro é a única condição de apropriação de qualquer bem, e a venda de algo é a única condição de recebimento de dinheiro – são sistemas onde viceja e se impõe a igualdade formal entre os agentes. Mais do que uma conquista da razão, o feminismo, a criminalização do racismo, a laicização do Estado e a liberdade de culto religioso, são conquistas do mercado43. Como se não bastassem as vantagens associadas à privacidade e a igualdade formal, os sistemas mercantis são portadores de uma enorme flexibilidade, superior a qualquer outro sistema de produção pregresso. Na medida em que os vínculos sociais se estabelecem no mercado, onde ninguém é obrigado a comprar de ninguém, cada possuidor de dinheiro vai tentar maximizar sua satisfação, comprando o melhor produto possível por unidade de dispêndio. Isto significa dizer que se um determinado produtor (de tecido, por exemplo) descobre um fornecedor (de fio, de teares, de serviços de transporte, etc.) capaz de lhe oferecer um produto similar ao tradicionalmente adquirido por um preço inferior àquele, não há nada que o impeça de romper as relações tradicionais de clientela. Sem sombra de dúvida, esta flexibilidade tem seus custos, e eles não são desprezíveis. Os produtores tradicionais, que vêem suas mercadorias recusadas ao preço de oferta original, são obrigados 42 Segundo Marx e Engels: “A burguesia submeteu o campo à cidade. Criou grandes centros urbanos; aumentou prodigiosamente a população das cidades em relação à dos campos e, com isso, arrancou grande parte da população do embrutecimento da vida rural”. (Marx e Engels, 2005, p. 44.) 43 “Onde quer que tenha conquistado o poder, a burguesia destruiu as relações feudais, patriarcais e idílicas. Rasgou todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus ‘superiores naturais’, para só deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do ‘pagamento à vista’.” (Marx e Engels, 2005, p. 42.) 55 sociabilidade? De certa forma, sim. Mas esta é uma contradição que se resolve na História. Senão vejamos. O que Weber esclarece – corretamente, insistamos – é que uma sociedade tão particular, que libera os agentes para buscarem o máximo benefício privado, não poderia se impor sem a concomitante imposição de uma ética muito particular, capaz de circunscrever, no momento de sua constituição, os componentes socialmente perversos do individualismo47. Só que, uma vez constituída e generalizada, a sociedade mercantil alimenta processos de alienação, individuação e dessocialização que levam ao desenvolvimento de uma mentalidade distinta (e, no limite, antagônica) à ética que lhe deu origem48. Este processo de esfacelamento da ética puritana de trabalho, frugalidade e retidão vai corresponder, justamente, à transição da ordem mercantil simples – vale dizer, daquela sociedade mercantil pré-capitalista, organizada em torno de pequenos produtores independentes – para a ordem propriamente capitalista – caracterizada pela concentração de capital e pela distinção entre produtores diretos assalariados e proprietários dos meios de produção49. Como se dá este processo? A partir da operação do processo competitivo e inovativo descrito na seção anterior. Tal como foi esclarecido acima, as sociedades mercantis são caracterizadas pela instabilidade dos padrões técnicos de produção e pelo contínuo crescimento da produtividade do trabalho. Para além da melhoria na qualidade dos produtos e da depressão sistemática dos seus preços, a concorrência mercantil conduz, sistematicamente, à falência de firmas e empreendimentos. Ora, se as inovações introduzidas pelos produtores mais competitivos se disseminassem rapidamente e se as exigências de capital para (re)ingresso no mercado se mantivessem estáveis ao longo do tempo, as massas falidas dos empresários mal-sucedidos seriam adquiridas por novos pequenos empresários, e o sistema se manteria essencialmente inalterado. Mas não é isto o que acontece. Desde logo, os empresários inovadores se utilizam de todos os expedientes de que dispõem para impedir a difusão dos novos padrões técnicos. E durante o período em que são bem sucedidos neste intento, conquistam posições (semi)monopolistas, que lhes garantem lucros extraordinários. 47 Mas que se entenda bem: esta auto-circunscrição ética do individualismo inerente às sociedades mercantis não é universal. Ela só se impôs plenamente nas nações e territórios que inauguraram a transição para este peculiar sistema social; em particular, ela se impôs nas duas grandes nações “puritanas” do Ocidente: a Grã-Bretanha e os Estados Unidos. Como veremos nos capítulos iniciais da Segunda Parte deste livro, a transição brasileira para o capitalismo não envolveu ou pressupôs qualquer crítica ao individualismo oportunista ou qualquer difusão da ética do trabalho. 48 Tal como o próprio Weber reconhece no capítulo final da Ética Protestante. Em particular, veja-se Weber, 2004, pp. 156 e segs. 49 Vale frisar, mais uma vez, que esta transição não é universal. Na verdade, apenas as nações pioneiras no processo de transição para o capitalismo constituíram sólidas economias mercantis simples. Aliás, é justamente por haverem constituído economias mercantis pré-capitalistas que estas nações lideram as revoluções protestantes: a ética do trabalho, a defesa do ganho, a crítica ao Estado (fiscalista) e à Igreja Católica (com seus dízimos e proibições), não são projetos arbitrários, pertinentes a qualquer estrato social. Correspondem rigorosamente aos interesses estratégicos do pequeno produtor mercantil urbano e rural, que emerge na falência do feudalismo anglo-saxão, germânico, flamengo e (secundariamente) francês. Por circunstâncias e determinações que serão apresentadas no capítulo de abertura da Segunda Parte deste livro, este agente particular não alcança a mesma expressão social na Península Ibérica. 56 Lucros que são canalizados para a acumulação produtiva; vale dizer, para a ampliação de sua capacidade de produção nas novas condições técnicas. Ora, ao longo deste período, o produtor que foi expulso do mercado tem que sobreviver. E tudo o que ele dispõe agora é de sua capacidade de trabalho. Justamente do que precisa o empresário inovador que acaba de acumular; afinal, a nova capacidade produtiva tem que ser operada por alguém. Como esta é uma sociedade mercantil – onde todos os agentes são formalmente iguais e todos os contratos são temporários e passíveis de rompimento unilateral – a relação de trabalho entre empregador e empregado será, também, uma relação estritamente mercantil. O empregado venderá, por tempo pré- determinado (um dia, uma semana, um mês) sua capacidade de trabalho, recebendo, em contrapartida, uma determinada quantidade de dinheiro (seu salário). (Marx e Engels, 2005, p. 46) Ocorre, contudo, que a capacidade de trabalho é uma mercadoria muito particular. Ao contrário das demais mercadorias (trigo, tecido, alfinetes, etc.), seus proprietários não podem deixar de “produzi- la” quando há excesso de oferta no mercado. Pelo contrário: se há ofertantes em excesso, e a taxa de salário cai, os trabalhadores que não possuem outra mercadoria para vender se vêem obrigados a ampliar a oferta de sua capacidade de trabalho (seja manifestando a disposição de trabalhar mais horas, seja pelo ingresso dos demais membros da família no mercado de trabalho). O resultado é que, quanto mais radicais os processos inovativos, maior o número de falências e desempregados, maiores os lucros extraordinários dos empresários inovadores e menores os salários auferidos pelos trabalhadores. Com salários em queda e a capacidade produtiva em alta, os empresários inovadores vêem seus lucros subirem. É bem verdade que esta ampliação dos lucros tende a encontrar limites de mercado50. Mas, num primeiro momento, estes limites tendem a ser mais do que compensados pelos ganhos derivados da ampliação da escala de produção. E isto na medida em que, com maior número de operários a divisão do trabalho no interior da empresa tende a se aprofundar e, com ela, a produtividade do sistema51. Ou, para ser mais claro: a transição do artesanato – que é a estrutura produtiva típica da economia mercantil simples – para a manufatura e a indústria – estruturas produtivas típicas da economia mercantil-capitalista – não se realiza sobre uma base técnica estável, mas aprofunda e acelera o processo inovativo que já caracterizava a sociedade mercantil simples. O que tem graves conseqüências. Nos termos de Marx e Engels: “O crescente emprego de máquinas e a divisão do trabalho despojaram a atividade do operário de seu caráter autônomo, tirando-lhe todo o atrativo. O operário torna-se um simples apêndice 50 Voltaremos a este ponto logo adiante. 51 O primeiro grande teórico da relação entre escala, divisão do trabalho, produtividade e competitividade foi Adam Smith. A leitura dos primeiros capítulos de A Riqueza das Nações não é apenas agradável: Smith (1977) é muito mais atual e rico do que a imensa maioria da produção contemporânea voltada à (pseudo) interpretação das conexões entre desenvolvimento e “novas tecnologias”. 