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Guias e Dicas
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Indagações sobre Curriculo, Notas de estudo de Matemática

Currículo e desenvolvimento humano

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 23/04/2010

simone-da-silva-lopes-1
simone-da-silva-lopes-1 🇧🇷

4.5

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Baixe Indagações sobre Curriculo e outras Notas de estudo em PDF para Matemática, somente na Docsity! Indagações sobre o Currículo Educandos e Educadores: seus Direitos e o Currículo INDAGAÇÕES SOBRE CURRÍCULO Currículo e Desenvolvimento Humano texto01_314.indd 1 3/10/2007 14:16:45 Ministério da Educação Secretaria de Educação Básica Departamento de Políticas de Educação Infantil e Ensino Fundamental Organização do Documento Jeanete Beauchamp Sandra Denise Pagel Aricélia Ribeiro do Nascimento Ministério da Educação Secretaria de Educação Básica Esplanada dos Ministérios, Bloco L, sala 500 CEP: 70.047-900 – Brasília-DF Tel. (061) 2104-8612/8613 Fax: (61) 2104-9269 http://www.mec.gov.br Ficha catalográfica [Lima, Elvira Souza] Indagações sobre currículo : currículo e desenvolvimento humano / [Elvira Souza Lima] ; organização do documento Jeanete Beauchamp, Sandra Denise Pagel, Aricélia Ribeiro do Nascimento. – Brasília : Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2007. 56 p. 1. Ensino Fundamental - Brasil. 2. Educação Básica. 3. Currículo. 4. Formação Humana. 5. Conhecimento. I. Beauchamp, Jeanete. II. Pagel, Sandra Denise. III. Nascimento, Aricélia Ribeiro do. IV. Brasil. Secretaria de Educação Básica. V. Título. CDU – 37.046.12 Ficha Catalográfica elaborada pela Bibliotecária Lúcia Helena Alves de Figueiredo CRB 1/1.401 Impresso no Brasil texto01_314.indd 2 3/10/2007 14:16:45 Indagações sobre currículo  APRESENTAÇãO A publicação que o Departamento de Políticas de Educação Infantil e Ensino Fundamental- DPE, vinculado à Secretaria de Educação Básica – SEB, deste Ministério da Educação – MEC, ora apresenta, tem como objetivo principal de- flagrar, em âmbito nacional, um processo de debate, nas escolas e nos sistemas de ensino, sobre a concepção de currículo e seu processo de elaboração. Não é recente a abordagem curricular como objeto de atenção do MEC. Em cumprimento ao Artigo 210 da Constituição Federal de 1988, que determi- na como dever do Estado para com a educação fixar “conteúdo mínimos para o Ensino Fundamental, de maneira a assegurar a formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais”, foram elabo- rados e distribuídos pelo MEC, a partir de 1995, os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil/RCNEI, os Parâmetros Curriculares Nacio- nais/PCN’s para o Ensino Fundamental, e os Referenciais Curriculares para o Ensino Médio. Posteriormente, o Conselho Nacional de Educação definiu as Diretrizes Curriculares para a Educação Básica. No momento, o que está em discussão é a elaboração de um documento que, mais do que a distribuição de materiais, promova, por meio de uma estratégia dinâmica, a reflexão, o questionamento e um processo de discussão em cada uma das escolas e Secretarias de Educação sobre a concepção de currículo e seus desdobramentos. Para tanto, sugerimos inicialmente alguns eixos que, do nosso do ponto de vista, são fundamentais para o debate sobre currículo com a finalidade de que professores, gestores e demais profissionais da área educacional façam reflexões sobre concepção de currículo, relacionando-as a sua prática. Nessa perspectiva, pretendemos subsidiar a análise das propostas pedagógicas dos sistemas de ensino e dos projetos pedagógicos das unidades escolares, porque entendemos que esta é uma discussão que precede a elaboração dos projetos políticos pedagógicos das escolas e dos sistemas. Dessa forma, elaboramos (5) cinco cadernos priorizando os seguintes eixos organizadores: Currículo e Desenvolvimento Humano; Educandos e Educadores: seus Direitos e o Currículo; Currículo, Conhecimento e Cultura; Diversidade e Currículo; Currículo e Avaliação. No momento em que ocorre a implementação do Ensino Fundamental de nove anos e a divulgação dos documentos consolidados da Política Nacional de Educação Infantil, é necessário retomar a reflexão sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil – ação já desencadeada pelo Conselho Nacional de Educação. texto01_314.indd 5 3/10/2007 14:16:46 Apresentação  A liberdade de organização conferida aos sistemas por meio da legislação vincula-se à existência de diretrizes que os orientem e lhes possibilitem a definição de conteúdos de conhecimento em conformidade à base nacional comum do currículo, bem como à parte diversificada, como estabelece o Artigo 26 da vigente Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB nº 9.394, 20 de dezembro de 1996: “Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela”. Com a perspectiva de atender aos desafios postos pelas orientações e normas vigentes, é preciso olhar de perto a escola, seus sujeitos, suas complexidades e rotinas e fazer as indagações sobre suas condições concretas, sua história, seu retorno e sua organização interna. Torna-se fundamental, com essa discussão, permitir que todos os envolvidos se questionem e busquem novas possibilidades sobre currículo: o que é? Para que serve? A quem se destina? Como se constrói? Como se implementa? Levando em consideração que o processo educativo é complexo e fortemente marcado pelas variáveis pedagógicas e sociais, entendemos que esse não pode ser analisado fora de interação dialógica entre escola e vida, considerando o desenvolvimento humano, o conhecimento e a cultura. Partindo dessa reflexão, convidamos gestores, professores e demais profissionais da educação para um debate sobre os eixos organizadores do documento sobre currículo. O fato de termos chamado estes estudiosos para elaborarem os textos significa haver entre eles pontos de aproximação como, por exemplo, escola inclusiva, valorização dos sujeitos do processo educativo, cultura, conhecimento formal como eixo fundante, avaliação inclusiva. Por privilegiarmos o pensamento plural, reconhecemos nos textos também pontos de afastamento. Assim, será possível encontrar algumas concepções sobre currículo não necessariamente concordantes entre si. É justamente divulgando parte dessa pluralidade que o MEC contribui com a discussão. Há diversidade nas reflexões teóricas, porque há diversidade de projetos curriculares nos sistemas, nas escolas. Esse movimento, do nosso ponto de vista, enriquece o debate. Em um primeiro momento, foi solicitado a profissionais, diretamente envolvidos com a questão curricular junto aos sistemas de ensino, indicados pelo/a UNDIME, CONSED, SEESP/MEC, SECAD/MEC, CONPEB/MEC, REDE/MEC, que respondessem à seguinte questão: que interrogações sobre currículo deveriam constar em um texto sobre esse tema? Posteriormente, esses profissionais efetuaram a leitura dos textos preliminares elaborados pelos autores do GT CURRÍCULO, visando a responder a uma segunda questão: como os textos respondem às interrogações levantadas? Foi solicitado ainda que apresentassem lacunas detectadas nos textos e contribuições. Coube à texto01_314.indd 6 3/10/2007 14:16:46 Indagações sobre currículo  equipe do DPE sistematizar e analisar as contribuições, apresentadas pelo grupo anteriormente citado em reunião de trabalho em Brasília, e elaborar um pré-texto para discussão em seminários a partir da sistematização das propostas apresentadas na consulta técnica. Em um segundo momento, visando à elaboração final deste documento, ocorreu em Brasília um seminário denominado “Currículo em Debate”, organizado em duas edições (novembro e dezembro de 2006). Nessa ocasião, os textos, ainda em versão preliminar, foram socializados e passaram pela análise reflexiva de secretários municipais e estaduais de educação; de profissionais da educação representantes da UNDIME, do CONSED, do CNE e de entidades de caráter nacional como CNTE, ANFOPE, ANPED; de professores de Universidades – que procuraram apresentar as indagações recorrentes de educadores, professores, gestores e pesquisadores sobre currículo e realizar um levantamento da potencialidade dos textos junto aos sistemas. Esse evento contou com a expressiva participação de representantes das secretarias estaduais e municipais de educação e da secretaria do Distrito Federal, em um total de aproximadamente 1500 participantes. Os textos chegam agora aos professores das escolas, dos sistemas. Apresentam indagações para serem respondidas por esses coletivos de professores, uma vez que a proposta de discussão sobre concepção curricular passa pela necessidade de constituir a escola como espaço e ambiente educativos que ampliem a aprendizagem, reafirmando-a como lugar do conhecimento, do convívio e da sensibilidade, condições imprescindíveis para a constituição da cidadania. Entendemos, também, haver outras perspectivas, ainda não contempladas, a serem consideradas. O objetivo não é, portanto, esgotar todas as possibilidades em uma única publicação. Propomos uma reflexão para quem, o que, por que e como ensinar e aprender, reconhecendo interesses, diversidades, diferenças sociais e, ainda, a história cultural e pedagógica de nossas escolas. Posicionamo-nos em defesa da escola democrática que humanize e assegure a aprendizagem. Uma escola que veja o estudante em seu desenvolvimento – criança, adolescente e