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Guias e Dicas
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Exame Nacional do Ensino Médio, Notas de estudo de Matemática

Fundamentação Teórico-Metológica - ENEM

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 20/04/2010

alexandre-oliveira-99
alexandre-oliveira-99 🇧🇷

4.6

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Baixe Exame Nacional do Ensino Médio e outras Notas de estudo em PDF para Matemática, somente na Docsity! 1 y EXAME NACIONAL (1) DO ENSINO MÉDIO (ENEM) Fundamentação Teórico- M etodológica Diretoria de Avaliação para Certificação de Competências (DACC) Equipe Técnica Ataíde Alves – Diretor de Avaliação para Certificação de Competências Dorivan Ferreira Gomes – Coordenador-Geral de Exames David de Lima Simões – Coordenador-Geral de Instrumentos e Medidas Educacionais Alberto Gustavo Brusa Gonzalez Alessandra Regina Ferreira Abadio Célia Maria Rey de Carvalho Fátima Deyse Sacramento Porcidônio Frank Ney Sousa Lima Gilberto Edinaldo Moura Irene Aparecida Braga Kelly Cristina Naves Paixão Jane Hudson de Abranches Marcio Andrade Monteiro Maria Cândida Muniz Trigo Mariana Ribeiro Bastos Migliari Maria Vilma Valente de Aguiar Milena Castro Amorim Suely Alves Wanderley Tereza Maria Abath Pereira Sumário APRESENTAÇÃO ............................................................................................. 7 1 EIXOS TEÓRICOS QUE ESTRUTURAM O ENEM.............................. 11 1.1 Competências e habilidades: Elementos para uma reflexão pedagógica ........................................................... 13 Lino de Macedo 1.2 A situação-problema como avaliação e como aprendizagem ................................................................. 29 Lino de Macedo 1.3 Propostas para pensar sobre situações-problema a partir do Enem............................................................................ 37 Lino de Macedo 1.4 Interdisciplinaridade e contextuação ...................................... 41 Nílson José Machado 2 ARTICULAÇÃO DO ENEM COM AS ÁREAS DE CONHECIMENTO CONTEMPLADAS NA REFORMA DO ENSINO MÉDIO ................................................................................ 55 2.1 A área de Linguagens e Códigos e suas Tecnologias no Enem .......................................................................................... 57 Zuleika de Felice Murrie 2.2 O Enem e os objetivos educacionais da área das Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias no ensino médio ......................................................... 61 Luiz Carlos de Menezes 2.3 O Enem, as Ciências Humanas e suas Tecnologias ........................................................ 65 Raul Borges Guimarães 3 AS COMPETÊNCIAS DO ENEM....................................................................................................... 69 3.1 Competência I .......................................................................................................................... 71 Maria Cecília Guedes Condeixa Zuleika de Felice Murrie Maria da Graça Bompastor Borges Dias Reginaldo Pinto de Carvalho 3.2 Competência II ......................................................................................................................... 75 Luiz Carlos de Menezes Regina Cândida Ellero Gualtieri Raul Borges Guimarães Júlio César Foschini Lisboa Maria Regina Dubeaux Kawamura 3.3 Competência III ........................................................................................................................ 79 Lino de Macedo Leny Rodrigues Teixeira Eduardo Sebastiani Ferreira Dalton Francisco de Andrade 3.4 Competência IV ........................................................................................................................ 89 Nílson José Machado 3.5 Competência V ......................................................................................................................... 93 Márcio Constantino Martino Angela Correa Krajewski Valdir Quintana Gomes Júnior Fortunato Pastore 4 EIXOS METODOLÓGICOS DO ENEM ............................................................................................ 99 4.1 Erros e acertos na elaboração de itens para a prova do Enem................................. 101 Maria Eliza Fini 4.2 Aspectos quantitativos da análise dos itens da prova do Enem.............................. 107 Dalton F. Andrade Ruben Klein 4.3 Metodologia de correção da Redação do Enem .......................................................... 113 Reginaldo Pinto de Carvalho NOTA SOBRE OS AUTORES ............................................................................................................. 119 7ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), criado em 1998 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), do Ministério da Educação, é um exame individual e de caráter voluntário, oferecido anualmente aos concluintes e egressos do ensino médio, com o objetivo principal de possibilitar uma referência para auto-avaliação, a partir das competências e habilidades que o estruturam. Além disso, ele serve como modalidade alternativa ou com- plementar aos processos de seleção para o acesso ao ensino superior e ao mercado de trabalho. Realizado anualmente, ele se constitui um valioso instrumento de avaliação, fornecendo uma imagem realista e sempre atualizada da educação no Brasil. O modelo de avaliação do Enem foi desenvolvido com ênfase na aferição das estruturas mentais com as quais construímos continuamente o conhecimento e não apenas na memória, que, importantíssima na constituição dessas estruturas, sozinha não consegue fazer-nos capazes de compreender o mundo em que vive- mos. Há uma dinâmica social que nos desafia, apresentando novos problemas, questiona a adequação de nossas antigas soluções e exi- ge um posicionamento rápido e adequado ao cenário de transforma- ções imposto pelas mudanças sociais, econômicas e tecnológicas com as quais nos deparamos nas últimas décadas. Este cenário permeia todas as esferas de nossa vida pessoal, mobilizando continuamente nossa reflexão acerca dos valores, atitudes e conhecimentos que pautam a vida em sociedade. Apresentação 1 EIXOS TEÓRICOS QUE ESTRUTURAM O ENEM 15ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica condições, a possibilidade de todos freqüentarem a escola e nela realizarem, por direito, sua formação. Além disso, a escola para todos pode revelar ou formar, por certo, muitos alunos que possuem ou aprendem as qualidades da excelência. Ser excelente ou continuar assim, mor- mente em uma sociedade competitiva e tecnológica, como a nossa, é muito difícil e muitos perderão essa condição, muitos não suportarão o peso da concorrência, mesmo na escola. Exercício ou problema? Aproveitemos a situação para uma reflexão sobre a diferença entre exercício e proble- ma. O jogo, acima proposto, é um jogo de exercício ou de problemas? E o que exatamente significa “exercício”? Consideremos o ato de caminhar. Caminhar é um exercício quando já adquirimos essa habilidade. O exercício supõe, então, a repetição de uma aquisição – motora, no caso – de uma habilidade que, para aquele que a executa, não constitui um problema. O exercício, nesse caso, corresponde a um meio para outra finalidade, por exemplo, fazer o cora- ção trabalhar mais, do ponto de vista cardiovascular. Com isso, o exercício ajuda a combater problemas cardíacos, obesidade, estresse, etc. O caminhar, no caso indicado acima, não é um problema em si, pois se trata de repetir um padrão, um esquema ou hábito já aprendido. Porém, no decorrer do percurso, podem-se enfrentar problemas. Por exemplo: ter de atravessar uma rua movimentada e obrigar-se a estar atento aos veículos, para não se acidentar; evitar o possível ataque de um cachorro, não se deixar distrair pelas coisas interessantes vistas ao longo do caminho, etc. Esses são exemplos de problemas porque implicam situações inesperadas, implicam resolver ou decidir sobre variá- veis não-previstas no esquema do caminhar. Esses problemas, como no jogo que lembramos acima, são obstáculos ao longo do percurso, que pedem, como é usual em situações problemá- ticas, interpretação do desafio proposto no contexto, planejamento da solução ou das solu- ções possíveis, execução da solução planejada e avaliação dos resultados. Tudo isso no mo- mento em que se realiza a atividade. Ou seja, problema é aquilo que se enfrenta e cuja solução, já conhecida ou incorporada, não é suficiente, ao menos como conteúdo. Explico: há proble- mas que nos desafiam não pela forma, porque essa já é conhecida, mas pelo seu conteúdo, que é novo, inusitado, singular, original. Não é assim, na resolução de palavras cruzadas? Sabemos, por experiência prévia, em que consiste o problema e como se deve resolvê-lo, mas não conhe- cemos a solução para “aquele” problema particular, com cujo conteúdo estamos entrando em contato nesse momento. Penso que vale a pena insistir na distinção entre exercício e problema porque, algumas vezes, nas escolas e nos livros didáticos, problemas e exercícios são tratados como se fossem equivalentes. Voltemos ao jogo de percurso. Uma coisa é seu uso como recurso para exercitar cálculos que a criança já aprendeu e que pode “fortalecer” por intermédio desse jogo. Outra, são os problemas propostos no contexto do jogo ou mesmo de certos tipos de cálculos que implicam tomadas de decisão, correr riscos, etc. É importante termos em conta que o cálculo pode não ser o problema, ainda que faça parte de sua solução ou corrobore para ela. Em outras palavras, o exercício é fazer contas; o problema é realizar uma conta para a qual não se estava suficientemente preparado, porque é de um outro tipo, tem uma estrutura mais complexa, coloca uma dificuldade a mais, etc. Em síntese, exercício é o repetir, como meio para uma outra finalidade: por exemplo, caminhar para promover um trabalho cardiovascular. Problema é o que surpreende nesse exer- cício, é o novo, o que supõe invenção, criatividade, astúcia. É certo, também, que, dependendo da forma como é proposto, o exercício pode configurar um problema. Seria, então, possível perguntar se as questões são formas de exercício ou de problema, aliás, uma boa pergunta. Há questões que têm sentido de questão, mas há outras, por exemplo, que propõem cópia ou algo não desafiador. Ou seja, uma pergunta pode ter várias intenções: pedir conselho, falar mais sobre o assunto, suspender um juízo sobre o que está sendo analisa- do, fazer comparações. Certas questões sugerem bons problemas, outras não. Por exemplo, há questões que propõem bons problemas para o professor, mas não necessariamente para os alunos a quem são dirigidas. O importante é que a questão faça gerar um desejo ou uma necessidade que só o trabalho de encontrar uma solução possa satisfazer. É fundamental, ainda, ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica16 que a questão proponha um desafio que possa proporcionar ao sujeito que o experimenta algo no mínimo original, criativo ou surpreendente. Convenhamos, na escola nem sempre sabemos fazer isso. Um comentário freqüente dos professores é que, muitas vezes, o aluno não consegue ler um problema de matemática como um problema, ou seja, a pergunta ou tarefa propos- ta não implica um desafio. A criança, no caso, não sabe interpretar o que está sendo proposto, pois lhe falta, às vezes, perspicácia para captar o sutil, o fator problemático da questão. É certo, também, que professores não investem, às vezes, muito tempo na leitura, discussão e análise do problema proposto, deixando que o aluno faça isso por si mesmo. Outras vezes, o problema está mal formulado, o que dificulta sua proposição como tal. Por isso, penso que poderia ser proveitoso, em uma reunião de professores, discutir, por exem- plo, uma prova que foi dada aos alunos. As tarefas estavam bem propostas? O texto estava claro, interessante, bem escrito? Por que certos erros aconteceram nas respostas ou inter- pretação dos alunos? Ter sede pode ser uma questão, mas pode não constituir um obstáculo, pois há água disponível, o sujeito sabe pôr água no copo, sabe levá-lo à boca, sabe beber. Há um caminho a percorrer (como no jogo de percurso), mas para o qual todos os passos estão já, de certa forma, resolvidos por antecipação, basta executá-los. Em outras palavras, uma questão pode implicar obstáculos ou não. Durante uma aula sobre esse tema, uma aluna mostrou-me o seguinte exemplo: seu sobrinho fazia uma lição de matemática, que tinha o seguinte enunciado: “Fulano tem 17 selos a mais que Beltrano. Juntando-se os selos de ambos, quantos selos haverá no total?” Lendo o problema, ele conclui rapidamente que era “tudo continha de mais”. A questão é: isso é pro- blema ou não? Penso que é um problema na perspectiva do professor e na perspectiva do que está proposto no texto. Mas, suponho que não seja na perspectiva do aluno, a julgar pela forma imediata e irrefletida com que concluiu tratar-se apenas de fazer “continhas de mais”. Um problema supõe um projeto mais complexo, que envolve, para seguir o esquema clássico de Polya, interpretação da questão proposta, planejamento, execução e avaliação. Envolve também atenção, malícia, espírito crítico e reflexão. Essas atitudes aparentemente não estavam presentes na resposta imediata e “fácil” da criança citada por minha aluna. Um dos problemas mais difíceis hoje para os professores é o que se tem chamado de “gestão da sala de aula”. Ou seja, a organização temporal e espacial das atividades, a seleção e manipulação dos materiais didáticos e a coordenação das atividades que dizem respeito aos alunos e professores, visando ao ensino e à aprendizagem. Os professores queixam-se de que os alunos não aprendem, fazem bagunça, são mal-educados, irreverentes. Queixam-se, tam- bém, da insuficiência de recursos para resolver esses problemas. Sentem-se impotentes e de- samparados. Como transformar tudo isso em um problema no sentido legítimo do termo? Tais dificuldades se converteriam em objeto de discussão se, conversando com o orientador ou discutindo a questão com colegas, fosse possível planejar, no sentido de projeto pedagógico, um trabalho visando à superação dessas dificuldades: discutindo estratégias, compartilhando situações comparáveis, planejando formas de solução, avaliando o sucesso ou fracasso das iniciativas já tomadas, refletindo sobre os fatores que produzem tais dificuldades, lendo um texto ou ouvindo uma palestra relacionada ao tema em discussão. Lamentos e queixas não são problemas no sentido que queremos aqui valorizar. Uma queixa tem “cara” de problema, mas não é um problema. É só uma queixa, algo muito desagradável, apenas isso. Existe um proble- ma quando se transforma a queixa em um desafio a ser superado. Às vezes, um bom problema começa com uma queixa. Então, o desafio é o de transformá-la em um problema. E isso tam- bém é problemático! Transformar uma queixa ou dificuldade em problema é sair de uma posi- ção em que esses fatores funcionam como adversários ou competidores de nossos objetivos para uma posição em que se tornam cooperativos e participativos, ou seja, adquiram uma função construtiva. Penso ser útil essa reflexão, porque usualmente na escola associamos a palavra problema apenas à disciplina de Matemática. A Editora Artes Médicas publicou recentemente a tradução de um livro organizado por Juan Ignazio Pozo, que se chama Solução de Problemas. Há nesse trabalho capítulos sobre problemas em outras áreas: nas Ciências Sociais, Biologia, História, Geografia. Muitos de meus comentários, aliás, foram inspirados pela leitura desse livro. 17ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica Competências e Habilidades Por que decidi, em um texto sobre competências e habilidades, iniciar comentando so- bre solução de problemas? Para responder a essa questão talvez valha a pena mais uma peque- na digressão. Até pouco tempo, a grande questão escolar era a aprendizagem – exclusiva ou preferen- cial – de conceitos. Estávamos dominados pela visão de que conhecer é acumular conceitos; ser inteligente implicava articular logicamente grandes idéias, estar informado sobre grandes co- nhecimentos, enfim, adquirir como discurso questões presentes principalmente em textos eru- ditos e importantes. Nesses termos, dar aula podia ser para muitos professores um exercício intelectual muito interessante. O problema é que muitos alunos não conseguem aprender nesse contexto, nem se sentem estimulados a pensar, pois sua participação nesse tipo de aula não é tão ativa quanto poderia ser. Hoje, essa forma de competência continua sendo valorizada, principalmente, no meio universitário. Mas, com todas as transformações tecnológicas, sociais e culturais, uma questão prática, relacional, começa a impor-se com grande evidência. Temos muitos problemas a resol- ver, muitas decisões a tomar, muitos procedimentos a aprender. Isso não significa, obviamente, que dominar conceitos deixou de ser importante. Esse tipo de aula, insisto, continua tendo um lugar, mas cada vez mais torna-se neces- sário também o domínio de um conteúdo chamado de “procedimental”, ou seja, da ordem do “saber como fazer”. Vivemos em uma sociedade cada vez mais tecnológica, em que o problema nem sempre está na falta de informações, pois o computador tem, cada vez mais, o poder de processá-las, guardá-las ou atualizá-las. A questão está em encontrar, interpretar essas informações, na busca da solução de nossos problemas ou daquilo que temos vontade de saber. Se queremos escrever um texto no computador, o programa, isto é, o processador de textos está preparado para realizar muitas operações e nos oferece muitas possibilidades de solução. Além disso, como é usual atualmente, antes que tenhamos explorado todos os recur- sos de um programa, surge uma nova versão. Como nem sempre é possível dispor de um pro- fessor que nos ensine, pois também é novidade para ele e, como fica muito caro contratar um professor, temos de aprender, sozinhos, ajudados pelo manual. Hoje, temos, de “aprender a aprender”. Hoje, competências e habilidades que as expressam são mais fundamentais do que a excelência na realização de algo sempre superado ou atualizado por uma nova versão ou por nova necessidade ou problema. No tempo em que a escola - mesmo as públicas - não era para todos, manter a disciplina, como problema de gestão de sala de aula, talvez não tivesse a dimensão que tem hoje. Rigor, expulsão (ou sua ameaça), castigos físicos, cumplicidade da família com as estratégias usadas pelo professor garantiam, talvez de forma mais imediata e eficaz, que os alunos se mantivessem quietos enquanto o professor dava as lições. Hoje, que a escola fundamental é obrigatória para todas as crianças, manter a classe interessada nas propos- tas do professor concorre com e, muitas vezes, perde para tudo o que em contraposição os alunos insistem em fazer. Não por acaso, sabe-se que freqüentemente os professores gas- tam mais da metade do tempo da aula tentando manter um nível de disciplina favorável à aprendizagem. Ou seja, ensinar conceitos ou cálculos concorre com conversas paralelas, risadas e brincadeiras. O professor, além do compromisso de ensinar fatos e conceitos, deve saber manter a disciplina na sala de aula, envolver os alunos e conseguir que sejam cooperativos e façam as tarefas. Ora, uma coisa é a competência do professor para expor um tema, outra é sua habilidade ou competência para conquistar o interesse das crianças e envolvê-las nas propostas de sala de aula. Por isso, esse conteúdo – gestão da sala de aula – é hoje considerado tão importante. Um outro exemplo: um aluno pode não se sair bem em geografia porque não aprendeu os conceitos dessa disciplina, mas também porque não sabe estudar, nem se organizar em termos de espaço, tempo ou outros aspectos materiais. O que resulta dos comentários acima é que, na perspectiva do professor, o desafio, hoje, é coordenar o ensino de conceitos e gestão de sala de aula - aí compreendidas aprendizagens de procedimentos, valores, normas e atitudes. ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica20 O mesmo ocorre na transmissão de um conteúdo no contexto da sala de aula. Há profes- sores que sabem fazê-lo de forma agradável, comunicativa, com entusiasmo e competência. Os alunos, certamente, participam, envolvem-se, sentem-se incluídos, encantados (e, a seu modo, agradecem). Para dizer de um outro modo, a competência é uma habilidade de ordem geral, enquan- to a habilidade é uma competência de ordem particular, específica. A solução de um problema, por exemplo, não se reduz especificamente aos cálculos que implica, o que não significa dizer que o cálculo não seja uma condição importante. Igualmente, ainda que escrever a resposta não corresponda a tudo que está envolvido na solução de um problema, é uma habilidade essencial. O mesmo se pode dizer do tempo entre a leitura e a proposição da resposta, por exemplo. Voltando ao jogo de percurso. Há muitas habilidades envolvidas em sua solução: ficar no caminho, jogar os dados, ler os números do dado, caminhar em função dos pontos, etc. Quanto à tomada de decisão (o que é melhor fazer em face das circunstâncias, de que momen- to do jogo e seu objetivo) penso que se refere a uma competência relacional. Ou seja, as habilidades são necessárias, mas não suficientes, ao menos na perspectiva relacional. Para comunicar-se bem em uma palestra, apenas saber ler é uma condição insuficiente, pois há uma conjunção de fatores que são de outra ordem. O que não quer dizer que compe- tência seja apenas um conjunto de habilidades: é mais do que isso, pois supõe algo que não se reduz à soma das partes. Na visão relacional de competência aqui proposta, se os alunos não aprenderam é por- que o professor não ensinou, independentemente de sua competência pessoal no domínio dos conteúdos e do valor, de verdade, de sua exposição. Competição, competência e concorrência Como analisar os termos competência, competição e concorrência, em uma perspectiva relacional? Competição. Competir quer dizer “com-petir”, isto é, “pedir junto”. O prefixo “com” sig- nifica ao mesmo tempo, simultaneamente. O radical “petir” significa pedir. Filhos, marido, tele- fone, etc., muitas vezes pedem ao mesmo tempo a atenção da mesma pessoa (a mãe, a esposa, a filha, sintetizadas numa única mulher). Não lhe é possível atender igualmente a todos. Numa sala de aula, por exemplo, alunos, diretora, orientadora, horário, agenda de trabalho referem- se às múltiplas tarefas de que a professora deve cuidar – de preferência, ao mesmo tempo. Então, ao que dar prioridade; que decisões tomar? Jogadores, adversários em uma mesma partida, pedem – igualmente – a vitória, mesmo sabendo que ela caberá a apenas um deles. Concorrência. Competição refere-se a um contexto de escassez, de limitação, quanto ao fim buscado e ao de multiplicidade ou diversidade quanto aos que pretendem esse fim ou aos necessitados dele. Concorrer quer dizer correr junto “dirigir-se para o mesmo ponto”. Como cuidar, “simultaneamente”, (porque tudo é importante, esperado, desejado) da vida pessoal, profissional, familiar, etc.? Ou seja, em termos de concorrência, não se trata de optar ou con- quistar um aspecto em detrimento de outros (como ocorre na situação de competição), mas de responder adequadamente à multiplicidade das tarefas, de atender a tudo, pois tudo tem de ser atendido. É o caso, por exemplo, da situação de sala de aula. O professor – espera-se – deve cuidar adequadamente da multiplicidade de aspectos importantes (conteúdo a ser ensinado, interesses e necessidades de cada aluno, horário, etc.). Lembro esses exemplos para dizer que, na perspectiva da concorrência, muitos fatores, cada qual com sua importância particular, correm juntos. Não é correto dizer que competem, nos termos lembrados acima, mas que con- correm, porque todos necessitam ser atendidos e considerados. Competência. Como coordenar competição com concorrência? Com competência. Com- petência, em sua perspectiva relacional, é uma equação que expressa o equilíbrio entre dois opostos complementares. A competição como fim buscado (necessidade), e a concorrência como repertório (disponibilidade) de coisas independentes quanto a um fim particular, mas que, na perspectiva do sujeito, qualificam os meios de certa realização. Habilidades, nesse sentido, são conjuntos de possibilidades, repertórios que expressam nossas múltiplas, desejadas e esperadas 21ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica conquistas. Competência é o modo como fazemos convergir nossas necessidades e articulamos nossas habilidades em favor de um objetivo ou solução de um problema, que se expressa num desafio, não redutível às habilidades, nem às contingências em que certa competência é requerida. Competência, como síntese de uma situação plena de concorrências, pode ser exemplificada em situações como as que ocorrem no dia-a-dia das salas de aula, quando o professor deve – ao mesmo tempo, considerar a disciplina dos alunos, a programação, o baru- lho, o horário, a seqüência dos conteúdos a serem ensinados, etc., em um contexto de concor- rência (cada fator é importante) e competição (“muitos serão chamados, poucos os escolhidos”) – realizar bem seu compromisso pedagógico. Algumas pessoas, nesse contexto de concorrência e competição, saem-se bem: adminis- tram a escassez de recursos e condições, “dão uma força” para os pais e amigos, sustentam a casa, são boas mães ou pais, etc., isto é, são competentes. Outras pessoas não sobrevivem; muitas crianças não suportam a concorrência, nem a competição. O mesmo ocorre na solução de um problema, muitos fatores competem, isto é, disputam entre si; pois estão à disposição do sujeito, já existem para ele. Competência é a “habilidade”, uma qualidade geral, uma estrutura que coordena, articula – de modo interdependente – todos esses fatores. Competência é a qualidade relacional de coordenar a multiplicidade (concorrência) à unicidade (competição). Para isso, supõe habilidade de tratar – ao mesmo tempo – diferentes fatores em diferentes níveis. É o que acontece com uma mãe, que enquanto amamenta o filho pequeno, ajuda (verbalmente) o filho maior a fazer a lição. Ou seja, cumpre tarefas, ao mesmo tempo, em níveis diferentes (um físico e próximo, outro verbal e distante). O mesmo vale para o professor, que deve ter um repertório de estratégias para lidar ao mesmo tempo com muitos desafios, lidar com os recursos didáticos, ter perspicácia e manter tranqüilidade, o que é admirável! Aos olhos de um observador inexperiente, a situação de sala de aula pode parecer um caos; mas alguns professores conseguem lidar com a situação de forma competente e eficiente. Por quê? Porque dispõem de estratégias, recursos variados. Um outro exemplo é o da criança hiperativa. Às vezes, o problema não está apenas nela, mas também no professor que não consegue acompanhar seu ritmo, que não tem estratégias para transformá-la em colaboradora na sala de aula. Então, ela transforma-se em um ‘inimigo’, quando na verdade poderia ser um bom companheiro, um bom parceiro. Infelizmente, a maioria dos professores não sentem que dispõem dos recursos acima mencionados para gerirem as situações de sala de aula. Queixam-se da deficiência de suas técnicas e estratégias e da insuficiência dos cursos de formação. Por isso, acho interessante a imagem da competência relacional como a de um jogo em que não se ganha na véspera, mas durante o próprio ato de jogar e que é dependente de fatores que não podem ser criados antes ou depois do jogo. Malícia, domínio de si mesmo, poder interpretar e tomar decisões no contexto da situação-problema, coordenar os múltiplos aspectos que concorrem simultaneamente, etc. são fatores importantes para o que se analisa como competência relacional. Concorrência, competição, competência sempre foram interdependentes e presentes nas relações humanas e entre os elementos da natureza. As plantas, por exemplo, competem por tempo, espaço, água, sol, e isso não é bom nem ruim, enquanto juízo de valor em si. O impor- tante é a tomada de consciência, é refletir sobre as implicações disso. Assim também é no jogo. Nele, muitos aspectos concorrem e competem. Por isso, o jogo é um desafio para o desenvolvimento da competência. Um jogador competente é o que conse- gue administrar a favor de seus interesses e objetivos e os múltiplos aspectos que devem ser coordenados numa tomada de decisão. Mas, consideremos que um jogo sempre supõe um desejo, um querer, um vencer. Às vezes, ficamos muito do lado do perdedor, ou seja, do que é desagradável, perigoso e incom- petente no jogo. O interessante, ao contrário, é perguntar-se como um jogador pode, também, ter experiências construtivas, ou seja, construir recursos que o fortaleçam para enfrentar o jogo, que lhe possibilitem a vitória, ou, pelo menos, perceber que esteve perto dela na medida em que demonstrou possuir muito dos fatores que concorriam para o sucesso, mas não todos, ou não com a coordenação necessária para vencer o desafio. ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica22 Autonomia como princípio didático No livro introdutório dos Parâmetros Curriculares Nacionais (de 1ª a 4ª série), há um capítulo sobre “orientações didáticas”. Os títulos que encabeçam as diferentes partes desse capítulo são: autonomia, diversidade, disponibilidade para aprendizagem, interação, coopera- ção, organização do espaço e do tempo e seleção de material. Por que autonomia está em um capítulo sobre orientação didática? O que significa au- tonomia como princípio didático, se nosso costume mais freqüente é ler sobre esse termo como um princípio moral ou ético? A importância da autonomia como princípio didático sempre foi valorizada por Piaget. Para explicar por que autonomia é, de fato, um princípio didático, pensemos no exem- plo do que ocorre com as lombadas das vias públicas e das estradas. Pode-se analisar nossa relação com esse obstáculo de três modos distintos. O primeiro nos lembra que a lombada é um redutor de velocidade que deve ser respeitado como limite físico. Caso contrário, nosso auto- móvel pode ser danificado. Ou seja, a lombada nos impõe um limite que temos de respeitar, para não arcar com prejuízos. O segundo aspecto corresponde ao que pensamos, julgamos, sentimos, sobre lombada. Podemos ser contra e achar que isso é controle de países de Terceiro Mundo. Ou seja, na prática, respeita-se a lombada, no pensamento, critica-se a estratégia an- tiquada e desagradável. Um terceiro aspecto é o de se fazer gestões para a mudança dessa regra com a qual não concordamos. As gestões, dentro de nossos limites, podem ser de muitas formas: fazer críticas verbais, escrever cartas, etc. O importante é que se faça algo para a mu- dança de uma lei com a qual não se concorda. Assim, também acontece no jogo. Nele também há um jogar concreto, que implica tomar decisões no contexto das regras e do objetivo a ser alcançado, resolver os problemas propostos, etc. Por outro lado, há uma teoria das melhores jogadas, as explicações ou inter- pretações que se dá para o ganho ou perda, enfim, todo um conjunto de idéias sobre o jogo. E há, tal como no exemplo da lombada, o que se faz para aperfeiçoar o jogo, ou a forma de jogar, o estudo, etc., tudo aquilo que se faz para tornar-se um melhor jogador, ou para melhorar a forma de ser de um jogo. As três dimensões estão interligadas, mas expressam dimensões diferentes. Mas, de que forma isso tudo se relaciona com autonomia? Piaget valorizava autonomia como método didático. Durante 30 anos, aproximadamente, ele foi diretor do Bureau International de l’Éducation da Unesco. Para comentar e analisar os diferentes métodos peda- gógicos que se usavam em muitos lugares do mundo, Piaget utilizava três princípios metodológicos: 1) ativo, 2) de autonomia ou autogoverno e 3) de trabalho em equipe ou de cooperação. O construtivismo de Piaget não é um método, mas refere-se, justamente, a esses três princípios metodológicos. Muitos métodos diferentes adotam princípios construtivistas. Autonomia como método pedagógico refere-se a permitir, despertar, favorecer, promover, valorizar, exercitar o poder de pensar da criança. O pensamento como uma possi- bilidade ou necessidade diferente da realização ou do aperfeiçoamento propriamente dito daquilo a respeito do qual se pensa. Quando uma professora valoriza, em sala de aula, discussões sobre os diferentes resultados de uma conta, ela está praticando o princípio da autonomia como um princípio metodológico. Argumentar, descrever, ter idéias diferentes sobre uma mesma coisa, etc., em um contexto de iguais, são ações que contribuem para o desenvolvimento da autonomia. Autonomia é uma disciplina de poder pensar a realidade de modo interdependente com ela. Autonomia nos ajuda a compreender porque – mesmo que não se possa decidir sobre certos temas – é importante discutir sobre eles. Ou seja, há temas que não se votam na sala de aula, mas que é importante discutir sobre eles. Por exemplo, há uma lei que proíbe que se fume em espaços públicos como a sala de aula. Do ponto de vista do primeiro aspecto, acima men- cionado, essa restrição é terrível para um dependente de nicotina. Mas, há, igualmente, o fato de que uma lei biológica prova cientificamente que fumar prejudica a saúde, pois pode provo- car várias doenças, dentre elas o câncer. Há também uma lei social que diz que será multado, ou preso, quem a ela desobedecer. Portanto, não se trata de votar, ou de decidir, sobre a possibilidade, ou não, de se fumar em sala de aula. Do ponto de vista do segundo aspecto, 25ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica trabalho, compromisso, responsabilidade. Complementaridade supõe sair dos limites de onde se encontra e incluir um outro todo como parte. Marías analisa essa questão no plano do jogo, como forma de ilusão. Ou seja, o que anima os adversários em um jogo é a mesma ilusão: vencer. Essa ilusão corresponde ao que se chama de “desejo com argumento”, ou seja, como falta traduzida em ações de busca, dirigidas por um objetivo ou finalidade, ações que são reguladas por essa meta a ser alcançada. Daí a dupla condição para competência relacional: desejo e devoção. Desejo como fim ou direção. Devoção como meio ou instrumento. Ou, como quer a sabedoria popular: “quem ama, cuida”. Desejo e devoção são cognitivos e afetivos ao mesmo tempo. Cognitivos porque supõem uma formulação, uma pergunta, hipótese ou proposição. Porque supõem construção de recur- sos, tomadas de decisão, avaliação reguladora, etc. Afetivos porque supõem um querer, su- põem a atribuição de uma significação pessoal, no sentido de que algo ainda não é para um sujeito, mas “deve” ser. A aprendizagem significativa supõe