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Guias e Dicas
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Ensino de língua portuguesa para surdos, Manuais, Projetos, Pesquisas de Literatura

Livro sobre surdos

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2010

Compartilhado em 22/04/2010

marcelo-kobashikawa-6
marcelo-kobashikawa-6 🇧🇷

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Baixe Ensino de língua portuguesa para surdos e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Literatura, somente na Docsity! UA] BAN) PAGAR GU RT VANIA DE LL OUR DERA La ee A ETA ODE to O TOS Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva Ministro da Educação Tarso Genro Secretário Executivo Fernando Haddad Secretária de Educação Especial Claudia Pereira Dutra EQUIPE TÉCNICA Autoras Heloísa Maria Moreira Lima Salles Doutora em Lingüística Professora da Universidade de Brasília Coordenadora do Projeto Enilde Faulstich Doutora em Filologia e Língua Portuguesa Professora da Universidade de Brasília Orlem Lúcia Carvalho Doutora em Lingüística Professora da Universidade de Brasília Ana Adelina Lopo Ramos Mestre em Lingüística Professora da Universidade de Brasília Consultores Surdos de LIBRAS Gláucia Rosa de Souza Professora de Língua Brasileira de Sinais - FENE1S Isaías Leão Machado Felix Professor de Língua Brasileira de Sinais - APADA Assistentes de Pesquisa Adriana Chan Viana Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Lingüística - UnB Técnica Educacional - Ministério das Relações Exteriores Sandra Patrícia de Faria do Nascimento Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Lingüística - UnB Professora da Secretaria de Educação do Distrito Federal Rosana Cipriano lacinto da Silva Especialista Lato Sensu em Língua Portuguesa Professora da Secretaria de Educação do Distrito Federal Professora da CESUBRA - Faculdade Objetivo Ilustrador Isaías Leão Machado Felix APRESENTAÇÃO Esta publicação faz parte do Programa Nacional de Apoio à Educação dos Surdos, que tem como objetivo apoiar e incentivar a qualificação profissional de professores que com eles atuam. Pela primeira vez, os professores terão acesso a materiais que tratam do ensino da Língua Portuguesa a usuários de LIBRAS. Trata-se de um trabalho inédito, muito bem fundamentado e com possibilidades de viabilizar oficinas, laboratórios de produção de material por parte dos professores, relacionando, de fato, teoria e prática. Estamos certos de que a formação adequada de professores contribuirá para a melhoria do atendimento e do respeito à diferença lingüística e sociocultural dos alunos surdos de nosso país. Secretaria de Educação Especial PREFACIO Este livro é o resultado da articulação de diversos esforços. É parte integrante do Programa Nacional de Apoio à Educação dos Surdos, que pode ser considerado um avanço na luta pelo desenvolvimento acadêmico da pessoa surda e pela valorização de sua condição multicultural. É uma tentativa de reunir informações colhidas em diversas fontes, que generosamente se desvendaram para nós, sob a forma de trocas de experiências, discussões, leituras, experimentos, em que se destacam os consultores surdos do projeto, conscientes de seu papel social na promoção da cultura surda, e as professoras/ pesquisadoras ouvintes, que prestaram consultoria na questão educacional do surdo, em diferentes etapas do projeto. É enfim uma contribuição de pessoas que há pouco tempo voltaram o olhar para os surdos, em face de um chamado profissional, que logo se transformou em entusiasmo e desejo de conhecer mais e participar das discussões e ações em benefício da comunidade surda, na tarefa de construir uma sociedade multicultural e fraterna. Concebido como material instrucional para a capacitação de profes- sores de língua portuguesa da Educação Básica no atendimento às pessoas com surdez, o livro Ensino de Língua Portuguesa para Surdos: Caminhos para a Prática Pedagógica parte do pressuposto de que a mo- dalidade vísuo-espacial é o canal perceptual adequado à aquisição e utilização da linguagem pelas pessoas surdas, tendo implicações cruciais para seu desenvolvimento cognitivo, sua afirmação social e realização pessoal, do que decorre ainda o entendimento de que, na adoção do bilingüismo, a língua portuguesa é segunda língua para o surdo. Nossa proposta de reflexão é formulada em duas partes: a primeira compreende três unidades e aborda a situação lingüística e cultural do surdo, considerando a aquisição da linguagem em uma perspecti- SÚMARIO Sistema de Transcrição de LIBRAS......................................... 17 Unidade I.................................................................................. 19 Política de Idioma e Ensino da Língua Portuguesa para Surdos.......................................................... 19 O Mundo da lusofonia .............................................................20 1. Origem e história da língua portuguesa .............................. 20 2. O Brasil no mundo da lusofonia .........................................23 Língua e identidade: um contexto de política lingüística ......25 1. Situação do tema.............................................................. 25 2. Considerações gerais .........................................................26 3. Linguagens: espaços de atos concretos ............................ 27 4. Um projeto em desenvolvimento....................................... 32 5. Considerações finais ..........................................................34 Cultura Surda e cidadania brasileira ......................................36 1. As diferenças humanas ......................................................36 2. A questão multicultural surda.............................................38 3. Cultura Surda e identidade.................................................40 4. Comportamento e tecnologia surda ...................................44 5. Cultura Surda na educação de surdos.................................46 6. Contribuições da sociedade à educação dos surdos ...........49 7. Considerações finais .......................................................... 52 Educação dos surdos: aspectos históricos e institucionais . 54 1. Aspectos históricos da educação dos surdos...................... 54 2. Aspectos institucionais da educação dos surdos................. 58 Unidade II ........................................................................................64 A Linguagem Humana: Aspectos Biológicos e Psicossociais ... 64 Linguagem e cognição.................................................................... 66 1. Origem da linguagem humana ................................................ 66 2. A aquisição da linguagem....................................................... 68 2.1 Evidências para a hipótese da mente modular ................. 71 3. Aquisição de segunda língua .................................................. 73 3.1 Aquisição de língua oral-auditiva por surdos .................. 77 Linguagem e sociedade ...................................................................79 1. A diversidade lingüística ........................................................ 79 Características das línguas de sinais .............................................83 1. Línguas de sinais e a modalidade vísuo-espacial.....................83 2. Universais lingüísticos e as línguas de sinais ......................... 85 Unidade III ......................................................................................95 Aplicações da Teoria Lingüística ao Ensino de Línguas ............ 95 Da abordagem audiolingual à interacionista: em direção à comunicação....................................................................96 1. Introdução ................................................................................96 2. Definição dos termos ...............................................................96 3. Relação entre abordagens e métodos .......................................98 4. Abordagens de base estruturalista e funcionalista ...................99 4.1. Abordagem estruturalista.................................................99 4.2. Abordagem funcionalista............................................... 100 4.3. O ensino audiolingual e o comunicativo ...................... 101 5. Abordagem interacionista ..................................................... 103 5.1. Principais vertentes teóricas ......................................... 104 5.1.1. A Hipótese da Interação ........................................ 104 5.1.2. A Teoria Sociocultural ...................................... 105 5.1.3. Pequeno contraste entre a Hipótese da Interação e a Teoria Sociocultural .................................................. 106 5.2. O ensino sob a ótica interativa ................................. 107 6. O diálogo e o texto nas três abordagens.......................... 108 6.1. O tratamento estruturalista...................................... 108 6.2. O tratamento comunicativo ..................................... 111 6.3. O tratamento interacionista..................................... 112 7. A situação de aprendizagem dos surdos .......................... 1 14 8. Considerações finais ....................................................... 117 Um olhar sobre o texto do surdo ........................................... 118 1. Introdução ...................................................................... 118 2. Aspectos da aquisição de português por ouvintes............ 119 3. Em que consiste a tarefa de adquirir uma segunda língua ... 123 3.1 Soluções propostas pelo surdo ante a tarefa de produzir um texto escrito em português ..................... 124 4. Considerações finais ....................................................... 132 Referências bibliográficas.................................................... 