jovem em crescimento biopsicossocial; que considere seus interesses e de seus pais, suas necessidades, potencialidades, seus conhecimentos e sua cultura. Desse modo comprometemo-nos com a construção de um projeto social que não somente ofereça informações, mas que, de fato, construa conhecimentos, elabore conceitos e possibilite a todos o aprender, descaracterizando, finalmente, os lugares perpetuados na educação brasileira de êxito de uns e fracasso de muitos. Os eixos aqui apresentados são constitutivos do currículo, ao lado de outros. Não é pretensão deste documento abranger todas as demais dimensões. As aqui destacadas convergem, especialmente, para o desenvolvimento humano dos sujeitos no processo educativo e procuram dialogar com a prática dos sujeitos desse processo. texto01_314.indd 7 3/10/2007 14:16:46 Introdução 10 indagações mais prementes para o conhecimento, para o currículo e para as práticas educativas. Esta foi a primeira preocupação da equipe do Departamento de Políticas de Educação Infantil e Ensino Fundamental e dos autores dos textos. Esta poderá ser a preocupação dos coletivos profissionais das escolas e Redes: detectar aqueles pólos, eixos ou campos mais dinâmicos de onde vêm as indagações sobre o currículo e sobre as práticas pedagógicas. Cada um dos textos se aproxima de um eixo de indagações: desenvolvimento humano, educandos e educadores: seus direitos e o currículo, conhecimento e cultura, diversidade e avaliação. CADA TEXTO APRESENTA SUAS ESPECIFICIDADES DE ACORDO COM O EIXO ABORDADO. • O texto “Currículo e Desenvolvimento Humano”, de Elvira Souza Lima, apresenta reflexão sobre currículo e desenvolvimento humano, tendo como referência conhecimentos de Psicologia, Neurociências, Antropologia e Lingüística. Conceitua a cultura como constitutiva dos processos de desenvolvimento e de aprendizagem. Aborda questões como função simbólica, capacidade imaginativa da espécie humana e memória. Discute currículo e aquisição do conhecimento, informação e atividades de estudo e a capacidade do ser humano de constituir e ampliar conceitos. O texto faz uma abordagem sobre a questão do tempo da aprendizagem, apontando que a construção e o desenvolvimento dos conceitos se realizam progressivamente e de forma recorrente. • Em “Educandos e Educadores: seus Direitos e o Currículo”, de Miguel Gonzáles Arroyo, há uma abordagem sobre o currículo e os sujeitos da ação educativa: os educandos e os educadores, ressaltando a importância do trabalho coletivo dos profissionais da Educação para a construção de parâmetros de sua ação profissional. Os educandos são situados como sujeitos de direito ao conhecimento e ao conhecimento dos mundos do trabalho. Há ênfase quanto à necessidade de se mapearem imagens e concepções dos alunos, para subsidiar o debate sobre os currículos. É proposta do texto que se desconstruam visões mercantilizadas de currículo, do conhecimento e dos sujeitos do processo educativo. O texto traz crítica ao aprendizado desenvolvido por competências e habilidades como balizadores da catalogação de alunos desejados e aponta o direito à educação, entendido como o direito à formação e ao desenvolvimento humano pleno. • O texto “Currículo, Conhecimento e Cultura”, de Antônio Flávio Moreira e Vera Maria Candau, apresenta elementos para reflexão texto01_314.indd 10 3/10/2007 14:16:46 Indagações sobre currículo 11 sobre questões consideradas significativas no desenvolvimento do currículo nas escolas. Analisa a estreita vinculação que há entre a concepção de currículo e as de Educação debatidas em um dado momento. Nessa perspectiva, aborda a passagem recente da preocupação dos pesquisadores sobre as relações entre currículo e conhecimento escolar para as relações entre currículo e cultura. Apresenta a construção do conhecimento escolar como característica da escola democrática que reconhece a multiculturalidade e a diversidade como elementos constitutivos do processo ensino-aprendizagem. • No texto “Diversidade e Currículo”, de Nilma Lino Gomes, procurou-se discutir alguns questionamentos que estão colocados, hoje, pelos educadores e educadoras nas escolas e nos encontros da categoria docente: que indagações a diversidade traz para o currículo? Como a questão da diversidade tem sido pensada nos diferentes espaços sociais, principalmente nos movimentos sociais? Como podemos lidar pedagogicamente com a diversidade? O que entendemos por diversidade? Que diversidade pretendemos que esteja contemplada no currículo das escolas e nas políticas de currículo? No texto é possível perceber a reflexão sobre a diversidade entendida como a construção histórica, cultural e social das diferenças. Assim, mapear o trato que já é dado à diversidade pode ser um ponto de partida para novos equacionamentos da relação entre diversidade e currículo. Para tanto é preciso ter clareza sobre a concepção de educação, pois há uma relação estreita entre o olhar e o trato pedagógico da diversidade e a concepção de educação que informa as práticas educativas. • Em “Currículo e Avaliação”, de Cláudia de Oliveira Fernandes e Luiz Carlos de Freitas, a avaliação é apresentada como uma das atividades do processo pedagógico necessariamente inserida no projeto pedagógico da escola, não podendo, portanto, ser considerada isoladamente. Deve ocorrer em consonância com os princípios de aprendizagem adotados e com a função que a educação escolar tenha na sociedade. A avaliação é apresentada como responsabilidade coletiva e particular e há defesa da importância de questionamentos a conceitos cristalizados de avaliação e sua superação. O texto faz considerações não só sobre a avaliação da aprendizagem dos estudantes que ocorre na escola, mas a respeito da avaliação da instituição como um todo (protagonismo do coletivo de profissionais) e ainda sobre a avaliação do sistema escolar (responsabilidade do poder público). texto01_314.indd 11 3/10/2007 14:16:46 Introdução 12 OS TEXTOS EM SEU CONJUNTO APRESENTAM INDAGAÇÕES CONSTANTES. • Todos constatam as mudanças que vêm acontecendo na consciência e identidade profissional dos(as) educadores(as). Todos coincidem ao destacar as mudanças nas formas de viver a infância e a adolescência, a juventude e a vida adulta. O que há de coincidente nessas mudanças? Educadores e educandos se vendo e sendo reconhecidos como sujeitos de direitos. Esse reconhecimento coloca os currículos, o conhecimento, a cultura, a formação, a diversidade, o processo de ensino-aprendizagem e a avaliação, os valores e a cultura escolar e docente, a organização dos tempos e espaços em um novo referente de valor: o referente ético do direito. Reorientar o currículo é buscar práticas mais conseqüentes com a garantia do direito à educação. • Todos os textos recuperam o direito à educação entendido como direito à formação e ao desenvolvimento humano, como humanização, como processo de apropriação das criações, saberes, conhecimentos, sistemas de símbolos, ciências, artes, memória, identidades, valores, culturas... resultantes do desenvolvimento da humanidade em todos os seus aspectos. • Todos os textos coincidem ao recuperar o direito ao conhecimento como o eixo estruturante do currículo e da docência. O conhecimento visto como um campo dinâmico de produção e crítica, de seleção e legitimação, de confronto e silenciamento de sua diversidade. Conseqüentemente, todos os textos repõem a centralidade para a docência e para o currículo dos processos de apreensão do conhecimento, da possibilidade de aprendizagem de todo ser humano, da centralidade dos tempos de aprender, das tensões entre conhecimento, aprendizagem e diversidade etc. • Todos os textos coincidem ao recuperar o direito à cultura, o dever do currículo, da escola e da docência de garantir a cultura acumulada, devida às novas gerações. O direito de se apropriarem das práticas e valores culturais, dos sistemas simbólicos e do desenvolvimento da função simbólica tão central na construção de significados, na apreensão do conhecimento e no desenvolvimento pleno do ser humano etc. Recuperar o direito à cultura, tão secundarizado nos currículos, é uma das indagações mais instigantes para a escola e a docência. Recuperar os vínculos entre cultura, conhecimento e aprendizagem. • Todos os textos têm como referente a diversidade, as diferenças e as desigualdades que configuram nossa formação social, política e cultural. Diversidades que os educadores e educandos levam para as escolas: sócio-étnico-racial, de gênero, de território, de geração texto01_314.indd 12 3/10/2007 14:16:46 Indagações sobre currículo 1 COMO LER E TRABALHAR OS TEXTOS? Na especificidade de cada coletivo, escola e sistema, esses eixos poderão ser desdobrados, alguns serão mais enfatizados. Outras indagações poderão ser acrescentadas. Esse poderá ser um exercício dos coletivos. No conjunto de textos, prevalece um trato dialogal, aberto, buscando incentivar esse exercício de cultivar sensibilidades teóricas e pedagógicas para identificar e ouvir as indagações que vêm das teorias e práticas e para apontar reorientações. Cada texto pode ser lido e trabalhado separadamente e sem uma ordem seqüenciada. Cada eixo tem seus significados. Entretanto, será fácil perceber que as indagações dos diversos textos se reforçam e se ampliam. Na leitura do conjunto, será fácil perceber que há indagações que são constantes, que fazem parte da dinâmica de nosso tempo. Um exercício coletivo