57 da máquina e dele só se requer o manejo mais simples, mais monótono, mais fácil de aprender. Desse modo, o custo do operário se reduz, quase exclusivamente, aos meios de subsistência que lhe são necessários para viver e perpetuar sua espécie. Ora, o preço do trabalho, como de toda mercadoria, é igual ao seu custo de produção. Portanto, à medida que aumenta o caráter enfadonho do trabalho, decrescem os salários. Mais ainda, na mesma medida em que aumenta a maquinaria e a divisão do trabalho, sobe também a quantidade de trabalho, quer pelo aumento das horas de trabalho, quer pelo aumento do trabalho exigido num determinado tempo, quer pela aceleração do movimento das máquinas, etc. Quanto menos habilidade e força o trabalho exige, isto é, quanto mais a indústria moderna progride, tanto mais o trabalho dos homens é suplantado pelo de mulheres e crianças. As diferenças de idade e de sexo não têm mais importância para a classe operária.” (Marx e Engels, 2005, p.46.) A indiferenciação de gêneros e faixa etária no processo de incorporação à força de trabalho assalariada apenas aprofunda a indiferenciação já definida pela universalização da mediação do mercado e do dinheiro nos processos de troca. O resultado é o aprofundamento da ideologia e da utopia igualitaristas52, cujo principal desdobramento é a universalização da consciência reivindicatória e do conflito de classes. E, aqui, a primeira grande contradição da ordem burguesa. Analisemo-la. O pensamento conservador usualmente toma Marx e os seus (pretensos ou reais) seguidores como promotores da luta de classes. Esta pretensão não é uma completa falácia, mas não chega a ser sequer uma meia verdade. De fato, o que Marx percebeu antes que qualquer outro foi a contradição entre a promessa de igualdade imanente ao mundo em que o dinheiro se torna a única condição de apropriação, e a desigualdade real que se impõe a partir do desenvolvimento da concorrência, da revolução das forças produtivas e da concentração da propriedade. E o que este autor propôs foi a exploração das potencialidades políticas postas nesta contradição real e impositiva com vistas à construção de uma outra ordem social, onde o desenvolvimento das forças produtivas e o produto do trabalho coletivo fossem colocados sob o controle do conjunto dos produtores. Mas – caberia, ainda, perguntar – por que Marx entendeu que esta contradição real e impositiva deveria ser trabalhada 52 As categorias “ideologia” e “utopia” são empregadas por nós no sentido dominante nas tradições germânica e anglo-saxã e que veio a ser consagrado na obra de Mannheim (1986). Neste sentido, tanto a ideologia, quanto a utopia, correspondem a leituras socialmente determinadas do mundo que se diferenciam pela polarização conservadora (e, no limite, idealizadora e falsificadora do status quo) que caracteriza a primeira, em oposição à polarização transformadora (e, no limite, subversiva da ordem) que caracteriza a segunda. O igualitarismo burguês comporta as duas dimensões. A dimensão ideológica se diz presente na pretensão de que, por serem formal e juridicamente iguais, os agentes sociais sejam objetivamente iguais na sociedade burguesa, desconhecendo as desigualdades reais entre capitalistas e trabalhadores, intelectuais e operários, homens e mulheres, etc. A dimensão utópica se diz presente na medida em que a igualdade formal alimenta anseios de igualação real e projetos de redistribuição de renda e propriedade. 60 Muito diferente é o padrão de circulação em uma economia capitalista. Nela emergem dois agentes com padrões de gastos muito distintos. Em primeiro lugar, temos o empresário capitalista. Seu rendimento típico é o lucro55. E este lucro tem duas destinações: o consumo e o investimento. Ora, o padrão de consumo capitalista é bastante estável, flutuando pouco com as flutuações do lucro, dado que os empresários contam com um patrimônio que lhes garante crédito. Diferentemente, os investimentos – vale dizer, os gastos capitalistas com novos bens de capital, sejam eles máquinas, instalações, estoques de insumos, etc. – flutuam significativamente ao longo do tempo, pois dependem da expectativa que os empresários têm da ampliação (ou não!) dos mercados para seus produtos. De outro lado, temos o trabalhador assalariado. Como vimos acima, com o processo de simplificação do trabalho associado à introdução da maquinaria, as taxas de salário tendem a ficar muito próximas do nível de subsistência e reprodução da classe trabalhadora. De forma que virtualmente todo o salário é gasto em bens de consumo, e todo o consumo dos trabalhadores depende do recebimento de salários. Esta divisão da sociedade em duas classes, com padrões de rendimento e gasto tão distintos, está na base das recorrentes crises de superprodução do capitalismo. Senão vejamos. Para que se entenda este processo em toda a sua profundidade é preciso que se atente para o fato crucial de que no capitalismo o objetivo da produção é a valorização do capital. Ou seja: produz-se para vender com lucro, de tal maneira que o processo de produção nada mais é do que um momento do circuito de valorização do capital (vale dizer, “compra – produção – venda com lucro”)56. Na ponta desse circuito, uma decisão autônoma do empresário (comprar certas mercadorias); no fim do processo, uma série de decisões autônomas de outros compradores (capitalistas ou consumidores finais. O ciclo de valorização só se completa se as mercadorias resultantes do processo de produção forem integralmente vendidas. Entretanto, isto não está definido a priori por qualquer instância social, nem depende das decisões do próprio empresário que inicia o processo. Quando um capitalista adquire uma certa quantidade de recursos produtivos (máquinas, insumos, força de trabalho) para produzir uma certa quantidade de bens, as informações de que ele dispõe a respeito do comportamento futuro do mercado são muito pouco seguras, na medida em que dependem em grande parte de elementos que estão fora do seu controle (como, por exemplo, da reação de seus concorrentes, das possíveis alterações na estrutura da demanda de seus compradores potenciais, ou do estado dos negócios em geral). Assim, todo o processo de investimento é uma aposta que os capitalistas fazem 55 Entendido aqui como a forma geral do excedente, que pode tomar a formas específicas de lucro puro, juro sobre o capital financeiro e aluguéis de imóveis rurais e urbanos. 56 O próprio “capital” se define por este processo de valorização. Isto implica dizer que as máquinas, equipamentos, insumos e a força de trabalho nada mais são do que uma das formas que o capital assume dentro do circuito completo de valorização (onde ele toma recorrentemente as formas de “dinheiro – mercadorias – mais dinheiro”). Assim, o capital só pode ser entendido como um “valor que se valoriza”, vale dizer, uma forma social específica de poder que é exercido com vistas à sua expansão (valorização). 61 contra um futuro incerto. Nada lhes garante que o objetivo final de um dado processo de investimento (a auferição do lucro através da produção e da venda de mercadorias) vá ser atingido com êxito, na medida em que as mercadorias efetivamente produzidas (ou, mais geralmente, para cuja produção potencial já foram efetivados gastos) venham a ser sancionadas pelo mercado, ou seja, venham a se transformar em “valores de uso” para alguém. E isto porque o capitalismo, a despeito de apresentar um elevadíssimo grau de desenvolvimento de divisão de trabalho – o que define uma profunda interdependência dos produtores capitalistas e da sociedade como um todo -, é um sistema anárquico, onde as decisões de produzir são independentes e privadas, vale dizer, onde não há um organismo social que determine o que e quanto deve ser produzido. Apenas com estes elementos já podemos entender porque uma economia capitalista tem como característica transformar de forma recorrente as suas possibilidades reais de produção de mercadorias para além do que o mercado é capaz de absorver na fonte de violentas crises. Para que isto ocorra é suficiente que um número “X” de empresários capitalistas, a partir de um certo momento, adotem expectativas pessimistas em relação à possibilidade de colocação rentável de seus produtos no mercado e respondam a este fato diminuindo as compras (de insumos e de bens de capital) de outros produtores. Se estas ações não forem contrabalançadas por ações em sentido contrário de outros empresários (e não há nada que leve a esperar isto), este fenômeno pode resultar em um processo do tipo “bola de neve”, em que todos os produtores, ao procurarem se defender comprando ou produzindo menos, dêem origem a uma retração geral dos mercados, limitando ainda mais as possibilidades de terem seus próprios produtos vendidos. Até onde este processo pode ir, vai depender de n fatores, desde os, por assim dizer, “políticos” (definidores do sentido e qualidade da intervenção do Estado), os “propriamente econômicos” (como os números de falências, que abrem espaço para que as empresas sobreviventes abocanhem fatias de mercado de suas ex-concorrentes e voltem a crescer no bojo de um processo de concentração de capitais), e de caráter “técnico” (velocidade de deterioração dos equipamentos ociosos instalados). O fator determinante em última instância, contudo, será sempre a capacidade dos capitalistas de refazerem suas expectativas em relação ao futuro. E na medida em que estas expectativas são apostas contra um futuro incerto, elas são marcadas por uma forte dose de “irracionalismo”. O que há de irônico nisto é que, sejam quais forem as expectativas, elas tendem a se realizar. Assim, se elas forem fortemente pessimistas, a demanda efetiva da economia deverá cair de tal maneira a gerar uma crise muito violenta, o que acaba por “confirmar” a previsão dos empresários. Na busca de contornar as conseqüências postas na imprevisibilidade do futuro, os empresários procuram adotar uma postura conservadora – não se deixando influenciar por indícios pouco convincentes de que se inicia um processo de crescimento acelerado ou de crise – e seguir a opinião média. Isto se consubstancia na prática empresarial de definir o montante de investimento que será 62 realizado – na falta de outros indícios seguros e rigorosos sobre a provável evolução futura dos negócios – a partir das variações recentes no grau de utilização da capacidade produtiva instalada. Privilegiar este indicador não livra, contudo, o sistema de flutuações. Na realidade, pode-se dizer que as reversões abruptas de expectativas vão definir tão somente as crises mais profundas, enquanto as flutuações cíclicas que caracterizam o sistema capitalista prescindem de alterações violentas no estado de confiança nos negócios. Grosso modo, podemos apresentar os determinantes da dinâmica cíclica da economia da seguinte forma: se a economia se encontra crescendo, vai chegar um momento em que determinados mercados – uns primeiro que outros – vão ser saturados, ou seja, se esgotarão as possibilidades de ampliação da oferta e venda lucrativa de mercadorias nos mesmos. Tal como se pode depreender da caracterização dos padrões de gasto capitalista e operário feita acima57, esta saturação de mercados tende a ocorrer primeiramente em segmentos que produzem bens de luxo, destinados ao mercado restrito e bastante estável do consumo capitalista. Na verdade, a única chance de que tais mercados cresçam ininterruptamente é se os próprios trabalhadores se incorporarem aos mesmos como compradores de bens de consumo duráveis e bens de luxo. Vale dizer: a saturação dos mercados (e, por conseguinte, a dinâmica cíclica) tende a se manifestar com mais intensidade em economias onde a concentração da renda é maior, e com menor intensidade (podendo mesmo não se manifestar) em economias que conseguem preservar uma distribuição de renda mais eqüitativa58. Uma vez manifesta esta saturação, e caso não haja estímulos extraordinários ao investimento produtivo59, ela vai determinar a retração dos planos de investimento dos empresários que atuam nestes setores. Afinal, não há porque investir – ampliando a capacidade produtiva das plantas – se as vendas esperadas são estáveis. O resultado da retração dos investimentos nos setores saturados é a queda na demanda de máquinas e instalações. O que, por sua vez, vai determinar uma queda na produção corrente e no nível de utilização da capacidade instalada das indústrias produtoras de bens de capital; vale dizer: vai se elevar o nível de capacidade ociosa nestas indústrias. E a reação dos empresários deste setor à queda de demanda corrente será não apenas uma retração dos seus planos de investimento (o que deprime ainda mais a demanda de máquinas!) como uma retração dos seus gastos correntes com insumos (aço, energia elétrica, peças, etc.) e com mão-de-obra. Ora, na medida em que trabalhadores são desempregados das firmas produtoras de máquinas e instalações (e das firmas produtoras de insumos para máquinas e instalações), cai a demanda pelos 57 E assumindo-se, por hipótese, que não ocorre qualquer inflexão nas expectativas e decisões de investimento empresariais, que definiria a crise, por oposição a mera depressão cíclica. 