134 Unidade I Politica de Idioma e Ensino da Língua Portuguesa para Surdos O mundo da lusofonia A língua é minha pátria E eu não tenho pátria Eu tenho mátria e quero frátria (...) Flor do Lácio, sambódromo Lusa Américo, Latim em pó O que quer o que pode essa língua? (Língua, Caetano Veloso) 1. Origem e história da língua portuguesa A origem da língua portuguesa, juntamente com línguas como o es- panhol, o catalão, o francês, o italiano, o romeno, encontra-se na transformação, através dos séculos, do latim, o que explica que se- jam todas referidas como línguas românicas ou neo-latinas, consti- tuindo uma única família lingüística. Recuando-se no tempo, cabe então indagar quanto à origem do latim e às condições históricas de seu surgimento.1 O latim originou-se na região do Lácio, onde, em 711 a.C, fundou-se Roma, e pertence ao tronco lingüístico originário do indo-europeu, uma língua falada pelos árias ou arianos, que teria surgido nas regiões da Europa central. As migrações desse povo, que deixou seu território em diferentes tribos entre os séculos XV e XX a. C, levaram à ocupação de novas regiões da Europa e parte da Ásia, e à disseminação de sua língua. Estudos realizados no começo do século XIX pelo filólogo alemão 1 As considerações históricas do presente capítulo estão sintetizadas a partir da obra de Hauy (1989). Franz Bopp demonstraram, pelo método da gramática comparada, que quase todas as línguas atualmente faladas na Europa e na Ásia provêm do indo-europeu, o que atesta em contrapartida, por meio de diversos fatos fonéticos, morfológicos e sintáticos, a própria existência do indo-europeu. Com a dispersão do povo ariano, verificou-se o fracionamento do indo-europeu em diversos ramos, a saber: o germânico, o itálico, o bálti- co, o eslavo, o céltico, o albanês, o grego, o indo-irânico, o anatólio, o armênio e o tocariano. O ramo itálico, por sua vez, compreendia o osco, o latim e o umbro. Essas línguas estão distribuídas em regiões que vão da Europa Ocidental até a Índia. Como se sabe, a difusão do latim se dá no contexto da expansão do Império Romano, que alcança seu apogeu entre os séculos I a. C. e I d. C. A história da língua portuguesa começa, portanto, com a romanização da península ibérica, iniciada em 197 a. C, com a domi- tes de língua portuguesa. No entanto, sua liderança no bloco lusófono deverá afirmar-se pela valorização da língua portuguesa como fator de união e solidariedade na comunidade lusófona, com o respeito à diversidade lingüística e à expressão multicultural dos povos. Para tanto, é necessário promover o letramento e o amplo acesso do ci- dadão às diferentes instâncias sociais, à produção e ao usufruto dos bens culturais e artísticos, com vistas ao desenvolvimento humano e à realização pessoal. A situação da comunidade surda nesse cenário é particularmente interessante, em termos lingüísticos, pela perspec- tiva do bilinguismo, e culturais, tanto no plano da cidadania brasileira, com o sentimento de nacionalidade e o respaldo institucional, quanto na condição que identifica seus membros como detentores de uma cultura própria, a cultura surda. Língua e identidade: um contexto de política lingüística 1. Situação do tema O assunto aqui desenvolvido está diretamente relacionado com políti- ca de línguas e de culturas, tanto na concepção de língua concebida como entidade oficial de uma Nação, quanto na de língua como veícu- lo de intercomunicação humana, no convívio pacífico da diversidade. Três pressupostos orientarão nossa discussão: • o da relação entre unidade lingüística e unidade política, assim como da relação entre processos de identidade e nacionalidade,- • o da difusão de língua(s) por meio de instrumentos controlados, dirigidos para o uso efetivo destas e para o ensino, em ambien- tes naturais ou estrangeiros; • o da capacitação em línguas, mediante programas específicos de formação. Para responder ao primeiro pressuposto, discutiremos conceitos bá- sicos em que Língua e Estado-Nação são coadjuvantes de primeiro pla- no; para argumentar o segundo, serão considerados esforços que diversos Organismos têm levado adiante para ou difundir, ou implan- tar o português nos espaços em que é língua oficial; para refletir so- bre o terceiro, tomaremos, como ponto de partida, a documentação oficial acerca do ensino de português para surdos. 2. Considerações gerais A vitalidade de uma língua, contrariamente aos recursos naturais, depende de sua utilização efetiva, tanto em escala nacional, quanto em escala mundial. Quanto mais uma língua é utilizada, mais ela é viva e, inversamente, quanto menos é utilizada, mais ela é ameaçada de extinção. Assim sendo, é o uso social da língua que determina seu grau de revitalização. Esta utilidade é observável no interior das instituições sociais que respondem às necessidades de uma coletividade e que formam terri- tórios sociais indispensáveis ao seu funcionamento. Trata-se, por sua vez, de territórios concretos, tais como, o familiar, o religioso, o ad- ministrativo, o educativo, o científico, o técnico, o econômico, o jornalístico, o lingüístico, e de espaços mais abstratos, como o terri- tório político. O significado de território, aqui, passa por uma muta- ção semântica em decorrência da ampliação do uso terminológico, uma vez que território adquire o significado de um tipo particular de patrimônio, que é a 'soberania' e, ao mesmo tempo, sujeito de um tipo particular de identidade coletiva, que tem como referência país, Nação e pátria de um povo, delimitado geograficamente para formar um Estado. O mundo atual - o mundo globalizado - que pretende apagar limites - não é capaz de atingir o sistema das línguas, porque não lhe é permitido clonar todas em uma só. Como se fora um paradoxo, o significado de 'global' atua nos objetos concretos, nas coisas que se compram e que se vendem, mas não atingem as linguas; ao contrá- rio, exacerba nacionalismos. O homem globalizado é aquele que está inserido num mercado e, por conseqüência, num canteiro lingüístico, num multiculturalismo fenomenal. Por sua vez, a internacionalização das trocas políticas e econômicas é feita por meio das línguas oficializadas no âmbito dos Estados, em decorrência do conceito de supranacionalidade, que é gerado no plano teórico das decisões. No plano prático, todavia, compete aos Esta- ea.' A gramatiquinha que tentava 'configurar o universal para que fosse possível 'escrever brasileiro' não passou de projeto; o material destinado à obra foi arquivado e ficou disponível para eventual apro- veitamento em outra direção' (Pinto, op. cit: 53-55).1 Ora, sabemos bem que a relação entre história, história de língua e língua em si é complexa e se faz de forma lenta e gradual durante os processos de formação de identidade e nacionalidade. Para isso, va- mos tomar emprestado de Orlandi (1998:7-8) alguns fatos que ser- vem para justificação: • no Brasil, línguas indígenas desapareceram dada a relação de contato com o homem branco mais ou menos violenta; • com a meta de revitalizar a cultura indígena, índios falam línguas produzidas por missionários e mesmo por lingüistas e antropó- logos - o que não corresponde mais a uma história autóctone; • no Brasil dos séculos XVII e XVIII, usou-se maciçamente uma Lín- gua Geral, em suas diferentes modalidades, cujos resíduos ainda sobrevivem, mesmo que invisíveis, na língua nacional ou em re- giões habitadas por populações indígenas; • há vestígios dos dialetos africanos incorporados pela língua na- cional e falares africanos em diferentes grupos populacionais bra- sileiros; • há os falares dos imigrantes com suas línguas próprias ou mes- cladas pelas influências nacionais; • há o português do Brasil, afetado por todos esses processos de identidade, e o português de Portugal, língua de colonização. Esses recortes históricos servem para demonstrar que a língua do Brasil resulta, entre outros, de confrontos, alianças e de tensões com outras línguas. É uma razão que pode justificar o uso atual de, pelo O material encontra-se no Instituto de Estudos Brasileiros, da Universidade de São Paulo. menos, duas macrovariedades a do Brasil e a de Portugal, se não quisermos nos deter nas variedades dos falares portugueses da Áfri- ca, onde cada comunidade apresenta o uso que lhe é próprio e que é fruto do grau de identidade que cada uma das nações possui com o idioma português e do contato deste com as línguas nacionais. Se as marcas incorporadas não foram suficientes para criar línguas autônomas, foram bastante úteis para organizar políticas lingüísticas naturais, que se tornam evidentes no momento em que as socieda- des modernas se globalizam. Vale lembrar que o português é língua de dois importantes mercados econômicos e, na escala da quinta língua mais falada do mundo, está concentrado em praticamente duas áreas geográficas distintas, que são, de maneira efetiva, focos de difusão: Portugal e Brasil. No mundo globalizado, o progresso da integração se faz por meio de projetos institucionalizados de políticas em que as línguas ocupam lugar de destaque. Assim, de um lado, encontram-se os Estados que regulamentam quais devem tornar-se 'línguas oficiais de ensino', e de outro, encontram-se projetos internacionais avançados para difusão de línguas em territórios vastos nos quais se realizam negócios. E o português, língua de expansão continental, assenta suas bases, na condição de oficial e de língua de mercados, em organismos econô- micos, na Europa, na América, na África e na Ásia. No eixo da comunicação transnacional, o português é, na Europa, língua de trabalho da União Européia. Sua ação se dá em vastos ter- ritórios com as metas dirigidas à preservação, à difusão, ao ensino e à aprendizagem das línguas oficiais e nacionais dos Quinze.2 Na América do Sul, o português, ao lado do espanhol, é língua oficial do Mercosul. Sob outra interpretação política, quer dizer, na condição de língua oficial e/ou de unificação nacional, é língua da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) com assento nos quatro 2 Paises da União Européia: Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, Finlândia, França, Grécia, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Holanda, Portugal, Reino Unido e Suécia. Continentes: Europa, América, África e Ásia. 3 Nesse quadro de polí- tica internacional ramificada, é o idioma que funciona como o supor- te da reunião de povos. Vale lembrar, porém, que as metas da CPLP vão além da conjunção lingüística, porque, nos estatutos da Comu- nidade, estão delimitados os objetivos, que prevêem, além da materialização de projetos de promoção e de difusão da língua por- tuguesa, a concertação político-diplomática entre seus membros em matéria de relações internacionais, nomeadamente para o reforço de sua presença nos fóruns internacionais, e a cooperação, particular- mente nos domínios econômico, social, cultural, jurídico e técnico- científico (Art. 3° Objetivos). Com o fito de ver a língua portuguesa privilegiada no seio da Comuni- dade que lhe deu nome, Menezes (1999) observa que "a Comunidade só poderá vir a ser a grande família com que alguns de seus idealizadores sonharam se nunca for esquecido que a língua portu- guesa é o veículo comum de que os povos dos oito4 se utilizam para exprimir as diferentes realidades e diferentes formas de ser e de estar no mundo, as quais foram moldadas, pelo tempo, pelas terras e his- tórias de cada um deles.' E continua: 'Essa assertiva é tanto mais importante se recordarmos que vivemos numa época de crescente globalização de situações e de problemas e de progressiva facilidade e rapidez das comunicações. Em tal contexto, a defesa das comuni- dades nacionais exige redobrada atenção à promoção e à difusão da lingua.' Diante do panorama da CPLR não podemos perder de vista que o ensino e a aprendizagem de línguas se faz dentro de um macroespaço que exige uma compreensão do mundo variada, plurilíngüe e 3 Paises membros da CPLP: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe (África): Brasil (América do Sul); Portugal (Europa) ; Timor Loro Sae (Ásia). 