poderá ser perceber essas indagações mais constantes e instigantes, ver como se articulam e se reforçam entre si. Perceber essas articulações será importante para tratar o currículo e as práticas educativas das escolas como um todo e como propostas coesas de formação dos educandos e dos educadores. Captar o que há de mais articulado no conjunto de indagações auxiliará a superar estilos recortados e fragmentados de propostas curriculares, de abordagens do conhecimento e dos processos de ensino-aprendizagem. Departamento de Políticas de Educação Infantil e Ensino Fundamental texto01_314.indd 15 3/10/2007 14:16:46 texto01_314.indd 16 3/10/2007 14:16:46 Indagações sobre currículo 1 CURRÍCULO E DESENVOLVIMENTO HUMANO Elvira Souza Lima I. INTRODUÇãO Seres humanos vão à escola com vários objetivos. Mas a existência da escola cumpre um objetivo antropológico muito importante: garantir a continui- dade da espécie, socializando para as novas gerações as aquisições e invenções resultantes do desenvolvimento cultural da humanidade. Em nossa espécie, o adulto detém um papel importante, culturalmente determinado, de garantir esta continuidade. A espécie humana subsiste, exatamente, pela transmissão que seus membros mais velhos fazem aos bebês, às crianças pequenas e aos jovens das ações humanas, dos conhecimentos, dos valores, da cultura. Na escola, esta ação do adulto se revela como a função pedagógica que o professor tem de possibilitar a apropriação do conhecimento sistematizado (que comumente chamamos de conhecimento formal), que caracteriza as ciências e as artes. Em um dado momento da evolução cultural da humanidade, marcado pela invenção de sistemas simbólicos registrados, foi necessário introduzir novas formas de atividade humana para garantir a transmissão das novas formas de saberes que estavam sendo criadas. Percebeu-se a necessidade de criar um espaço e um tempo separado da vida cotidiana para que as gerações se encontrassem com este objetivo. A escola foi criada, assim, há cerca de 4.500 anos, no momento histórico da invenção da escrita e da matemática, do desenvolvimento da geometria e da expansão de certas práticas artísticas. Podemos dizer que ambas - a escrita e a escola - são criações recentes da humanidade, principalmente se considerarmos que a fala surgiu há cerca de 200 mil anos e que os primeiros registros de imagens em suportes como parede das cavernas datam de 25 mil anos no continente europeu. Antes mesmo disto, há 32 mil anos, na África surgiram registros, hoje chamados de protolinguagem. A escrita é, assim, bem mais recente, tendo surgido há aproximadamente cinco milênios. Depois da criação da escrita, o desenvolvimento cultural da humanidade se acelera chegando à invenção da imprensa no século XV. Daí para frente, há uma aceleração acentuada 1 Consultora e pesquisadora de desenvolvimento humano. texto01_314.indd 17 3/10/2007 14:16:47 Currículo e desenvolvim ento hum ano 20 A psicologia foi a área de conhecimento de maior influência na educação durante grande parte do século XX. Uma idéia bastante difundida nas últimas décadas é a da criança que constrói seu próprio conhecimento. A criança desempenha, sim, um papel importante em seus processos de aprendizagem, mas não os realiza sozinha: antropologicamente, estes processos se dão por meio da ação dos adultos. E um dos componentes deste papel do adulto está na definição do conceito de currículo e de elaboração de seus componentes. Subjacente à elaboração do currículo, está a concepção de ser humano e o papel que se pretende que a escola tenha em seu processo de desenvolvi- mento. Não há, portanto, currículo ingênuo: ele sempre implica em uma opção e esta opção poderá ou não ser favorável ao processo de humanização. Um currículo para a formação humana precisa ser situado historicamente, uma vez que os instrumentos culturais que são utilizados na mediação do desenvolvimento e na dinâmica das funções psicológicas superiores se modificam com o avanço tecnológico e científico. Esta perspectiva do tempo é importante: novas áreas do conhecimento vão se formando, por desdobramento de áreas tradicionais do currículo (por exemplo, a ecologia a partir da biologia), ou são criadas como resultado de novas práticas culturais, internet e web, ou ainda pela complexidade crescente do conhecimento e da tecnologia. Um currículo para a formação humana introduz sempre novos conhecimentos, não se limita aos conhecimentos relacionados às vivências do aluno, às realidades regionais, ou com base no assim chamado conhecimento do cotidiano. É importante alertar para a diferença entre um currículo que parte do cotidiano e aí se esgota e um currículo que engloba em si mesmo não apenas a aplicabilidade do conhecimento à realidade cotidiana vivida por cada grupo social, mas entende que conhecimento formal traz outras dimensões ao desenvolvimento humano, além do “uso prático”. Há, portanto, uma diferença entre partir ou utilizar metodologicamente a experiência cultural do aluno como caminho para ampliação da experiência humana na escola e definir como currículo a experiência cultural do aluno. Um currículo para a formação humana é aquele orientado para a inclusão de todos ao acesso dos bens culturais e ao conhecimento, Está, assim, a serviço da diversidade. Entendemos diversidade na concepção de que ela é a norma da espécie humana: seres humanos são diversos em suas experiências culturais, são únicos em suas personalidades e são diversos em suas formas de perceber o mundo. Seres humanos apresentam, também, diversidade biológica. Algumas delas provocam impedimentos de natureza distinta no processo de desenvolvimento das pessoas, as comumente chamadas de “portadoras de necessidades especiais”. Como a diversidade é hoje recebida na escola, há a demanda, óbvia, por um currículo que atenda a todo tipo de diversidade. texto01_314.indd 20 3/10/2007 14:16:47 Indagações sobre currículo 21 Breve história dos currículos Os currículos iniciais nas escolas do antigo Egito, da Suméria, da Grécia tinham como eixo central a escrita, a matemática e as artes. Da escrita ensinava-se a leitura a todos, mas o ato de escrever, propriamente dito, ficava reservado às classes sociais economicamente favorecidas. Minorias que chegavam até a escola permaneciam três anos para aprender somente a ler, enquanto as crianças das classes dominantes continuavam para aprender a escrever. Escravos que acompanhavam os filhos dos senhores à escola, aprendiam a ler para ajudá-los nos deveres de casa. Na Roma Antiga, estes escravos eram chamados de pedagogos. As artes fizeram parte dos currículos, em várias civilizações em momentos históricos distintos. Na verdade, a música sempre foi um componente curricular importante, acompanhada pela literatura. As artes visuais, a geometria, o desenho foram componentes curriculares que atravessaram os milênios. Na antiga Grécia, por exemplo, a música era um componente curricular tão importante como a leitura e a literatura. Na Idade Média também se verifica esta presença. Mesmo no século XX, desenho artístico, desenho geométrico, música, canto orfeônico, solfejo faziam parte dos currículos de escolas públicas, inclusive no Brasil. Um estudo cuidadoso da história do currículo na escola ao longo dos milênios revela que quando falamos em formação humana, em incluir a cultura na escola não estamos falando em algo totalmente novo no processo de escolarização. A diferença é que hoje dispomos de muito mais conhecimento sobre o desenvolvimento do ser humano, notadamente da criança. O avanço nas várias áreas de conhecimento que estudam o ser humano em toda sua complexidade, principalmente na área das neurociências (sobre o funcionamento biológico- cultural do cérebro), é que nos traz hoje outra dimensão para o ensino e a aprendizagem. O mais inovador é a revelação que ela traz de como os conhecimentos sistematizados - seja na área dos códigos simbólicos, das ciências ou das artes - formam a pessoa, integrando-se à sua identidade cultural e à sua personalidade. O conhecimento torna-se não somente uma aquisição individual, mas uma das possibilidades de desenvolvimento da pessoa que terá reflexos na vida em sociedade. Formar a pessoa para situar-se, inclusive, como membro de um grupo passa a ser, também, um objetivo de uma educação escolar voltada para a humanização. O conhecimento torna- se não somente uma aquisição individual, mas uma das possibilidades de desenvolvimento da pessoa que terá reflexos na vida em sociedade. texto01_314.indd 21 3/10/2007 14:16:47 Currículo e desenvolvim ento hum ano 22 Este fato é da maior importância: as comunidades humanas são afetadas de alguma forma pelo acervo de conhecimentos de todos os seus membros. Ou seja, o conhecimento individual de cada um tem, também, uma dimensão coletiva. Ele pode, ou não, ser disponibilizado para todos, dependendo da concepção pessoal de cada um. O conhecimento é um bem comum, devendo, portanto, ser socializado a todos os seres humanos. O currículo é o instrumento por excelência desta socialização. A experiência pedagógica de uma Rede Pública Municipal Uma Rede Municipal elaborou uma proposta de currículo para formação humana, definindo além dos conteúdos, os pilares de ação pedagógica e os eixos para a formação humana dos alunos. Os pilares da ação pedagógica estabelecidos foram observação dirigida, descrição, registro e comunicação. Ao realizar seu planejamento, o professor dispunha de quadros de referência para verificar se o trabalho a ser desenvolvido com o conteúdo de qualquer área de conhecimento atendia aos princípios de formação humana pretendidos pela proposta pedagógica. Ou seja, os pilares orientavam o planejamento: o professor podia - e devia - confirmar que o conteúdo e as atividades planejadas contemplavam cada um deles. Garantia-se, com estes pilares, que o aluno realizasse as atividades humanas necessárias para aprender os conhecimentos escolares, sendo a observação e as várias formas de registro as práticas mais enfatizadas. Quanto aos eixos, eles foram definidos de acordo com os processos de desenvolvimento e aprendizagem. Por exemplo, para a educação no período da infância foram adotados os seguintes eixos: Movimento • Constituição, a partir das práticas culturais da infância, de riquíssimas vivências de movimento corporal, carregadas de ritmo e sentido. Desenvolvimento Conceitual • Organização interna da informação que a consciência precisa para formar a idéia e ampliá-la. Sistema Simbólico • Sistema de representação criado pelo homem, como recursos da linguagem e da memória, por meio dos quais a humanidade pode se entender, comunicar e produzir cultura. Oralidade • Ampliação do léxico da criança articulando o discurso do cotidiano e o discurso escolar. 