58 A este respeito, veja-se o capítulo sexto de Paiva (2007). 59 Associados, por exemplo, a alguma revolução tecnológica, que obrigue os produtores a substituírem o maquinário defasado antes mesmo de seu pleno desgaste e depreciação. 65 valorização especificamente financeira, e aposta no redirecionamento sistemático da ação empresarial para a esfera da produção, via investimentos em novas máquinas e instalações, o que reforçaria a demanda sistêmica e daria sustentabilidade ao crescimento da economia real62. Por fim, Marx e Schumpeter têm visões distintas dos desdobramentos da internacionalização da ordem burguesa. Ambos percebem claramente que esta é uma tendência universal. Marx, em particular, vê nesta estratégia uma das alternativas buscadas pelas grandes empresas capitalistas para driblar a crônica insuficiência de mercados internos. Segundo o autor: “Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo terrestre. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda parte. Pela exploração do mercado mundial, a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. Para o desespero dos reacionários, ela roubou da indústria sua base nacional. As velhas indústrias nacionais foram destruídas e continuam a ser destruídas diariamente. São suplantadas por novas indústrias, cuja introdução se torna uma questão vital para as nações civilizadas – indústrias que já não empregam matérias-primas nacionais, mas sim matérias-primas vindas das regiões mais distantes, e cujos produtos se consomem não somente no próprio país mas em todas as partes do mundo. ..... Com o rápido aperfeiçoamento dos instrumentos de produção e o constante progresso dos meios de comunicação, a burguesia arrasta para a torrente da civilização todas as nações, até mesmo as mais bárbaras. Os baixos preços de seus produtos são a artilharia pesada que destrói todas as muralhas da China e obriga à capitulação os bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros.” (Marx e Engels, 2005, pp. 43/4) O problema é que, na medida em que se universaliza a ordem burguesa sobre o globo terrestre, se universalizam suas contradições e limites. Pior: enquanto nos países centrais a transição para o capitalismo se deu a partir de revoluções democráticas e populares – que levaram à constituição de Estados nacionais efetivamente comprometidos com a igualdade formal63, com raras e honrosas exceções64, a transição da periferia se realizaria a partir de processos políticos impostos desde fora e sem qualquer participação cidadã. O resultado é que a concentração da propriedade e da renda nestes países tenderia a ser levado ainda mais longe do que nos países centrais; de sorte que os limites de mercado que circunscrevem a continuidade do crescimento e da acumulação capitalista seriam levados ao paroxismo na periferia. 62 A este respeito, vejam-se os capítulos 3, 5 e 6 de Schumpeter, 1982. 63 Mas não aparencial: a igualdade formal corresponde à igualdade jurídica e política, que se contrapõe à igualdade real apenas na medida em que não contempla qualquer igualação no plano da propriedade dos meios de produção e das condições de reprodução autônoma. 64 Dentre as quais, a mais importante é o processo japonês. 66 Schumpeter concordava integralmente com a tendência a globalização anunciada por Marx há mais de século e meio. Porém, em contraposição às teses de Marx, Lênin e Rosa Luxemburgo, acreditava que os processos nacionais de desenvolvimento capitalista são demasiado díspares para sofrerem qualquer generalização, de forma que, assim como não se poderia identificar uma tendência à estagnação nas economias centrais, tampouco se poderia identificar uma tal tendência na periferia65. Ora, naquilo que Marx e Schumpeter estão de acordo – a revolução técnica permanente, a universalização do capitalismo sobre o globo, o surgimento e consolidação das grandes empresas, etc. – não parece haver muito espaço para dúvida: seus prognósticos se mostraram absolutamente corretos. Mas, no plano das divergências, ainda há espaço para polêmica, pois podemos encontrar evidências empíricas que corroboram, tantos as tese de Marx e seguidores, quanto as teses de Schumpeter. A verdade é que a história transcorrida não garantiu vitória inconteste a nenhum destes dois grandes gênios do pensamento econômico. Não obstante, arriscaríamos dizer que a sombria visão de futuro de Marx vem se realizando e se impondo com poucas notas dissonantes na periferia do capitalismo; em particular na América Latina e na África. De outro lado, nos países centrais, as tendências identificadas por Marx – crises recorrentes, subutilização crônica dos recursos produtivos (em particular da força de trabalho), concentração da propriedade, etc. – realizam-se de forma clara; mas em níveis menos dramáticos e perversos do que os previstos por esse autor (ainda que, talvez, em níveis mais persistentes e profundos do que os previstos por Schumpeter). Só que, aparentemente, estas tendências só se realizam de forma mitigada porque um amplo conjunto de instituições (dentre as quais, o próprio Estado) e políticas (de emprego, de renda, de defesa da concorrência, etc.) são mobilizadas com vistas a dirimir os efeitos deletérios do livre funcionamento do mercado. Esta dualidade parece revelar que o capitalismo é ainda mais plástico e adaptável do que Marx projetava. Mas isto não nos joga necessariamente no campo de Schumpeter, mais “incertezionista e relativista” do que o de Marx. Pelo contrário: nos recoloca na trilha marxista ao propor a questão das determinações histórico-materiais da construção de instituições (em particular, mas não só, do Estado) capazes de driblar a plena manifestação das tendências mais perversas do sistema capitalista. E – mais uma vez na contra-mão de Schumpeter – a resposta parece se encontrar, sim, no padrão de transição para o sistema mercantil-capitalista, e, por conseqüência, na influência imperialista. Aqueles países que transitaram autonomamente para este sistema – como a Inglaterra, os Estados Unidos e a França, para citar apenas os casos clássicos – passaram por revoluções abertas, que envolveram a ampla mobilização da população, inclusive de seus estratos subordinados. E os Estados que emergem destas revoluções assumem perfis e compromissos com a democracia e com a cidadania que 65 Para a crítica schumpeteriana da teoria marxista do Imperialismo, veja-se Schumpeter, 1984, pp. 72 e segs. 67 extrapolam à dimensão puramente formal do igualitarismo burguês. Diferentemente, as nações que transitam para a ordem mercantil a partir de “revoluções pelo alto”, articuladas a partir de alianças entre os estratos dominantes internos e o capital internacionalizado, ingressam na nova ordem sem abrir o Estado às pressões e demandas dos “de baixo” e sem alterar os padrões de estratificação social pré-capitalista; padrões estes que vão se tornando ainda mais perversos na medida em que se adotam práticas regulatórias que sancionam (quando não aceleram e aprofundam!) as tendências de concentração da renda e da propriedade imanentes à concorrência capitalista66. 2.5 CONCLUSÃO Ao longo deste capítulo procuramos demonstrar uma tese: a de que o sistema mercantil- capitalista é um sistema muito particular, que não comporta qualquer “naturalidade”. O que não implica pretender que ele seja, em qualquer sentido, “anti-natural”. Pelo contrário: sua particularidade primeira se encontra justamente no fato de que ele permite a manifestação nua e crua daquilo que os neoclássicos consideram a própria “natureza” do homem: a racionalidade instrumental, a busca do máximo benefício por unidade de dispêndio. Uma particularidade que Marx e Engels traduzem (na passagem que nos serve de epígrafe), na afirmação de que no mundo do mercado “os homens são obrigados finalmente a encarar sem ilusões a sua posição social e as suas relações [utilitárias e conflituosas] com os outros homens”. (Marx e Engels, 2005, p. 43). A frieza e o utilitarismo que caracterizam as relações sociais neste sistema têm um pressuposto básico. Os homens não se vêem”, aqui, como “superiores e inferiores”, “protetores e dependentes”, “membros de um clã ou de outro”, “aliados ou inimigos”. A despeito da profunda interdependência do mundo do mercado globalizado e das enormes desigualdades de renda e propriedade, os agentes econômicos do capitalismo se vêem como reciprocamente independentes e iguais. E esta forma de se ver, não só não é meramente ilusória (a solidão e a alienação são reais!), como tem desdobramentos e conseqüências reais. A primeira conseqüência é que administram os seus recursos sem medir as conseqüências sociais. O que se resolve na incessante revolução da base produtiva (manifesta, primordialmente, nos processos de industrialização e urbanização), na recorrente emergência de “crises de superprodução”, e na crescente diferenciação entre proprietários/gestores dos meios de produção concentrados e trabalhadores desapropriados. A segunda conseqüência deriva-se das anteriores: ao se verem como portadores de direitos iguais e submetidos a condições de reprodução desigual, os trabalhadores se organizam, reivindicam e tensionam sistematicamente a ordem política e social. 66 A este respeito, recomendamos fortemente a leitura do, tão brilhante, quanto subestimado trabalho de Barrington Moore Jr., intitulado As origens sociais da ditadura e da democracia. (Moore Jr., 1975). 70 Os primeiros dois indicadores são os que apresentam maior complexidade e cuja consolidação foi fruto de polêmicas mais profundas e prolongadas. Além disso, eles são a base imediata dos indicadores 3 e 4 e mediata dos indicadores 5 e 6 supra-referidos. De forma que o tratamento dos primeiros – feito nas duas próximas seções – exigirá um espaço significativamente maior que o tratamento dos demais indicadores, todos eles objeto da quarta e última seção deste capítulo. 