4 No texto original, Menezes refere-se aos sete povos que têm a língua portuguesa como veículo comum. Porém, na IV Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, realizada em 1 de agosto de 2002, no Palácio do Itamaraty, em Brasília, o Timor Loro Sae teve ratificada sua inclusão na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), uma vez que, até então, era membro observador. nacional e identidade de indivíduos aos direitos lingüísticos. Contudo, é possível identificar o avanço da política educacional ao estabelecer direitos lingüísticos dos surdos. Tendo em vista o princípio inscrito no Plano Nacional de Educação do Ministério da Educação do Brasil, que é o de uma escola inclusi-va, que garanta o atendimento à diversidade humana' e a diferença, o LIV reconhece a afinidade de interesses e dispõe-se, à luz de uma política educacional cooperativa, a desenvolver um projeto que atenda às necessidades político-pedagógicas para a formação de professores e desenvolvimento acadêmico dos surdos. Dessa forma, busca-se a consonância com o Art. 59 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que prevê a capacitação de professores especializados. Ao combinar as diretrizes formuladas no art. 59 da LDB com a com- petência indicada no Art. 18 da Resolução 02/2002 do CNE, segundo a qual: 'cabe aos Sistemas de Ensino estabelecer normas para o fun- cionamento de suas escolas, a fim de que essas tenham as suficientes condições para elaborar sua proposta político-pedagógica e contem com professores capacitados e especializados,' o LIV reforça uma de suas vocações profissionais ao ajustar sua leitura política do mundo da língua portuguesa às determinações da legislação no que se refere à formação de professores e à 'utilização de métodos e técnicas que contemplem códigos e linguagens apropriados às situações específicas de aprendizagem, o que inclui, no caso de surdez, a capacitação em Língua Portuguesa e em Língua Brasileira de Sinais'. 5. Considerações finais Uma política de idioma deve considerar a pluralidade de línguas em situação comum no mundo, desde seus primórdios. É verdade que a oficialização de uma língua desempenha um papel unificador inter- nacional, mas é certo também que uma decisão dessa natureza não exerce nenhuma força coercitiva natural de eliminar línguas se a co- munidade de fala não o permitir. Na história recente, há comunida- des de línguas que sofreram proibições deliberadas e agressivas, como o catalão, na Espanha, e o português, no Timor Loro Sae, por exem- plo; ambas resistiram e hoje são reconhecidas oficialmente. Num espaço lingüístico, podemos apontar pelo menos dois modos de convivência do fenômeno. Um individual, em que o sujeito plurilíngüe utiliza várias línguas ou vive entre várias línguas, e outro coletivo, em que, numa mesma comunidade multilíngüe, coexistem várias línguas. Em uma ou outra situação, o indivíduo utiliza, quase sempre, a que preenche uma função identitária. L.-J. Calvet (2001: 244-5), ao tratar da questão porque a língua preenche uma função identitária, observa: 'a identidade é, de fato, um fenômeno essencialmente diferencial, ela aparece apenas diante de outra, do diferente, e ela pode então variar quando muda a outra. (...) A neces- sidade de definição de identidade, de distinção, leva assim a impor sua marca à língua, a função que cria, desse modo, a forma lingüísti- ca necessária à sua manifestação.' Essas considerações nos conduzem a entender que os obstáculos ou impedimentos que dificultam ou limitam a liberdade de acesso à comunicação e à informação são desafios e não barreiras, especial- mente em se tratando de ensino de língua portuguesa a falantes de LIBRAS. Para os fins de uma aprendizagem eficiente, é preciso consi- derar os avanços técnicos, oferecidos pelas novas tecnologias para o ensino, desde que o produto destas observe que os surdos possuem língua própria, costumes e objetivos comuns. Cultura Surda e cidadania brasileira '... hs sordos se han ogrupado cada vez que han tenido oportunidad de hacerlo. Y se han agrupado en Io que liemos denominado comunidades lingüísticas, porque en Ia base de Ias mismas está Ia utilización de una lengua común, Ia lengua de señas. Pero el término comunidad pone de relieve el hecho de que sus miembros están unidos por importantes vínculos sociales y que los sordos como grupo, como colectividad, tienen pautas v valores culturales propios, diferentes y a veces en contradición con los que sustenta Ia macrocomunidad oyente.' Carlos Sanchez 1. As diferenças humanas Os ouvintes são acometidos pela crença de que ser ouvinte é melhor que ser surdo, pois, na ótica ouvinte, ser surdo é o resultado da per- da de uma habilidade 'disponível' para a maioria dos seres humanos. No entanto, essa parece ser uma questão de mero ponto de vista. Segundo Montesquieu (apud Maupassant, 1997: 56-57), um órgão a mais ou a menos em nossa máquina teria feito de nós uma outra inteligência. Maupassant1, em seu conto 'Carta de um louco', reflete sobre a tese acima, defendendo que 'todas as idéias de proporção são falsas, já que não há limite possível, nem para a grandeza nem para a pequenez (...) a humanidade poderia existir sem a audição, sem o paladar e sem o olfato, quer dizer, sem nenhuma noção do ruído, do sabor e do odor. Se tivéssemos, portanto, alguns órgãos a 1 Gostaríamos de agradecer a Hugo Pastor Santos de Albuquerque, que, sabiamente, captou a intertextualidade das discussões que tínhamos em sala de aula com o texto de Maupassant e enriqueceu-nos com sua contribuição. Nesse sentido, Pimenta (2001: 24), ator surdo brasiliense, declara que "a surdez deve ser reconhecida como apenas mais um aspecto das infinitas possibilidades da diversidade humana, pois ser surdo não é melhor ou pior do que ser ouvinte, é apenas diferente'. Se considera- mos que os surdos não são 'ouvintes com defeito'", mas pessoas diferentes, estaremos aptos a entender que a diferença física entre pessoas surdas e pessoas ouvintes gera uma visão não-limitada, não- determinística de uma pessoa ou de outra, mas uma visão diferente de mundo, um 'jeito Ouvinte de ser' e um 'jeito Surdo de ser', que nos permite falar em uma cultura da visão e outra da audição. 2. A questão multicultural surda Skliar (1998) explica que falar em Cultura Surda como um grupo de pessoas localizado no tempo e no espaço é fácil, mas refletir sobre o fato de que nessa comunidade surgem processos culturais específicos é uma visão rejeitada por muitos, sob o argumento da concepção da cultura universal, monolítica. Para Wrigley (1996), a surdez é um 'país' sem um 'lugar próprio'; é uma cidadania sem uma origem geográfica. Anderson, sociólogo, membro do Departamento de Estudos da Sur- dez da Universidade de Gallaudet, afirma que, apesar de não haver consenso quanto à definição de cultura, e muitos sociólogos e an- tropólogos aceitarem os surdos como uma subcultura, e cientistas e líderes surdos rejeitarem essa classificação sob o argumento de que o prefixo 'sub' implica subordinação de valores de um grupo a outro, "a cultura dos surdos sinaliza que as normas, valores, tecnologia e linguagem dos surdos são diferentes dos de outros grupos humanos' (Anderson, 1994:2). Todavia, pelo fato de surdos e ouvintes encontrarem-se imersos, normalmente, no mesmo espaço físico e partilharem de uma cultura 4 A expressão 'ouvintes com defeito' reflete bem a visão 'ouvintista' e foi tirada de uma correspondência eletrônica de Luiz de Freitas, veiculada em lista de discussão virtual. ditada pela maioria ouvinte, no caso do Brasil, a cultura brasileira, surdos e ouvintes compartilham uma série de hábitos e costumes, ou seja, aspectos próprios da Cultura Surda, mesclados a aspectos próprios da Cultura Ouvinte, fato que torna os surdos indivíduos multiculturais. Por esse motivo, Skliar (1998: 28) defende que 'é pos- sível aceitar o conceito de Cultura Surda por meio de uma leitura multicultural, em sua própria historicidade, em seus próprios proces- sos e produções, pois a Cultura Surda não é uma imagem velada de uma hipotética Cultura Ouvinte, não é seu revés, nem uma cultura patológica.' Em suma, caracterizar a Cultura Surda como multicultural é o primeiro passo para admitir que a Comunidade Surda partilha com a comu- nidade ouvinte do espaço físico e geográfico, da alimentação e do vestuário, entre outros hábitos e costumes, mas que sustenta em seu cerne aspectos peculiares, além de tecnologias particulares, des- conhecidas ou ausentes do mundo ouvinte cotidiano. Sobretudo, os surdos possuem história de vida e pensamentos dife- renciados, possuem, na essência, uma língua cuja substância 'gestual', que gera uma modalidade visual-espacial, implica uma visão de mun- do, não-determinística como dito anteriormente, mas, em muitos aspectos, diferente da que partilha a Comunidade Ouvinte, com sua língua de modalidade oral, cuja substância é o 'som'. Em concordân- cia com essa visão, Felipe (2001: 38) afirma que os surdos possuem 'uma forma peculiar de apreender o mundo que gera valores, com- portamento comum compartilhado e tradições sócio-interativas. A esse modus vivendi dá-se o nome de 'Cultura Surda'. 3. Cultura Surda e identidade É por meio da cultura que uma comunidade se constitui, integra e identifica as pessoas e lhes dá o carimbo de pertinência, de identida- de. Nesse sentido, a existência de uma Cultura Surda ajuda a cons- truir uma identidade das pessoas surdas. Por esse motivo, falar em Cultura Surda significa também evocar uma questão identitária. Um surdo estará mais ou menos próximo da cultura surda a depender da identidade que assume dentro da sociedade. De acordo com Perlin (1998), a identidade pode ser definida como: • Identidade flutuante, na qual o surdo se espelha na representação hegemônica do ouvinte, vivendo e se manifestando de acordo com o mundo ouvinte; • Identidade inconformada, na qual o surdo não consegue captar a representação da identidade ouvinte, hegemônica, e se sente numa identidade subalterna; • Identidade de transição, na qual o contato dos surdos com a comu- nidade surda é tardio, o que os faz passar da comunicação visu-al- oral (na maioria das vezes truncada) para a comunicação visual sinalizada - o surdo passa por um conflito cultural; • Identidade híbrida, reconhecida nos surdos que nasceram ouvintes e se ensurdeceram e terão presentes as duas línguas numa de- pendência dos sinais e do pensamento na língua oral; • Identidade surda, na qual ser surdo é estar no mundo visual e de- senvolver sua experiência na Língua de Sinais. Os surdos que assumem a identidade surda são representados por discursos que os vêem capazes como sujeitos culturais, uma formação de identidade que só ocorre entre os espaços culturais surdos. A preferência dos surdos em se relacionar com seus semelhantes fortalece sua identidade e lhes traz segurança. É no contato com seus pares que se identificam com outros surdos e encontram relatos de problemas e histórias semelhantes às suas: uma dificuldade em casa, na escola, normalmente atrelada à problemática da comunicação. É principalmente entre esses surdos que buscam uma identidade surda no encontro surdo-surdo que se verifica o surgimento da Comunidade Surda. Surgem com ela as associações de surdos, no Brasil, comemorado em 26 de setembro, data de fundação do Instituto Nacional de Educação de Surdos - INES7. Felipe (2001: 63) conclui que 'as Comunidades Surdas no Brasil têm como fatores principais de integração: a LIBRAS, os esportes e interações sociais, possibilitados não apenas pelo convívio dos surdos na FENEIS, nas suas respectivas associações, mas também na Confe- deração Brasileira de Desportos de Surdos (CBDS), entidade que se preocupa com a integração entre os surdos por meio dos esportes e do lazer e comporta seis federações desportivas e, aproximadamente, 58 entidades, entre associações, clubes, sociedades e congregações, em várias capitais e cidades do interior.'8 Acrescente-se o fato de que, em algumas partes do país, os surdos participam ativamente de fóruns pelos direitos humanos, em que são discutidos temas referentes à educação, ao trabalho, à saúde e à participação política dos surdos. 