3 Extraído de documentos e de anotações da autora, feitos como consultora de uma Rede Municipal. texto01_314.indd 22 3/10/2007 14:16:47 Indagações sobre currículo 2 A plasticidade cerebral também permite que áreas do cérebro destinadas a uma função específica possam assumir outras funções, como, por exemplo, o córtex visual no caso das crianças que nascem cegas. Como esta parte do cérebro não será “chamada a funcionar”, pois o aparelho da visão apresenta impedimentos (então não manda informação a partir da percepção visual para o cérebro), ela poderá assumir outras funções. Plasticidade cerebral é, também, a possibilidade de realizar a “interdisciplinaridade” do cérebro: áreas desenvolvidas por meio de um tipo de atividade podem ser “aproveitadas” para aprender outros conhecimentos ou desenvolver áreas relativas a outro tipo de atividade. Por exemplo, áreas desenvolvidas pela música, como a de ritmo, são “aproveitadas” no ato da leitura da escrita ou a de divisão do tempo na aprendizagem de matemática. A ação da criança depende da maturação orgânica e das possibilidades que o meio lhe oferece: ela não poderá realizar uma ação para a qual não tenha o substrato orgânico, assim como não fará muitas delas, mesmo que biologicamente apta, se a organização do seu meio físico e social não propiciar sua realização ou se os adultos não a ensinarem. O ser humano aprende somente as formas de ação que existirem em seu meio, assim como ele aprende somente a língua ou as línguas que aí forem faladas. As estratégias de ação e os padrões de interação entre as pessoas são definidos pelas práticas culturais. Isto significa que a cultura é constitutiva dos processos de desenvolvimento e de aprendizagem. A criança se constitui enquanto membro do grupo por meio da formação de sua identidade cultural, que possibilita a convivência e sua permanência no grupo. Simultaneamente ela constitui sua personalidade que a caracterizará como indivíduo único. Os comportamentos e ações privilegiados em cada cultura são, então, determinantes no processo de desenvolvimento da criança. A vida no coletivo sempre envolve a cultura: as brincadeiras, o faz de conta, as festas, os rituais, as celebrações são todas situações em que a criança se constitui como ser de cultura. As estratégias de ação e os padrões de interação entre as pessoas são definidos pelas práticas culturais. Isto significa que a cultura é constitutiva dos processos de desenvolvimento e de aprendizagem. texto01_314.indd 25 3/10/2007 14:16:47 Currículo e desenvolvim ento hum ano 2 Desenvolvimento cultural O desenvolvimento tecnológico e o processo de globalização da infor- mação por meio da imagem modificaram os processos de desenvolvimento cultural por introduzirem novas formas de mediação. As novas gerações de- senvolvem-se com diferenças importantes em relação às gerações precedentes, por meio, por exemplo, da interação com a informática, com as imagens pre- sentes por meio urbano (várias formas de propaganda, como cartazes, outdoors móveis). O mesmo acontece com crianças nas zonas rurais com o advento da eletricidade e da TV, ou com crianças indígenas que passaram a experienciar o processo de escolarização e, também, em vários casos a presença de novos instrumentos culturais como o rádio, a TV, câmeras de vídeo, fotografia, entre outros. O desenvolvimento do cérebro é função da cultura e dos objetos culturais existentes em um determinado período histórico. Novos instrumentos culturais levam a novos caminhos de desenvolvimento. O computador é um bom exemplo: modificou as formas de lidar com informações, provocando mudanças nos caminhos da memória. A presença de novos elementos imagéticos e cinestésicos repercute no desenvolvimento de funções psicológicas como a atenção e a imaginação. Considerando, então, que o cérebro se desenvolve do diálogo entre a biologia da espécie e a cultura, temos que, na escola, o currículo é um fator que interfere no desenvolvimento da pessoa. Os “conteúdos” escolhidos para o currículo irão, sem dúvida, ter um papel importante na formação. As atividades para conduzirem às aprendizagens, precisam estar adequadas às estratégias de desenvolvimento próprias de cada idade. Em outras palavras, a realização do currículo precisa mobilizar algumas funções centrais do desenvolvimento humano, como a função simbólica, a percepção, a memória, a atenção e a imaginação. texto01_314.indd 26 3/10/2007 14:16:47 Indagações sobre currículo 2 A – LINGUAGEM E IMAGENS MENTAIS: PERCEPÇãO, MEMóRIA E IMAGINAÇãO Desenvolvimento da Função Simbólica A partir da sua ação e interação com o mundo (a natureza, as pessoas, os objetos) e das práticas culturais, a criança constitui o que chamamos de função simbólica, ou seja, a possibilidade de representar, mentalmente, por símbolos o que ela experiencia, sensivelmente, no real. O desenvolvimento da função simbólica no ser humano é de extrema importância, uma vez que é por meio do exercício desta função que o ser humano pode construir significados e acumular conhecimentos. Todo ensino na escola, de qualquer área do conhecimento, implica na utilização da função simbólica. As atividades que concorrem para a formação da função simbólica variam conforme o período de desenvolvimento. Por exemplo, o desenho e a brincadeira de faz-de- conta são atividades simbólicas próprias da criança pequena, que antecedem a escrita: na verdade, elas criam as condições internas para que a criança aprenda a ler e a escrever. A linguagem escrita, a matemática, a química, a física, o sistema de notação da dança, da música são manifestações da função simbólica. As aprendizagens escolares são apropriações de conhecimentos formais, ou seja, conhecimentos organizados em sistemas. Sistematizar é estabelecer conceitos, ordená-los em níveis de complexidade com regras internas que regulam a relação entre os elementos que os compõem. Todo conhecimento formal é representado, simbolicamente, pela linguagem de cada sistema. Por exemplo: a) a2 = b2 + c2 b) 15 + 36 = 51 c) O gato correu atrás do cachorro. O cachorro correu atrás do gato. Em b e c temos uma regra importante que é o valor posicional: a posição dos elementos simbólicos determina o significado (1 e 5) 15 é diferente de 51. O mesmo se aplica ao gato que corre atrás do cachorro, em que se explicita a ação inversa do cachorro que corre atrás do gato. A função simbólica é a atividade mais básica das ações que acontecem na escola, tanto do educador como do educando. Quando os elementos do currículo não mobilizam adequadamente o exercício desta função, a aprendizagem não se efetua. Todo ensino na escola, de qualquer área do conhecimento, implica na utilização da função simbólica. texto01_314.indd 27 3/10/2007 14:16:47 Currículo e desenvolvim ento hum ano 30 Memória explícita semântica Também chamada de declarativa, a memória explícita semântica inclui as memórias que podem ser explicitadas pela linguagem. Este tipo de memória engloba aquilo que pode ser lembrado por meio das imagens, símbolos ou sistemas simbólicos. A capacidade da memória declarativa está ligada à organização de informações em padrão. Pesquisas demonstram que o ser humano se lembra “mais facilmente” daquilo que está organizado segundo regras. Isto implica na existência de padrões internos. Todas as linguagens são organizadas por padrões: a linguagem das ciências, das várias áreas do conhecimento, a linguagem escrita, a matemática, a cartográfica, a linguagem da dança, da música. Toda atividade artística também depende de utilização de elementos que se organizam em padrões, que têm regras próprias em cada forma de arte. Na escrita, os padrões aparecem nas cinco dimensões da linguagem, embora apareçam, mais fortemente, na sintaxe. Por isto, a sintaxe é o elemento forte, o instrumentador da língua escrita. A palavra solta é um símbolo, a palavra na construção sintática surge como estrutura. Na linguagem oral humana, o eixo forte do padrão é o verbo. Há maior resiliência no cérebro para os símbolos que representam a ação humana, uma vez que o movimento é o grande recurso na espécie para o desenvolvimento