que se encontre “eco” no sujeito a quem é proposta. Daí sua vinculação com uma forma relacional de competência. A aprendizagem significativa é uma das condições defendidas por Piaget para um método pedagógico ser construtivo. Signi- ficativa porque expressa essa categoria da paixão: deixar-se, como sujeito a ser atravessado por um objeto; por isso, estar envolvido, interessado, ativo, em tudo o que corresponde a sua assimilação. Por isso, Piaget, ao menos com as crianças, era muito crítico ao que chamava de “verbalismo da sala de aula”. O verbalismo refere-se às exposições orais (explicações) para crianças sobre temas que as excluem por sua natureza formal, conceptual, adulta. A conseqü- ência disso, não raro, é a presença de crianças apáticas, desinteressadas, passivas, ou, então, agitadas, indisciplinadas e pouco cooperativas. As mesmas exposições com adultos podem ser positivas, pois esses possuem mais recursos cognitivos para relacionarem-se com essa forma de linguagem. Ou seja, um adulto, mesmo que só escutando, tem recursos de pensamento para manter um “diálogo” ativo (anota, faz associações, concorda, etc.) com o assunto que está sendo exposto. O construtivismo não se reduz a um método pedagógico em particular, ao menos na perspectiva de Piaget. Caracteriza-se por princípios ou propriedades que diferentes métodos podem ter. A disponibilidade para a aprendizagem, ou seja, a condição ativa, significativa, é uma dessas propriedades, como mencionado. Há métodos de ensino que são envolventes, que formulam projetos e que dão sentido ao que se faz na escola. O mesmo aplica-se a certos professores. Alguns possuem características pessoais muito positivas, são envolventes, têm auto- estima, são instigantes, estão comprometidos com seu trabalho, gostam de crianças, sabem mobilizá-las, sabem dar sentido às atividades propostas. Em uma palavra, são competentes. Há métodos competentes. Há professores competentes. O método da cooperação e a competência relacional Valoriza-se, atualmente, uma forma de trabalhar em equipe em que todos estão envol- vidos, de forma interdependente, por mais diferentes que sejam o nível de participação e a complexidade das tarefas de cada um. Essa forma difere, por exemplo, daquelas em que as participações são tomadas de modo independente, linear e aditivo. Independente porque uma parte não se relaciona com as outras. Linear porque o processo expressa-se por uma seqüência, em geral fixa, definida. Aditivo porque o todo (por exemplo, o objeto que se quer produzir) é montado por um conjunto de partes em uma relação de dependência/independência. No pri- meiro caso, a forma de competência mais importante é a relacional. No segundo, é a compe- tência do sujeito ou do objeto. O jogo possui as características acima mencionadas. Como instrumento de relação de um sujeito com certo problema ou desafio, o jogo tem uma força sedutora e implica uma ação atravessada pelo desejo e pela devoção. A competência relacional supõe uma abertura para a diversidade. Diversidade de pontos de vista, para as múltiplas formas de algo expressar-se, de variabilidade de contextos. É o caso de uma discussão com essas características. Pode-se argumentar de diferentes modos, há aber- tura para soluções divergentes, há espaço para diferenças. ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica26 Valoriza-se, muitas vezes, no jogo apenas sua dimensão competitiva, ou seja, seu limite, imposto pela regra de que só haverá um ganhador, quando todos querem – ao mesmo tempo e nas mesmas condições – a vitória. Essa condição de escassez ou de restrição cria um contexto de competição por um resultado, desejado por todos, mas que será obtido, em uma dada partida, para uma das partes, apenas. Mas, na perspectiva da competência relacional, mais importante é o processo de jogar, é a qualidade do modo como se joga. Ora, essa dimensão do jogo é cooperativa, não é competitiva. É marcada pela interdependência. No jogo, cada parte depende da outra. Se um jogador não movimenta sua peça, o outro, na vez seguinte, não poderá fazer sua jogada. Todos estão submetidos às mesmas regras, ao mesmo tabuleiro, etc. Por isso, o jogo, como processo, é um exercício de interdependência, de cooperação, não de competição, mesmo em jogos competitivos. Tomemos, como exemplo, o jogo de futebol. Este é um jogo competitivo se o considera- mos apenas na perspectiva do resultado. Como processo, trata-se de um trabalho de equipe. Por isso mesmo, às vezes ocorrem desentendimentos, brigas, porque um jogador foi individu- alista, não passou a bola, etc. Cooperação é um método de trabalhar com essa qualidade. O bedel coopera com a meta educacional da escola. Certas informações, certas oportunidades de intervenção ele tem me- lhor do que o professor, (***). Nos cantos da escola, nos banheiros, nos momentos em que o aluno não está visível para professores, orientadores ou diretores. Eles fazem parte do sistema, fazem parte da equipe pedagógica. Por isso, a cooperação não é só uma filosofia, uma ética, mas igualmente um método que supõe competência relacional. Por isso, segundo Piaget, o método pedagógico que promove a cooperação é mais construtivo do que um método que não a promove. Sem cooperação é muito difícil construir alguma coisa. Um tabuleiro chamado escola No tabuleiro chamado escola, a organização espacial das atividades pedagógicas é fun- damental. Onde estão os materiais? Onde acontecem as atividades? Como é que um aconteci- mento relaciona-se com outro do ponto de vista espacial? Quais são os deslocamentos proibi- dos e permitidos? Como se organizam os deslocamentos dos alunos na escola? Como é que se delibera sobre isso? Como é que se constroem e se administram as regras na escola? As questões formuladas acima e tantas outras que se poderia fazer encaixam-se no tema “gestão da sala de aula”. Infelizmente, há professores que são “maus gerentes” na sala de aula, apesar de seu conhecimento dos conteúdos. Não sabem administrar o tempo, nem o espaço das atividades, selecionam mal os objetos. Gastam muito tempo em uma atividade, depois não têm tempo para uma outra, igualmente importante. Não sabem dosar o conteúdo. Falta-lhes com- petência relacional. Hoje, espera-se que o professor seja um gerente, um gestor da sala de aula. E uma das grandes queixas dos professores é que não se sentem competentes para isso. Dizem não saber administrar o tempo da aula, os ritmos dos alunos, a narrativa desse acontecimento, com suas paradas, obstáculos, com seu desenrolar, com seus imprevistos. Falta-lhes, insisto, competência relacional. De fato, localizar a questão espacial e temporal, bem como a seleção de materiais como orientação didática é reconhecer que a gestão de sala de aula é tão importante quanto o domínio dos conteúdos que se ensinam, porque a aprendizagem desses conteúdos depende da qualidade dessa gestão. Por isso, hoje, a avaliação tornou-se também relacional, no sentido de que se refere a um instrumento que possibilita qualificar, regular para mais ou para menos, os diferentes aspectos a serem considerados na dinâmica da sala de aula. A competência relacional é muito importante em uma visão construtivista do processo de aprendizagem escolar. Para essa visão, a interação caracteriza-se por trocas que podem gerar, por sua própria realização, uma tensão, uma perturbação. Voltando ao tema comentado, a administração do tempo na sala de aula é um bom adversário da transmissão de conteúdo. Como explicar em 20 minutos certo tema, incluindo aí questões ou dificuldades dos alunos em acompanhar a explicação? Na visão construtivista, como em termos de competência relacional, não interessa o que marca as diferenças, mas o que as coordena. Há outras formas de interação em que o interessante é o que afasta, dificulta. Não o que, reconhecendo o impasse, constrói 27ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica formas de convivência ou superação. Por isso, justificar que faltou tempo para dar uma aula eficiente não é uma boa razão, pois os limites do tempo já estavam lá. Como dar uma “mesma aula” em cinco minutos, cinco meses, cinco anos? O desafio, do ponto de vista relacional, é como comunicar, em um desses tempos, algo que seja pertinente e interessante sobre o assun- to. Esse é o desafio em uma perspectiva relacional. Quando só se dispõe de dez minutos para expressar algo significativo em uma relação, como bem aproveitar esse tempo? Se alguém é significativo ou representa algo significativo para nós e se esse alguém está para morrer nos próximos dois meses, o que pode ser feito? Nem sempre se tem 20 anos para estar com alguém, às vezes são apenas vinte minutos. O que fazer ou dizer que seja significativo do ponto de vista humano, relacional? Uma coisa é valorizar o que falta, aquilo que não se dispõe, outra é valorizar o que pertence a ela, é possível, pois, estar dentro da relação. Competência relacional é um convite para considerar a multiplicidade dos aspectos que possibilitam “o ser, ou não”, de algo. Penso que somos ainda muito marcados pelas duas outras formas de competência (a relativa ao sujeito e ao objeto). Ainda nos é difícil, mormente para certos conteúdos e em certos contextos, considerar o que é comum, o que respeita mutuamen- te os diferentes aspectos de uma situação. Ainda nos é difícil aceitar o “melhor argumento”, aquele que produzido em um contexto relacional resulta da contribuição de todos, ainda que em diferentes proporções ou formas, e que não decorre da competência expressa de um único sujeito ou único objeto. Tomemos, como exemplo, uma discussão em sala de aula sobre os diferentes resultados para uma mesma conta e os argumentos ou procedimentos que as crianças utilizam para justi- ficar ou produzir tais resultados. O melhor argumento, o melhor procedimento (no sentido aritmético), mesmo que produzido por um único aluno, há de ser considerado como produção coletiva, como acordo tirado de uma discussão em que todos, de algum modo, contribuíram para ela. O que é comum a diferentes formas de calcular? Como decidir pela melhor forma e tornar seu argumento ou procedimento compreensível, aceitável, para aqueles que utili- zaram outras formas? Como reunir as diferenças em favor de algo comum? Ou seja, há diferenças que separam, há diferenças que aproximam. Na competência relacional, são as diferenças possíveis de serem integradas, coordenadas, não importa em que nível, que interessam. Em uma sala de aula, todos podem, de algum modo, contribuir. Mesmo aquele que fala ou realiza algo muito discrepante ou sem sentido pode ajudar. O problema, de natureza relacional, é como incluir sua participação. Ou seja, a questão é como aproveitar uma expressão humana em favor de algo que é superior a ela. Insisto, o melhor argumento nunca vem só de um lado, nunca é exclusivo das qualidades excepcionais de um sujeito ou objeto. A competência relacional é, por isso, um convite para esquecermos nossa arrogância, para deixarmos de igno- rar os ignorantes, os excluídos, os que muitas vezes só podem contribuir de uma forma nega- tiva, perturbadora, desajeitada. Mas, essa qualidade de pensar de forma relacional supõe autonomia, cooperação, supõe a coordenação de valores que exigem tempo para sua construção. Referências bibliográficas INHELDER, B.; GARCIA, R.; VONÈCHE, J. Epistemologia genética e equilibração. Tradução de Jorge Correia Jesuíno. Lisboa: Livros Horizonte, 1976. INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS. ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio): Documento Básico. Brasília: MEC/Inep, 1998. MACEDO, L. de. Ensaios construtivistas. 4. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999. 170 p. . Piaget e a nossa inteligência. Pátio: Revista Pedagógica, v. 1, n. 1, p. 10-13, maio/jul. 1997. ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica30 contexto de situação-problema para tomar decisões favoráveis ao seu objetivo ou metas. Sa- bemos, e muitas vezes lamentamos, o quanto em uma determinada situação não nos permiti- mos recorrer a tudo que sabemos em favor de sua solução. Esquecemos, não articulamos uma informação com outra, não consideramos um elemento da situação, que depois julgamos fun- damental, etc. É assim que acontece, por exemplo, em uma prova. Na hora de sua realização, “travamos”, esquecemos, damos respostas apressadas, simplificamos, não damos suficiente atenção para uma série de detalhes que, mais tarde, com a “cabeça fresca”, lamentamos. Na visão de Piaget, mobilizar recursos é, de fato, uma propriedade fundamental aos esquemas de ação. Penso que, na perspectiva de Piaget, mobilizar recursos corresponda ao que chama de coordenar meios e fins, sendo essa a própria função da inteligência (Macedo, texto publicado no Pátio e Ensaios Construtivistas). Julgar em função dos indicadores Uma situação-problema, em um contexto de avaliação, define-se por uma questão que coloca um problema, ou seja, faz uma pergunta e oferece alternativas, das quais apenas uma corresponde ao que é certo quanto ao que foi enunciado. Para isso, a pessoa deve analisar o conteúdo proposto na situação-problema e recorrendo às habilidades (ler, comparar, interpre- tar, etc.) decidir sobre a alternativa que melhor expressa o que foi proposto. Quais são os indicadores ou observáveis que dispomos ou que podemos construir em favor de uma boa resolução dessa tarefa? Os observáveis podem provir seja do objeto ou do sujeito. Os observáveis do objeto referem-se ao que o enunciado da questão formula, ou ao que recorre, sobre o conteúdo a ser avaliado. O proponente da questão, no caso, apoiado em seus conhecimentos sobre o assunto a ser avaliado, e tendo em vista os objetivos da prova (avaliar competências e habilidades de um sujeito sobre algo) e recorrendo aos meios que lhe são disponíveis (avaliar em um contexto de situação-problema) estrutura um texto que expressa observações sobre o assunto a ser testado. A pessoa, que está sendo avaliada, de sua parte, lê o enunciado e o interpreta. Para isso, necessita raciocinar, ou seja, coordenar as informações em favor do obje- tivo visado: o que está sendo perguntado? Quais as informações disponíveis no enunciado? Deve também realizar operações que produzem novas informações, confirmam ou resolvem o que está sendo proposto. Essas operações, ou competências transversais, são principalmente as seguintes: interpretar, analisar, comparar, etc. Uma outra atividade importante a ser realizada é comparar entre as alternativas oferecidas a que melhor corresponde ao que foi perguntado e ao que o avaliado sabe ou concluiu sobre o que se perguntou. Articulando e dando sentido a tudo isso, há, igualmente, o que podemos chamar de circunstância ou contexto da prova, com tudo o que representa para o aluno, sua família ou sociedade. Os indicadores correspondem, portanto, ao conjunto de sinais, marcas, informações, as- pectos destacáveis no texto do enunciado e, igualmente, ao conjunto de pensamentos, idéias, representações, lembranças, raciocínios, sentimentos, etc. do sujeito que está respondendo à questão. Esses indicadores relativos ao objeto, que o sujeito pode observar, e os indicadores relativos ao próprio sujeito, juntos, produzem os elementos, cujo julgamento permitirá a to- mada de decisão sobre o que está sendo perguntado e as alternativas disponíveis, das quais apenas uma delas é a correta. Inferência é o que possibilita a conclusão ou tomada de decisão, em um contexto de julgamentos, raciocínios, interpretação de informações, em favor de uma das alternativas propostas. Uma boa questão, nesse sentido, implica simultaneamente três tipos de interação. Pri- meiro, construir ou considerar as diferentes partes que correspondem aos elementos constitu- intes da situação-problema como um todo. Segundo, articular ou coordenar cada uma das partes ou elementos disponíveis com o próprio todo. Terceiro, tomar o todo como o que estru- tura, dá sentido e, por isso, regula toda a situação. O enunciado cria um contexto ou circuns- tância que dá ao item uma autonomia, no sentido de ser um bom recorte ou situação-proble- ma? A tarefa a ser realizada (especificada, principalmente, nas competências transversas que definem o que se espera do trabalho proposto) está bem caracterizada e torna (a tarefa) pos- sível de ser realizada nos limites (espaciais e temporais)? As alternativas estão bem formuladas e criam obstáculos (no sentido de Meirieu), que convidam à reflexão do aluno e expressam 31ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica diferentes graus de articulação entre o enunciado e a alternativa que melhor define a resolu- ção do problema proposto? É o conjunto do item que regula e dá direção ao trabalho? Uma boa questão deve propor um percurso entre uma situação de partida, que corresponde à proposição do enunciado, até um ponto de chegada, que corresponde à escolha da alternativa, suposta pelo avaliado, como a que melhor representa a resposta correta. As situações-problema propõem uma tarefa para a qual o sujeito deve mobilizar seus recursos ou esquemas e tomar decisões. Mas, há uma diferença, por exemplo, entre essa tarefa e a realizada pelas máquinas. As máquinas ou tecnologias resolvem problemas, realizam tare- fas. Elas possuem, pelos modos de sua produção, competência reprodutiva ou processual. Os objetivos em uma máquina correspondem ao comando, desencadeado por alguém ou alguma coisa