4. Comportamento e tecnologia surda Há comportamentos e tecnologias incorporados na vida diária da Co- munidade Surda, a maioria dos quais objetiva a comunicação, o con- tato do surdo com o mundo dos sons, e entre eles mesmos a distân- cia, por meio de uma 'agenda surda' bem definida, na qual se desta- cam: os torpedos9, que, apesar de recentes, vêm se ampliando significa- tivamente; a comunicação por meio de Telefones para Surdos (TS)10 7 O artigo 7 do decreto de número 6892 de 19 de março de 1908, determinou a data de fundação do INÊS em 26 de setembro de 1857, porque, através do artigo 16 da LEI 939 de 26.09.1857, o Império Brasileiro concede a primeira dotação orçamentária para o Instituto passando, então, a chamar-se Imperial Instituto de Surdos Mudos. in Revista Espaço (Edição comemorativa de 140 anos), página 6, por Solange Rocha. Outra data que agora se torna extremamente significativa para a Comunidade Surda Brasileira é a da sanção presidencial da Lei n° 10.436 - 24 de abril de 2002, que oficializa a LIBRAS, no Brasil. 8 Dados retirados do site www.surdo.com.br/assoma 1 .htm (apud Felipe, op. cit. : p. 63) 9 Torpedo' tem sido o nome comumente usado, no Brasil, para se referir à comunicação via telefone celular, por meio de mensagem de texto. 10 TS é a sigla de Telefone para Surdos. No entanto, o nome importado no aparelho é TDD - Telecomunications Device for the Deaf. Após concurso e enquete realizada na internet, foi escolhido o nome para o primeiro TS fabricado no Brasil: SURTEL. para TS (instalados em residências, entidades privadas ou associados a telefones públicos), ou ainda, de TS para uma central de atendimen- to das empresas de telecomunicações, que se responsabilizam pela intermediação do contato entre uma pessoa que utiliza o TS e outra que não o utiliza (o serviço contempla chamadas tanto de TS para o aparelho convencional, como do aparelho convencional para TS), cujo número, na maioria das capitais brasileiras, é 1402. Em Porto Alegre, há a diferenciação de uma chamada de TDD para aparelho convencional, cujo número é 0800-51-7801, para uma cha- mada de aparelho convencional para TDD, cujo número é 0800-51- 7802; pagers; bips; fax; a telemática (comunicação via internet por meio de e-mails, chats, listas de discussão, icq, etc); sinalização luminosa para campainhas, telefone, alarme de segurança e detector de choro de bebê; relógios de pulso e despertadores com alarmes vibratórios; legendas ou tela de intérprete na TV intérpretes in loco nas igrejas, escolas, repartições públicas, hospitais, delegacias, comércio em geral etc); adaptação da arbitragem nos esportes, substituindo os apitos por acenos e lenços; entre outros. No dia-a-dia da pessoa surda, há jogos, técnicas, brincadeiras e com- portamentos interativos, ora adaptados de jogos de ouvintes, ora criados pela própria Comunidade Surda. Para fins de ilustração, apre- sentam-se alguns jogos e técnicas adaptados: • o jogo 'escravos de Jó' foi adaptado por normalistas surdos no curso normal do Programa Surdo Educador" privilegiando o rit- mo com que as 'pedrinhas' são passadas de um a outro em de- trimento da melodia; • a conhecida técnica do telefone sem fio também foi adaptada, de forma que os participantes fazem uma fila indiana, e a pessoa " O Programa Surdo Educador teve início em 1994, como Projeto Surdo Educador, na Escola Normal de Taguatinga - DF, e conta, em 2002, com 10 professores surdos formados no magistério de primeiro grau e 7 normalistas surdos em curso. que dita a frase ocupa a última posição na fila, cutuca o partici- pante à sua frente, o qual se vira e vê a frase falada em língua de sinais. Em seguida, este cutuca o participante seguinte na fila, o qual se vira e repete a frase que lhe foi passada. Assim, sucessi- vamente, repete-se a frase até o final da fila, quando o último repete a todos a frase que recebeu; • a forma como rezam a oração do Pai Nosso também é interes- sante: enquanto ouvintes se dão as mãos, os surdos unem seus pés para poderem partilhar em 'voz alta' (com a língua de sinais) da oração universal do cristianismo. Quanto à LIBRAS, cabe ressaltar a forma como os indivíduos são nela nomeados, atribuindo-se aos sujeitos características físicas, psicológicas, associadas ou não a comportamentos particulares, os mais variados, os quais personificam e, de certa forma, rotulam os indivíduos. É uma língua, como qualquer outra língua materna, ad- quirida efetiva e essencialmente no contato com seus falantes. Esse contato acontece, normalmente, com a participação nas Comunida- des Surdas, onde a Cultura Surda vai pouco a pouco florescendo e, ao mesmo tempo, se diversificando em seus hábitos e costumes, que, pelos contextos distantes e diferenciados, refletem regionalis- mos culturais da Comunidade Surda. Nesse sentido, é fundamental o contato da criança surda com adultos surdos e outras crianças sur- das para que haja um input lingüístico favorável à aquisição da língua, possibilitado por um ambiente de imersão em língua de sinais 5. Cultura Surda na educação de surdos Antes de se tratar das implicações da Cultura Surda na educação e vice-versa, é relevante ressaltar que a cultura de uma dada sociedade não se constrói a partir dos processos de escolarização dos conheci- mentos, entretanto tais processos contribuem para a constituição de diferentes significados culturais. Longe de minimizar o significado de literatura em sinais que precisam fazer parte do processo de alfa- betização de crianças surdas.' Ainda, segundo Quadros (op. cit.: 9), o papel do surdo adulto na educação se torna fundamental para o desenvolvimento da pessoa surda. É preciso produzir estórias utilizando-se configurações de mãos específicas, produzir estórias em primeira pessoa sobre pessoas sur- das, sobre pessoas ouvintes, produzir vídeos de produções literárias de adultos surdos. Uma outra questão relevante na alfabetização de surdos diz respeito à sua escrita. Em princípio, vem-se, há anos, no Brasil, alfabetizando sur- dos em língua portuguesa e reforçando a Escrita Surda numa interlíngua que apresenta, geralmente, a estrutura da língua de sinais com vocabu- lário de língua portuguesa. Reflexões sobre a alfabetização de surdos sugerem, entretanto, que a alfabetização destes deva se realizar, inicial- mente, em língua de sinais. E uma proposta de ensino ainda incipiente no Brasil, mas, sem dúvida, um caminho que emerge aos poucos e timi- damente, por meio da tecnologia oferecida pelo signwriting™ ou língua escrita de sinais. Acredita-se que o signwriting é uma forma de agregar as tecnologias educacionais empregadas no ensino de surdos, além de tor- nar perenes e sólidas suas idéias, confirmando, reforçando e ampliando a 'marca surda' de pertinência no mundo e, quem sabe, por meio dela, a História Surda se construa e se sustente sobre a 'voz' da maioria surda, definindo-se e estabelecendo, enfim, a Cultura Surda pelo próprio sur- do, por ideal, por opção, por convicção, por SER SURDO. 6.Contribuições da sociedade à educação dos surdos Cabe finalmente perguntar o que a sociedade ouvinte tem realizado para permitir ao surdo o acesso à sua cultura e à cultura ouvinte, 14 O signwriting é um sistema de escrita das línguas de sinais, idealizado e desenvolvido por Valérie Sutton do Deaf Action Commitee, da Califórnia, USA. Trata-se de um conjunto de símbolos visuais que podem descrever qualquer língua de sinais no mundo. contribuindo para a inclusão do surdo na sociedade, respeitando sua cultura. Em termos educacionais, há uma série de iniciativas que emer- gem e se expandem a cada dia mais e com efeitos mais previsíveis e satisfatórios, alimentados pela crescente pesquisa na área, dentro de diversas instituições, especialmente, nas universidades brasilei- ras. A seguir apresenta-se uma relação de materiais didáticos, seleciona- dos entre tantos outros existentes. Alguns são comercializados, ou- tros, distribuídos gratuitamente: • vídeos de poesias, histórias infantis, fábulas de Esopo (sinaliza- das) e números em LSB, produzidos pela LSB vídeo produções; • vídeos produzidos pelo INES: Histórias Infantis em Língua de Si- nais: Introdução às Operações Matemáticas; O Verbo em Portu- guês e em LIBRAS; Hino Nacional; • CD-ROM Coleção Clássicos da Literatura em LIBRAS/Português, volume I (Alice no País das Maravilhas de Lewis Carol), editado por Clélia Regina Ramos, Editora Arara Azul; • Material distribuído pelo MEC - Comunicar - proposta de ade- quação curricular para alunos com necessidades especiais: vídeo I: dicionário visual LIBRAS; vídeo II - parte 1; Formulação de fra- ses em LIBRAS; parte 2: pidgin; vídeo III: instalação dos fonemas e aquisição de fala; • Vídeo: Independência e vida: prevenção ao abuso de drogas. MEC/ INES; • Vídeo: Prevenção de HIV - AIDS/DST para pessoas surdas - pro- dução AJA, com recursos do Projeto Unesco, www.aja.org.br/aids: • Vídeo: A ilha dos sonhos (filme legendado - conteúdos de geo- grafia e matemática), disponível nas edições paulinas; • 17 programas infantis da série Vejo Vozes, veiculados e produzidos na TV Cultura; • Livros diversos de LIBRAS, entre os quais: LIBRAS em Contexto, distribuído pelo MEC e comercializado pela FENEIS. • Dicionários de LIBRAS: a. Capovilla, E C, Raphael, W D. (2001a). Dicionário Enciclopédico Ilus trado Trilíngüe da Língua de Sinais Brasileira. Volume I: Sinais de A a L (Vol 1, p. 1-834). São Paulo, SP: Edusp, Fapesp, Fundação Vitae, Feneis, Brasil Telecom. (ISBN: 85-314-0600-5). Capovilla, F. C, Raphael, W. D. (2001b). Dicionário Enciclopédico Ilustrado Trilíngüe da Língua de Sinais Brasileira. Volume II: Sinais de M a Z (Vol. 2, p. 835-1620). São Paulo, SP: Edusp, Fapesp, Fundação Vitae, Feneis, Brasil Telecom. (ISBN: 85-314-0603-X). b. Dicionário Digital Bilíngüe - Português x LIBRAS e LIBRAS x Português, em CD-Rom, produzido pelo INES, organizado por especialistas sur dos, filólogos, lexicógrafos e lingüistas, com oito mil sinais/vídeos animados, em ordem alfabética, gravado e distribuído gratuitamente pelas secretarias estaduais de Educação. c. Dicionário Digital da Língua Brasileira de Sinais, desenvolvido pelo Programa Acessa São Paulo, produzido em CD-Rom, com oito mil palavras, três mil vídeos, 4,5 mil sinônimos e cerca de 3,5 mil ima gens. Entre os livros com estórias de/ou para surdos, encontram-se: Uma menina chamada Kauana (já escrito em signwriting por Marianne Stumpf), Mitaíde Jaime Sautchuk, editora Verano, Brasília, 1992; O vôo da gaivo- ta de Emmanuelle Laborit, publicado pela Best Seller, São Paulo, 1994; Como é ser surdo, de Vera Strnadová, traduzido por Daniela Richter Teixeira e publicado pela Editora Babel, RI, em 2000. Educação dos surdos: aspectos históricos e institucionais 'Paro os navegantes com desejo de vento, a memória é um ponto de partida.' Eduardo Galeano 1. Aspectos históricos da educação dos surdos A trajetória social das pessoas surdas