3.2 PRODUÇÃO, PRODUTO BRUTO E PRODUTO LÍQUIDO A pergunta “qual é o produto?” da atividade econômica é tão antiga quanto a Economia. E esta não é uma questão trivial. Afinal, em cada processo de produção particular ingressam uma infinidade de bens, que são transformados ao longo do mesmo, resultando em um conjunto completamente distinto ao final. O que é “produzido” neste processo? Não se trataria de um mero processo de transformação, à la Lavoisier? Será que em Economia, como na Química, nada se cria, nada se destrói, tudo se transforma? E, em caso afirmativo, ainda seria possível falar em um produto econômico? Em que sentido? Desde os primórdios da Economia Política, a resposta hegemônica a esta pergunta fundamental é que o produto da economia corresponde àquela parcela dos bens e serviços que resultam da atividade humana e excedem as necessidades de reprodução simples (vale dizer, da reprodução constante, em um dado patamar) do sistema. Ou, em outras palavras: se tomamos o processo de produção como a transformação de um conjunto de insumos (inputs) em um novo conjunto de bens e serviços (outputs), o produto seria aquela parcela de bens e serviços gerados que excedem os bens e serviços incorporados no início e utilizados/consumidos/destruídos ao longo do processo68. Esta resposta fará escola. Mas, para tanto, ela teve que sofrer um conjunto de determinações necessárias ao enfrentamento de ambigüidades internas à mesma. Desde logo, há que se notar que: 1) os bens e serviços que entram e saem do processo de produção não são sempre os mesmos (de forma que não há como definir rigorosamente o produto em termos físicos); 68 O que implica dizer que as leis físico-químicas da conservação da matéria e da energia só são válidas na Economia cum grano salis. É que estas leis se referem a processos de mudança meramente quantitativa, enquanto em Economia (mais ainda que na Biologia, onde a mudança de forma também envolve mudança de conteúdo, evolução) as transformações são qualitativas. Na realidade, a matéria e a energia que entram e saem dos sistemas econômicos são constantes. Nem poderia deixar de sê-lo, na medida em que o sistema produtivo não deixa de ser um sistema físico-químico. Mas o que é peculiar do sistema econômico é o fato dos homens concentrarem, canalizarem e maximizarem o aproveitamento do sistema energético disponível através do trabalho, reduzindo ao máximo a entropia imanente à natureza. Na verdade, a essência do trabalho é justamente a canalização consciente da disponibilidade energética humana para a produção (por oposição ao mero consumo do que é ofertado pela natureza em sua forma original e primitiva, à mera destruição do existente) de um volume de bens e serviços capaz de reproduzir a espécie humana e seu meio ambiente natural e artificial de forma ampliada. Como sabemos bem, há controvérsia no que diz respeito à sustentabilidade de longo prazo do padrão atual de reprodução econômica e ecológica. Porém, não nos parece possível questionar o fato de que, se tomamos por referência os padrões de vida dos homens primitivos, a humanidade tem sido extremamente bem sucedida nesta tarefa. 71 2) alguns bens e serviços duram, e podem ser insumidos diversas vezes (o que complexifica o cálculo da reposição). Um exemplo pode ajudar à compreensão destes dois pontos problemáticos. Seja uma economia muito simples, de inflexão agrícola, que utilize e gere os seguintes bens: Quadro 1: Insumos e Produção de uma Economia Agrícola A produção total (que não é sinônimo de produto total) deste sistema é o conjunto de bens listados na última coluna69. Mas qual é o produto da economia? É fácil perceber que, de acordo com a definição dada anteriormente, as 30.000 toneladas de esterco/adubo não fazem parte do produto, uma vez que apenas repõem a quantidade insumida70 no período anterior. Da mesma forma, 10% da produção de trigo não é produto, mas corresponde à semente que foi insumida no período Bens e Serviços Quantidade Utilizada Quantidade Produzida Terra de Qualidade A (ha) 200.000 Trabalho (horas) 20.000.000 Gado (cabeças de bovinos) 100.000 (como matrizes, 22.000 (novilhos) tração e prod. de esterco) Arados 1.000 100 Trigo (sacos 60 Kg) 100.000 (sementes) 1.000.000 Esterco (ton) 30.000 (adubo) 30.000 Carne, couros, ossos e 15.000 15.000 outros der de bovino (cab) Pedras (ton) 200.000 Igrejas 3 69 A distinção entre produção e produto não é trivial e, via de regra, confunde os neófitos em Economia. Aqueles que têm algum conhecimento da contabilidade empresarial - Contadores, Administradores de Empresas, Empresários, etc. – compreendem mais facilmente esta distinção quando entendem que a mesma corresponde, em termos agregados, à distinção entre Receita Total (RT) e Valor Agregado (VA) no plano da firma. Essencialmente, a produção de uma Economia corresponde ao somatório das Receitas Totais das firmas, enquanto o produto corresponde ao somatório dos Valores Agregados no interior das mesmas. 70 Insumir é um neologismo da Economia que significa utilizar como insumo em um processo produtivo. Alguns economistas (assim como, em geral, os leigos) não diferenciam o ato de “consumo” do ato de “insumo”. Do nosso ponto de vista, contudo, é importante diferenciar estas duas dimensões da reprodução econômica; pois enquanto o consumo é um ato de destruição que reproduz o indivíduo, o insumo é um ato de destruição realizado no interior de firmas com vistas à geração de novos produtos e à apropriação de rendimentos (em última instância, de lucros). 72 anterior e que tem de ser reposta. Mas o que dizer da Terra e do Trabalho? Será que a utilização destes insumos implica em um desgaste cuja reposição deveria ser subtraída da produção total antes de se identificar o produto efetivo (líquido dos dispêndios com insumos) da Economia? A maioria dos economistas do período clássico, de Quesnay a Marx, responderam afirmativamente à pergunta anterior71. Segundo eles, tanto a capacidade produtiva da terra, quanto dos trabalhadores se desgastam, e este desgaste solicita reposição. Ora, de acordo com a definição de produto dada acima, toda a produção que se volta à mera reposição (da capacidade produtiva) dos insumos mobilizados no ciclo produtivo anterior não faz parte do produto. Mas o que é necessário para recompor a Terra? Trabalho (de adubação/estercagem, construção de curvas de nível para impedir a erosão, etc. etc,), alternância de culturas e pousio. E para recompor a capacidade produtiva dos trabalhadores? Alimentos e demais bens essenciais de consumo no montante necessário à reprodução simples (sem expansão) de uma família. Se, no exemplo anterior, os bens necessários à reprodução da capacidade produtiva dos trabalhadores (inclusive daqueles envolvidos na reprodução da capacidade produtiva da terra), correspondessem a 600.000 sacos de trigo e a 10.000 cabeças de gado abatidas (representando, carne, couro, etc.), então o produto gerado nestes dois setores, seria de apenas 300.000 (Produção Total menos Sementes menos Alimento dos Trabalhadores) sacos de trigo e 5.000 (Produção menos Alimento dos Trabalhadores) cabeças de gado. Mas a definição clássica de Produto será contestada pelo neoclassicismo. Na esteira desta escola, virtualmente todos os economistas contemporâneos (excetuados alguns marxistas mais resistentes) vão contabilizar a parcela da produção que remunera os trabalhadores como “produto”. Esta opção está assentada em dois argumentos. O primeiro – de inflexão normativa e ideológica72 - acusa a contabilidade clássica de tratar “homens” como “insumos”, equiparando os trabalhadores (e sua remuneração, os bens-salário) aos animais de carga (e à condição de reprodução destes, o pasto-feno- ração). Desta perspectiva, o trabalhador (e o salário) “deve(m)” ser tratado(s) na contabilidade social da mesma forma que os empresários/capitalistas (e sua remuneração, o lucro/juro)73. O segundo 71 O que, nos termos da analogia anterior entre Produto e VA, implica dizer que, para estes autores, o Valor Agregado pelas empresas corresponderia tão somente ao Lucro Bruto Total das mesmas, antes do pagamento de aluguéis, impostos, juros e dividendos. Vale observar que este padrão de contabilidade empresarial e social proposto pelos clássicos deixou de ser hegemônico na segunda metade do século XIX. Se o apresentamos aqui é para que o leitor tome consciência do caráter complexo e controverso do tema, bem como da existência de alternativas logicamente consistentes de contabilização do produto econômico. 72 Como já vimos no capítulo de abertura, um juízo é normativo quando pretende informar o que “deve ser”. A estes se contrapõem os juízos positivos, que se restringem a informar o que “é”. Um juízo é ideológico se se assenta em princípios que não são objeto de questionamento sistemático e que se voltam à defesa do padrão vigente de estratificação sócio- econômica. Juízos ideológicos se contrapõem a juízos utópicos (que se assentam em princípios igualmente inquestionados mas articulados em argumentos críticos à desigualdade social consolidada), bem como a juízos científicos (que não se assentam em princípios, mas em hipóteses teóricas postas sob crítica lógica e empírica permanente). 73 Os defensores da perspectiva clássico-marxista se defendem dizendo que não são eles que afirmam a igualdade ente trabalhadores e coisas, mas o sistema capitalista. Neste, o trabalhador é um insumo dentre outros e o salário um custo dentre outros. Ocultar esta perversão do sistema é que seria ideológico, injusto e perverso para com os trabalhadores. 