cultural e tecnológico, além de ser a matéria bruta primeira da comunicação entre humanos e de expressão das emoções. As pessoas tendem a memorizar, mais facilmente, aquilo em que elas conseguem aplicar padrões. Para as aprendizagens escolares isto é fundamental: o ensino bem sucedido é aquele que “instrumentaliza” a pessoa para construir, aplicar, reconhecer e “manipular” padrões. Memória operacional Como o próprio nome diz, a memória operacional se ocupa das operações, ou seja, um sistema de ações organizadas, segundo a natureza do comportamento. Por exemplo, está na memória operacional o comportamento de andar, de dirigir, de dançar. São comportamentos que se efetuam, muito rapidamente, para os quais não há “tempo” para comandos do cérebro. São comportamentos que têm uma ordem de movimentos a ser seguida e esta ordem já está “fixada” na memória. Na memória operacional estão as conjugações verbais, isto é, os tempos futuro, presente e passado do verbo. Assim, a organização da ação no tempo se realiza com a participação deste tipo de memória. Este fato tem implicações para as aprendizagens escolares. Com estas descobertas somos levados a rever o ensino da sintaxe em português: a gramática é necessária para o aluno, pois fornece estrutura para a apropriação e organização da linguagem escrita e a organização das informações em todas as matérias. texto01_314.indd 30 3/10/2007 14:16:48 Indagações sobre currículo 31 Imaginação A Capacidade Imaginativa na Espécie Humana Se considerarmos a evolução de nossa espécie, veremos que ela é pautada pela invenção, ou seja, pela criação de objetos, de sistemas, de linguagens, tecnologia, teorias, ciência, arte, códigos etc. Toda produção cultural é resultante de um processo cumulativo de invenções, pequenas e grandes, que dão base para as invenções futuras. A comunicação, atividade primordial da espécie, ganha a cada geração novos processos, novas tecnologias. O ser humano dedica grande parte de sua criatividade a ampliar e desenvolver meios de comunicação e meios de transporte que facilitem os processos comunicativos e que tornem mais ágeis os deslocamentos das pessoas. A possibilidade de criar depende, na nossa espécie, da imaginação, função psicológica pela qual nós somos capazes de unir elementos percebidos e experiências em novas redes de conexão. O funcionamento da imaginação e seu desenvolvimento, embora relacionados às outras funções psicológicas superiores, têm uma grande autonomia e se manifestam tanto na ação como no ato de aprender. Desta forma, podemos dizer que para as aprendizagens escolares a imaginação desempenha um papel central e deve ser considerada no planejamento, na alocação de tempo das atividades dentro e fora da sala de aula, nas situações comuns do cotidiano escolar. Os alunos devem, também, ser acompanhados avaliativamente na evolução de sua imaginação. A ligação entre imaginação e memória Vygotsky (1990) trata da diferença entre reprodução e criação: ambas atividades têm apoio na memória, mas diferem pelo alcance temporal. Repro- duzir algo, mentalmente, se apóia na experiência sensível anterior. Por exemplo, construo uma imagem mental da casa onde moravam meus avós, pelos ele- mentos gravados na memória, mas crio uma imagem mental da casa dos avós de uma personagem em um romance a partir dos elementos oferecidos pelo autor. Ou seja, no segundo caso uso a imaginação para criar este espaço utili- zando, com certeza, elementos percebidos, anteriormente, mas que se combi- nam entre si, de acordo com a relação dialógica estabelecida com o texto no ato da leitura, diferentemente, do primeiro caso em que busco a fidedignidade da imagem mental, tendo a casa concreta como referencial (Vygotsky, 1990). Se considerarmos a evolução de nossa espécie, veremos que ela é pautada pela invenção, ou seja, pela criação de objetos, de sistemas, de linguagens, tecnologia, teorias, ciência, arte, códigos etc. texto01_314.indd 31 3/10/2007 14:16:48 Currículo e desenvolvim ento hum ano 32 Vygotsky coloca que a primeira experiência se apóia na análise do passado. Ela é uma reprodução do que se viveu, enquanto que no segundo é uma realização do presente projetada no futuro. A criação literária dá esta possibilidade de partilhamento na criação, pois possibilita ao leitor a superação do texto para a criação das imagens de cada personagem, que é constituída pelos dados oferecidos de sua personalidade, de suas ações, de suas formas de pensamento, criação de imagens do contexto. A imaginação na realidade não se “desprega” da memória, mas recria com os elementos da memória. Imaginar implica, portanto, em se liberar das conexões que estão feitas dos elementos percebidos, para “re-utilizar” estes elementos em outras configurações. Temos aí duas implicações importantes: primeiramente, que a imaginação não é dada na espécie, é construída. Segundo, que ela é parte integrante do processo de aprendizagem, porque aprender significa, exatamente, ser capaz de estabelecer conexões entre informações, construindo significado. Podemos ver que, neste segundo caso, a imaginação é base para o estabelecimento destas novas redes, uma vez que ela é a função psicológica que estabelece relações significativas entre elementos que não estavam conectados entre si. A imaginação cria condições de aprendizagem. Temos assim que a relação entre imaginação e memória tem sentido duplo: a base para o funcionamento da imaginação são os elementos que estão contidos na memória e o próprio funcionamento da imaginação desenvolve a memória (por meio do processo imaginativo, novas mediações semióticas são realizadas, dando à pessoa uma maior complexidade aos sistemas contidos na memória de longa duração). Porque a imaginação é importante na aprendizagem? 1. Ela está na origem da construção do conhecimento que vamos ensinar. O conhecimento científico e o conhecimento estético foram produzidos a partir do exercício da imaginação humana nos vários períodos históricos. 2. Ela está na origem do conhecimento que será construído pelo aluno. A imaginação motiva. Muitos educadores concordarão que a motivação é um fator importante para o educando aprender. Motivar implica em mobilização para, interesse em, envolvimento com o objeto de aprendizagem. Esta disponibilidade para aprender envolve, do ponto de vista psicológico, a imaginação. Motivar implica em mobilização para, interesse em, envolvimento com o objeto de aprendizagem. Esta disponibilidade para aprender envolve, do ponto de vista psicológico, a imaginação. texto01_314.indd 32 3/10/2007 14:16:48 Indagações sobre currículo 3 são mutuamente exclusivas. Podemos dizer que existem algumas estratégias que são importantes durante toda infância como observar, imitar e desenhar. Registrar, levantar hipóteses sobre os fatos e as coisas, testá-las são atividades que a escola pode desenvolver na criança a partir dessas estratégias. Somente as situações que, de modo específico, problematizam o conhecimento levam à aprendizagem. Não é qualquer proposta ou qualquer interação em sala de aula, portanto, que promove a aprendizagem. Toda a atividade que aí se dê à criança precisa ter uma intenção clara, isto é, o objetivo precisa estar explicitado para o professor e para o aluno. Para que ocorra a aprendizagem é necessário retomar-se o conteúdo em momentos diferentes, pois o domínio de um conteúdo dá-se ao longo do tempo. Trabalhar muitas vezes o mesmo conteúdo, de formas diferentes, promove a ampliação progressiva dos conceitos. O conhecimento atual sobre o desenvolvimento da criança e do jovem nos leva a ampliar a concepção de currículo vigente: currículos são os conteúdos, as informações e as atividades humanas necessárias para formar novas memórias que servirão de suporte para aquisição de conhecimentos posteriores, assim como para tomada de decisão e solução de problemas na vida cotidiana. Sabemos também que determinados conteúdos promovem a formação de redes neuronais que dão suporte ao pensamento e que são base para outras aprendizagens escolares. Mais ainda, tais redes neuronais podem ser utilizadas no futuro em situações de vida cotidiana em sociedade, no trabalho, em família. Assim, um conhecimento escolar pode gerar comportamentos não ligados à “matéria” ou “disciplina” (conhecimento formal). Por exemplo, aprender álgebra leva à formação de redes neuronais, no cérebro, relacionadas ao pensamento crítico. Como? Nos números naturais, 1 é um símbolo para uma unidade de qualquer coisa (objeto, ser animado, elementos da natureza). Aqui se estabelece uma relação unívoca entre 1 (símbolo) e a quantidade que ele representa, que é sempre a mesma. Já na álgebra, o símbolo pode ter qualquer valor dependendo das relações entre os outros elementos que compõem a sentença matemática. Em x = 4a + 2b, o valor de x poderá variar, infinitamente, de acordo com os valores que forem atribuídos a a e a b. Poderá, também, ser um número inteiro, positivo ou negativo, fração, decimal etc. A rede neuronal que se estabelece, então, é múltipla e é base para o deslocamento do pensamento. Assim, quem estuda álgebra terá um componente em seu pensamento, que lhe possibilitará desenvolver o pensamento crítico. Ser crítico em algo é Somente as situações que, de modo específico, problematizam o conhecimento levam à aprendizagem. Não é qualquer proposta ou qualquer interação em sala de aula, portanto, que promove a aprendizagem. texto01_314.indd 35 3/10/2007 