sempre esteve dialeticamente implicada com a concepção de homem e de cidadania ao longo do tempo. A rigor a história da educação de surdos no Brasil é um pe- queno capítulo da longa história em todo o mundo. Nas civilizações grega e romana, por exemplo, as pessoas surdas não eram perdoa- das, sua condição custava-lhes a vida. Posteriormente, há o reco- nhecimento de que não há surdez absoluta e que os restos auditivos podem ser utilizados e desenvolvidos. No entanto, as pessoas sur- das, ao longo do caminho, enfrentam descrédito, preconceito, pie- dade e loucura. Em 637 d.C, o bispo John of Bervely ensina um surdo a falar de forma clara, e o acontecimento é considerado um milagre. No entanto, as- sim como a autoria de muitas metodologias e técnicas ficaram perdi- das no tempo, esta também perde-se, e a igreja toma para si a auto- ria do feito. No século XVIII, surgem os primeiros educadores de sur- dos: o alemão Samuel Heineck (1729-1970), o abade francês Charles Michel de L'Epée (1712-1789) e o inglês Thomas Braidwood (1715- 1806). Esses autores desenvolveram diferentes metodologias para a educação da pessoa surda. Em 1755, em Paris, o abade L'Epée funda a primeira escola pública para o ensino da pessoa surda. O português Jacob Rodrigues Pereira, na França, desenvolve o método de ensino da fala e exercícios audi- tivos com reconhecido sucesso. No Brasil, a educação dos surdos é iniciada com a chegada do francês Ernest Huet, em 1855, no Rio de Janeiro. O professor Ernest organiza a escola para educandos sur- dos, num momento social em que tais indivíduos não eram reconhe- cidos como cidadãos. Em Milão, na Itália, em 1880, realiza-se o Congresso Internacional de Surdo Mudez, ficando definido que o Método Oral é o mais adequa- do na educação do surdo. Nesse congresso, a visão oralista defende que só através da fala o indivíduo surdo poderá ter seu desenvolvi- mento pleno e uma perfeita integração social. Desse modo, o domí- nio da língua oral torna-se condição básica para sua aceitação em uma comunidade majoritária. Segundo Skliar (1997: 109), existiram dois grandes períodos na histó- ria da educação dos surdos: 'Um período prévio, que vai desde mea- dos do século XVIII até a primeira metade do século XIX, quando eram comuns as experiências educativas por intermédio da Língua de Sinais, e outro posterior, que vai de 1880, até nossos dias, de predomínio absoluto de uma única 'equação' segundo a qual a edu- cação dos surdos se reduz à língua oral.' Durante muito tempo as discussões a respeito da educação de sur- dos são impregnadas de uma visão médico-clínica. Essa postura foi assumida pela filosofia oralista, que acredita na normalização, pre- conizando a integração e o convívio dos portadores de surdez com os ouvintes somente através da língua oral. Com a busca da equiva- lência ao ouvinte, prioriza-se o ensino da fala como centralidade do trabalho pedagógico. A metodologia é pautada no ensino de pala- vras e tais atitudes respaldam-se na alegação de que o surdo tem dificuldade de abstração. Aprender a falar tem um peso maior do que aprender a ler e a escrever. Assim, o surdo é considerado como defi- ciente auditivo que deve ser curado, corrigido, recuperado. Como ressalta Jacinto (2001), com a valorização da modalidade oral, o oralismo torna-se hegemônico, e a língua de sinais é considerada 'tradicional' e 'acientífica'. Segundo essa visão, a utilização de sinais levaria a criança surda à acomodação e a desmotivaria para a fala, condenando-a a viver numa subcultura. O caráter decisivo do congresso de Milão, em que diretores renomados de escolas da Europa propuseram acabar com o gestualismo e priorizar a palavra viva, não caracterizou nem a última, nem a primeira oportu- nidade em que se decidiram políticas similares. Segundo Skliar (1997), o congresso constituiu não o começo da ideologia oralista, senão sua legitimação oficial. Com base em Facchini (1981), Skliar argu- menta que todas essas transformações foram produtos de interes- ses políticos, filosóficos e religiosos, e não educativos. Afirma ainda que essa concepção, em que a educação é subordinada ao desen- volvimento da expressão oral, enquadra-se com perfeição no modelo clínico terapêutico da surdez, valorizando a patologia, o déficit bio- lógico. As conseqüências dessa filosofia educacional, o oralismo, podem ser observadas por meio dos resultados de pesquisas e do esmagador fracasso acadêmico em que o surdo está inserido. Segundo Sacks (1990: 45) '[o] oralismo e a supressão do Sinal resultaram numa dete- rioração dramática das conquistas educacionais das crianças surdas e no grau de instrução do surdo em geral. Muitos dos surdos hoje em dia são iletrados funcionais. Um estudo realizado pelo Colégio Gallaudet em 1972 revelou que o nível médio de leitura dos gradua- dos surdos de dezoito anos em escolas secundárias nos Estados Unidos era equivalente apenas à quarta série; outro estudo, efetua- do pelo psicólogo britânico R. Conrado, indica uma situação similar na Inglaterra, com os estudantes surdos, por ocasião da graduação, lendo no nível de crianças de nove anos (...).' No Brasil, é constatado que a grande maioria dos surdos submetidos ao processo de oralização não fala bem, não faz leitura labial, nem Considere-se, como ponto de partida, a definição de educação especial for- mulada pelo Conselho Nacional de Educação, nas Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica (Resolução n° 02/2002 do CNE): 'Educacão Especial, modalidade de educação escolar, entende-se como um processo educacional que se materializa por meio de um conjunto de recursos e serviços educacionais especiais, organizados para apoiar, complementar, suplementar e, em alguns casos, substi- tuir os serviços educacionais comuns, de modo a garantir a educação formal e promover o desenvolvimento das potencialidades dos educandos que apresentam necessidades educacionais especiais, dife- rentes das da maioria de crianças e jovens, em todos os níveis e mo- dalidades de educação e ensino.' Nessa definição, estão apontados aspectos fundamentais relativos às práticas educacionais a serem dirigidas aos alunos com necessidades especiais, destacando-se: • a adoção de recursos e serviços educacionais no sentido de pro- porcionar condições favoráveis ao processo educacional, em face das especificidades dos educandos; • a abrangência das ações, que devem se desenvolver nos diferen- tes níveis e modalidades de educação e ensino. Como princípio norteador, tem-se a concepção de uma escola inclu- siva, que garanta o atendimento às diferenças humanas. Para tanto, a legislação prevê que os serviços de educação sejam ofertados no ensino regular (...), em classes comuns, ou em classes especiais em qualquer etapa ou modalidade da educação básica, devendo as escolas oferecer em sua organização: I. atividades em classes comuns: a. com professores capacitados para o atendimento às necessidades educacionais especiais dos alunos; b. com o apoio de professor de Educação Especial e, se for o caso, do intérprete de língua brasileira de sinais/ língua portuguesa, em con- cordância com o projeto pedagógico da instituição; (...) II. serviços de apoio pedagógico especializado, complementado também em salas de recursos, em turno diverso, em classes hospitalares, no atendimento domiciliar, ou outros espaços definidos pelo sis- tema de ensino (...). Tais procedimentos se tornam especialmente relevantes no atendi- mento às necessidades escolares do surdo, que pode escolher efeti- var sua educação por meio da língua portuguesa e da língua de si- nais, com base em seu histórico de vida e na opção dos pais e dele próprio. Para tanto, a escola deve adaptar sua proposta político-pe- dagógica e contar com professores capacitados e especializados. A formação de professores deverá desenvolver-se em ambiente aca- dêmico e institucional especializado, promovendo-se a investigação dos problemas dessa modalidade de educação, buscando-se oferecer so- luções teoricamente fundamentadas e socialmente contextualizadas. Devem ser utilizados métodos e técnicas que contemplem códigos e linguagens apropriados às situações específicas de aprendizagem, incluindo-se, no caso de surdez, a capacitação em língua portuguesa e em língua de sinais. Nos casos de cegueira, a capacitação no códi- go Braille; nos casos de surdo-cegueira, a capacitação para o uso de Língua de Sinais digital. Dessa forma, a legislação prevê que sejam consideradas as situações singulares, os perfis dos estudantes, as faixas etárias, assegurando- se o atendimento de suas necessidades educacionais especiais, a fim de que tenham a oportunidade de realizar com maior autonomia seus projetos, afirmando sua identidade cultural e promovendo o desenvolvimento social. As ações direcionadas para a atendimento a essas necessidades recebem ainda respaldo na Lei Federal n°. 9.394, de 20/12/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, conhecida como Lei Darcy Ribeiro. No Art. 59, são definidas as condições a serem asseguradas aos educandos com necessidades especiais pelos sistemas de ensino. I - currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organiza- ção específicos, para atender às suas necessidades; II - terminalidade específica para aqueles que não puderem atingir o nível exigido para a conclusão do ensino fundamental, em virtude de suas deficiências, e aceleração para concluir em menor tempo o programa escolar para os superdotados; III - professores com especialização adequada em nível médio ou superior, para atendimento especializado, bem como professores do ensino regular capacitados para a integração desses educandos nas classes comuns; IV - educação especial para o trabalho, visando a sua efetiva integração na vida em sociedade, inclusive condições adequadas para os que não revelarem capacidade de inserção no trabalho competitivo, mediante articulação com os órgãos oficiais afins, bem como para aqueles que apresentam uma habilidade superior nas áreas artística, intelectual ou psicomotora; V - acesso igualitário aos benefícios dos programas sociais suple- mentares disponíveis para o respectivo nível do ensino regular. A educação dos surdos constitui, portanto, um tema de interesse para a sociedade, o que se evidencia no âmbito institucional, em face da legislação vigente. Na perspectiva da inclusão, esse respaldo se configura ainda em termos do acesso gratuito ao ensino fundamental, e ao ensino médio, este último a ser implantado progressiva- Unidade II A Linguagem Humana: Aspectos Biológicos e Psicossociais Linguagem e Cognição "Assim como os pássaros têm asas, os homens têm língua." (George H. Lewes (1817-1878, apud Fromkim & Rodman, 1993) 1. Origem da linguagem humana A linguagem parece ter-se originado na convergência de inúmeros desenvolvimentos evolutivos. Assumindo-se as idéias de Charles Darwin sobre a evolução dos seres vivos, e reconhecendo-se que a linguagem humana constitui uma característica marcante - e isolada - da espécie, supõe-se que a origem desse fenômeno está no pró- prio surgimento do homem sobre a face da Terra. Excluindo-se os primeiros hominídeos, que surgiram cerca de 4 a 5 milhões de anos atrás, pode-se dizer com alguma segurança que o desenvolvimento da linguagem