75 isto que, usualmente, adota-se o Produto Bruto - seja na forma de PIB (Produto Interno Bruto), seja na forma de PNB (Produto Nacional Bruto) – como a medida de Produto Econômico76. Por fim, cabe discutir uma última ambigüidade da idéia de Produto, manifesta no Quadro 1 acima na transformação de Pedras em Igrejas. A questão é: se o Produto Bruto é a parcela da produção que resta após a reposição dos insumos absorvidos no processo produtivo, como definir qual a percentagem das Igrejas que faz parte do mesmo? Se fôssemos seguir o padrão definido pela agricultura – exemplificado acima pela subtração das sementes à Produção total de trigo para definir o Produto-Trigo – teríamos de subtrair as pedras incorporadas nas Igrejas para definir o Produto- Igreja. Mas a analogia é bastante imperfeita. Afinal, as pedras que se transformaram em igrejas não podem recompor a pedreira destruída. Na verdade – e este é o problema mais difícil de resolver - não podemos recompor o estoque de pedras que foi retirado da natureza! Além disso, à diferença do caso semente-trigo, o produto (Igrejas) e o insumo (pedras) não são homogêneos. De forma que não se pode simplesmente dizer: extraia-se da produção final o quantum utilizado como insumo na produção, que o saldo líquido corresponderá ao produto. Não há qualquer saldo líquido nesta operação. Pelo contrário: com toda a certeza, o volume de pedras nas Igrejas é inferior ao volume extraído das pedreiras. Uma alternativa de resolução do problema seria contabilizar pedras e Igrejas pelo seu valor venal. Vale dizer: uniformizamos o que é heterogêneo tomando o valor de mercado dos bens como unidade de medida universal. Mas, caberia perguntar então: 1) qual é o valor venal de uma Igreja?; 2) qual o valor venal de uma pedreira e das pedras extraídas da mesma?; e 3) mesmo que Igrejas e pedras tenham valor venal, até que ponto eles expressam de forma adequada o “valor real” destes bens? A última destas três questões é uma das mais complexas e controversas em Economia. Sem dúvida, não há, nem uma resposta consensuada, nem uma resposta satisfatória para a mesma no interior desta ciência. Mas para as duas primeiras, há já uma resposta consensuada, ainda que insuficiente. O que ela afirma é que os bens e serviços produzidos para a venda (mesmo quando irreprodutíveis, como pedras ou petróleo) devem ser avaliados e contabilizados pelo seu preço de mercado, e os bens e serviços que não são produzidos para a venda (como é o caso dos bens e serviços fornecidos gratuitamente pelo governo: educação pública, segurança, etc.) devem ser avaliados e contabilizados pelos seus custos de produção. Neste caso, a contribuição da pedreira para o Produto social é a receita total gerada pela venda das 76 A diferença entre Produto Interno e Produto Nacional é definida pela parcela da produção interna que tem de ser enviada ao exterior para pagar os rendimentos (dividendos, juros, lucros, royalties, aluguéis e salários) de proprietários estrangeiros que atuam na economia nacional, líquida da parcela recebida por nacionais por suas propriedades no estrangeiro.. No caso do Brasil, o Produto Nacional é cronicamente inferior ao Produto Interno (em torno de 94% deste último), pois os juros, lucros e royalties pagos superam de forma significativa (em torno de seis vezes) os rendimentos recebidos do exterior. 76 pedras menos os gastos com os insumos necessários à extração das mesmas (é o Valor Agregado nas pedreiras). E a contribuição das Igrejas para o Produto social é o valor total despendido na sua construção menos os gastos com os insumos físicos (no nosso exemplo, as pedras) incorporados à mesma. Supondo que, para além dos insumos-pedras, os dispêndios com a produção das Igrejas tenha se resumido ao pagamento de pedreiros, artesãos, arquitetos, e pintores, o total despendido com estes trabalhadores corresponderá ao valor do Produto- Igreja. A insuficiência desta dúplice resposta é mais ou menos evidente. De acordo com o conceito anunciado acima, só é Produto a parcela da Produção que excede os insumos desgastados ao longo do processo produtivo. Mas, neste caso, estamos contabilizando como “Produto” todo aquele valor das pedras que superam os gastos com os insumos necessários à extração das mesmas, ignorando o fato de que a própria pedra é um insumo. Uma contradição. Mas uma contradição insolúvel até que se encontre uma resposta para o problema nada trivial de definir o valor de bens que, sob a atual tecnologia, são irreprodutíveis77. Da mesma forma, contabilizar o valor de uma Igreja – ou de bens públicos como segurança e educação - pelos seus custos de produção não é uma solução satisfatória. Esta técnica de contabilização simplesmente ignora a qualidade do que está sendo ofertado: um sistema educacional público dispendioso (em termos de gastos com funcionalismo) mas ineficiente será avaliado como gerador de um produto social maior do que um sistema público mais eficiente e menos dispendioso. Uma Igreja cuja construção tenha sido altamente dispendiosa gerará, formalmente, uma adição ao produto (e ao estoque de Riqueza da Economia) maior do que uma outra que tenha contado com a colaboração voluntária de seus fiéis na construção, ainda que o valor estético-arquitetônico (e a fruição destes benefícios por visitantes e transeuntes), bem como os serviços de conforto espiritual e integração social da segunda sejam muito maiores que os da primeira. Infelizmente, o instrumental desenvolvido pelos economistas para avaliar a Produção, o Produto e a Riqueza Social ainda não dá conta de enfrentar este conjunto de contradições 77 É importante frisar que os bens ditos “irreprodutíveis” só o são dentro dos limites da tecnologia atual que, por sua vez, é função da disponibilidade relativa dos próprios bens. Como veremos no próximo capítulo, quanto mais escasso um bem, maior tende a ser o seu preço e maior a pressão para o desenvolvimento de alternativas tecnológicas ao seu uso. Estas alternativas podem ser, tanto a utilização de bens substitutos, quanto a da produção do bem escasso através de sistemas industriais (produção “artificial”). Afinal, como dissemos acima, a Economia não nega a lei de Lavoisier segundo a qual, na natureza, nada se cria, nem se destrói, apenas se transforma. Nem poderia. A peculiaridade dos processos humano-econômicos de produção se encontra na possibilidade de alterar qualitativamente e conscientemente os padrões de utilização dos limitados recursos naturais disponíveis. 77 e ambigüidades. Por isto mesmo, é preciso saber ler e interpretar as medidas fornecidas pela Contabilidade Social se se quer ter uma referência sólida para a avaliação do desempenho econômico real de uma dada Economia Nacional. De outro lado, as ambigüidades supra-referidas não podem servir de base para a negação pura e simples da Contabilidade Social em geral, e da categoria Produto em particular, como instrumento de avaliação de desenvolvimento e Bem-Estar. E isto, de forma particular, porque a categoria Produto é indissociável dos rendimentos auferidos pelo conjunto dos moradores de um território. Este relação é o objeto da próxima seção. 3.3 PRODUTO E RENDA Imaginemos uma Economia Mercantil Simples78. Nela, produzem-se os mais diversos bens e serviços: trigo, milho, porcos, laranjas, mesas, cadeiras, carroças, comércio a varejo, educação, etc. Não obstante, podemos agregar estes diversos bens e serviços em setores (agricultura temporária, pecuária, indústria do mobiliário, etc). Para simplificar, vamos dividir a produção em apenas três setores: a Agricultura, a Indústria, e os Serviços. Ora, cada produtor independente – e, por conseguinte, cada um dos setores da economia – necessita adquirir insumos uns dos outros para produzir. O produtor de laranjas, por exemplo, necessita comprar adubo (que em nossa primitiva economia hipotética corresponde ao esterco produzido na pecuária), sacos (por hipótese, produzidas por artesãos urbanos) e contratar serviços de transporte (por hipótese, de agentes urbanos) para gerar e comercializar sua produção. Da mesma forma, o produtor de sacos necessita comprar juta dos produtores agrícolas, óleo e graxa (para a manutenção dos teares e máquinas) dos produtores urbanos e contrata serviços de reparação para o maquinário. Por fim, o fornecedor de serviços de transporte compra feno dos agricultores para alimentar os animais de carga, ferraduras e cordame dos artesãos e utiliza serviços de manutenção para as carroças. E assim como estes, todos os produtores compram uns dos outros; de sorte que todos os setores da nossa economia hipotética fornecem insumos para os demais setores e para si mesmos. O Quadro 2, abaixo, sintetiza o conjunto das transações de uma tal economia hipotética. 78 A Economia Mercantil Simples é uma economia mercantil de pequenos produtores independentes (os trabalhadores são os proprietários dos meios de produção). Sua estrutura fundamental, historicidade e relevância teórica foi objeto de tratamento na terceira seção do capítulo segundo. 80 quando, enquanto proprietários das firmas (sejam elas familiares, como no nosso exemplo, ou firmas capitalistas), compram máquinas para a substituição das depreciadas ou para a ampliação da capacidade produtiva. Assim, a demanda das famílias se divide, na verdade, em duas partes: demanda de consumo e demanda de investimento. E como o Produto é igual à Renda que é igual à Demanda, temos que o Produto da Economia é igual ao somatório do Consumo e do Investimento. Em termos formais, PIB = Y = C + I (1) Onde Y é a notação usual para a renda das famílias, C é a notação para a demanda de consumo e I a notação para a demanda de investimento. Vale observar ainda que a equação acima não expressa rigorosamente uma igualdade, mas uma identidade contábil. Ou seja, ela não representa uma situação de equilíbrio - da qual a economia poderia eventualmente se apartar - mas uma situação na qual qualquer economia mercantil se encontra sempre e necessariamente81. E isto pela razão já exposta: o valor da produção é igual ao valor das vendas (mais a variação dos estoques dos produtores). E o valor das vendas é necessariamente igual à demanda total (consumo intermediário mais demanda final). Se se subtrai do valor das vendas o valor do consumo intermediário, tem-se o valor agregado, que é igual ao produto da Economia. Mas, se é assim, cabe perguntar qual a utilidade da distinção categorial entre renda, produto e demanda final. E a resposta é que, para além destas serem dimensões hierarquicamente distintas de uma mesma e única realidade (é a demanda que estimula a produção, que, por sua vez, viabiliza a apropriação de rendas), estas distinções se mostram mais expressivas quando os modelos analíticos se tornam mais complexos. Em particular, como se verá mais adiante, com a introdução do governo, o produto continuará sendo igual à renda, mas não será mais igual à renda disponível, pois a tributação subtrai uma parcela da renda global aos cidadãos. Da mesma forma, com a introdução das relações internacionais, o produto interno vai se diferenciar da renda nacional, pois nem tudo o que é produzido no país é apropriado por cidadãos do país. Em segundo lugar, cabe fazer um comentário sobre o valor (100 u.m.) que aparece na intersecção entre a linha “Renda das Famílias” e a coluna “Demanda das Famílias” no Quadro 2, acima. Trata-se, aí, da remuneração dos serviços prestados às famílias (empregados domésticos). O interessante desta categoria de rendimento é que ela só é computada na medida em que existe um 81 Evidentemente, as relações contábeis se tornam mais complexas quando se abre mão das hipóteses simplificadoras adotadas acima e se avança no sentido de uma economia propriamente capitalista, onde as categorias de rendimento são mais complexas (com a emergência de categorias como salários, juros, aluguéis, lucro líquido, etc.) e existem outros agentes econômicos (como o governo e os demandantes externos). Incorporaremos estes elementos na seção destinada à Macroeconomia. 