14:16:49 Currículo e desenvolvim ento hum ano 3 poder ver a situação, o fato, a pessoa, o objeto de conhecimento em mais de uma perspectiva para poder comparar, avaliar e decidir. Ou seja, precisa ter discernimento, que é uma característica de um pensamento crítico. Ser capaz de realizar estas operações mentais é um recurso para refletir e tomar decisões a respeito de qualquer ato na vida cotidiana. B – A Distinção entre Desenvolvimento e Aprendizagens Escolares Toda criança se desenvolve indo ou não à escola. O que é do domínio do desenvolvimento humano não deixa de acontecer se a criança não for à escola, ou se ela for e se encontrar em uma situação de não aprendizagem. Assim, a memória infantil, a função simbólica, a percepção vão se desenvolver segundo o caminho dado pela genética da espécie. Certas aprendizagens são da alçada do desenvolvimento da espécie. Por exemplo, a aprendizagem das figuras geométricas, no nível da percepção, é resultado da genética da espécie. Toda criança vai desenvolver do 4° ao 7° ano de vida, a representação gráfica das figuras geométricas começando do círculo passando para o quadrado e triângulo até chegar às figuras mais complexas (por exemplo, um quadrado dividido em quatro quadrados menores). Da mesma forma, a capacidade de desenhar (em um suporte qualquer como o papel, casca de árvore, computador, areia etc.) as imagens mentais formadas a partir da percepção (com os cinco sentidos) e do movimento é uma possibilidade dada pelo desenvolvimento e não depende do ensino escolar. O ser humano aprende a distinguir as cores que estão em seu meio, nomeá-las e utilizá-las na vida cotidiana independentemente de ir à escola. O que não é do domínio do desenvolvimento, precisa ser ensinado. Apropriar-se da língua escrita, ler e escrever, formar conceitos de história, geografia, ecologia e de outras matérias, desenvolver o pensamento matemático, aprender a escrever matematicamente uma operação, tudo isto depende de ensino. Portanto, na elaboração do currículo deve-se considerar o que é do desenvolvimento da espécie. Para promover o desenvolvimento humano, a escola deveria partir do que a criança desenvolve por si mesma e propor novas aprendizagens que façam uso destas manifestações da função simbólica que são próprias da espécie. 4 Adaptado de Neurociências e Aprendizagens, da autora. São Paulo, Editora Sobradinho 107, 2004. Toda criança se desenvolve indo ou não à escola. O que é do domínio do desenvolvimento humano não deixa de acontecer se a criança não for à escola, ou se ela for e se encontrar em uma situação de não aprendizagem. texto01_314.indd 36 3/10/2007 14:16:49 Indagações sobre currículo 3 Se essas aprendizagens – cores, figuras geométricas, desenhos – são do desenvolvimento humano, o que caberia à escola? Utilizar estas aquisições para se apropriar dos conhecimentos escolares: utilizar as figuras geométricas para medir, para contar, para calcular área, para organizar espaços, para aprender álgebra, para desenvolver o pensamento espacial. Trabalhar as cores em suas texturas, em suas nuances possíveis, aprender sobre a composição das cores: como se forma o marrom? O laranja? O cinza? Usar o desenho para o registro, para desenvolver a percepção visual e tátil; para desenvolver outros instrumentos mentais como mapas, esquemas; para criar situações de escrita como história em quadrinhos. Todas estas atividades dependem de ensino. Elas desenvolvem o pen- samento espacial, formam a base para conceitos científicos, criam memórias que podem ser utilizadas no desenvolvimento do pensamento científico e do conhecimento estético, criam possibilidades para o exercício da imaginação. Toda criança desenha. O desenho é manifestação da função simbólica. O de- senho é o registro do movimento em um suporte. O traçado se constitui, gra- dativamente, na criança pequena, envolvendo vários elementos como esque- ma corporal, movimento, ao mesmo tempo em que a criança cria significados. O traçado no papel “guia” a construção do desenho ao mesmo tempo em que a “idéia” dirige o movimento. A “idéia” é constituída por imagens, percepções, movimentos vividos que a criança quer expressar no papel. Em seu processo de desenvolvimento, a criança pequena desenha muito, o domínio do traçado é progressivo. A perícia que a criança desenvolve, ao desenhar, será utilizada na escolarização para escrever, para apropriar-se dos elementos simbólicos das linguagens das várias áreas de conhecimento, para aprender a utilizar-se da geometria, fazer mapas, diagramas, esquemas que são instrumentos do pensamento. No desenho está implícita uma ação, ou seja, há uma história para a criança no desenho que ela realizou. Ele inclui, portanto, a narrativa: mesmo que para o adulto ele pareça algo estático, unidimensional no papel, para a criança é ativo, dinâmico, tridimensional e seqüencial. Ao desenhar, a criança organiza sua experiência para compreendê-la. O ato de desenhar não é, simplesmente, uma atividade lúdica, ele é ação do conhecimento. O desenho é, pois, parte constitutiva do processo de desenvolvimento da criança. Por ser importante no desenvolvimento infantil, o desenho não deve ser entendido na escola como uma atividade complementar, mas como atividade funcional, tanto na Educação Infantil como nas séries iniciais do Ensino Fundamental. texto01_314.indd 37 3/10/2007 14:16:49 Currículo e desenvolvim ento hum ano 40 A observação é um comportamento já utilizado pelo bebê. A criança, em seus primeiros anos de vida, observa as pessoas para imitá-las aprendendo, assim, as formas humanas de comunicação; observa os objetos e animais para conhecê-los e usá-los em suas brincadeiras, desenvolvendo a função simbólica. A observação como atividade de estudo A observação como atividade de estudo precisa ser dirigida e abordará elementos e objetos distintos conforme a disciplina. Ela pode ser potencializada, se o aluno souber que será convidado a expor, posteriormente, suas idéias ou os fatos observados. Ou que será solicitado, de alguma forma, a selecionar, organizar, avaliar ou comunicar suas observações. Essa potencialização vai ocorrer, porque haverá a integração necessária de planejamento das várias etapas desde a observação até a apresentação. Ter um objetivo para a observação, envolvendo a comunicação com o outro, leva o aluno a mobilizar mais a atenção. 2- Registro Para que os elementos coletados pela observação não se percam, é importante que ela seja acompanhada pelo registro. O registro é um suporte externo para a memória. O registro pode ser feito com desenhos e escrita. Câmera fotográfica, gravador, vídeo podem ser utilizados como apoio para registro. Ele pode ser in loco ou “de memória”. Registro in loco é quando ele é feito, concomitantemente, com a observação, que leva ao desenvolvimento da percepção e facilita os processos de atenção. “De memória” quando é feito após a observação. O registro tem duas funções em relação à atividade cerebral: de estabelecimento de redes neuronais e de fortalecimento de redes já existentes. Quando escrevemos algo, mobilizamos várias áreas do cérebro e tomamos consciência de coisas das quais somente o pensamento (linguagem interna) não dá conta. Ou seja, várias coisas se organizam entre si no ato de escrever: a própria ação (movimento) leva à estimulação de redes neuronais já existentes e à formação de novas conexões entre os neurônios. Pode haver um reforço ou aumento da rede, com fortalecimento da memória. É importante que o professor, em seu planejamento, estabeleça tempos determinados para ensinar aos alunos registrar e fazer do registro hábito de estudo. É interessante selecionar algumas formas de registro e ensiná-las aos alunos, pois registrar é um comportamento escolar que se aprende e depende de ensino. Por exemplo, o professor pode eleger, inicialmente, uma ou duas práticas utilizando formas de registro, com desenho e escrita e trabalhar com elas em vários momentos. texto01_314.indd 40 3/10/2007 14:16:50 Indagações sobre currículo 41 Observação e registro podem vir juntos e ser utilizados em situações diferentes para cada área de conhecimento, pois contribuem para a formação de conceitos. Abaixo temos três exemplos de registro que podem ser propostos aos alunos. 2. Caderno de Idéias Neste caderno, o aluno realiza anotações de todo tipo, sempre datadas. Pode-se orientá-lo a observar e a registrar o contexto (onde), a ação / atividade (como), o tempo (quando). Pode-se incluir o planejamento de ações e idéias “soltas” que ocorram. Pode-se, também, formular perguntas. O caderno pode ser um local de registro de possíveis soluções para os problemas ou desafios colocados para toda classe. Pode ser, ainda, um espaço para o registro de relatos, como veremos adiante. O professor pode estabelecer, para este caderno, o uso de sistemas simbólicos, como a escrita e desenhos, propor outros como sinopses, narrativas visuais (como, por exemplo, história em quadrinhos) e assim por diante. 