inscreve-se no período compreendido entre 100.000 e 20.000 anos atrás. Entretanto, é difícil determinar as condições do meio ambiente e as mutações genéticas que propiciaram esse desenvolvimento evolutivo tão fundamental para o ser humano. De fato, como ressalta Charles Darwin, em sua obra A Origem do Homem-. '(...) a relação entre o uso continuado da linguagem e o desenvolvi- mento do cérebro sem dúvida não foi tão importante. A capacidade mental de alguns primatas antepassados do homem deve ter sido bem mais desenvolvida do que em qualquer símio existente, mesmo antes que a mais imperfeita forma de linguagem tivesse sido coloca- da em uso. Mas podemos com confiança crer que o uso continuado e o desenvolvimento desta faculdade deve ter agido sobre a própria mente, colocando-a em condições de formular longas cadeias de pensamento.' (com adaptações, p. 109) Possuir uma língua constitui então um atributo que distingue os seres humanos de outros animais, havendo evidências de que a linguagem interage crucialmente com outras habilidades cognitivas, no desenvol- vimento das estruturas neurológicas e do perfil cognitivo do indivíduo. É interessante, porém, notar que o cérebro está neurologicamente equipado para adquirir língua, não necessariamente fala (oral). Pesso- as que nascem surdas e aprendem a língua de sinais são um exemplo de que ouvir a fala não é condição para a aquisição e o uso de uma língua. Além disso, a capacidade lingüística não resulta simplesmente de habilidades voltadas para cumprir funções comunicativas. Existem distúrbios da linguagem, as chamadas afasias, em que a pessoa revela conhecimento pleno das propriedades estruturais da língua, mas não é capaz de utilizar regras pragmáticas e comunicativas. Os estudos da afasia oferecem ainda evidências importantes de que a linguagem é predominantemente uma função do hemisfério esquer- do do cérebro. Em particular, diferentes tipos de afasia são associa- dos a lesões em regiões específicas do hemisfério esquerdo, confor- me ilustrado a seguir, manifestando-se não só em ouvintes, mas tam- bém em surdos, usuários de línguas de sinais: linguagem, uma verdadeira propriedade da espécie, codificada como uma herança genética humana.2 Essa conclusão é o fundamento do gerativismo, uma tradição de in- vestigação científica, inaugurada por Noam Chomsky, cujos desen- volvimentos teóricos alcançaram resultados significativos, tendo con- tribuído de forma decisiva para a revolução cognitiva, na investiga- ção das seguintes questões: • o que sabemos como falantes (e ouvintes) de uma lingua: qual é a natureza desse conhecimento lingüístico inato? • como adquirimos e usamos esse conhecimento? • como devemos formalizar esse conhecimento explicitamente? Uma observação importante é que o conhecimento lingüístico se ma- nifesta com características definidas: existem formas e significados não- autorizados na língua, o que se encontra codificado na gramática des- sa língua por meio de restrições que determinam as línguas possíveis, isto é, as hipóteses que a criança pode formular em face de sua expe- riência lingüística. A natureza negativa dessas restrições (estabelecem o que é proibido na língua) aliada à ausência de evidência negativa (o fato de que as correções são assistemáticas) levam à conclusão de que essas restrições não são aprendidas (ou ensinadas). No que se refere à natureza desse conhecimento lingüístico inato, par- te-se dos estudos de neuropsicologia desenvolvimental e da observa- ção dos distúrbios ou danos cognitivos, de natureza congênita ou não. Esses estudos têm demonstrado que existe uma forte tendência a que as capacidades cognitivas sejam atingidas de forma isolada, o que su- gere uma estruturação das mesmas em unidades especializadas, refe- ridas como capacidades de domínio específico. O domínio cognitivo refe- rente ao conhecimento lingüístico é chamado (acuidade de linguagem. 2 Existem comunidades em que a criança não participa das interações verbais até que se tenha completado a aquisição (cf. Scarpa (2001)). A faculdade de linguagem é como um órgão, no sentido de que seu caráter básico é uma expressão dos genes. Como isso acontece, ain- da não sabemos, sendo um campo de pesquisa para um futuro dis- tante. Entretanto, podemos investigar as propriedades desse órgão como representações mentais: podemos imaginar um estado mental inicial, um dispositivo de aquisição de língua, que toma a experiência como dado de entrada - input lingüístico - e constrói um estado mental estável, isto é, uma língua particular, como dado de saída - output lingüístico (adaptado de Chomsky, 1998). 2.1 Evidências para a hipótese da mente modular A hipótese da mente modular se apóia em várias evidências. Como já mencionado, existem distúrbios da linguagem em que a pessoa revela conhecimento pleno das propriedades estruturais da língua, mas não possui habilidades pragmáticas e comunicativas. Em outras situ- ações, porém, a pessoa apresenta habilidades surpreendentes em um domínio cognitivo (raciocínio numérico ou espacial, percepção musical, aquisição de línguas), mas não é capaz de realizar tarefas simples, como amarrar os sapatos ou atravessar a rua. É o caso de Christopher, cidadão inglês, que tem o domínio de pelo menos 30 idiomas e, apesar de poliglota, tem distúrbios cognitivos graves, que o impedem de desempenhar funções cotidianas elementares, como abotoar a camisa, cortar as unhas etc. Além das patologias congênitas da linguagem, danos ao cérebro não- congênitos, como acidentes vasculares, lobotomias e outros aciden- tes que afetem o cérebro também apontam para o caráter específico e encapsulado dos domínios cognitivos. De acordo com a hipótese internalista, a habilidade de usar uma língua é uma competência deter- minada geneticamente; com essa competência, o falante produz enun- ciados, que são o desempenho desse falante. Os estudos internalistas da linguagem inserem-se no âmbito da psicologia cognitiva e da ci- ência da cognição. Na perspectiva internalista e da hipótese da mente modular, o módulo da linguagem apresenta um estado mental inicial, no nascimento da criança (e aqui cabe uma reserva a respeito da vivência cognitiva intra- uterina), que pode ser referido como a Gramática Universal: até os cinco anos de idade, estados mentais se sucedem, supostamente de acordo com etapas programadas para o desenvolvimento do módulo cognitivo ou sistema de input, dando origem ao estado mental final, que corresponde à representação da Gramática Particular na mente do indivíduo. De acordo com esse modelo, a aquisição é restringida por propriedades da Gramática Universal, que se constitui de princípios gerais (universais) e opções de variação ou parâmetros. As opções paramétricas são, por sua vez, realizadas em categorias funcionais, que codificam propriedades gra- maticais da língua (em oposição a categorias lexicais). No decorrer do pro- cesso de aquisição, a Gramática Universal (GU) interage com outros mecanismos de aprendizagem: o input lingüístico permite e desencadeia a seqüência de reestruturações da gramática e a convergência com a representação da gramática da língua alvo. A reestruturação da gramática depende, por sua vez, da transformação do input em um gatilho, isto é, uma evidência positiva da opção paramétrica a ser fixada (por exemplo, a língua ter ordem Sujeito Verbo Objeto (SVO) ou Sujeito Objeto Verbo (SOV). O estado mental final é atingido no momento em que não ocorrem mais reestruturações na gramática. Muitas comunidades humanas não têm escrita. Mas todas as comuni- dades humanas têm uma língua. Algumas comunidades são bilíngües ou multilíngües, o que remete à hipótese de que, nesses casos, dife- rentes Gramáticas Particulares se encontram representadas na mente do indivíduo. Todo ser humano é, portanto, capaz de adquirir uma segunda ou mais línguas. Uma característica da aquisição da lingua- gem é que parece existir um período crítico, isto é, um período em que conexões neurológicas são estabelecidas em face dos estímulos ex- ternos (no caso, a exposição a uma língua), sem as quais a aquisição da linguagem não alcança o resultado descrito na primeira infância. (op. cit.), seja razoável considerar que o "órgão da linguagem' não cresce duas vezes (o que se relaciona a fenômenos como o período crítico), su- põe-se que a aquisição de L2 resulta em representações mentais, cujo ponto de partida são os princípios e as categorias estabelecidos pela experiência lingüística prévia. Assim, pode-se dizer que a aquisição de L2, como a aquisição de L1, potencialmente converge na representação da gramática nuclear de L2. De fato, considerando-se que tempo, moti- vação e ambiente de aprendizagem são diversos, é natural que existam aprendizes de L2 que atingem alto grau de proficiência e outros em que a não-convergência é flagrante, a que se associa a fossilização. Segundo Klein & Martohardjono (1999), os estudos gerativos superaram o debate sobre acesso vs. não-acesso à Gramática Universal e, em face do acesso, passaram a investigar a possibilidade de refixação de parâmetros e as propriedades do estado inicial de L2. Em relação à inter- ferência de L1, consideram que não pode ser vista como a causa única de dificuldades e erros produzidos pelos aprendizes. O fato de o apren- diz estar ativamente envolvido sugere que ele utiliza a língua materna como uma estratégia para apoiar ou apressar o desenvolvimento da aprendizagem, embora não esteja clara a extensão da interferência de L1 no estado mental inicial, na aquisição de L2. Supondo-se que o esta- do mental estável de L1 não é o mesmo de L2, essa diferença poderia ser atribuída a falhas no mecanismo de aprendizagem na tentativa de convergir para a gramática-alvo. Além de se observarem os diferentes estados do conhecimento lingüístico, é preciso investigar os fatores que propiciam as mudanças nas representações intermediárias da gramáti- ca, ou seja o que constitui gatilho no input de L2. A formulação teórica dos problemas e fenômenos apresentados po- deria estar enquadrada em diferentes tradições de investigação cien- tífica. Uma hipótese de trabalho que se distingue crucialmente da abordagem gerativa é a de que a cognição humana envolve proces- sos de domínio geral, biologicamente determinados. É o caso do construtivismo piagetiano, no qual o indivíduo (ou aprendiz) é visto como o construtor ativo de informação a partir de um conjunto de reflexos e de três processos funcionais básicos: a assimilação, a acomodação e o equilíbrio. Conforme destacado em Karmiloff-Smith (1995), o construtivismo piagetiano enfrenta a dificuldade de explicar os fatos relativos aos distúrbios da cognição, bem como as questões relati- vas à pobreza do estímulo, embora ofereça elementos para a investi- gação acerca da plasticidade do cérebro (nos estágios iniciais do desenvolvimento ou não) e da criatividade. De fato, as teorias se desenvolvem a partir de conjecturas e hipóte- ses a respeito dos fenômenos observados, havendo sempre a possi- bilidade de que novas descobertas surjam, exigindo reformulações e, às vezes, mudanças de paradigma. A avaliação de uma teoria se faz em função de sua capacidade de fazer predições e da plausibilidade de suas conclusões, além de outros critérios como