81 desembolso financeiro. Vale dizer: se em nossa economia hipotética todas as atividades domésticas fossem realizadas pelos membros da família, não haveria qualquer desembolso e, por conseqüência, o sistema de contas nacionais não reconheceria esta atividade como geradora de produto e renda82. Mas, se ela é realizada por terceiros que recebem uma remuneração monetária pela mesma, então ela tem que ser computada como um serviço e, como tal, como geradora de um produto e de uma renda específica. Por mais que isto seja estranho – e, de fato, é! – esta é a regra de contabilização consagrada. O que nos faz ver, mais uma vez, o quanto o sistema de Contabilidade Social é uma fonte rica, mas questionável de avaliação de produção efetiva e de bem-estar econômico. 3.4 UMA AVALIAÇÃO DE INDICADORES SELECIONADOS DE ATIVIDADE E BEM-ESTAR ECONÔMICOS Como anunciamos na primeira seção deste capítulo, selecionamos – para além do PIB e da Renda Agregada – outros seis Indicadores de Atividade e Bem-Estar Econômicos para fazer uma breve apresentação de sua estrutura e avaliar sua pertinência e consistência interna. Malgrado já havermos abordado as principais limitações das categorias irmãs PIB / Renda enquanto indicadores de atividade, iniciaremos pela crítica das mesmas enquanto indicadores de Bem-Estar, para tratar, na seqüência, das categorias: 1) PIB / Renda per capita; 2) Taxas de crescimento do PIB / Renda; 3) Taxas de Emprego e Desemprego; 4) Variação da Taxa de Desemprego; 5) Índice de Desenvolvimento Humano. 3.4.1. PIB e Renda Estas categorias são utilizadas por vezes como medidas da capacidade produtiva de uma nação e, por extensão, como indicadores da riqueza e do Bem-Estar de sua população. É isto que ocorre – ainda que subliminarmente – quando se valoriza o ranking de um país em termos do seu PIB e se diz, por exemplo, que o Brasil é (ou deixou de ser) a oitava economia do mundo. Desde logo, o que não se leva em conta neste ranqueamento é o tamanho do país e de sua população. Assim, o fato do Brasil apresentar um PIB superior ao da Suíça ou da Finlândia não significa mais do que o fato do Brasil ser um país muito maior do que estes dois. Além disso – e este ponto é ainda mais grave e complexo – estes ranqueamentos são feitos a partir da conversão do valor do PIB (contabilizado, originalmente em moeda nacional) para um padrão internacional qualquer (usualmente o dólar norte- americano). Ora, a depender da política cambial adotada por cada país, o PIB nacional é inflado ou 82 Neste caso, a Renda das Famílias totalizaria 550 u.m., assim como a Demanda das Famílias, e o Valor da Produção da economia passaria a ser de 1450 u.m. 82 subvalorizado nestes processos. Para enfrentar este problema, são feitas, eventualmente, tentativas de conversão do PIB, não pela taxa de câmbio corrente, mas por uma taxa de câmbio de equilíbrio de longo prazo, que os economistas chamam de “paridade de poder de compra”. Não obstante, as comparações necessárias a estas conversões são complexas e dependem de informações estatísticas nacionais que não são rigorosamente comparáveis83. E o resultado é que, mesmo quando se busca eludir o problema das disparidades de padrões cambiais, não se alcança obter uma unidade de conta que permita qualquer comparação rigorosa dos bens e serviços efetivamente disponíveis para as famílias em distintos países. 3.4.2 PIB e Renda per capita Desde logo, o PIB e a Renda per capita, quando operados com fins de comparação, compartilham dos problemas observados acima no que diz respeito à comparabilidade dos PIB e Rendas nacionais em função das disparidades de padrões cambiais e de cesta de bens e serviços disponíveis. Não obstante, estes indicadores são mais acurados, na medida em que enfrentam a ilusão gerada pelo tamanho do país (e de sua população), deixando claro que o Bem-Estar (dentro dos limites de comparabilidade já referidos) dos cidadãos suíços e finlandeses é superior ao Bem- Estar dos brasileiros, independentemente de suas economias serem menores em termos absolutos. Porém, não se pode sobreestimar a acuidade deste indicador. E isto na medida em que a Renda per capita não é mais do que uma média, que pode estar eludindo uma enorme disparidade de renda interna. Assim é que, a despeito da renda per capita sueca ser maior do que a brasileira, não cabe muito espaço para a dúvida de que as famílias de maior poder aquisitivo no Brasil contam com um conjunto de serviços (a começar pelos serviços domésticos, já referidos) que são virtualmente inacessíveis a uma família sueca. De outro lado, a qualidade de vida das famílias brasileiras que se encontram nos estratos superiores de renda tem, como contrapartida, o baixíssimo poder aquisitivo das famílias que se encontram nos estratos inferiores. E esta desigualdade tende a se desenvolver em distintas formas de tensionamento social que acabam afetando, de uma forma ou de outra, a solidariedade, a segurança e a qualidade de vidas de todos. 83 Um exemplo simples e expressivo é o dos serviços prestados às famílias (empregados domésticos), referido anteriormente. Em países onde a taxa de salário é baixa, as famílias de classe média e alta podem contar com um conjunto de serviços virtualmente indisponíveis para famílias de padrão aquisitivo similar em países onde a distribuição da renda é mais eqüitativa. O que vai se desdobrar, entre outros fatores, em maiores facilidades para a sustentação de famílias numerosas nos países de distribuição de renda menos igualitária, sem prejuízo da inserção e realização profissional de qualquer um dos dois membros adultos da família. Independentemente da avaliação que se faça do caráter justo ou injusto desta “vantagem da desigualdade social”, o que importa entender é que ela existe e não é menor no que diz respeito à qualidade de vida das pessoas que se beneficiam da mesma. Mas ela não pode ser adequadamente aprendida pela contabilidade social, mesmo se se adotam padrões de comparação baseados na paridade do poder de compra das moedas. E isto pelo fato simples de que o que se compra em um país (no caso, os serviços domésticos) é virtualmente indisponível em outros. 85 partir da busca efetivamente realizada pelos trabalhadores por uma colocação no mercado de trabalho, as demais formas de desemprego são calculadas a partir de declarações dos trabalhadores potenciais. 3.4.5 Variação da Taxa de Desemprego Em função das ambigüidades das medidas de desemprego, a variação da taxa de desemprego nem sempre é uma boa medida de melhora ou piora das condições de vida dos trabalhadores. Um exemplo poderá ajudar na compreensão deste ponto. Suponhamos uma População em Idade Ativa (PIA) de 100.000 pessoas85, e uma PEA de 70.000, com 7.000 desempregados. Neste caso a taxa de desemprego seria de 10%, afinal: Taxa de Desemprego 1 = Desempregados / PEA = 7.000 / 7.0000 = 10% Imaginemos, agora, que o governo adota algumas políticas de apoio ao emprego e à renda, abrindo frentes de trabalho (que oferecem 5000 novos postos de trabalho) e um salário desemprego para todos aqueles que demonstrarem haver procurado emprego nos últimos 30 dias sem alcançar obtê-lo. Suponhamos, ainda, que com os novos 5.000 postos de trabalho oferecidos pelo governo o número de desempregados caia imediatamente para 2.000. Mais: imaginemos que, na seqüência, o consumo dos novos trabalhadores assalariados estimule a criação de mais 2000 postos de trabalho, prontamente ocupados por aqueles que ainda se encontravam desempregados na situação original. Será que se pode deduzir daí que o desemprego cessou? Não necessariamente. Na verdade, a política governamental de estímulo ao emprego e à geração/distribuição de renda muito provavelmente estimulará uma elevação da busca por postos de trabalho. E isto não apenas porque novas oportunidades de ocupação foram disponibilizadas, estimulando o retorno ao mercado de trabalho daqueles desempregados que não apareciam nas estatísticas oficiais em função do desalento. A política de salário desemprego estimula a busca de emprego inclusive da parte daqueles que sabem que não encontrarão postos disponíveis, mas que 85 A PIA – População em Idade Ativa - é mais uma dentre as inúmeras categorias econômicas passíveis de polêmica. E isto na medida em que ela depende do que se considera socialmente como a idade adequada de ingresso e saída do mercado de trabalho. Em alguns países, considera-se que a idade ativa tem início aos 10 anos de idade; em outros, aos 14; em outros, aos 16, ou mesmo aos 18. Da mesma forma, não há um limite consensuado para o encerramento da idade ativa. Com o aumento da longevidade e da qualidade de vida dos idosos, a idade ativa (pelo menos no plano potencial) vem se tornando mais larga. Não obstante, é fácil perceber que esta é primordialmente uma categoria social e cultural, e apenas secundariamente uma categoria biológica. O que importa entender aqui é que nem todos os cidadãos em idade ativa fazem parte da PEA. Alguns, por opção (porque estão estudando, por exemplo; ou simplesmente porque vivem de rendas), não fazem parte da PEA, seja como ocupados, seja como desempregados. 86 vêem na transferência governamental uma alternativa de apropriação de renda. De forma que se poderia imaginar um crescimento expressivo da PEA – de, por exemplo, 70.000 para 85.000 pessoas. Neste caso, a nova taxa de desemprego seria: Taxa de Desemprego 2 = 15.000 / 85.000 = 17,65% Evidentemente, este exemplo é meramente ilustrativo. Mas ele é menos irrealista do que se poderia pensar. Ao longo dos anos 1990, por exemplo, a Taxa de Desemprego espanhola era uma das maiores do mundo, atingindo quase 20% da PEA. Esta taxa – muito superior à Taxa de Desemprego apresentada pelo mesmo país na década anterior – não expressava outra coisa do que o acelerado crescimento do país – que estimulava a busca de emprego por parte daqueles que, antes, não o buscavam por desalento e pela inserção informal – e as novas políticas sociais de apoio aos desempregados. 