2.2 Caderno de Evocações Caderno em que a criança relata, diariamente, o que foi feito no dia anterior. É um excelente exercício de evocação da memória. Reforça as conexões neuronais realizadas e pode servir como base para planejamentos futuros. Serve de apoio externo para a memória. Em pesquisa – intervenção de cunho etnográfico - realizada pela autora, em Chicago, o uso de um caderno de anotações para os alunos escreverem o que fizeram no dia e o que aprenderam, e de recordar, no início da aula do dia seguinte, suas aprendizagens, provou ser uma medida eficaz na aprendizagem de conceitos. Uma professora da rede publica de ensino desenvolveu esta idéia com um caderno em uma atividade que ela chamou de Recordando. Todo início de aula, as crianças escreviam o que haviam feito no dia anterior. A professora transformou o caderno, também, em oportunidade de diálogo ao comentar, pessoalmente, cada entrada que os alunos faziam no caderno, “conversando” com o aluno por meio da escrita. A seguir o depoimento da Professora. O Recordando na prática da sala de aula é o direito do aluno e da aluna serem personagens das suas produções. O educador precisa ser inquieto nesta rotina de trabalhador da educação. Todos os dias estão à nossa frente seres que esperam de nós algo que vai fazê- los serem melhores amanhã e aí está o desafio. Sou professora de alunos e alunas da Fase IV, 10 anos, no Ciclo de Formação Humana na rede estadual. texto01_314.indd 41 3/10/2007 14:16:50 Currículo e desenvolvim ento hum ano 42 Na inquietude do trabalho e nos encontros freqüentes com a Elvira Lima no período de 2002 a 2004, sempre dialogamos sobre o cotidiano e ela sempre me sugeria dinâmicas no trabalho que poderiam trazer resultados positivos para o educando. Um dia ela disse: - Por que você não pede aos alunos para registrarem a aula anterior? Achei meio complicado no primeiro momento, isto foi no 2º semestre de 200. Assimilei a proposta: uma semana depois comecei. O 1º passo foi escolher com a turma como chamaria este momento e no consenso com  alunos e alunas ficou o nome RECORDANDO. Tornou-se uma dinâmica natural nas minhas turmas seguintes, já incorporada, também, pela família. Hoje outra turma da escola também produz o Recordando. O QUE MUDA COM O RECORDANDO? Tudo. Nos dois primeiros meses o resultado é um pouco frustrante: os alunos não estão acostumados a relembrar o dia anterior, demonstram uma certa limitação. Mas dois meses após, o texto que, no início, tinha uma ou duas frases, passa a ter dois ou mais parágrafos. A organização de pensamento surge, o vocabulário enriquece muito e os alunos são capazes de manifestar o que na aula anterior não foi bom para ele, como até “professora, queria você explicasse mais as continhas de 2 números”, e é uma oportunidade de me avaliar também. Sempre estimulo a leitura do Recordando, para o coletivo da sala de aula. Como o RECORDANDO permite uma liberdade de construção e é um incentivo à escrita, porque não é uma produção com um eixo determinado pelo professor, os alunos manifestam mais prazer para a produção do texto. No ano de 2005, a Turma Prateada passou a incluir o relato de todo o seu dia no Recordando. Acontecia muito raramente, mas acontecia do aluno ter ido à aula e na hora de escrever o Recordando o tempo vivido na escola não aparecer. Isto me preocupa muito, pois foi um dia em que a escola não significou nada, não existe em sua memória, a sua vida após a aula foi muito mais importante. Normalmente estabeleço um momento para comentar os Recordandos lidos em voz alta para o coletivo da sala, sempre respeitando a individualidade de cada um e, também, acrescentando fatos acontecidos em sala que não foram lembrados. Procuro também utilizar textos do Recordando para atividades em sala, sem identificar o autor. Este é um momento muito rico, levando à melhoria significativa na escrita e à inclusão de palavras novas em seu vocabulário. Tenho ficado muito atenta para não se tornar uma atividade mecânica, porque não é este o objetivo. Este ano a turma já deu início ao Recordando. O que mais tem me surpreendido é o registro do momento coletivo vivido com todos os alunos da escola. Tivemos três aulões de Capoeira Angola (com a participação de todos os alunos), e no outro dia relatam com tanta precisão e detalhes. Mesmo aqueles que não jogam a capoeira, conseguem expressar com muita clareza o que observam. O Recordando para mim é um achado, pois a partir dele o processo ensino - aprendizagem na sala tem um outro olhar. É entender as diferenças, é construir junto e é, também, reelaborar toda uma prática acomodada pelo tempo. (Depoimento escrito da Professora) texto01_314.indd 42 3/10/2007 14:16:50 Indagações sobre currículo 4 A atividade de comunicação permite agrupar alunos do mesmo ciclo numa mesma atividade (no caso de redes de ensino onde exista o sistema de reorganização de turmas) ou em atividades coletivas programadas pelo coletivo da escola, envolvendo séries distintas, no caso de seriação. Pode ser utilizado o procedimento de monitor: alunos mais velhos são encarregados de orientar crianças menores em várias das atividades, orientar ou de ensinar pequenos grupos ou duplas de outros alunos. Na ação de explicar como se faz e na ação de monitorar passo a passo a realização da ação, o “monitor” é solicitado a trabalhar com os conceitos envolvidos, o que ajuda o desenvolvimento do seu próprio pensamento. O educador e as práticas de observação e registro O educador deve fazer uso, também, da prática de observação e registro em seu processo de ensino e de avaliação. É a partir de uma observação planejada e intencional que o professor poderá ir ajustando sua metodologia de ensino. É a partir desta observação, também, que o professor poderá verificar os níveis de motivação de seus alunos. Identificar quando o aluno presta atenção e quando se distrai faz parte da avaliação da própria prática pedagógica do professor. texto01_314.indd 45 3/10/2007 14:16:50 Currículo e desenvolvim ento hum ano 4 V. FORMAÇãO DO CONCEITO E INTERDISCIPLINARIDADE DO CÉREBRO Formação de Conceitos O ser humano constitui e amplia os conceitos, continuamente, mas esta ampliação depende de elementos internos e externos à pessoa. Para constituição de um conceito não é suficiente somente a construção de significado, mas também o estabelecimento e a compreensão das relações múltiplas possíveis existentes entre os vários significados. Ao compreender esta rede de relações, o ser humano constitui categorias de pensamento que vão permitir, por sua vez, a compreensão de redes de relações mais complexas. Exemplificando, não é só construir o significado da palavra ímã como significante de um objeto terroso que gruda em outro, mas compreender como e por que isso ocorre, compreender qual a relação entre as cargas, compreender o que é campo magnético, relacionando estes fatos com fenômenos da natureza, como a queda do raio, por exemplo. A informação é parte, mas não dá conta da abrangência de todo o processo de formação do conceito. Há um movimento necessário de realimentação situada no tempo, ou seja, depende de experiências, informações e dados – que transformem o conhecimento já constituído – acessíveis aos educandos ao longo de um ano letivo ou de um ciclo de formação. O conceito se constitui ao longo de um tempo e de forma organizada. Ele caminha no sentido da complexidade crescente: o aluno desenvolve conceitos com menos elementos para conceitos mais abrangentes, com mais elementos. O tempo para aprender, geralmente, não é um tempo curto, pois a construção e o desenvolvimento dos conceitos são progressivos e dependem de sucessivas retomadas de um mesmo conteúdo. Se há um processo, o professor precisa identificar o nível de desenvolvimento dos educandos, para intervir neste processo de maneira a nem repetir o que a criança já fez ou já sabe, nem dar saltos muito grandes que impossibilitem a criança de estabelecer ligações e, portanto, aprender. Não se trata de dar continuidade à experiência do cotidiano que o aluno traz, mas de transformá-la à luz do próprio conhecimento. Isto implica o confronto entre os conceitos mais fragmentados que a criança constitui no cotidiano e o conhecimento organizado. Mas este confronto não é, meramente, de conteúdo. Ele é, também, de processos Para constituição de um conceito não é suficiente somente a construção de significado, mas também o estabelecimento e a compreensão das relações múltiplas possíveis existentes entre os vários significados. texto01_314.indd 46 3/10/2007 14:16:50 Indagações sobre currículo 4 de construção de significado, ou seja, a construção do conhecimento formal é diferente da construção do conhecimento do cotidiano no que se refere às categorias de pensamento que os organizam e os elaboram. Em outras palavras, a própria possibilidade de se apropriar do conhecimento formal dependerá da existência de categorias de análise, de processos de pensamento, que só são constituídos quando a pessoa entra em relação com o conhecimento formal. A aprendizagem dos conceitos científicos A ciência está no cotidiano do aluno de qualquer idade, criança ou adulto, de qualquer classe social, pois está na cultura, na tecnologia, nos modos de pensar da sociedade de nossos dias. Toda criança detém, então, um conhecimento que está contido na teoria científica. Este conhecimento é, todavia, fragmentado e o aluno deverá ser levado, pela ação do professor, a superar essa visão fragmentada para chegar à compreensão do conhecimento formal. Ou seja, o que o aluno já sabe, deve ser, necessariamente, articulado com o conceito científico que se lhe pretende ensinar. Interdisciplinaridade e formação de conceito Há duas dimensões para se discutir interdisciplinaridade e currículo: a da aprendizagem e a do desenvolvimento. Embora elas se relacionem do ponto de vista da pessoa que aprende, é importante conhecer o que