que provoca uma cadeia de respostas ou realização de ações com duração e seqüências programadas. Os meios e recursos em uma máquina expressam sua constituição física ou “sin- tática” preparada para reagir. Os resultados são a culminação daquilo que foi decidido fazer ou produzir. Ou seja, uma máquina sabe fazer, mas não compreende, nem reflete sobre o que faz. Não avalia as conseqüências de suas ações. Não se compromete, nem se responsabiliza pelo que faz. Não gosta, nem se alegra, nem fica triste, nem se sente realizada com o que faz. Seu projeto executivo reflete as intenções de seu programador ou construtor, reflete as possibili- dades mecânicas de sua composição, define os limites de seu programa. Mas, organizar um mundo, tecnologicamente, corresponde a decisões políticas, a interesses (econômicos, etc.) humanos que definem o sucesso e o fracasso de outros seres humanos em sua vida. As máqui- nas agem em um contexto uniforme, não-crítico, que realiza o que está programado para ser feito, sem se importar com as conseqüências de sua ação. Por isso, nesse texto não estamos analisando as competências das máquinas, mas sim as competências dos sujeitos, das pessoas que vivem em um mundo tecnológico. Além das competências das pessoas, estaremos, igual- mente, analisando sua competência relacional. Em outro texto, analiso, de modo mais aprofundado, a distinção que proponho entre essas três formas de competências: a do objeto, a do sujeito e a da relação. A competência mais importante para nós é, sem dúvida, a relacional, até porque ela expressa a dimensão indissociável e interdependente das competências relativas ao sujeito e ao objeto. Relacional em suas três versões ou possibilidades de expressão. Há uma relação interpessoal que solicita o desenvolvimento de competências transversais muito importantes. Autonomia, respeito, tolerância, responsabilidade, construção e respeito a regras sociais, ami- zade, compromisso, etc. são qualidades que regulam, em sua direção positiva, as relações entre as pessoas. Mas sabemos o quanto a inveja, o ciúme, a rivalidade, a competição, os interesses pessoais e mesquinhos podem regular, igualmente, nossas tomadas de decisão. A segunda forma de competência relacional é a relativa aos objetos. Temos destruído a natureza, intoxi- cado os rios, a atmosfera, depredado bens públicos, maltratado nossos corpos e abandonado regras e princípios que a humanidade e a natureza levaram séculos e séculos para construírem. Quantos outros séculos necessitarão para reconstruí-los? Ignoramos as leis físicas, químicas, sociais e políticas que explicam a regularidade dos fenômenos e qualificam formas de inter- venção ou gerenciamento melhores do que outros. Não temos sabido cuidar dos objetos que nos são mais caros. Temos cedido ao apelo tecnológico que, em nome da globalização, unifor- miza, simplifica e define um padrão único que, pouco a pouco, haverá de descaracterizar o multifário das expressões e formas humanas e sociais de resolverem problemas de nossa sobre- vivência nos distintos lugares de nossa terra. Em uma palavra, não temos sabido definir e aplicar as competências transversais que expressam cuidado e respeito com os objetos que nos são importantes. A terceira forma de competência relacional diz respeito às tarefas ou ao trabalho humano diante das pessoas e dos objetos. No presente texto, e na perspectiva da prova do Enem, analisamos as competências transversais requeridas para as tarefas a serem avaliadas. E quanto às outras tarefas ou às outras competências transversais ligadas a nossa relação com tarefas: concentração, disciplina, respeito, cooperação, autonomia, cumprimento de metas, prazos, etc.? O ser humano toma decisões, formula julgamentos, compromete-se com uma resposta. Tomar decisões é mais do que resolver um problema, pois implica valores, raciocínio, enfrentar um dilema e decidir-se pelo que se acha melhor, mais justo, mais condizente para ele e para a sociedade a que pertence. As máquinas apenas resolvem os problemas ou realizam tarefas para ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica32 as quais já estavam preparadas para resolver. Se lhes propomos algo fora desse esquema, elas não resolvem, paralisam-se, quebram, informam, por exemplo, ter ocorrido erro de sintaxe. As pessoas resolvem problemas em um contexto de tomada de decisões, de dilemas ou situações que admitem várias alternativas, sendo algumas incorretas, outras melhores e uma outra que corresponde à melhor solução no contexto da pergunta ou do problema que se está enfren- tando. As máquinas não julgam sobre o que realizam, por isso podem ser manipuladas por motivos muito diferentes. As pessoas julgam o que realizam, devem saber se o que fazem está certo ou errado, se é digno ou não para a sua vida ou para a vida de seus semelhantes. As pessoas comprometem-se e responsabilizam-se pelo que fazem e pelas circunstâncias, ainda que aleatórias, que caracterizam os seus afazeres. Essas considerações são importantes porque se pode fazer uma questão na perspectiva do modo como as máquinas funcionam e não no modo como as pessoas funcionam ou que se espera que elas funcionem. Por isso, para avaliar se uma situação-problema é boa ou não, temos que julgar se a questão pede solução de problemas, na perspectiva das pessoas ou das máquinas. Tratar alguém como máquina é exigir ou esperar que ela seja ou aja como uma máquina, tenha memória de máquina, trate o conhecimento como jogo de informações, trate os cálculos como forma de processar e não como meios para outros fins. Além disso, temos que observar se a questão expressa-se em um contexto de dilemas, ou seja, em que a pessoa deve se posicionar, julgar, interpretar? Para isso, temos que verificar se as alternativas coordenam-se com o enunciado e expressam esse espírito de responsabilizar-se pela resposta, julgar e inter- pretar, diante dos indicadores disponíveis (seja no plano da questão, seja no plano das refle- xões ou raciocínio da pessoa que está respondendo à questão). Temos que verificar se a ques- tão nos compromete com uma resposta. E se essa resposta, mesmo que em um contexto artifi- cial, de simulação, como é o caso de uma avaliação escolar, nos projeta para uma situação de vida real em que suas conseqüências seriam prejudiciais para a natureza, para a vida. Uma boa situação-problema, como técnica de avaliação e como concepção de aprendi- zagem, portanto, deve compor um sistema, ao mesmo tempo, fechado (como um ciclo) e aber- to. Fechado como ciclo no sentido de que convida o aluno a percorrer o seguinte percurso no contexto de cada questão: 1) alteração, 2) perturbação, 3) regulação e 4) tomada de decisão (ou formas de compensação). Aberto, no sentido de que propõe trocas ou elementos de refle- xão que transcendem os limites da prova e ilustram, ainda que como fragmentos ou lampejos, algo que será sempre maior e mais importante do que as circunstâncias de uma prova, com todos os seus limites e com toda a precariedade de sua realização. Alteração Como mencionado, a situação-problema propõe uma forma de interação do aluno com uma questão a ser resolvida, não como se ele fosse uma máquina, mas uma pessoa. A situação- problema, por seu enunciado, cria um contexto que formula uma alteração a ser examinada pelo aluno. O contexto do enunciado expressa-se pela forma e conteúdos de sua proposição. Alteração diz respeito a uma modificação a ser considerada pelo sujeito. As alterações propos- tas em uma situação-problema, por suposto, são artificiais, por oposição a alterações naturais (tanto no sentido físico, orgânico ou que se expressam nas contingências de nossa vida e do jogo de sua realização). Por ser artificial, a situação-problema simula, recorre, inventa ou cria contextos que favorecem a avaliação ou o julgamento de uma dada questão. Diante de uma alteração, mesmo que artificialmente produzida, podemos ter duas clas- ses de reações. Uma delas expressa-se pela indiferença ou divagação (que impede a compreen- são do problema como problema), pelo medo que afasta ou desestimula continuar, pelo senti- mento de que não temos recursos ou condições de enfrentar o problema, pelo julgamento de que o problema é irrelevante ou que não faz sentido para nós. Por isso, um conjunto de boas situações-problema deve conter questões fáceis, difíceis ou intermediárias, isto é, deve propor diferentes graus de obstáculo para sua realização. Mas, em qualquer nível de dificuldade, deve expressar algo significativo para o sujeito e para o assunto que está sendo objeto de avaliação. A segunda classe de reação a uma alteração refere-se à perturbação ou solução ou neutralização do que foi alterado. No contexto de nossas considerações, só interessa a situação-problema que produz uma alteração e que convida o sujeito a reagir ou agir em face da alteração. Por 35ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica Por isso, há apenas uma única resposta “possível, necessária e suficiente”, pois é a única que integra, que compensa, ou equilibra a perturbação criada com a proposição. Essa resposta é, por isso, a que melhor articula as duas partes (enunciado e alternativas) que compõem a situação-problema como um todo. Por isso, evitamos no elenco das alternativas afirmações preconceituosas, dicas ou indutores de respostas, “pegadinhas”. Ou seja, o que nos interessa é que o aluno tenha uma relação construtiva com o processo de conhecimento e não um jogo, em que a malícia, a esperteza, etc. ocupem o lugar mais importante. As formas de compensação alfa, beta e gama, mencionadas por Piaget, correspondem, creio, ao que temos chamado nesse trabalho de esquemas de mobilização de recursos aos obstáculos, dificuldades ou problemas relacionados à tarefa e às tomadas de decisão. Alfa, beta e gama são níveis hierárquicos de buscas de solução e formas de compreensão do sujeito ante os problemas de interação com os objetos. Pode-se interpretar a situação-problema, como a investigamos no Enem, como um pro- blema de coerência. Ou seja, o enunciado cria um problema, uma lacuna, rompe um equilíbrio, pede comparações, etc. Coerência, no sentido, de que a alternativa escolhida seja consistente com o que foi proposto no enunciado. Coerência, no sentido, de que se a alternativa escolhida não for a melhor, entre as indicadas, cria-se uma inconsistência entre o que o aluno escolheu e o que o problema colocou como questão. É certo que se pode interpretar assim. Mas, apoiado em Piaget, quero lembrar que há dois sentidos para a coerência: como contradição lógica ou como busca de “reorganizações inovadoras”. No caso do Enem, é o segundo sentido que inte- ressa valorizar no contexto e limites de nossa prova. Transcrevo, abaixo, o texto de Piaget, pois penso que é importante para nossas reflexões. [...] quando Novinski nos diz que o único motivo invocado para explicar o porquê dos progressos do conhecimento é a coerência, receio que ele me tenha compreendido mal e que tenha reduzido esta coerência tão-só à não-contradição lógica. Ora, a coerência pode ter dois sentidos. É, em última análise, a coerência interna das idéias num sistema já construído. Mas é, antes de mais, e essencial- mente, a coerência em relação ao que surge de inesperado na experiência nova de cada dia, isto é, perturbações que introduzem incoerências e conduzem a reorganizações que são, então, efetivamente inovadoras. Quando procuro o porquê do progresso na necessidade e na busca da coerência, penso bem entendido, na formação das compensações. Isso significa que as perturbações e as reconstruções que elas arrastam são um fator fundamental na evolução e no progresso dos conhecimentos. Quando no meu parágrafo 13 falo das condutas alfa, beta e gama quer dizer, da perturbação, primeiro simplesmente neutralizada, em seguida, parcialmente incorporada no sistema o que produz um des- locamento de equilíbrio e, finalmente, completamente integrada a título de variação interna do sistema, parece-me que aí reside um fator fundamental que descreve o porquê do progresso. E se me responder que se trata ainda do “como” e não do “porquê”, responderei que se o sujeito acaba por integrar as perturbações exteriores no sistema interno a título de variações intrínsecas e dedutíveis é porque ele é um sujeito ativo e não se limita a registrar, mas procura coordenar, assimilar, reconstruir, etc. É nessa direção que é preciso procurar as soluções, e, repito, novas investigações, sobre a constru- ção dos possíveis, estão já em curso. Jean Piaget (em Inhelder, Garcia, Vonèche, 1976, p. 55) Finalmente, a regulação, por seu próprio nome, corresponde também a um modo de agir em um contexto de regras. No caso da prova do Enem, por exemplo, poderíamos listar muitas regras a serem aplicadas e consideradas, seja para a produção da prova, para sua realização, avaliação e, sobretudo, para suas implicações na vida “lá fora”. Referências bibliográficas INHELDER, B.; GARCIA, R., VONÈCHE, J. Epistemologia genética e equilibração. Tradução de Jorge Correia Jesuíno. Lisboa: Livros Horizonte, 1976. INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS. ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio): Documento Básico. Brasília: MEC/Inep, 1998. MACEDO, L. de. Ensaios construtivistas. 4. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999. 170 p. ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica36 MACEDO, L. de. Piaget e a nossa inteligência. Pátio: Revista Pedagógica, v. 1, n. 1, p. 10-13, maio/jul. 1997. . Competências e habilidades: elementos para uma reflexão pedagógica. Manuscrito não publicado. São Paulo: Instituto de Psicologia, USP, 1999. 48 p. MEIRIEU, P. Aprender... Sim, mas como? Tradução de Vanise Pereira Dresch. Porto Alegre: Artmed, 1998. PERRENOUD, P. Construir as competências desde a escola. Tradução de Bruno Charles Magne. Porto Alegre: Artmed, 1999. . Avaliação entre duas lógicas: da excelência à regulação das aprendizagens. Tradu- ção de Patrícias Chittoni Ramos. Porto Alegre: Artmed, 1999. PIAGET, J. A equilibração das estruturas cognitivas: problema central do desenvolvimento. Tradução de Marion Merlone dos Santos Penna. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. 37ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica 1.3 Propostas para pensar sobre situações-problema a partir do Enem Lino de Macedo Situação-problema 1 Analisar as provas (1998 e 1999) do Enem na perspectiva das competências transversais. Como os itens foram propostos? O que po- deria ser melhorado ou modificado no sentido de um uso mais preciso das competências transversais referidas? A articulação entre os enunci- ados dos itens e o elenco das alternativas propostas como resposta era adequada, ante as competências transversais solicitadas na tarefa? As tarefas indicadas, em cada item, estavam claras, do ponto de vista de se avaliar as competências transversais referidas? Os obstáculos (no senti- do indicado por Meirieu) propostos nos itens convidavam o aluno a pensar mais e melhor sobre o tema proposto, a aprender alguma coisa, mesmo que em uma situação de prova? Os itens desafiavam os alunos a tomar decisões (relativas à escolha da alternativa julgada correta, às operações que possibilitavam interpretar os dados ou produzirem in- dicadores para as inferências, a serem feitas e a serem utilizadas para a tomada de decisão, quanto à escolha da alternativa a ser assumida como correta)? Os itens, pelos obstáculos propostos, desafiavam os 41ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica 1.4 Interdisciplinaridade e contextuação* Nílson José Machado Introdução: a escola e as disciplinas Em sua forma paradigmática, a organização do trabalho escolar nos diversos níveis de ensino baseia-se na constituição de disciplinas, que se estruturam de modo relativamente independente, com um mí- nimo de interação intencional e institucionalizada. Tais disciplinas pas- sam a constituir verdadeiros canais de comunicação entre a escola e a realidade, a tal ponto que, quando ocorrem reformulações ou atuali- zações curriculares, a ausência de novas disciplinas ou de alterações substantivas nos conteúdos das que já existem‚ é freqüentemente in- terpretada como indício de parcas mudanças. De modo análogo, amparadas em argumentos que acolhem de maneira às vezes acrítica a necessidade presumida de sintonia escola- vida, surgem de quando em quando no cenário escolar novas discipli- nas – ou pseudodisciplinas – como Educação Sexual, Educação Moral e Cívica, Matemática Financeira, Estudo de Problemas Brasileiros, Reso- lução de Problemas, Construções Geométricas, entre outras, quase sempre * De acordo com o autor, apesar de freqüente, a palavra contextualização não faz parte do léxico, que inclui contexto, contextuar e contextuação. ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica42 desprovidas dos elementos mínimos que garantem a um assunto o estatuto e a dignidade disciplinar. Nesses casos, a despeito da eventual relevância dos temas considerados, tão logo ocorre um distanciamento mínimo das circunstâncias geradoras da aparência de necessidade, desfaz-se o brilho fugaz de alguns de tais simulacros, deslocando-se as pretensões disciplina- res para outros temas mais candentes em contextos emergentes. Interdisciplinaridade: consenso Já há algum tempo, no entanto, “interdisciplinaridade” tem sido uma palavra-chave na discussão da forma de organização do trabalho escolar ou acadêmico. Dois fatos parecem estar diretamente relacionados com tal emergência. Em primeiro lugar, uma fragmentação crescente dos objetos do conhecimento nas diver- sas áreas, sem a contrapartida do incremento de uma visão de conjunto do saber instituído tem-se revelado crescentemente desorientadora, conduzindo certas especializações a um fe- chamento no discurso que constitui um óbice na comunicação e na ação. Em segundo lugar, parece cada vez mais difícil o enquadramento de fenômenos que ocorrem fora da escola no âmbito de uma única disciplina. Hoje, a Física e a Química esmiúçam a estrutura da matéria; a entropia é um conceito fundamental na Termodinâmica, na Biologia e na Matemática da Comunicação; a Língua e a Matemática entrelaçam-se nos jornais diários; a propaganda evidencia a flexibilidade das fronteiras entre a Psicologia e a Sociologia, para citar apenas alguns exemplos. Em conseqüência, a idéia de interdisciplinaridade tende a transformar-se em bandeira aglutinadora na busca de uma visão sintética, de uma reconstrução da unidade perdida, da interação e da complementaridade nas ações, envolvendo diferentes disciplinas. Interdisciplinaridade: obstáculos Este aparente consenso não deve, no entanto, minimizar certas dificuldades renitentes na abordagem da interdisciplinaridade e que podem explicar, em parte, resultados tão pouco expressivos nas ações docentes, mesmo originados em grupos que se debruçaram seriamente sobre o tema. Roland Barthes, em O Rumor da Língua (1988), apreendeu com muita perspicá- cia algumas dessas dificuldades, ao afirmar: O interdisciplinar de que tanto se fala não está em confrontar disciplinas já constituídas das quais, na realidade, nenhuma consente em abandonar-se. Para se fazer interdisciplinaridade, não basta tomar um “assunto” (um tema) e convocar em torno duas ou três ciências. A interdisciplinaridade consiste em criar um objeto novo que não pertença a ninguém. O texto é, creio eu, um desses objetos (p. 99). De fato, o confrontamento de docentes que não consentem em abandonar seus objetos e pontos de vista, ou a fixação de um tema gerador em torno do qual borboletearão as diver- sas disciplinas pode ser a caracterização mais freqüente, ainda que simplificada, das tentativas de implementação de ações interdisciplinares, e isso parece claramente insuficiente. A solida- riedade e as concessões necessárias para a constituição de um novo objeto ainda não são bastantes. Por outro lado, também é muito freqüente o fato de que tão logo dois temas estabele- cem um mínimo de relações fecundas e promissoras, na própria ante-sala de um trabalho interdisciplinar surge a pretensão de erigir uma nova disciplina, uma nova área do conheci- mento, uma nova “ciência”, o que passa a consumir esforços e energias dos “militantes”, engajados na tarefa de estatuir a natureza do novo campo, de caracterizar seu espaço de atuação. Por paradoxal que pareça, nesses casos, em vez de a aproximação entre os dois temas favorecer a interdisciplinaridade, geralmente dificulta-a. É possível mesmo que conduza mais facilmente à negação dos interesses comuns, como um recurso para a auto-afirmação do que poderá vir a ser uma nova “disciplina”, do que a uma colaboração pura e simples. Exemplos de tais situações estão presentes em maior ou menor grau na criação de áreas disciplinares como Psicopedagogia, 45ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica Em decorrência, em uma configuração curricular derivada de tal sistema, as possibilida- des de um trabalho interdisciplinar parecem amplificadas, não tanto pelo valor intrínseco das relações estabelecidas quanto pelo abandono de certas configurações disciplinares, com ca- racterísticas de verdadeiros preconceitos. Síntese provisória: disciplinas x sistemas Não é o caso de alongarmos essa digressão mais do que já o fizemos, sobre diferentes sistematizações da totalidade do conhecimento; também não é o caso, naturalmente, de pro- ceder-se a uma escolha do sistema mais interessante, segundo o critério X ou o critério Y. A finalidade única do que foi exposto esgota-se na tentativa de explicitação do fato inicialmen- te referido: o significado curricular de cada disciplina não pode resultar de uma apreciação isolada de seu conteúdo, mas sim do modo como se articulam as disciplinas em seu conjunto; tal articulação é sempre tributária de uma sistematização filosófica mais abrangente, cujos princípios norteadores é necessário reconhecer. A possibilidade de um trabalho interdisciplinar fecundo depende de tal reconhecimen- to, especialmente no que se refere à própria concepção de conhecimento, bem como de uma visão geral do modo pelo qual as disciplinas articulam-se, internamente e entre si. No cenário atual, a utilização cada vez mais intensiva das tecnologias informáticas no terreno educacional situa no centro das atenções a necessidade de buscar-se novas formas de organização do trabalho escolar. A idéia de rede cresce continuamente em importância, tanto em sentido literal, associada às redes de computadores, como a Internet, quanto em sentido figurado, como imagem para representar o conhecimento. Certamente, hoje, tácita ou explici- tamente, as redes configuram uma moldura sem a qual não se pode compreender como se conhece, não se pode conhecer o conhecimento. Pode não se tratar exatamente do núcleo de um novo “sistema filosófico”, mas a influência das redes encontra-se em toda parte e a própria idéia de interdisciplinaridade encontra-se diretamente associada a tal idéia. Comentaremos brevemente esses pontos, no que se segue. Conhecimento: construtibilidade O debate em torno da concepção de conhecimento, da natureza dos processos cognitivos, em busca de uma orientação para a prática docente, apesar de fundamental para a emergência de um trabalho interdisciplinar, tem-se concentrado, nas últimas décadas, em um ponto iluso- riamente importante: a questão da construtibilidade. De fato, o deslocamento das atenções de um eixo, onde se destacavam as idéias de consciência como um balde vazio a ser preenchido ou como um holofote a focalizar o tema em exame, para outro, onde ocupa posição de relevo a contraposição entre a existência de ele- mentos inatos ou a total construtibilidade do conhecimento, foi fecundo e ainda permanece alimentando interessantes pesquisas. Nesse sentido, o debate entre o construtivismo de Piaget e o inatismo de Chomsky, organizado pelo “Centre Royaumont pour une science de l’homme” (1975) e competentemen- te transformado em livro por Piatelli-Palmarini (1983), teve grande importância teórica, po- dendo, no entanto, ser interpretado como um indício de que todos, incluindo-se Chomsky, são construtivistas. De fato, a idéia de que o conhecimento é algo que se constrói, sobretudo a partir do que as crianças já sabem, é de uma banalidade tal que não mereceria maiores comen- tários, se não fosse, como costuma ser, repetida tantas vezes, com seriedade e circunspeção, como se se tratasse do registro de algo absolutamente novo e alvissareiro. A questão fundamental do debate supra-referido não era essa, mas sim a da existência ou não, na ontogênese do conhecimento, de uma estrutura inicial inata; Chomsky diria que sim, enquanto Piaget nega peremptoriamente a existência de tais estruturas, estabelecendo que inato seria apenas o “funcionamento geral da inteligência”. A partir daí, ambos concor- dam em que, por diferentes percursos, o conhecimento deve ser construído por meio das ações e das interações com o meio. Naturalmente, não se pode pretender identificar as posições de ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica46 Piaget e Chomsky: enquanto o primeiro postula certo isomorfismo entre a estruturação das ações e a estruturação do raciocínio lógico dos indivíduos, o segundo atribui às ações o papel de “chave de ignição” dos processos cognitivos. Para Chomsky, portanto, as ações/interações são fundamentais para “dar a partida”, mas tal como inexistem semelhanças estruturais entre o motor de partida e o motor à explosão, em um automóvel, não existiria qualquer relação analógica entre a estruturação das ações e os processos mentais. Em parte, em razão do debate citado, hoje não parecem existir mais não-construtivistas. E como a ausência de sombra também pode dificultar a visão, diminuiu bastante a nitidez na caracterização do construtivismo em seus inúmeros matizes. Insistimos, no entanto, em que a construtibilidade, ou não, não é mais a questão a ser discutida: o modo como o conhecimento se constrói é a verdadeira questão. E a palavra-chave para uma reflexão conseqüente sobre o tal tema é o encadeamento, ou a linearidade. Conhecimento: imagens A concepção de conhecimento costuma estar associada, implícita ou explicitamente, a uma imagem metafórica que, em grande parte, determina o papel das disciplinas e organiza as ações docentes, como o planejamento, a avaliação. Em um tempo que já vai bem longe, a produção do conhecimento esteve associada à imagem de “encher um balde”. Os alunos seriam como recipientes vazios e aos professores caberia o papel de “dar a matéria” e “encher o balde”. Hoje, não existem mais defensores dessa imagem simplória, ainda que, muitas vezes, as ações docentes permaneçam tributárias da mes- ma. Apenas para ilustrar: a concepção da avaliação como um processo de medida em sentido físico ou matemático é inteiramente compatível com a imagem do enchimento do balde, em- bora não faça o menor sentido em um contexto de construção do conhecimento. De modo geral, a imagem dominante para a construção do conhecimento está associada às idéias cartesianas apresentadas em 1637, no livro Discurso do Método. Nesse trabalho, que viria a influenciar profundamente todo o pensamento ocidental, Descartes propõe que, diante de uma grande dificuldade, em termos cognitivos, deve-se decompô-la, subdividi-la em partes cada vez mais “simples”, até chegar-se a “idéias claras e distintas”. Depois da fragmentação, para reconstituir o objeto de estudo, o caminho é o encadeamento lógico, do simples para o complexo, articulando-se as partes por meio de esquemas do tipo “se A, então B”, “se B, então C”, e assim por diante. Conhecer estaria associado, então, a encadear, e a cadeia é a imagem forte para o conhe- cimento que predominará no cenário ocidental, sendo inclusive “exportada” do universo da Ciência para o do trabalho, quando o taylorismo, e posteriormente, o fordismo aí se instala- ram. Palavras-chave que decorrem dessa imagem são: ordem necessária para os estudos, pré- requisitos, seriação, ordenação ou encadeamento linear. Tais idéias permanecem dominantes no cenário educacional em seus diversos níveis, e o modo excessivamente rígido com que, às vezes, são consideradas, encontra-se na raiz de grande parte dos números desconfortáveis associados à repetência ou à evasão escolar. Não se chega a considerá-las o que de fato são: meras componentes de uma imagem, entre outras. Conhecimento: linearidade De modo geral, a organização linear perpassa o conjunto das disciplinas escolares, em- bora seja especialmente aguda no caso da Matemática. Aqui, talvez em conseqüência de uma associação direta entre a linearidade e o formalismo, entendido como a organização dos con- teúdos curriculares sob a forma explícita ou disfarçada de teorias formais, parece certo e indis- cutível que existe uma ordem necessária para a apresentação dos diversos assuntos, sendo a ruptura da cadeia fatal para a aprendizagem. A característica mais marcante de tal organização é a fixação de uma cadeia linear de marcos temáticos que devem ser percorridos seqüencialmente, expressando passos necessá- rios no caminho do que se julga mais simples até o mais complexo. Se a cadeia for, digamos, 47ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica A ≥ B ≥ F ≥ G ≥ X ≥ S ≥ D ≥ ... , então a não-abordagem do tema G impossibilitaria o tratamento do tema X, retendo-se o aluno no ponto G até que o mesmo seja aprendido. Apesar de multi- plicarem-se os exemplos de casos em que, por exemplo, o conhecimento de S favoreceu o conhecimento de X, ou de que o conhecimento de X é possível sem o perfeito conhecimento de G, a linearidade, como um dogma, nunca parece ser posta em questão. Existem, obviamente, etapas necessárias a serem cumpridas antes que outras advenham: por exemplo, não se poder ensinar os algoritmos usuais das operações básicas a quem ainda não aprendeu a representar os números no sistema de numeração posicional. Entretanto, limitações desse tipo são excessivamente óbvias e claramente insuficientes para condicionar tão fortemente os programas, já aprisionados nas costumeiras seriações. Por exemplo, o fato de na quase totali- dade dos livros didáticos a demonstração do Teorema de Pitágoras utilizar-se da noção de Seme- lhança de Triângulos não significa, como se poderia pretender, que tal noção deve ser ensinada antes da apresentação do referido teorema. Na verdade, a própria noção de Semelhança pode ser apresentada ou motivada a partir do Teorema de Pitágoras, cuja demonstração pode ser apresen- tada de múltiplas formas, praticamente sem pré-requisitos formais. Quando se planeja o trabalho anual nas diversas disciplinas, é muito difícil escapar-se de determinações resultantes da pressuposição da existência de uma ordem linear necessária para a apresentação dos conteúdos, tanto no interior de cada disciplina quanto no estabelecimento de relações entre as diferentes disciplinas. É célebre uma querela desse tipo no relacionamento entre a Física e a Matemática nos vários níveis de ensino: sem ter estudado funções, não se poderia estudar cinemática; sem saber o que é derivada, não se poderia compreender a idéia de velocidade ou de reta tangente; sem a integral, não se poderia calcular áreas... etc. Afirma- ções como essas constituem sempre meias-verdades – ou meias-mentiras. Com igual pertinência, poder-se-ia afirmar, dependendo do contexto, que nunca compreenderá o significado da in- tegral quem não souber calcular áreas (ainda que de retângulos), nunca saberá o que é deriva- da quem não conhecer a noção de rapidez, de taxa de variação, ou de velocidade (ainda que constante). No caso específico das relações entre a Matemática e a Física, a questão da prece- dência do que deve ser ensinado assemelha-se bastante a uma outra de mesma estirpe que se pode formular com relação ao par ovo/galinha. Na verdade, é necessário refletir com mais vagar sobre tais ordenações, examinando criticamente sua contingência ou seu caráter necessário, que parece estar restrito a situações não muito numerosas, nem de longe justificando a rigidez das seriações e das retenções que são juradas em seu nome. Uma concepção de conhecimento em que tais cadeias lineares sejam substituídas, tanto nas relações interdisciplinares quanto no interior das diversas disciplinas, pela imagem meta- fórica de uma rede, de uma teia de significações, poderia, a nosso ver, contribuir decisivamen- te para a viabilização do necessário trabalho interdisciplinar. Conhecimento: a imagem da rede Esta nos parece ser a chave para a emergência, na escola ou na pesquisa, de um trabalho verdadeiramente interdisciplinar: a idéia de que conhecer é cada vez mais conhecer o signifi- cado, de que o significado de A constrói-se por meio das múltiplas relações que podem ser estabelecidas entre A e B, C, D, E, X, T, G, K, W, etc., estejam ou não as fontes de relações no âmbito da disciplina que se estuda. Insistimos: não se pode pretender conhecer A para, então, poder-se conhecer B ou C, ou X, ou Z, mas o conhecimento de A, a construção do significado de A faz-se a partir das relações que podem ser estabelecidas entre A e B, C, X, G, ... e o resto do mundo. Para que a imagem do conhecimento como uma rede de significações, apenas esboçada acima, possa ser mais aproximada de ações docentes como planejar ou avaliar, sublinharemos mais detidamente algumas características da referida imagem. O “acentrismo” é uma de suas características fundadoras: em outras palavras, redes de significações não têm um centro. Na verdade, as próprias redes informáticas, quando foram criadas, há cerca de 30 anos, visavam à construção de um sistema acentrado, onde as informações pudessem circular entre os diversos “nós” sem a necessidade de uma irradiação central. Como ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica50 para outro, que quer ser jornalista, a motivação pela Matemática, ainda que igualmente forte, deve ser de outra natureza. Mesmo um aluno que deseja ser, digamos, um poeta, pode ser adequadamente estimulado a estudar Matemática, mas certamente com argumentos diferen- tes dos utilizados com o futuro engenheiro. Na escola básica, portanto, nenhum conhecimento deveria justificar-se como um fim em si mesmo: as pessoas é que contam, com seus anseios, com a diversidade de seus projetos. E assim como um dado nunca se transforma em informação se não houver uma pessoa que se interesse por ele, que o interprete e lhe atribua um significado, todo o conhecimento do mundo não vale um tostão furado, se não estiver a serviço da inteligência, ou seja, dos proje- tos das pessoas. Naturalmente, tal afirmação não estabelece qualquer subordinação do conhecimento a uma aplicabilidade prática: a construção do conhecimento está relacionada à produção e à compreensão de significados muito mais do que à mera produção de bens materiais. Também não é