3.4.6 Índice de Desenvolvimento Humano Na tentativa de enfrentar as ambigüidades das medidas tradicionais de atividade e bem- estar econômicos, diversas instituições voltadas à análise e acompanhamento dos processos de desenvolvimento buscaram constituir índices alternativos aos da Contabilidade Social. Dentre estes, salienta-se o Índice de Desenvolvimento Humano, criado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Este índice é uma composição de três indicadores básicos: a) renda monetária disponível média da população86; b) expectativa de vida ou longevidade média; e c) número médio de anos de estudo. Desde logo é preciso reconhecer a importância de um tal índice; assim como de índices similares que buscam resgatar outras variáveis para além do produto e do emprego na avaliação da qualidade de vida. Não obstante, também é preciso um olhar crítico sobre este índice, bem como sobre as alternativas ao mesmo, baseadas em metodologias similares. E isto, antes de mais nada, porque os indicadores que lhes servem de base são médias que não nos informam nada sobre a desigualdade e a dispersão subjacente às mesmas. Este é o caso, em particular, do componente renda no IDH. Tal como o PIB per capita, uma renda monetária disponível per capita elevada pode estar mascarando níveis de pobreza elevadíssimos se a concentração da renda for expressiva. Além disso, o fato de que se leva em consideração apenas a renda monetária tende a sobrestimar a pobreza daquelas parcelas da população que obtém parcela não desprezível de sua renda real da produção 86 Que, por oposição à renda média total, não leva em consideração os tributos e os serviços fornecidos gratuitamente pelos governos. 87 para o próprio consumo (como é caso de parcela expressiva da população rural, em particular em comunidades onde a agricultura familiar é dominante). De outro lado, há que se reconhecer que as variáveis longevidade e anos de estudo são menos passíveis de mascaramento que a variável renda, no sentido aludido acima. Afinal, se a mortalidade infantil é expressiva entre a parcela mais pobre e majoritária da população, a longevidade média será baixa, independentemente de quão longevos forem os indivíduos dos estratos ricos, mas minoritários. Não obstante, também aqui podem emergir resultados ilusórios. E isto na medida em que a depressão da mortalidade infantil e a elevação da expectativa de vida não se faz acompanhar, necessariamente, de uma melhoria nos padrões de sanidade e atendimento médico nas demais faixas etárias. Além disso – e este é o fator mais importante – a elevação dos anos médios de estudo não nos diz nada acerca da qualidade deste estudo. A partir de programas sociais em que a freqüência à escola é estimulada pela distribuição de alimentos e/ou recursos monetários (merenda gratuita, bolsa- escola, etc.), os anos médios de estudo podem crescer significativamente sem que, necessariamente, se imponha uma diminuição expressiva no analfabetismo funcional ou uma elevação efetiva no nível cultural da população “educada”. Um fenômeno que tende a se manifestar de forma particularmente intensa quando se adotam, simultaneamente, medidas legais que restringem a repetência escolar e quando os dispêndios com os programas sociais de estímulo à freqüência à escola são compensados pela diminuição das verbas voltadas à manutenção e melhoria da qualidade do ensino. 3.5 CONCLUSÃO Muito provavelmente, ao término deste capítulo, o leitor menos acostumado às polêmicas a ambigüidades da Economia deve se encontrar algo desesperançado no que diz respeito à consistência e à relevância dos mais indicadores de atividade e bem-estar econômicos, sejam os tradicionais (como PIB e sua variações), sejam os “alternativos”, como os índices de desemprego oculto e o IDH. Mas não é para tanto. Todos estes indicadores e índices são relevantes e trazem informações ricas acerca da realidade. O que não significa que devamos tomar qualquer um deles como a expressão rigorosa e suficiente daquilo que eles pretendem avaliar/mensurar de forma apenas aproximada. Se aprendemos a utilizá-los com a criticidade que eles solicitam, eles se mostram instrumentos valiosos. E, de forma particular, é preciso saber operar com todos, recusando o dogmatismo, seja dos tradicionalistas ortodoxos que não conseguem ir além da Contabilidade Social consolidada, seja daqueles que, por não entenderem as potencialidades da Contabilidade Social e os limites dos índices da família do IDH, virtualmente sacralizam os últimos e demonizam as medidas tradicionais. Assim como todas as escolas do Pensamento Econômico têm algo a nos ensinar, da mesma forma os mais distintos indicadores de atividade e bem- estar econômicos têm algo a nos ensinar sobre a realidade que buscamos interpretar. 90 Mas – a despeito do que podem pretender neoclássicos e estruturalistas – a Economia não se divide apenas em “Micro” e “Macro”. Para os institucionalistas históricos – como Smith e Marx – a Economia Política também tem como objeto o desenvolvimento das formas de produção e intercâmbio social. O que significa dizer que, para além do que os neoclássicos e estruturalistas tomam como o objeto desta Ciência – como se determinam os preços ou o emprego no sistema mercantil-capitalista tal como estruturado hoje – existe um outro nível de investigação que diz respeito aos fundamentos sócio-históricos e à evolução previsível das categorias econômicas tais como “preços” e “emprego”. Ou, para ser mais claro: questões do tipo “como surgem e em que circunstâncias se impõem os mercados e os preços?”, “que padrão(ões) de sociabilidade se desdobram dos mesmos?”, “de que forma os preços se desdobram no dinheiro, no capital, no juro e no lucro?” não cabem dentro do escopo da Microeconomia. O que é o mesmo que dizer que a Microeconomia é parte de uma Teoria Geral dos Preços e dos Mercados, mas não se confunde com ela. Mais exatamente: Microeconomia é a parte da Economia que se volta ao estudo e sistematização dos distintos padrões de produção e determinação dos preços dos bens e serviços transacionados nos mais diversos mercados. O tema é, evidentemente, amplo. Não será gratuito que os neoclássicos o tenham confundido com a própria Ciência Econômica por tanto tempo. Mas, a despeito de sua amplitude, a Microeconomia tem um núcleo objetal: o processo de determinação dos preços. E a despeito desta determinação não ser homogênea, mas marcada por profundas diferenças nos mercados organizados sobre bases distintas, ele comporta uma dimensão universal: todo o processo de determinação de preços se realiza a partir da interação de compradores (ou demandantes) e vendedores (ou ofertantes). Passemos, pois, à análise dos princípios mais gerais que orientam a ação destes inter-agentes. E, seguindo a tradição neoclássica (e cartesiana), vamos começar nossa análise acompanhando a ação mais simples - a de demanda - do agente econômico mais simples - o consumidor. 4.2 A FUNÇÃO DEMANDA E A TEORIA DO CONSUMIDOR Normalmente, quando perguntamos a um leigo em Economia o que é a “demanda” ele responde: é a quantidade de um determinado bem que os compradores adquirem (ou estão dispostos a adquirir) no mercado. Esta resposta é muito distinta daquela que os economistas dão à pergunta. Para os economistas, a demanda não se confunde com a quantidade efetivamente demandada. Ela é, antes, uma função do tipo: 91 1) ),,...,,,...,,,,( 1121 czxxcx D x EPPPPPPRPfQ +−= Nesta função, a quantidade demandada do bem x – expressa por QDx – pode assumir os mais diversos valores, a depender dos valores das variáveis explicativas: o preço do bem x (Px), a renda dos consumidores (RC), os preços dos demais bens (P1 .... Pz), e a estrutura de preferências e gostos dos consumidores (EPC). Dentre as diversas variáveis independentes, contudo, uma ocupa absoluta centralidade na explicação da quantidade demandada: o preço do bem x. Por isto mesmo, muitas vezes a função demanda é expressa em sua forma simplificada, em que se deixa explícita tão somente a relação entre a quantidade demandada e o preço do próprio bem. Neste caso, as demais variáveis explicativas são tomadas como dadas – vale dizer, tomamo-as como parâmetros, como variáveis que se encontram estabilizadas – e a expressão formal da função demanda passa a ser: 2) )( x D x PfQ = Neste caso, a demanda por um determinado bem ou serviço se define como “as distintas quantidades que os consumidores estão dispostos a adquirir do mesmo por período de tempo aos seus diversos preços possíveis”. Quando o neófito em Economia se depara pela primeira vez com esta definição ele usualmente resiste à mesma. O motivo é que, no dia a dia, utilizamos a expressão “demanda” como sinônimo de “quantidade demandada”. De forma que, à pergunta - “qual é a demanda deste bem?” - tendemos a responder: “x unidades”. Mas esta resposta pressupõe que o preço seja dado e conhecido. O que só é verdadeiro se nos colocamos na condição de indivíduos consumidores cujas decisões não afetam os preços. Para que se entenda a limitação desta perspectiva, é preciso olhar a questão de um outro ângulo. Imagine que você é um empresário e está tentando definir se vale a pena lançar um novo produto. Para decidir você tem que avaliar o “tamanho do mercado” para o mesmo, a sua “demanda”. O que envolve projetar as quantidades que (provavelmente) seriam demandadas por unidade de tempo aos diversos preços. É este conjunto de combinações entre preços e quantidades que define o ”perfil da demanda”, as características do mercado, seu “tamanho”. Determinar a demanda é, pois, avaliar o “tamanho do mercado”; o que só é possível se levamos em consideração as conseqüências potenciais da variação e preços sobre as quantidades demandadas. Antes de avançarmos neste trabalho de determinação, contudo, é preciso fazer três considerações. Em primeiro lugar, é preciso frisar que a função demanda está definida para um determinado intervalo de tempo. E isto na medida em que, dada um preço (e as demais variáveis), as quantidades demandadas pelos consumidores variarão com o período de tempo considerado, seja ele um dia, uma semana, um mês ou um ano. 92 Em segundo lugar, é importante ter claro que nós não vamos trabalhar aqui com qualquer função demanda, mas com a demanda do consumidor. E isto por dois motivos: 1) a funções demanda das empresas sobre as demais na compra de insumos89 refletem, em grande parte, as funções demanda dos consumidores dos bens finais, apresentando perfis e padrões de variação bastante similares; e 2) as particularidades das funções demanda inter-empresariais são específicas de cada mercado, não sendo o ponto de partida mais adequado para o tratamento da função demanda em sua generalidade. Em terceiro lugar, gostaríamos de alertar desde já para o fato de que, a despeito da quantidade demandada ser a variável dependente (ou explicada) da função demanda e o preço ser a sua variável independente (ou explicativa), os economistas adotaram um padrão de representação gráfica em que se inverte a posição tradicional (consagrada desde Descartes) das mesmas90. Assim, os preços são representados nas ordenadas (“eixo dos y”) e as quantidades (a variável dependente), nas abscissas (“eixo dos x”). Tal como abaixo: Gráfico 1 – Função Demanda Padrão O primeiro elemento que chama a atenção no gráfico acima é a inclinação negativa91 da função demanda. O que esta inclinação nos diz é que, normalmente (trataremos logo adiante das exceções), as quantidades demandadas sobem quando o preço de um bem qualquer cai, e as quantidades demandadas caem quando o preço do bem se eleva. Por quê?92 89 Insumos são os diversos componentes de um determinado processo de produção, sejam eles matérias-primas agropecuárias e minerais ou matérias já submetidas a processamento (peças, componentes químicos, energia, etc.). 