elegância e sim- plicidade. Nesse sentido, considera-se que a teoria gerativa traz con- tribuições importantes para o entendimento do problema lógico da aquisição e, em última análise, da cognição humana, oferecendo possibilidades de aplicações em diferentes campos, em particular no desenvolvimento de tecnologias educacionais para o ensino. Cabe destacar que, de acordo com os pressupostos gerativistas, o módulo da linguagem interage com outros domínios cognitivos inte- grantes do sistema central de conhecimento, o que remete à com- plexidade dos problemas colocados pela aquisição da linguagem e justifica o tratamento dos mesmos em uma perspectiva multidisciplinar, aliando-se fundamentos de psicologia e antropolo- gia social, formulados na interface com a lingüística. Em particular, deseja-se ressaltar que a abordagem inatista e modular da linguagem não exclui que se considere o papel das dimensões funcionais, prag- máticas e sociais do uso linguagem. Essa concepção encontra respaldo em vários autores, como se depreende da citação de Assis-Peterson (1998: 30): 'De acordo com os vários estudiosos da área (Ellis, 1985, Lightbown & Spada, 1993), uma teoria geral de aquisição de segunda língua precisará abarcar os fatores internos (os processos cognitivos e os aspectos afetivos ge- rais e individuais), os externos (os diferentes contextos de aprendiza- gem) e sua interrelação.' No capítulo destinado à apresentação de abordagens, métodos e técnicas, serão apontados caminhos para a articulação desses domínios teóricos em uma perspectiva aplicada. Nesse sentido, enfatiza-se a função dialógica da linguagem, confor- me proposto na abordagem interacionista, sem abandonar o concei- to de representação mental das estruturas lingüísticas. 3.1 Aquisição de língua oral-auditiva por surdos A aquisição de uma língua oral por surdos remete a questões com- plexas, tanto ponto de vista cognitivo da representação mental do conhecimento lingüístico, quanto do ponto de vista cultural, social e afetivo. É consenso que a língua de sinais, por suas características de língua vísuo-espacial, constitui a modalidade ideal na aquisição de L1 pelo surdo. De fato, as características e os estágios da aquisição da língua de sinais por surdos podem ser comparados aos da aquisi- ção da língua oral por ouvintes, o que aponta para resultados seme- lhantes na representação mental do conhecimento lingüístico, com implicações idênticas para o período crítico, entre outros aspectos rela- tivos ao desenvolvimento de habilidades cognitivas. Ao mesmo tempo, é desejável que o surdo adquira a língua oral da comunidade em que vive, o que remete à constatação de que a lín- gua oral será adquirida como L2. O aspecto mais flagrante na aquisi- ção de uma língua oral como L2 pela criança surda é que ela deve adquirir propriedades no nível fonológico e prosódico que seu apara- to sensorial auditiva está impedido (ou parcialmente impedido) de apreender. No entanto, a criança surda pode ter acesso à represen- tação gráfica dessas propriedades, que é a modalidade escrita da língua oral. O letramento é, portanto, condição e ponto de partida na aquisição da língua oral pelo surdo, o que remete ao processo psicolingüístico da alfabetização e à explicitação e construção das referências culturais da comunidade letrada. Essa tarefa é, porém, menos árdua se a modalidade escrita da língua oral é adquirida como ritório, submetidos a um mesmo sistema político. Também relevante é o conceito de língua majoritária e língua minoritária. Como na situação de duas ou mais línguas oficiais, nessa oposição, emergem aspectos psicossociais específicos, havendo para ambas as situações uma forte tendência à manifestação do bilinguismo (ou multilingüismo). De acordo com Cristal (1996), o bilingüismo é um fenômeno complexo, que envolve questões como o grau de proficiência, a regularidade e a freqüência de uso, além de aspectos funcionais associados às condições de uso, como pressões sociais ou interesse pessoal. A situação de bilingüismo (ou multilingüismo) pode surgir por diferen- tes fatores: • anexação política, ocupação militar e formação de campos de refugiados; • migrações por razões religiosas; • desejo de identificação cultural com um grupo étnico ou social; • exigências do sistema educacional; • exigências na interação comercial; • desastres naturais levando ao movimento de populações. A esses fatores deve-se acrescentar a situação das comunidades sur- das em relação às comunidades ouvintes. No caso da situação lin- güística do surdo, a ser retomada e detalhada nas partes subseqüen- tes deste livro, pode-se dizer que sua língua é minoritária, sendo de- sejável a educação bilíngüe, com a língua de sinais adquirida como L1, e a língua oral, por exemplo, o português, como L2. Com relação ao termo dialeto ou variedade lingüística, pode-se dizer que se refere à realidade lingüística de uma comunidade, considerada em função de um conjunto de variáveis inerentes ao fenômeno sociocultural. Seguindo a tradição de estudos da linguagem no con- texto social inaugurada por William Labov e recorrendo a uma formu- lação didática, as variáveis podem ser apresentadas como a seguir: • a variável geográfica - refere-se a variações lingüísticas no nível fonológico (do sotaque), da seleção vocabular e no nível grama- tical identificadas nas diferentes regiões geográficas. Não é difícil reconhecer diferenças desse tipo comparando-se variedades do português de Portugal, de Moçambique, do Brasil e, dentro do Brasil, variedades regionais, como a nordestina, a gaúcha, a mineira, a carioca etc. • a variável social - refere-se a variações lingüísticas associadas a fatores como classe social, idade, escolarização, profissão. • a variável grau de formalidade - refere-se a variações lingüísticas associadas ao contexto em que se encontra o falante: registro mais formal ou menos formal, familiar; refere-se ainda aos diferentes gêneros textuais. Conforme ressaltado em Salles (2001), a articulação dessas variáveis está associada às especificidades da organização social, que pode ser complexa, como a sociedade brasileira, ou não-complexa, como inúmeras comunidades indígenas brasileiras. Na dinâmica social, tem- se ainda o fenômeno das línguas e variedades em contato, sendo particularmente interessante a situação das comunidades minoritárias. O caso da interação entre comunidades de ouvintes e surdos tem significado especial pelo fato de que os surdos apresentam referenciais culturais e lingüísticos próprios e, ao mesmo tempo, comungam com os ouvintes os referenciais da cultura nacional e da cidadania. Nesse sentido, as comunidades minoritárias apresentam características muito interessantes. O caso particular das comunidades de surdos tem significado especial, pelo fato de seus membros apresentarem referenciais culturais e lingüísticos próprios e, ao mesmo tempo, com- partilharem com os ouvintes os referenciais da cultura nacional, na condição de cidadãos brasileiros. 2. A língua em funcionamento A língua em funcionamento está intrinsecamente ligada à dinâmica das relações sociais. Na interação verbal, a língua é instrumento de ação social, configurando-se em função de fatores contextuais e de princípios que regulam o comportamento verbal, como a coopera- ção e a relevância, além de operações cognitivas de raciocínio e inferência. Essa complexa articulação evidencia o encaixamento da língua nas instituições sociais e o conhecimento desse encaixamento constitui a competência comunicativa do falante (cf. Hymes, 1979). Para o êxito de uma comunicação verbal, a competência comunicativa deve garantir a articulação de um conjunto de saberes lingüísticos (ou competência lingüística) com um conjunto de fatores denominados pragmáticos (o respeito a regras para o uso dos itens lingüísticos em contexto), a que se associam atitudes, valores e motivações. (adaptado de Faria et al., 1996: 451) A língua no contexto social manifesta-se na atividade discursiva, em que os interlocutores pressupõem um conhecimento compartilhado e atualizam recursos expressivos, cujos efeitos de significação são inter- pretados de acordo com fatores psicossociais, em um momento histó- rico. Conforme formulado em Pêcheux (1979, apud Orlandi, 1987:158), nesse processo, manifestam-se 'a relação de forças (os lugares sociais dos interlocutores e sua posição relativa ao discurso), a relação de sentido (o coro de vozes, a intertextualidade, a relação que existe en- tre o discurso e os outros), a antecipação (a maneira como o locutor representa as representações do seu interlocutor e vice-versa)'. Evi- dencia-se assim a plasticidade e versatilidade da língua como fenôme- no da cognição humana, na relação com as categorias do pensamento e da subjetividade, e como fenômeno psicossocial, na afirmação da identidade e na expressão de solidariedade e conflito, sob a influência de fatores ideológicos, culturais e existenciais. Essas questões são retomadas e aprofundadas em uma perspectiva aplicada, na discussão acerca de abordagens, métodos e técnicas a serem adotados no ensino da língua portuguesa para surdos. Em particular, é apontado que a abordagem interacionista configura-se como mais adequada, pois propõe o trabalho com a língua em uso, enfatizando interações contextualizadas voltadas para o desenvolvi- mento da competência comunicativa do aprendiz. ficam propriedades gramaticais de categorias funcionais da estrutura oracional. Muitas características podem ser apontadas no contraste entre lín- guas orais-auditivas e línguas vísuo-espaciais. A despeito dos con- trastes, sobressai-se o fato de que os universais lingüísticos encon- trados nas línguas orais são também identificados nas línguas de si- nais, a que se associam características sociolingüísticas e funções pragmáticas e discursivas semelhantes, o que vem confirmar que as línguas que utilizam a modalidade vísuo-espacial são manifestações da faculdade de linguagem tanto quanto as que utilizam a modalidade oral-auditiva. Nesse sentido, a investigação das propriedades das línguas de sinais abre novos horizontes para o entendimento das línguas naturais e da cognição humana, além de propiciar o desen- volvimento de tecnologias que possam contribuir para a socialização do surdo e afirmação de seus valores culturais. Na próxima seção, serão ilustrados, em línguas de sinais, universais lingüísticos encon- trados em línguas orais. 