as distingue. Na educação escolar, é comum, hoje, falar de interdisciplinaridade, ou seja, que existe uma relação entre as áreas do conhecimento quanto ao conteúdo e que o ensino pode ser feito a partir desta perspectiva. É importante evitar equívocos: relações existem de fato, mas os conceitos de cada área do conhecimento são construídos a partir da relação com o conhecimento sistematizado que caracteriza cada disciplina. As relações entre áreas são desejáveis como parte do ensino, mas não se pode pretender que unicamente com o concurso desta abordagem pedagógica o aluno se aproprie dos conceitos de cada área. Do ponto de vista do desenvolvimento, podemos dizer que há uma interdisciplinaridade interna, no nível do desenvolvimento biológico-cultural no cérebro. Ela acontece por meio das redes que se formam a partir de sinapses múltiplas entre as redes neuronais que são construídas a partir da interação com o As relações entre áreas são desejáveis como parte do ensino, mas não se pode pretender que unicamente com o concurso desta abordagem pedagógica o aluno se aproprie dos conceitos de cada área. texto01_314.indd 47 3/10/2007 14:16:50 Currículo e desenvolvim ento hum ano 0 em educação, pois a integração que ainda buscamos das várias dimensões do ser humano, já é o ponto de partida do artista. Na arte, o ser humano é visto como um ser integral, condição mesma para que a experiência estética da arte exista. Na educação ainda se busca este “integral”, pois se fala do aluno em seus aspectos emocional, cognitivo, social, afetivo, cultural. A arte se coloca na escola como um domínio que engloba formas de ação humana necessárias para que o currículo leve, efetivamente, ao desenvolvimento humano na escola. A questão que se coloca é, então, como “cruzar” componentes curriculares com atividades artísticas? Um exemplo poderá ajudar. O que jogar capoeira envolve? Capoeira envolve: Desenvolvimento do pensamento espacial Ordenação do comportamento: previsão de comportamentos motores (movimentos) Organização seqüencial de movimentos Tomada de decisão Desenvolvimento da sensibilidade à rima Desenvolvimento de estruturas rítmicas e cadência oral (canto) e no movimento Disciplina, atenção, concentração Práticas culturais e aprendizagens dos conhecimentos escolares – uma nova concepção de interdisciplinaridade Práticas culturais como brincadeiras infantis, danças, manifestações coreografadas como a capoeira, maculelê, jongo e canções são oportunidades de desenvolvimento, que formam redes neuronais, que dão suporte à aprendizagem dos conteúdos escolares. Isto acontece pela interdisciplinaridade interna do cérebro. A arte se coloca na escola como um domínio que engloba formas de ação humana necessárias para que o currículo leve, efetivamente, ao desenvolvimento humano na escola. texto01_314.indd 50 3/10/2007 14:16:51 Indagações sobre currículo 1 Por exemplo, brincar de amarelinha. Vários conhecimentos são internalizados na brincadeira de jogar amarelinha: contar, desenhar figuras geométricas, escrever os números. Do ponto de vista do movimento: equilíbrio, lateralidade, organização de seqüência dos movimentos no espaço. Do ponto de vista do pensamento espacial, a criança desenvolve a noção do próprio corpo no espaço, movimentação de imagens no pensamento (que colabora para o desenvolvimento da imaginação), configuração de seqüência de imagens no cérebro. Quando a prática cultural é trazida para a escola O calor é forte dentro e fora da sala de aula. Na turma, crianças classificadas como fracasso escolar circulam pela sala de aula, vestidas de parangolê, dirigindo- se aos muitos pôsteres escritos e pendurados pelas paredes. Cadernos na mão, buscam informações, apagam, corrigem, discutem, olhando alternativamente para os cadernos e para os cartazes, que foram feitos por elas mesmas. Alunos negros, já na adolescência, acumulam todos, vários anos (7, 8, 9, 10...) de não aprendizagem na escola. Até chegarem à classe outra professora, negra também ela, que escolhe trabalhar alfabetização a partir de manifestações culturais do eixo africano de nossa cultura. Jongo, maculelê, capoeira, narrativas orais, costumes ancestrais. A turma se auto elege a turma do Parangolê, e os alunos andam vestidos assim, vez por outra, na escola. Uma questão de identidade da raça negra. A aula hoje começou com a leitura dramatizada de um capítulo de um romance. Capítulo a capítulo, ela vai trazendo em dias espaçados, a narrativa que trata de temas universais, que atraem a todos, em todas as idades: o bem e o mal; as disputas; os conflitos; as questões éticas; os valores de amizade, do companheirismo. O trabalho com os valores da cultura e com os valores éticos pode resultar em mudanças de percepção de si. Um currículo que explore, em maior profundidade, a consciência de si como ser de cultura, que acolha a diversidade na escola, modifica o “ser negro” na escola. Esta professora consegue ensinar a todos ou todos aprendem com ela. Conscientizar-se de que estão aprendendo a ler e a escrever muda a auto- estima. A seguir seu depoimento6. Acredito que o começo de minha história que me fez/faz educadora inquieta, curiosa, faladeira e inventadeira de palavras e histórias, herdeiras de bens e tesouros culturais tão fortemente enraizados em minha formação identitária, esteja nas vivências culturais de que tive a oportunidade de participar em minha infância. Este mesmo olhar inaugural infantil que me leva a ir além do “experimentar as coisas pelo avesso” aparece constantemente em minha vivência enquanto educadora como um desafio, no qual, alinhando-me cada vez mais a uma política 6 Depoimento escrito, na época, pela professora de Classe de Progressão (atualmente extinta) de uma Rede Municipal. texto01_314.indd 51 3/10/2007 14:16:51 Currículo e desenvolvim ento hum ano 2 multicultural de educação, proponho com o projeto “Tangolomango” redirecionar este mesmo olhar para as práticas, saberes e manifestações da cultura popular brasileira. Busco, assim, melhor compreender o comportamento, modos de vida, transgressão, participação e, sobretudo, as experiências significativas de aprendizagem que as crianças promovem e criam fora da sala de aula, para depois refletir sobre de que maneira estes saberes podem penetrar nos domínios da sala de aula dialogando e enriquecendo o conteúdo formal da escola. Tendo como ponto de partida nossa especificidade afro-brasileira, elegemos como prática pedagógica a incorporação dos diversos patrimônios artísticos e culturais que promovam a valoração identitária - pessoal e coletiva – em que suas histórias e leituras de mundo auxiliam para que possamos ir nos nutrindo deste sentimento de pertencimento e “inacabamento” que Paulo Freire tão fortemente caracterizou como essencial à condição humana. Por fim, buscamos com este projeto, refletir até que ponto, no meio desta riqueza polifônica de saberes, uma mudança de perspectiva do olhar cada vez mais sensível do educador às práticas e produções culturais populares – danças, festas, religião, oralidade, brincadeiras etc – pode vir a ser um dos caminhos para que tenhamos conquistas mais positivas em relação à efetividade e afetividade no processo de ensino – aprendizagem nas classes de alfabetização e letramento em nossas escolas. A ação de construir conhecimento na escola envolve o educando, o educador e o conhecimento, formalmente, organizado. Esta ação, todavia, insere-se no contexto sociocultural, uma vez que a escola não existe como instituição independente. Inserida no tecido social, a escola tem uma dimensão política que reflete na dinâmica da sala de aula e, evidentemente, na formação do ser humano. É um equívoco considerar o aprender como uma atividade cognitiva entendida, unicamente, como desenvolvimento intelectual. A construção do conhecimento envolve a emoção e, por ser uma ação social, implica trocas afetivas. Desta forma, a pessoa que aprende está presente em sua totalidade na situação de aprendizagem, assim como suas experiências na escola e com o conhecimento constituirão sua personalidade e sua forma de colocação no meio. Devido às peculiaridades do conhecimento formal, o trabalho com o educando não pode se restringir a transmitir o conhecimento, mas deve incluir, também, formas de apropriação do conhecimento posto. Com isto queremos dizer que, lado a lado com o conteúdo, é necessário constituir no educando a metodologia de aprender e desenvolver nele a autonomia para se utilizar das fontes de conhecimento formal. Devido às peculiaridades do conhecimento formal, o trabalho com o educando não pode se restringir a transmitir o conhecimento, mas deve incluir, também, formas de apropriação do conhecimento posto. texto01_314.indd 52 3/10/2007 14:16:51 Indagações sobre currículo  VII. Sugestões DVD Televisão e Cinema Cidade dos Homens, direção Fernando Meirelles Som Livre, 2004 O Dia de Maria, direção Luiz Fernando Carvalho. Som Livre, 2006 O povo brasileiro. Série em DVD com base no livro homônimo de Darcy Ribeiro Sonhos, direção A. Kurosawa Autores recomendados para leituras sobre cultura brasileira e cultura e educação Florestan Fernandes, Milton Santos e Darcy Ribeiro Bibliografia Izquierdo, Ivan. Memória. Porto Alegre, Editora ArtMed, 2002 Wallon, Henri. Do ato ao pensamento. Lisboa, Moraes, 1979. texto01_314.indd 55 3/10/2007 14:16:51 texto01_314.indd 56 3/10/2007 14:16:51
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