90 Esta inversão tem bases convencionais. Mas ela nunca foi enfrentada porque ela facilita a confrontação da função demanda com outras funções econômicas (como a Receita Total e a Receita Marginal) em que a quantidade é a variável independente e, como tal, deve ser representada no eixo horizontal (a abscissa). Este ponto ficará mais claro nos dois próximos capítulos. 91 Que se manifesta independentemente da inversão dos eixos já referida: como se pode apreender com facilidade, a função também seria negativamente inclinada se as quantidades fossem representadas nas ordenadas e os preços nas abscissas. 92 Por incrível que possa parecer aos leigos, muito se escreveu e muito se polemizou sobre este padrão de relação funcional entre preços e quantidade demandada. E isto não tanto porque se ponha em dúvida o padrão propriamente dito, mas porque os economistas buscam demonstrar sua pertinência quase universal com o menor número possível de hipóteses restritivas e 95 O primeiro caso é daqueles bens que – como o sal – são adquiridos até a saciedade, até o ponto em que qualquer acréscimo na quantidade adquirida não leva a qualquer acréscimo na satisfação do consumidor. Isto ocorre quando os bens apresentam um preço médio (vale dizer, um preço de referência, um preço normal) muito baixo e um padrão de evolução da Utilidade Total (UT) tal que a perda de utilidade derivada de qualquer diminuição da quantidade adquirida e utilizada é muito expressiva. Vale observar, contudo, que mesmo esta exceção é relativa a um determinado padrão de “preço normal”. Mantendo o exemplo anterior: se o sal subisse de preço de forma expressiva, muito provavelmente haveria uma queda nas quantidades adquiridas94. O que equivale a dizer que se a função demanda é pouco sensível à queda de preços (as quantidades não variam quando isto ocorre), ela pode (e deve, nos casos mais expressivos) ser sensível às elevações de preços. Um caso mais importante e mais geral é aquele em que o bem X é produzido pelo próprio consumidor e é um bem superior, cuja demanda é ampliada pela elevação da renda dos mesmos95. Neste caso, uma elevação do preço do bem, determina uma elevação da renda dos seus produtores, que passam a demandá-lo em maior quantidade. O que envolve uma relação positiva entre preço e quantidade: maiores os preços, maior a quantidade demandada. Vale observar, contudo, que esta relação inversa entre preço e quantidade demandada só é válida para um tipo particular de consumidor – aquele que é, simultaneamente, o produtor do bem – e, normalmente, estes consumidores são a minoria no interior de um determinado mercado96. Por fim, existe uma terceira exceção – os chamados bens de Giffen – que também se deriva do impacto da variação de preços dos bens sobre a renda dos seus consumidores. Quando o mercado é composto de consumidores de renda muito baixa, que despendem a quase totalidade de seus recursos com alimentação básica (carboidratos), uma elevação qualquer no preço do bem alimentar padrão implica uma redução expressiva da renda real97 do consumidor, de forma que ele é obrigado a reduzir seus gastos com bens de “segunda necessidade” (vestuário, educação, etc.), dentre os quais se encontrariam os alimentos mais caros (normalmente, as proteínas, como carne, leite, etc.). E a diminuição na aquisição e consumo de bens alimentares mais caros e protéicos impõe a elevação na aquisição e consumo do bem básico (o carboidrato, cujo preço se elevou) que passa a ser virtualmente a única fonte de saciedade alimentar. 94 Uma queda que provavelmente seria apoiada em justificativas e racionalizações conhecidas de todos, mas que são praticadas por muito poucos enquanto o preço do sal é baixo: de que normalmente fazemos uso excessivo de sal e que tal uso é prejudicial à saúde e oculta o autêntico dos alimentos, etc., etc., etc. 95 Analisaremos na próxima seção deste capítulo a relação entre renda dos consumidores e a quantidade demandada. 96 Isto só não é assim em duas situações: 1) quando se trata de uma região significativamente especializada em um determinado produto – maçã, por exemplo – de forma que o mercado desta região é afetado uniformemente e positivamente pela elevação de preços do bem sob consideração; 2) quando se trata do mercado de trabalho: a demanda de “horas de (in)atividade” por parte dos trabalhadores pode se elevar quando a taxa de salários se eleva, uma vez que eles podem obter a mesma cesta de bens trabalhando menos horas. Vale insistir para o fato de que estes dois casos são manifestações diferenciadas de um mesmo padrão: o consumidor é, ele mesmo, o ofertante do bem cujo preço se elevou. 97 A renda real é a renda monetária dividida pelo valor da cesta de bens adquirida pelo consumidor. 96 Eventualmente, alguns livros-texto e teóricos apresentam uma quarta exceção, mas que não é, rigorosamente, aplicável à função demanda de consumo. Trata-se da demanda por bens, títulos e moedas que cumprem a função de reserva de valor (função dinheiro stricto sensu). Quando o preço destes bens se eleva é normal que – pelo menos em um primeiro momento – se formem expectativas de novas elevações. E estas expectativas alavancam a demanda pelo bem, o que acaba estimulando novas elevações em seu preço. Este é um padrão particularmente interessante e importante de demanda e formação de preços, e será objeto de tratamento acurado no capítulo sétimo, dedicado à formação de preços em mercados de estoques. Mas – e é isto que importa entender agora – não se trata, aqui, da aquisição de um bem para o consumo (vale dizer, para usufruto do valor-de-uso do bem) e, portanto, não cabe caracterizá-la como uma exceção da relação padrão entre preços e quantidades demandas da função demanda do consumidor. 4.3 AS DEMAIS VARIÁVEIS INDEPENDENTES DA FUNÇÃO DEMANDA Tal como vimos na seção introdutória deste capítulo, a demanda de um bem x qualquer é função precípua, mas não exclusiva, do seu preço. Quando se trata da demanda de consumo, ela é função, ainda, da estrutura dos gostos e preferências do consumidor, de sua renda (ou orçamento), do preço dos bens substitutos (concorrentes) e do preço dos bens complementares. Ora, a Microeconomia tem muito pouco a dizer sobre a estrutura de gostos e preferências dos consumidores. Usualmente, nos textos introdutórios, esta estrutura é tomada como um dado exógeno, definido no plano da psicologia e da cultura98. Por oposição, a influência da renda dos consumidores e dos preços dos bens complementares e substitutos é objeto de tratamento sistemático, e as principais conclusões da Ciência sobre o tema são o objeto das duas próximas sub-seções. 4.3.1 A Relação Funcional entre Renda e Demanda do Consumidor Normalmente se pensa que a relação entre renda e consumo é simples e direta: quanto maior a renda, maior o consumo. E, se tomamos o consumo no seu plano mais geral – como consumo de uma cesta indeterminada e cambiante de bens – esta assertiva é absolutamente verdadeira. Infelizmente, porém, esta assertiva mostra-se muito menos correta quando nos voltamos à determinação da relação entre renda e demanda/consumo de bens determinados, por oposição a 98 Isto não significa que este tema não faça parte das questões que preocupam os economistas. Mas ele se encontra, antes, no plano dos fundamentos histórico-institucionais dos preços, do que no plano da Microeconomia, que, como vimos, volta-se à determinação analítica dos mesmos. Na Microeconomia este tema só é abarcado por aqueles que estudam a influência da propaganda e do marketing empresariais nas funções demanda das firmas e do mercado. Mas estes estudos – marcadamente polêmicos e inconclusivos - raramente são abarcados em livros introdutórios. 97 uma “cesta genérica”. E isto na medida em que diversos bens são demandados e consumidos justamente porque a renda disponível daqueles que os adquirem é insuficiente para a aquisição de bens que gerariam maior prazer. Este é o caso, por exemplo, das carnes menos nobres (como as vísceras e cortes dianteiros de bovinos), das bebidas destiladas de baixa qualidade (aguardente), e de boa parte dos carbohidratos (pão, macarrão, batata, arroz, feijão, etc.). Quanto mais sobe o poder aquisitivo dos consumidores, menor o consumo destes bens, que passam a ser substituídos por carnes nobres (filé, salmão, etc.), fermentados ou destilados superiores (vinhos, wiskhey, licores), e outras fontes de energia (frutas, tortas, etc.). Aqueles bens cuja demanda é deprimida pela elevação da renda dos consumidores são denominados “bens inferiores”. Por oposição, os bens cuja demanda se eleva com o crescimento da renda são os “bens superiores”. E entre estes dois tipos extremos, cabem mais duas classificações intermediárias: 1) os bens normais, cuja demanda varia proporcionalmente à renda; e 2) os bens saciáveis, cuja demanda cresce com a renda, mas a uma taxa inferior ao crescimento da última, de forma que, a partir de um certo momento, a quantidade demandada se estabiliza e deixa de ser influenciada por acréscimos na renda. As relações entre renda e demanda que definem estes quatro tipos de bens estão representadas no Gráfico 4, abaixo. Desde logo é interessante observar que, mesmo no caso dos bens inferiores, a queda da quantidade demandada com a elevação da renda não é imediata. Afinal, uma pequena elevação da renda não permite que se transite de um determinado padrão de consumo – em que, por exemplo, a fonte básica de proteínas são carnes de qualidade inferior – para um padrão radicalmente distinto. Num primeiro momento, a elevação da renda se traduz, então, numa elevação da quantidade demandada. É só a partir de um determinado nível de renda, que a substituição dos bens inferiores por bens de qualidade superior começa a se dar. Gráfico 4 – Padrões de Relação entre Quantidade Demandada e Renda
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