2. Universais lingüísticos e as línguas de sinais Na tentativa de sistematizar alguns resultados significativos de pes- quisas sobre línguas, segue-se um conjunto de características en- contradas nas línguas que utilizam a modalidade oral-auditiva tam- bém observadas nas línguas que utilizam a modalidade vísuo-espaci- al. Essas características comuns são referidas como universais lingüísticos e são ilustradas conforme sistematização proposta em Fromkin & Rodman (1993: 25-6). Nos casos em que a comparação não é imediata, as diferenças se devem essencialmente à natureza do canal perceptual, o que não invalida a observação de que os universais lingüísticos são encontra- dos nas línguas de sinais. I.Onde houver seres humanos, haverá língua(s). Ilustram-se a seguir línguas de sinais nos cinco continentes: LIBRAS / LSB - Língua de Sinais Brasileira LGP - Língua Gestual Portuguesa ASL- Língua Americana de Sinais LSF Língua Francesa de Sinais HSE - Hausa Sian Language (Nigéria) LIS - Língua Italiana dei Segni LSF - Langue des Signes Française ASL-American Sign Language BSL - British Sign Language LSA - Lengua de Senas Argentina LSA - Língua de Sinais Australiana USC - Lengua de Senas Chilena JSL - Japanese Sign Language LSQ - Langue des Signes Québecois LSUK - Língua de Sinais Urubu Kaapor II. Não há línguas primitivas - todas as línguas são igualmente com- plexas e igualmente capazes de expressar qualquer idéia. O vocabulá- rio de qualquer língua pode ser expandido a fim de incluir novas pala- vras para expressar novos conceitos. E-mail A seguir, ilustra-se o sinal para desig- nar e-mail / correio eletrônico, criado no contexto do recente surgimento dessa tecnologia IU. Todas as línguas mudam ao longo do tempo. Vejam-se exemplos de sinais de LIBRAS que mudaram na diacronia: Pessoas (passado) Pessoas (hoje) Mulher Pequen@ = Men'm@ Mulher Velh@ = \dos@ A formação de orações segue o padrão SVO. EU GOSTAR MAÇÃ "Eu gosto de maçã.' EU GOSTAR BANANA 'Eu gosto de banana.' EU GOSTAR VOCÊ 'Eu gosto de você.' VI. Toda língua falada inclui segmentos sonoros discretos, como p, n, ou a, os quais podem ser definidos por um conjunto de propriedades ou traços. Toda língua falada tem uma classe de vogais e uma classe de consoantes. Línguas de sinais apresentam segmentos discretos na composição dos sinais. Como ressaltado em Ferreira-Brito (op. cit.: 35), 'as línguas de sinais exibem a dupla articulação, isto é, unidades significativas ou morfemas, constituídas a partir de unidades arbitrárias e sem signifi- cado ou fonemas (Klima & Bellugi, 1979).' As unidades constitutivas do sinal: • Configuração de mão (CM) • Ponto de articulação (PA) • Movimento (M) • Orientação (Or) • Expressões não-manuais (ENM) Evidência do caráter fonológico das unidades constitutivas do sinal está no fato de que os sinais podem se distinguir pela diferença em uma delas: Os sinais a seguir indicam contrastes no ponto de articulação (com- parem-se APRENDER e SÁBADO) e na expressão não-manual (com- parem-se LARANJA e SÁBADO): Laranja Aprender Sábado VII. Todas as línguas apresentam categorias gramaticais (ex: nome, verbo). De acordo com Lemle (2002): em línguas de sinais, predominante- mente 'coisas' são representadas por configurações de mão, e 'mu- danças' por sucessões de movimentos e sustações. Trata-se de um processo produtivo de combinar um sinal que contém as propriedades lexicais, e um sinal denotador de 'evento'. Cadeira Sentar Unidade III Aplicações da Teoria Lingüística ao Ensino de Línguas Da abordagem audiolingual à interacionista: em direção à comunicação 1. Introdução O objetivo deste capítulo é o de apresentar, de modo sucinto, os pon- tos fundamentais das principais abordagens e métodos utilizados, neste século, no ensino de segunda língua/língua estrangeira (L2), a apon- tando-se ainda as vantagem da abordagem inteacionista no ensino de língua portuguesa para surdos. A seqüência de apresentação acompa- nha o percurso histórico seguido pelas abordagens em questão, indo do início dos anos 50 até os dias de hoje. Por meio desse seqüenciamento cronológico, pretende-se mostrar como a trajetória do ensino de L2 foi se direcionando cada vez mais para conceitos centrais do ato de comunicação. Como ilustração da aplicação de cada uma dessas abordagens, teceremos comentários acerca de excertos de diálogos e textos escritos, extraídos de manuais didáticos de portu- guês como L2. Ao final, será discutida a situação dos surdos, conside- rando-se, além do texto escrito, o diálogo virtual como possibilidades de contextos de aprendizagem para esse perfil de aprendiz. 2. Definição dos termos Para que se possa descrever os movimentos históricos predominan- tes deste século no que concerne ao ensino de uma L2, faz-se neces- sário primeiramente definir os termos que delimitam as concepções metodológicas envolvidas. Embora existam diferentes propostas de delimitação terminológica para a área de ensino e aprendizagem de L2, optamos por mencionar a de Anthony (1963, cit. em Richards & Rodgers, 1986: 15). Esta pro- posta, apesar de ter sido uma das primeiras e por isso mesmo estar ultrapassada em alguns pontos, foi a que mais teve repercussão, ten- do sido adotada com freqüência nos trabalhos pedagógicos, além de constituir a base para propostas mais recentes.1 De acordo com Richards & Rodgers, 1986, Anthony identifica três níveis conceptuais, ordenados de forma hierárquica: abordagem, método e técnica. A. Abordagem: conjunto de suposições teóricas acerca da natureza da língua, da natureza da aprendizagem de uma lín- gua, e da aplicabilidade de ambas no contexto peda- gógico. A abordagem é axiomática; ela descreve a natureza do assunto a ser ensinado. B. Método: conjunto de especificações gerais que visa à apre- sentação ordenada do material lingüístico e que se- gue uma determinada abordagem. O método é procedural. Uma abordagem pode gerar inúmeros métodos. Se contrastarmos esta definição com outra bem mais recente, de Patrocínio, podemos perceber claramente que a concepção atual de ensino e aprendizagem de línguas não coincide com a de Anthony no que diz respeito (i) ao material, com a inclusão de outros recursos, o que para este autor estaria no nível da técnica; (ii) à noção de apren- dizagem, que passa a abranger o conceito de competência lingüístico- comunicativa; (iii) e ao espaço da sala de aula, limite não definido, mas implícito na definição mais antiga. 1 Os autores Richards & Rodgers (1986) estão entre os que tentaram reestruturar e redefinir os termos propostos por Anthony, mas sua proposta não foi adotada. 4.2 Abordagem funcionalista A. Concepção de língua A língua é concebida como um meio para a expressão de significados funcionais. Essa concepção de língua tem como uma das principais fontes o trabalho do funcionalista inglês Hymes (1979), que, partindo da noção chomskyana de competência, amplia esse conceito, denominando-o competência comunicativa'. Para Hymes, o conhe- cimento de uma língua implica não somente os princípios organizacionais (estruturas e itens lexicais), mas inclui também as regras pragmáticas e sociais da língua. B. Natureza da aprendizagem No que concerne à aprendizagem, enfatizam-se as dimensões se- mântica e comunicativa, o que leva a uma especificação e organização do conteúdo a ser ensinado com base em categorias de significados e funções, em vez de elementos estruturais e gramaticais (Richards & Rodgers, 1986: 17; Brown, 1994: 70, entre muitos outros) C. Exemplo de aplicação Uma primeira aplicação ao ensino dessa nova concepção de apren- dizagem encontra-se no Programa Nocional-funcional, de Wilkins (1976, cit. em Brown, 1994: 66), que é uma espécie de precursor do que viria a ser mais tarde a Abordagem Comunicativa. O aspecto funcional desse programa reside em sua organização com base em funções comuni- cativas, tais como identificar, relatar, negar, recusar um convite, pedir permis- são, desculpar-se, etc. Em relação ao aspecto nocional, ele opera com dois tipos de noções: as gerais e as específicas. Enquanto as noções gerais consistem em conceitos abstratos, como a existência, o espaço, o tempo, a quantidade e a qualidade, as específicas correspondem aproximadamente ao que se costuma chamar de contextos ou situa- ções, que seriam, por exemplo, identificação pessoal (nome, endereço, número do telefone, etc), viagem, saúde, educação, compras, lazer, entre vários outros. 4.3 O ensino audiolingual e o comunicativo Com uma concepção de língua sob a ótica funcionalista, que vai além da estrutura lingüística interna e inclui aspectos sociopragmáticos, os procedimentos de ensino de L2 sofrem fortes mudanças, tanto no que diz respeito à elaboração de material didático quanto à sala de aula. As diferenças entre a antiga aplicação, o Método Audiolingual, e a nova Abordagem Comunicativa não são poucas. Essas duas ver- tentes contrastam sobretudo em relação aos seguintes pontos (adap- tação de Finocchiaro & Brumfit, 1983: 91-93): Ensino Audiolingual Ensino Comunicativo 1. Aprender uma língua é aprender estruturas, sons e palavras Aprender uma língua é aprender a comunicar 2. Exige a memorização dos diálogos baseados em estruturas Os diálogos centralizam-se nas funções comunicativas e normalmente não são memorizados 3. Os itens da língua não se encontram necessariamente contextualizados Contextualização é uma premissa básica 4. A técnica básica é o exercício mecânico 0 exercício mecânico pode ser usado, porém somente de modo periférico 5. As atividades comunicativas só são introduzidas após um longo processo de rígidos exercícios mecânicos e outros tipos de exercícios Tentativas de comunicação podem ser incentivadas logo no início 6. É proibido usar a língua materna do aluno 0 uso criterioso da língua materna é aceito onde for viável 7. A leitura e a escrita só são introdu- zidas depois que a fala é dominada A leitura e a escrita podem ser introduzidas desde o primeiro dia 8. 0 objetivo a ser atingido é a competência lingüística 0 objetivo a ser atingido é a competência comunicativa (i.e. a habilidade de usar o sistema lingüístico de modo eficaz e adequado) Ensino Audiolingual Ensino Comunicativo 9. Reconhecem-se as variedades da língua, mas elas não são enfatizadas A variação lingüística é um conceito central nos materiais e na metodologia 10. A següência das unidades é determinada, exclusivamente, pela complexidade lingüística 0 seqüenciamento é determinado por considerações sobre o conteúdo, a função ou significado que seja de interesse 11. 0 professor controla o aluno, impedindo-o de fazer qualquer coisa que entre em conflito com a teoria 0 professor ajuda os alunos de todas as formas possíveis, motivando-os a trabalhar com a língua 12. 'A língua é uma hábito', logo os erros dever ser evitados a qualquer custo A língua é criada pelo indivíduo, muitas vezes através de tentativas e erros 13. Um dos objetivos básicos é a precisão da forma 0 objetivo básico é uma língua fluente e aceitável: a precisão não é julgada em termos abstratos, mas sim em contextos Entre os pontos divergentes de maior relevância que marcam o avanço da abordagem comunicativa em relação à audiolingual podemos citar: a exigência de contextualização, a competência comunicativa como objetivo a ser atingido, a inclusão da variação lingüística e o tratamento dado aos erros. Esses temas apontam para um movimento em direção à concepção de língua como instrumento de comunicação. O ensino de uma segunda língua deixa de ser um processo de explicitação e domínio rígido de estruturas e passa a ser um processo dinâmico que concebe o aluno como um usuário da língua, que deverá ser capaz de se comunicar em diferentes situações e contextos. Para tal, o profes- sor precisará considerar as variações geográficas, sociais e de registros (formal e informal), além das diferenças existentes entre as modalida- des oral e escrita. Dessa nova concepção do aprendiz e da língua surge um tratamento de erros não mais como uma manifestação não-dese- jada, que deve ser de todo abolida, mas como um fenômeno que faz
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