o caso de se associar a linha direta entre os conhecimentos e os interesses das pessoas a uma superestimação do individualismo. A vacina contra isso é a idéia subjacente de que a finalidade precípua da Educação é a construção da cidadania, entendida como a construção de uma articulação permanente e consistente entre projetos individuais e coletivos. Conhecimento: a dimensão tácita O conhecimento apresenta outra característica importante, que põe em evidência sua ligação direta com as experiências pessoais: trata-se da imanência de sua dimensão tácita. De fato, cada um de nós sempre sabe muito mais sobre qualquer tema do que consegue explicitar em palavras. Em Personal Knowledge (1958), Polanyi expressou tal fato de modo representando o conhecimento pessoal como um grande iceberg: a parte emersa seria o que é passível de explicitação e o montante submerso corresponderia à dimensão tácita do conheci- mento, que sustenta o que é explícito ou explicitável. Um atleta, por exemplo, pode demons- trar uma extrema competência na realização de determinada prova, ainda que não consiga explicar em palavras as ações que realiza. Por razões análogas, um aluno pode conhecer um assunto e não ter um bom desempenho em uma prova. A relação entre o conhecimento focal, que se pode explicitar, e o conhecimento subsidi- ário, ou tácito, que subjaz em qualquer tema não é a mesma que existe entre o que se conhece conscientemente e o que se tem registrado, de alguma forma, no inconsciente, como bem registra Polanyi (1983): [...] é um erro identificar a consciência subsidiária com o inconsciente... O que torna uma consciência subsidiária é a função que ele preenche; ela pode ter qualquer grau de consciência, embora sua função seja a de apontar para o objeto em que focalizamos a atenção (p. 95). Apesar da distinção supra-referida, uma comparação entre os elementos do par consci- ente/inconsciente e a que subsiste entre o conhecimento tácito e o explícito pode ser esclarecedora da necessidade, da imanência da dimensão tácita. De fato, as ações de uma pessoa “normal” são continuamente motivadas tanto por elementos conscientes quanto por elementos inconscientes. A pretensão da plena consciência corresponderia a uma exacerbação do ego mais propriamente associada a uma patologia. A interação e a mescla de elementos conscientes e inconscientes, com os últimos sustentando os primeiros, constituem o natural fluir de uma existência ordinária. Analogamente, não seria razoável pretender-se que todo o conhecimento sobre qual- quer tema possa tornar-se focal, que seja explícito ou mesmo explicitável. O reconhecimento da necessária dimensão inconsciente dos processos psíquicos corresponde, pois, à consciência do papel fundamental desempenhado pelo conhecimento tácito na sustentação daquilo que é passível de explicitação. Os processos de avaliação centram as atenções, como não poderia deixar de ser, apenas na dimensão tácita do conhecimento. Normalmente, são examinados os conteúdos disciplina- res, expressos por meios lingüísticos ou lógico-matemáticos, permanecendo ao largo todas as 51ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica motivações inconscientes, todos os elementos subsidiários que necessariamente sustentam tais conteúdos. Ao pretender-se que todo conhecimento deve estar a serviço das pessoas, de seus proje- tos, de seus interesses como cidadãos, é fundamental, portanto, uma reconfiguração dos ins- trumentos de avaliação, buscando-se canais adequados para a emergência, em cada pessoa, do conhecimento tácito que subjaz. O deslocamento das atenções dos conteúdos disciplinares para as competências pessoais constitui um passo decisivo nesse sentido. Uma breve reflexão sobre o papel mediador das competências será realizada a seguir. A mediação das competências Numa sociedade em que o conhecimento transformou-se no principal fator de produ- ção, é natural que muitos conceitos transitem entre os universos da economia e da Educação. Idéias como as de qualidade, projeto e valor são exemplos importantes desse trânsito, bem como da cautela necessária para lidar com ele. Ilustremos, sucintamente, com alguns exemplos. A idéia de qualidade na empresa não significa o mesmo que na escola. Uma categoria- chave para a caracterização da qualidade na empresa é a de “cliente”, e um princípio a ser considerado é o de que o cliente deve sempre estar satisfeito, deve sempre ter razão. Na escola, a categoria “cliente” ocupa um papel secundário: o protagonista é o cidadão. Claro que o consumidor, ou o cliente, constitui uma dimensão da formação do cidadão, mas reduzir a idéia de cidadão à de mero consumidor é uma simplificação absolutamente inaceitável. Projetos e valores também apresentam características muito diversas, quando se referem aos universos das empresas ou das escolas. Entre um projeto empresarial e um projeto educativo as diferenças incluem principalmente a amplitude das variáveis e dos valores envolvidos. De modo geral, a mais complexa das empresas é mais simples, do ponto de vista dos projetos que a mobilizam, do que a mais simples das escolas. Ainda que a redução dos valores empresariais à dimensão econômica possa ser uma caricatura, ela não é mentirosa, e seguramente a questão dos valores no universo educacional é muito mais fecunda e abrangente. A palavra “competência” também comparece no discurso dos administradores da chama- da “economia do conhecimento”. Nesse contexto, não basta dispor de certa tecnologia para auferir lucros: é fundamental idealizar produtos que a utilizem adequadamente e que penetrem no mercado. A idéia de competência surge, então, como a de uma capacidade de transformar uma tecnologia conhecida em um produto suficientemente atraente para os consumidores. Trata-se de uma noção extremamente pragmática, que pode ser caracterizada, grosseiramente, como a colocação do conhecimento (tecnológico) a serviço de empresas ou de empreendedores, visando ao lucro. Também é interessante analisar o parentesco semântico existente entre as idéias de “com- petência” e de “competitividade”. A origem comum é o verbo “competir (com+petere)”, que originariamente, em latim, significava “buscar junto com, esforçar-se junto com, ou pedir jun- to com”. Apenas no latim tardio passou a prevalecer o significado de “disputar junto com”. Quando se disputa um bem material juntamente com alguém, é natural o caráter mutuamente exclusivo: para alguém ganhar, alguém deve perder. O mesmo não necessita ocorrer quando, por outro lado, o “bem” que se disputa, ou que se busca junto com alguém, é o conhecimento. Pode-se dar ou vender o conhecimento que se tem sem ter que ficar sem ele. Além disso, o conhecimento não é um bem fungível, não se gasta: quanto mais usamos, mais novo ele fica. Isso acarreta necessariamente uma ampliação no significado original da competição, no senti- do de se buscar junto com. No contexto educacional, mesmo mantendo o caráter de mediação, a idéia de compe- tência é muito mais abrangente e fecunda. No documento básico referente ao Exame Nacional do Ensino Médio, por exemplo, as competências são associadas a “modalidades estruturais da inteligência”, ou a “ações e operações que utilizamos para estabelecer relações com e entre objetos, situações, fenômenos e pessoas”. Tal caracterização pode ser imediatamente associada a idéias anteriormente mencionadas, conforme explicitaremos a seguir. Como já foi dito, o conhecimento é aqui caracterizado como uma rede de significações, onde os diversos nós/significados são construídos dualmente por meio de relações estabelecidas ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica52 entre eles. Além disso, também já se chamou a atenção para o fato de que todo conhecimento justifica-se apenas à medida que é mobilizado a serviço das pessoas. Assim, uma vez que não basta apenas o voluntarismo, ou uma declaração de intenções, abre-se a porta, naturalmente, para a emergência de um elemento mediador entre o conhecimento e a inteligência, para operacionalizar o deslocamento do foco das atenções das matérias, ou dos conteúdos discipli- nares, para a construção da cidadania, para as pessoas, com seus projetos. Algo análogo poder-se-ia dizer relativamente à necessidade de consideração do conhe- cimento tácito que subjaz a qualquer forma de explicitação: a grande questão é como promo- ver a emergência do tácito no explícito. Nos dois casos, a idéia de competência como mediação é esclarecedora e parece inteira- mente adequada. Tanto no que se refere à instrumentação da inteligência pelo conhecimento, quanto no enraizamento do conhecimento explícito no tácito que subjaz, as competências representam a potencialidade para a realização das intenções supra-referidas: articular os elementos dos pares conhecimento/inteligência e tácito/explícito. Os vestibulares, por exemplo, procuram avaliar o conhecimento explícito sobre as diver- sas disciplinas. Quando o que se busca é o desenvolvimento das potencialidades humanas, a construção da identidade pessoal e da cidadania, é natural que se procure reconhecer as mo- tivações mais radicais das questões usualmente formuladas nos âmbitos das disciplinas. É pos- sível, então, mapear um espectro de formas de manifestação de tais potencialidades, que po- dem ser denominadas habilidades. Uma análise de tais habilidades, por sua vez, pode revelar um “núcleo duro” das mesmas, um conjunto de capacidades fundamentais, que se irradiam pelas habilidades e se manifestam por meio dos conteúdos disciplinares: as competências são os elementos desse conjunto nuclear. Estimular e avaliar tal conjunto de competências é o que verdadeiramente importa: as disciplinas são instrumentos para atingir tal meta. Nesse sentido é que foram caracterizadas, sinteticamente, competências como a capacidade de expressão, tanto na língua materna quanto em diferentes linguagens, de compreensão de fenômenos, de resolução de problemas, de construção de argumentos para viabilizar uma interação comuni- cativa, de articulação entre o individual e o coletivo, por meio da elaboração de projetos/ propostas de intervenção na realidade. É importante salientar que as idéias de disciplina e de competência não disputam o mesmo espaço. Se, como já foi dito, o quadro de disciplinas representa um mapeamento do conhecimento em sua dimensão explícita ou explicitável, um espectro de competências como o anteriormente referido, além de situar-se no caminho da articulação entre o conhecimento e a inteligência, constitui uma tentativa de compreensão do modo como o conhecimento explícito enraiza-se no tácito. Tal enraizamento, fundamental para fomentar a emergência do conhecimento, tem o significado de uma inserção do conhecimento disci- plinar em um contexto mais amplo, em uma realidade plena de vivências, sendo propria- mente caracterizado como uma “contextuação”.* Síntese: da interdisciplinaridade à contextuação A insatisfação com a excessiva fragmentação a que o trabalho multidisciplinar tem con- duzido é responsável pelo aparente consenso em torno da necessidade da interdisciplinaridade. Entendida, no entanto, como mero incremento das relações entre as disciplinas, mantidos seus respectivos objetivos/objetos, e mantidas as relações determinadas pelo sistema que constitu- em, as ações interdisciplinares têm produzido efeitos apenas paliativos. Associada a esse fato, cresce a consciência da necessidade de organização do trabalho escolar em torno de objetivos que transcendam os limites e os objetos das diferentes discipli- nas, o que tem contribuído para situar no centro das atenções a idéia de transdisciplinaridade. No mesmo sentido, consolida-se a sensação de que o conhecimento precisa estar a servi- ço da inteligência, e a transdisciplinaridade passa a significar o deslocamento do foco das atenções dos conteúdos disciplinares para os projetos das pessoas. * Apesar de freqüente, a palavra “contextualização” não faz parte do léxico, que inclui contexto, contextuar e contextuação. 2 ARTICULAÇÃO DO ENEM COM AS ÁREAS DE CONHECIMENTO CONTEMPLADAS NA REFORMA DO ENSINO MÉDIO 57ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica 2.1 A área de Linguagens e Códigos e suas Tecnologias no Enem Zuleika de Felice Murrie Pressupostos da área Linguagens e Códigos Linguagem corporal, linguagem visual, linguagem verbal, lin- guagem literária, linguagem teatral, linguagem plástica, linguagem arquitetônica, linguagem digital. . . Código genético, código lingüístico, código poético, código icônico, código social, código morse, código de trânsito, código penal, código musical... Expressões de uso comum. Para completar, a atual legislação para o ensino médio declara que o currículo fica dividido em três áreas de conhecimento, uma delas Linguagens e Códigos. O que tudo isso significa? O que se entende por linguagem e código? Qual a relação entre eles? Como avaliar o desem- penho nessa área? A linguagem é um produto das ações humanas, a síntese das experiências, encontramo-nos mergulhados nas linguagens e seus có- digos. Dentro dos esquemas das linguagens, destaca-se a principal de- las, a linguagem verbal, a fala e a escrita. As palavras e suas relações carregam uma memória, conhecimentos acumulados historicamente e 61ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica 2.2 O Enem e os objetivos educacionais da área das Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias no ensino médio Luis Carlos de Menezes O ensino médio no Brasil tem revelado, há décadas, grave inadequação e anacronismo, demandando uma revisão profunda em sua concepção, capaz de torná-lo uma etapa escolar melhor estabelecida. Ou esse ensino apresentava-se como mera instância de passagem entre o ensino fundamental e o ensino superior, ou se constituía em especi- alização precoce, para uma atividade profissional estrita que, em tem- pos de mudanças rápidas, leva a rápido despreparo profissional. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 corretamente esta- beleceu o ensino médio como fase de conclusão da educação básica, como educação para a cidadania, que não se deve restringir a uma função estritamente propedêutica para o ensino superior nem a um simples treinamento profissional. Essa lei e sua regulamentação, estabelecida em 1998 por resolu- ção da Câmara de Ensino Básico do Conselho Nacional de Educação, definem que, pelo menos, três quartos dos conteúdos do aprendizado corresponderão a uma base nacional comum, fundada em ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica62 conhecimentos humanísticos e científicos e realizada em termos de saberes, atitudes, habilidades, competências e valores humanos, de sentido universal. Essa regulamentação preconiza a orga- nização das disciplinas em três grandes áreas, uma das quais a área das Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias. O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), em sua conceituação geral ou em sua formu- lação específica, tanto quanto os objetivos educacionais dos Parâmetros Curriculares Nacio- nais para o Ensino Médio foram propostos de forma consonante com aquela lei e com aquela regulamentação. Além disso, o Exame e os Parâmetros tiveram alguns elaboradores comuns. São, portanto, intencionais e construídas, não-incidentais ou eventuais, as convergências en- tre os objetivos de avaliação do Enem e os objetivos formativos dos Parâmetros. Na concepção e no desenvolvimento dos objetivos formativos da área das Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias, foi explicitamente levada em conta a interface com as duas outras áreas, a de Linguagens e Códigos e suas Tecnologias e a de Ciências Humanas e suas Tecnologias, como condição de realização de um projeto pedagógico para a escola de ensino médio que cumpra as metas formativas propostas para essa etapa escolar. Em outras palavras, o sentido de existência das áreas foi interpretado como uma primeira articulação interdisciplinar, precursora de uma necessária articulação entre as áreas. Assim como as disci- plinas têm especificidades, as áreas também têm objetivos específicos, mas, ao mesmo tempo, há objetivos delas que são convergentes ou mesmo comuns, convergência que deve ser consi- derada e reforçada no processo de ensino e aprendizagem. Isso não é simples exercício de retórica, mas sim intenção expressa em orientações precisas, no documento dos Parâmetros Curriculares correspondente à área das Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias (doravante identificado pela sigla PCN/CNM). Essa convergência entre disciplinas e entre as áreas é paralela à perspectiva interdisciplinar expressa pelo Enem. É possível ilustrar esse paralelismo, comparando o rol de competências e habilidades do Enem com o quadro-síntese de habilidades e competências daqueles parâmetros. Tal compara- ção será ainda melhor compreendida se for levado em conta que o PCN/CNM, além de apontar seus objetivos mais específicos, ou seja, “desenvolver a capacidade de questionar processos naturais e tecnológicos, identificando regularidades, apresentando interpretações e prevendo evoluções. Desenvolver o raciocínio e a capacidade de aprender”, também explicita a conver- gência de objetivos, ou as interfaces com as demais áreas, ou seja, “desenvolver a capacidade de comunicação” assim como “compreender e utilizar a ciência, como elemento de interpreta- ção e intervenção, e a tecnologia como conhecimento sistemático de sentido prático”. No que concerne a objetivos mais característicos das ciências da natureza e da matemá- tica, o quadro-síntese do PCN/CNM enuncia um objetivo geral, seguido de seu detalhamento: Desenvolver a capacidade de questionar processos naturais e tecnológicos, identificando regularidades, apresentando interpretações e prevendo evoluções. Desenvolver o raciocínio e a capacidade de aprender. Formular questões a partir de situações reais e compreender aquelas já enunciadas; Desenvolver modelos explicativos para sistemas tecnológicos e naturais; Utilizar instrumentos de medição e de cálculo; Procurar e sistematizar informações relevantes para a compreensão da situação-problema; Formular hipóteses e prever resultados; Elaborar estratégias de enfrentamento das questões; Interpretar e criticar resultados a partir de experimentos e demonstrações; Articular o conhecimento científico e tecnológico numa perspectiva interdisciplinar; Entender e aplicar métodos e procedimentos próprios das Ciências Naturais; Compreender o caráter aleatório e não determinístico dos fenômenos naturais e sociais e utilizar instrumentos adequados para medidas, determinação de amostras e cálculo de probabilidades; Fazer uso dos conhecimentos da Física, da Química e da Biologia para explicar o mundo natural e para planejar, executar e avaliar intervenções práticas; Aplicar as tecnologias associadas às Ciências Naturais na escola, no trabalho e em outros contextos relevantes para sua vida. É imediata sua comparação, por exemplo, com as competências II e III do Enem: Construir e aplicar conceitos das várias áreas do conhecimento para a compreensão de fenômenos natu- rais, de processos histórico-geográficos, da produção tecnológica e das manifestações artísticas. 65ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica 2.3 O Enem, as Ciências Humanas e suas Tecnologias Raul Borges Guimarães O mundo chega às vésperas de um novo século marcado por trans- formações econômicas, sociais e culturais sem precedentes na história. No Censo do ano 2000, que será realizado em quase todos os países, irá se confirmar uma situação inédita na história da humanida- de: a concentração da maior parte da população mundial nas cidades. O que isto pode significar para a vida do homem? De fato, a expansão da sociedade urbano-industrial está provo- cando mudanças nos padrões de produção e consumo em todo o mun- do, que estão associadas às questões ambientais na escala planetária, como o problema do aquecimento global, que tem exigido o estabele- cimento de uma agenda de discussões entre os países, um fato absolu- tamente novo na história. Vivemos em um mundo violento e perdemos a capacidade de nos indignar com isso. Antes das duas grandes guerras, havia um códi- go de ética na arte de guerrear. Não se atacava civis e respeitava-se o código de Haya. Talvez a explosão da bomba atômica em Hiroxima seja um emblema da ruptura desse código de ética. As cenas de violência circulam livremente pela televisão. Nossas crianças divertem-se com videogames que simulam as verdadeiras chacinas que estão ocorrendo ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica66 nas ruas. No dia-a-dia, somos submetidos a situações de violência de toda ordem e nos cala- mos, o que pode pôr em risco alguns valores muito preciosos ao homem. Nunca as desigualdades sociais foram tão acentuadas. Os três homens mais ricos do mun- do têm mais renda que 600 milhões de habitantes do planeta. Os Estados Unidos têm um número maior de computadores que todos os outros países e 91% dos usuários da Internet encontram-se nos 29 países mais ricos. Tais diferenças acentuam a força dos lugares na busca incessante da identidade, acirrando as questões das minorias étnicas e dos movimentos separa- tistas (Hobsbawm, 1995). Por outro lado, o ritmo frenético da inovação tecnológica tem produzido um meio téc- nico-científico no qual quase toda a economia mundial está imersa. O encurtamento das dis- tâncias por meio da diminuição do tempo de percurso aproxima os lugares, o que fortalece a idéia de comunidade global e o sentimento de ser cidadão do mundo. Os fatos políticos recen- tes de Timor Leste, por exemplo, foram acompanhados por uma rápida e eficiente rede de informações, desencadeando a indignação e a intervenção solidária. Todos esses aspectos assinalados estão produzindo efeitos evidentes na percepção e construção de concepções de tempo que coexistem e superpõem-se: o tempo do apito da fábrica, o tempo codificado na matriz genética gerada em laboratório, o tempo da vida cotidiana, o tempo da narrativa e da trama do romance ou do cinema. Talvez seja por isso que o professor Milton Santos chegou a definir o espaço como o acúmulo desigual de tem- pos (Santos, 1996). A compreensão dessa realidade multifacetada não tem sido uma tarefa fácil. As Ciências Humanas têm respondido a esse desafio constituindo-se numa espécie de filosofia da técnica e da linguagem técnica. Entendendo-se a tecnologia não apenas sob o ponto de vista da ciência aplicada ao processo produtivo, reconhece-se nela o sujeito, que não é um ser mudo, privado da palavra. Pelo contrário, qualquer tecnologia é impregnada de um discurso endereçado à alguém que se enquadra numa trama complexa e tensa com outros interlocutores, o que refor- ça a influência de forças sociais organizadas sobre o modo de apreensão desse discurso, no qual o sujeito tem um papel ativo (Bakhtin, 1997). Afinal, o meio técnico-científico guarda em si as experiências intersubjetivas e a comunicação de idéias, valores e formas de comportamen- to entre pessoas, quer seja nas tecnologias aplicadas a processos de obtenção e organização de informações (tratamento digital dos dados estatísticos, o geoprocessamento, as pesquisas de opinião) ou mesmo nas utilizadas no banco eletrônico, nas bibliotecas virtuais e em outras situações que permeiam a vida cotidiana . Os Parâmetros Curriculares do Ensino Médio apontam na direção de desmistificar o po- der da técnica e da informação, no sentido de evitar que se perca de vista o elo entre o criador e a criatura. Segundo o documento de referência desta política educacional, [...] as Ciências Humanas têm um importante papel na compreensão do significado das tecnologias para as sociedades. Apontam tanto os processos sociais que levam os homens a buscarem respostas e ferramentas para a resolução de problemas concretos, quanto avaliam o impacto que as tecnologias promovem sobre essas mesmas sociedades (MEC, 1999, p. 34). Isso exige familiaridade com os problemas e questões das Ciências Humanas, elementos funda- mentais para despertar a inquietação e, ao mesmo tempo, propiciar a segurança diante de novos conhecimentos no esforço de estabelecer a percepção das diferentes situações sociais em que os sujeitos estão inseridos. Em que medida o trabalho proposto na Reforma do Ensino Médio com as Ciências Hu- manas pode instrumentalizar ou não os jovens brasileiros para o enfrentamento desses desafi- os que a vida social instiga no sujeito? Num planeta cada vez mais urbanizado, a cultura jovem tornou-se a matriz de uma mudança cultural no sentido mais amplo. Cada um participa desse movimento a partir de vínculos que é capaz de estabelecer entre o campo cognitivo, o campo afetivo, o campo esté- tico e o campo ético. Desde muito cedo, os jovens estão expostos a esses desafios, que os colocam diante de questões que aparentemente não dizem respeito a eles ou que não os afetam diretamente, mas que dizem respeito ao posicionamento político de todo cidadão do mundo contemporâneo. 67ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica Por sua vez, sabe-se que a heterogeneidade de interesses e expectativas dos jovens é enorme. Vivendo a adolescência, eles apresentam-se abertos a novas experiências afetivas e emocionais, enfrentando e transgredindo os padrões de comportamento. Vivem um misto de euforia e de medo, criando “teorias a respeito do mundo” que ora são verdades inflexíveis, ora são tão passageiras quanto o gosto por alguma música da moda. Ao mesmo tempo, adotam uma atitude de introspecção diante de perguntas que não conseguem responder, procurando encontrar um novo equilíbrio entre o enorme poder explicativo de suas ferramentas da razão e as possibilidades de participação na vida social e afetiva, que também são ampliadas. O crescimento do ensino médio está trazendo para a escola milhares de jovens que, há pouco tempo, jamais teriam essa oportunidade. Esse fato nos alerta para uma questão muito importante: a “escola para a vida” não pode desconsiderar as situações de vida que esses novos alunos levam para a sala de aula, o que coloca no foco da discussão da Reforma do Ensino Médio a possibilidade concreta de transformar essas situações em conteúdos de estudo nas áreas de Ciências Humanas, desenvolvendo de forma criativa: a consciência de si mesmos e dos desafios que a natureza e a humanidade, em seus diferentes níveis de escala espaço-temporais, lhes outorga; o posicionamento crítico diante das responsabilidades sociais de cada um e da atuação do cidadão; uma maior flexibilidade de pontos de vista, no ato de olhar para o mundo ao seu redor, encontrando alternativas para a intervenção na realidade. O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) também propõe manter-se ligado ao reper- tório dos jovens do ensino médio, convergindo para uma mesma perspectiva de mudança. É por isso que o Enem procura avaliar os alunos concluintes do ensino médio no sentido da formação do cidadão crítico e ativo, convidando o jovem a assumir a atitude de questionamento, dúvida e curiosidade, para encontrar respostas às questões nucleadoras que envolvem a vida social e o patrimônio cultural que nos foi legado. Para tal, utiliza-se de três eixos organizadores na elaboração dos itens da prova: a contextualização, a situação-problema e a interdisciplinaridade. No que se refere a constextualização, o Enem tem como pressuposto que os conteúdos aprendidos devem estar a serviço da inteligência e do resgate dos sentidos e significados humanos presentes nos conteúdos escolares. Os conteúdos da área de Ciências Humanas esta- belecem a contextualização à medida que possibilitam o recorte espaço-temporal no qual os eventos sociais, econômicos, políticos ou culturais ganham sentido, refazendo as teias de rela- ções das nossas tradições e raízes culturais e da memória coletiva. Tal propósito procura aten- der a necessidade dos jovens em demonstrar o domínio de compreensão da realidade social, dando consistência ao seu posicionamento crítico. É o que se encontra expresso, por exemplo, nas Habilidades 20 e 21 da Matriz de Referência do Exame: 20. Comparar processos de formação socioeconômica, relacionando-os com seu contexto histórico e geográfico; 21. Dado um conjunto de informações sobre uma realidade histórico-geográfica, contextualizar e ordenar os eventos registrados, compreendendo a importância dos fatores sociais, econômicos, políticos ou culturais (Inep, 1999, p. 9). A situação-problema é o outro eixo estruturador do Enem. O exercício da problematização resgata a capacidade de inquietar-se, primeira condição para o movimento no sentido da aprendizagem significativa. Somam-se a ela, as capacidades de entender questões e de ade- quar-se e de fazer uso das condições oferecidas para a busca de respostas. Essa tríade começa a aproximar o ensino das necessidades de compreensão do real, presentes no ser humano. A inquietação promove o envolvimento, o entendimento de questões, a mobilidade do pensar, e, por fim, a adequação e uso das condições garantem o lançar-se em direção a conteúdos, pessoas, objetos, etc. No caso das Ciências Humanas, a situação-problema coloca-se quando as questões do Enem permitem desafiar os jovens a colocarem-se diante de um mundo complexo com todos 71ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica 3.1 Competência I Dominar a norma culta da Língua Portuguesa e fazer uso das linguagens matemática, artística e científica Maria Cecília Guedes Condeixa Zuleika de Felice Murrie Maria da Graça Bompastor Borges Dias Reginaldo Pinto de Carvalho Considerações gerais As diferentes linguagens evoluíram com diferentes áreas de co- nhecimento e são parte da cultura, em sentido amplo. As linguagens são utilizadas tanto na descrição de dados e informações, sendo seus instrumentos de registro, como são expressões de hipóteses, conceitos e teorias. Um novo conhecimento é criado com a produção de uma nova linguagem, modificando aquelas pré-existentes, conferindo no- vos significados a palavras, estabelecendo novos códigos. Também são portadoras de emoções, registros de vivências e expressões mais subje- tivas. Diversidade e transdisciplinaridade são características das lin- guagens, de modo geral. ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica72 A assimilação e a construção das linguagens faz-se por múltiplas aprendizagens ao lon- go da escolaridade, tornando-se crescentemente mais complexas, abrangentes e rigorosas. Tal aprendizagem envolve operações desde as mais fundamentais, tais como nomear, comparar, medir e identificar regularidades, até outras mais complicadas, como construir explicações, deduzir, analisar e concluir sobre das mais diversas situações e representações do mundo. Consideradas em conexão a diferentes campos do saber humano, o domínio das lingua- gens envolve a apreensão de códigos e símbolos, as distinções e as correlações entre texto e contexto, a confrontação de opiniões e o respeito à diversidade de manifestações culturais. Trata-se de aprendizagem concomitante à formação da própria identidade do sujeito que aprende e se desenvolve. Assim, a Competência I abarca desde a leitura e interpretação da língua materna e a compreensão dos princípios dos elementos gráficos ou geométricos, da quantificação e da estatística, até a estruturação das diversas linguagens científicas. Nesse campo, para a compre- ensão do alcance das teorias, é requisitada a distinção entre fatos, hipóteses e opiniões. As habilidades associadas à Competência I são necessárias às interpretações de dados ou de objetos de conhecimento associados à matemática, às ciências e às artes. Tais interpretações podem circunscrever-se ao âmbito de determinada ciência, como podem requerer o estabele- cimento de relações entre linguagens diferentes. À luz dessas considerações gerais, faremos breves comentários a respeito de cada habilidade a ela afim, destacando alguns modos pelos quais as habilidades relacionam-se a essa competência. Habilidades 1. Dada a descrição discursiva ou por ilustração de um experimento ou fenômeno, de natureza científica, tecnológica ou social, identificar variáveis relevantes e selecio- nar os instrumentos necessários para a realização ou a interpretação do mesmo. Desenhos, gráficos, esquemas e/ou textos que descrevem experimentos, situações reais e suas explicações ou hipóteses explicativas são registros que podem ser analisados e inter- pretados de diferentes formas, tais como a identificação, comparação e interpretação de variáveis. Indo mais além, pode-se propor intervenção, ou solução aos objetos em análise (experimento ou fenômeno), selecionando-se tecnologias ou instrumentos adequados. 2. Em um gráfico cartesiano de variável socieconômica ou técnico-científica, identifi- car e analisar valores das variáveis, intervalos de crescimento ou decréscimo e taxas de variação. A habilidade requer conhecimentos fundamentais de estatística, largamente empre- gados em várias situações do cotidiano ou das ciências. 3. Dada uma distribuição estatística de variável social, econômica, física, química ou biológica, traduzir e interpretar as informações disponíveis, ou reorganizá-las, objetivando interpolações ou extrapolações. A habilidade trabalha com os mesmos objetos de conhecimento da anterior, sendo proposto maior alcance e complexidade da análise. Para traduzir, interpretar ou reor- ganizar dados estatísticos são requisitados conceitos teóricos de determinada(s) ciência(s), o que supõe a apreensão mais subjetiva das linguagens que na habilidade anterior. Desse modo, também é possível selecionar e/ou justificar interpolações e extrapolações. 4. Dada uma situação-problema, apresentada em uma linguagem de determinada área do conhecimento, relacioná-la com sua formulação em outras linguagens ou vice-versa. Trabalha-se aqui a possibilidade de apresentar e interpretar uma mesma situação por meio de diferentes códigos de linguagem, tais como um gráfico ou tabela, um esque- ma, ou textos de diferentes naturezas, relacionados à literatura, às artes, às ciências ou ao cotidiano (quadrinhos, propaganda, etc.). 75ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica 3.2 Competência II Construir e aplicar conceitos das várias áreas do conhecimento para a compreensão de fenômenos naturais, de processos histórico-geográficos, da produção tecnológica e das manifestações artísticas Luis Carlos de Menezes Regina Cândida Ellero Gualtieri Raul Borges Guimarães Júlio César Foschini Lisboa Maria Regina Dubeaux Kawamura A educação básica tem estado centrada em procedimentos que privilegiam a memorização de fatos, a repetição de classificações e denominações específicas, a apreensão de conceitos e o uso de algoritmos padronizados. A Competência II, “da Compreensão”, ainda que solicite a construção de conceitos e sua aplicação para compreen- der fenômenos naturais e sociais, é, entre as cinco competências bási- cas do Enem, a que mais poderia lembrar essa ênfase cognitiva com finalidade propedêutica que vem caracterizando o ensino escolar. Dis- tancia-se, no entanto, dessa perspectiva, ao abranger habilidades, de ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica76 significado efetivo para a vida em sociedade, cujo sentido educacional valida-se por si só e, portanto, não se apresenta apenas em função de outros níveis escolares. O Exame, ao avaliar a Competência II por meio das habilidades a ela relacionadas, procu- ra verificar a capacidade de o aluno construir e aplicar um corpo de conceitos para alcançar e revelar a compreensão de um fato natural ou social, privilegiando aspectos universais do co- nhecimento científico e artístico, assim como as qualidades do aluno que interessam para o exercício da cidadania. Nesse sentido, convida-o a enfrentar situações reais, a participar de seu questionamento, a encontrar respostas para problemas realmente significativos. Esse caráter geral do exame pode ser percebido em toda a variedade das habilidades que contribuem para a avaliação da competência verificada. As habilidades 1 e 2 referem-se à interpretação de experimentos e fenômenos naturais ou sociais, para o que se espera o reconhecimento de variáveis relevantes, a determinação de seus valores, intervalos e taxas de variação. Mais até do que demonstrar familiaridade prévia com o assunto específico de que trata a situação proposta, é essencial a atitude diante do fato ou do experimento, pois se pretende conhecer, sobretudo, a capacidade de o aluno perceber quais os aspectos de importância e de quais meios deve lançar mão. Os meios e o conjunto de variáveis poderão estar explicitamente apresentados, de forma que o aluno será avaliado em sua capacidade de escolher os dados e os instrumentos necessários à sua obtenção ou de interpretar o comportamento matemático dessas variáveis, dispostas em gráfico cartesiano. As habilidades 7, 8, 9 e 17 tratam da utilização dos recursos naturais, de caráter mate- rial, como a água e os muitos minérios, ou de caráter especificamente energético, como o petróleo ou a hidroeletricidade, tendo em vista a compreensão, quantificação e qualificação da intervenção tecnológica, em seus aspectos econômicos e em suas repercussões ambientais. A presença dos conhecimentos disciplinares é articulada com um contexto integrador. O conhe- cimento do princípio da conservação da energia é mais do que um aprendizado específico da Física; a importância fundamental da água para a vida não é só conteúdo de Biologia; a ocorrência de minerais e a transformação de materiais não são tratadas do ponto de vista exclusivamente químico, pois podem incluir conceitos de Economia e Geografia, ou envolver processos históricos e aspectos éticos. As habilidades 10, 11, 12, 13 e 16 abrangem a compreensão de processos vitais dimensionados em diferentes escalas de tempo e de um ponto de vista sistêmico. Enfatizam a organização complexa da vida, seus mecanismos de controle e regulação, que visam à sua manutenção e reprodução, bem como os processos de transformação e evolução. Duas idéias centrais para a compreensão do fenômeno vital são privilegiadas. O caráter interdependente da vida, ou seja, a total dependência dos seres vivos com o meio físico e com outros seres vivos e a espetacular diversidade de formas encontradas no mundo vivo. Com isso, pretende-se destacar uma compreensão essencial quando se pensa na continuidade da vida no planeta que é a imprescindibilidade da manutenção dessa biodiversidade já que a eliminação de alguns elos do sistema põe em risco a sobrevivência de todo o sistema. Na avaliação dessas habilida- des, a análise da intervenção do ser humano e de suas tecnologias é valorizada, considerando aspectos sociais da relação entre ser humano e ambiente e evitando-se, de um lado, visões estritamente preservacionistas e, de outro, tratamentos disciplinares específicos. As habilidades 14 e 15 tratam da utilização de conceitos geométricos e estatísticos para a compreensão de processos reais e para intervenções práticas. Não é mero jogo de palavras insistir no fato de que se quer ver a utilização desses conceitos matemáticos para a compreen- são de processos reais e não a apresentação de processos reais como pretexto para verificar-se a compreensão desses conceitos matemáticos. Em outras palavras, a matemática efetivamente aprendida, não obstante seu sentido cultural próprio, revela sua força e sentido maiores quan- do se apresenta como instrumento do pensar a realidade. A percepção de simetrias essenciais em objetos, o cálculo de áreas e volumes, a compreensão do caráter aleatório de determinados eventos e, a partir disso, a capacidade de avaliar-se estatisticamente sua probabilidade, são só alguns exemplos do que se verifica nos itens correspondentes a essas habilidades. Evita-se verificar a memorização de dados ou o uso repetitivo de técnicas ou algoritmos, dando-se os elementos essenciais e esperando-se o procedimento adequado. As habilidades 6, 18, 20 e 21 envolvem a comparação de processos de formação social e econômica, assim como de manifestações etnoculturais e lingüísticas, e exigem o encadeamento 77ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica de idéias e conceitos que identifiquem e expliquem fatores histórico-geográficos relevantes. A dimensão política e cultural da vida social é escolhida como fio condutor central dessas habi- lidades, enquanto que, como instrumentos, elas demandam aprendizados adquiridos ao longo da vida escolar, como a leitura e a interpretação de textos, a generalização e a correlação de conceitos. Espera-se que esses instrumentos sejam mobilizados para elaborar sínteses, que re- conheçam, na cultura de distintos grupos sociais, assim como nas suas formas de expressão e representação, a afirmação do imaginário social produzido pelos povos. Isso também envolve valores humanos, pois tal reconhecimento implica o respeito à pluralidade cultural, à identi- dade coletiva e ao direito de autodeterminação. Em síntese, a verificação tradicional do aprendizado, geralmente, testa a retenção pelo aluno de determinados conceitos ou de sua capacidade de aplicação imediata e estrita deles. Procurando distanciar-se dessa tradição, para avaliar as habilidades associadas à Competência II, o Exame procura apresentar situações nas quais o conhecimento revele-se em contexto real, ultrapassando o domínio disciplinar e reduzindo a compartimentação que, freqüentemente, domina o âmbito do aprendizado escolar. Apresentam-se os elementos factuais ou mesmo teóricos de que o aluno possa necessitar para, a partir de um domínio conceitual básico, che- gar à compreensão e explicação de fenômeno ou processo natural, tecnológico e social ou de manifestação artístico-cultural. Tal intenção, na realidade, não é exclusiva dessa competência, mas é como se expressa na Competência II, um objetivo geral do Enem. ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica80 (pessoal, jurídico, ético, institucional), para isso. Por essa razão, é importante, no âmbito da Com- petência III, analisar o que chamam de competências transversais, principalmente nos termos em que elas comparecem no Enem. Trata-se de uma competência fundamental porque ninguém é poupado, nas lidas da vida, de tomar decisões e enfrentar situações-problema. Podemos ajudar, tentar substituir ou minimizar os esforços de uma pessoa ou grupo, mas não podemos (nem mesmo todas as tecnologias e próteses cirúrgicas, de hoje, podem fazê-lo plenamente) respirar, realizar movimentos, pensar, sofrer por elas. Por isso, nos termos de nossa perspectiva, não faz sentido opor – de forma bipolar e simples – competência e incompetência, como se a segunda fosse o contrário da primeira. Quanta competência há de ter ou desenvolver uma pessoa defici- ente, com dificuldades de locomoção, audição, com poucos recursos de raciocínio, para dar con- ta, mesmo que minimamente, de sua sobrevivência? Quanto falta para ser aprimorado ou aprofundado naqueles que julgam tudo saber e poder? Trata-se de uma característica complexa, pois tomar decisões e enfrentar situações-problema implica selecionar, escolher, julgar (e todas as outras habilidades que analisaremos daqui a pouco); implica coordenar perspectivas em um contexto pleno de oposições, tensões, aspectos positivos e negativos, multiplicidade de desejos, valores, ambivalências de todos os tipos e graus; implica correr riscos, perder e ganhar coisas sobre as quais nunca temos o controle das variáveis que as determinam, nem nunca compreende- mos os fatores que jogam a favor ou contra sua realização; implica aceitar “agir na urgência e decidir na incerteza” (Perrenoud, 1996), por mais que nos preparemos, antecipemos ou conheça- mos sobre o que é objeto de decisão ou enfrentamento; implica coordenar as dimensões afetiva, cognitiva, religiosa, política, cultural, etc. que caracterizam nossa humanidade, aceitando que esse esforço de integração haverá de conviver com tudo o que diferencia, opõe, degrada, disper- sa ou oferece alternativas, muitas vezes, iguais ou melhores dependendo da dimensão em que se analisa o problema. Mas, o objetivo deste trabalho é analisar, apenas, as competências transversais presentes nas habilidades que expressam a Competência III. Esta competência, como menciona- do, pretende avaliar como o aluno seleciona, organiza, relaciona e interpreta dados e informações representados de diferentes formas, para tomar decisões e enfrentar situações-problema. Os termos destacados em negrito serão objeto de reflexão. Habilidades Relacionadas à Competência III Habilidade 1 Dada a descrição discursiva ou por ilustração de um experimento ou fenômeno, de natureza científica, tecnológica ou social, “identificar” variáveis relevantes e “selecionar” os instrumentos necessários para realização ou interpretação do mesmo. Habilidade 2 Em um gráfico cartesiano de variável socioeconômica ou técnico-cien- tífica, “identificar” e “analisar” valores das variáveis, intervalos de cres- cimento ou decréscimo e taxas de variação. Habilidade 3 Dada uma distribuição estatística de variável social, econômica, físi- ca, química ou biológica, traduzir e interpretar as informações dispo- níveis, ou reorganizá-las, objetivando interpolações ou extrapolações. Habilidade 4 Dada uma situação-problema, apresentada em uma linguagem de determinada área de conhecimento, “relacioná-la” com sua formula- ção em outras linguagens ou vice-versa. Habilidade 7 “Identificar” e “caracterizar” a conservação e as transformações de energia em diferentes processos de sua geração e uso social, e “com- parar” diferentes recursos e opções energéticas. Habilidade 9 “Compreende” o significado e a importância da água e de seu ciclo para a manutenção da vida, em sua “relação” com condições socioambientais, sabendo “quantificar” variações de temperatura e mudanças de fase em processos naturais e de “intervenção” humana. 81ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica Habilidade 10 “Utilizar” e “interpretar” diferentes escalas de tempo para “situar” e “descrever” transformações na atmosfera, biosfera, hidrosfera e litosfera, origem e evolução da vida, variações populacionais e modificações no espaço geográfico. Habilidade 12 “Analisar” fatores socioeconômicos e ambientais associados ao de- senvolvimento, às condições de vida e saúde de populações humanas, por meio da “interpretação” de diferentes indicadores. Habilidade 14 Diante da diversidade de formas geométricas planas e espaciais, pre- sentes na natureza ou imaginadas, “caracterizá-las” por meio de pro- priedades, “relacionar” seus elementos, “calcular” comprimentos, áre- as ou volumes, e “utilizar” o conhecimento geométrico para “leitura”, “compreensão” e “ação” sobre a realidade. Habilidade 15 “Reconhecer” o caráter aleatório de fenômenos naturais ou não e “uti- lizar” em situações-problema processos de contagem, representação de freqüências relativas, construção de espaços amostrais, distribui- ção e cálculo de probabilidades. Habilidade 16 “Analisar”, de forma qualitativa ou quantitativa, situações-problema referentes a perturbações ambientais, identificando fonte, transporte e destino dos poluentes, “reconhecendo” suas transformações; “prever” efeitos nos ecossistemas e no sistema produtivo e “propor” formas de intervenção para reduzir e controlar os efeitos da poluição ambiental. Habilidade 17 Na obtenção e produção de materiais e de insumos energéticos, “iden- tificar” etapas, “calcular” rendimentos, taxas e índices, e “analisar” implicações sociais, econômicas e ambientais. Habilidade 19 “Confrontar” interpretações diversas de situações ou fatos de nature- za histórico-geográfica, técnico-científica, artístico-cultural ou do co- tidiano, “comparando” diferentes pontos de vista, “identificando” os pressupostos de cada interpretação e “analisando” a validade dos ar- gumentos utilizados. Habilidade 21 Dado um conjunto de informações sobre uma realidade histórico-ge- ográfica, “contextualizar” e “ordenar” os eventos registrados, “com- preendendo” a importância dos fatores sociais, econômicos, políticos ou culturais. Nesse texto, o termo competência transversal é usado no sentido proposto por Perrenoud (1999). Esse autor, ao definir o que é competência, começa descartando as três versões mais comuns: 1) a de que competências expressam objetivos de um ensino em termos de condutas ou práticas observáveis, 2) a de que competência seria algo invisível, a que se teria acesso apenas por desempenhos observáveis e 3) a de que competência seria “uma faculdade genérica, uma potencialidade de qualquer mente humana” (p. 20). Ao contrário, os termos valorizados por Perrenoud, para caracterizar competência, são principalmente os de tomada de decisão, mobilização de recursos e utilização de esquemas. Tomada de decisão no sentido de que competência refere- se ao julgamento ou interpretação, a partir de um conjunto de indicadores ou fatores presentes em uma determinada situação e que implicam uma decisão. Para isso, interessa mobilizar os recursos disponíveis para essa tomada de decisão. Tais recursos expressam a aplicação de esque- mas, no sentido analisado por Piaget. Esquemas que organizam (estruturam e realizam), pois presentificam (possibilitam a representação, a imaginação, a identificação, etc.) o que é objeto de consideração. Esquemas que processam, ou seja, organizam os procedimentos, meios ou recursos que realizam algo em favor de um objetivo ou propósito. Esquemas que compreendem, buscam ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica82 as razões, fundamentam, articulam ou estruturam, em diversos níveis, os elementos que caracte- rizam nosso saber. Mas essas competências (implicando tomadas de decisão, mobilização de re- cursos e de esquemas para sua realização) expressam-se, principalmente, nas situações-problema ou projetos que dão sentido à nossa vida, trabalho ou realizações. Perrenoud analisa diversos tipos de competências, em especial as que chama de compe- tências transversais e as disciplinares. As competências disciplinares correspondem ao que, no Enem, designamos por habilidades, ou seja, às diferentes situações relacionadas a disciplinas ou áreas de conhecimento em que se aplicam as cinco competências. As competências trans- versais correspondem ao conjunto de verbos destacados entre aspas e que estão presentes na descrição tanto nas competências quanto nas habilidades. Para justificar essa interpretação, é suficiente transcrever o seguinte trecho, de Perrenoud (1999): Para escrever programas escolares que visem explicitamente ao desenvolvimento de competências, pode- se tirar, de diversas práticas sociais, situações problemáticas das quais serão “extraídas” competências ditas transversais. Basta tentar o exercício por um instante e nota-se que o leque é muito amplo, para não dizer inesgotável. Para reduzi-la, para chegar a “listas” de razoável tamanho, procura-se “elevar o nível de abstração”, compor conjuntos muito grandes de situações. O que encontraremos, então? Em geral, as “características gerais da ação humana”, quer dependam do “agir comunicacional”, quer da ação técnica: ler, escrever, observar, comparar, calcular, antecipar, plane- jar, julgar, avaliar, decidir, comunicar, informar, explicar, argumentar, convencer, negociar, adaptar, ima- ginar, analisar, entender, etc. Para tornar comparáveis as mais diversas situações, basta “despojá-las de seu contexto”. Encontram-se, dessa forma, as características universais da ação humana, interativa, simbólica, não-programada e, portanto, objeto de decisões e de transações. Em um certo nível de abstração, pode-se defini-la “independentemente de seu conteúdo e contexto”. Assim, é perfeitamente possível e legítimo dar sentido a verbos como argumentar, prever ou analisar. Para analisar as competências transversais, que são avaliadas nas habilidades relaciona- das à Competência III, é possível agrupá-las da seguinte forma: Caracterizar, descrever, destacar, identificar, reconhecer, selecionar ou situar constituem o primeiro agrupamento de competências transversais. Caracterizam-se, de um modo geral, por um tipo de tomada de decisão ou pela mobilização de recursos que atribuem identidade a algo em um contexto dinâmico, aberto, em que outros fatores ou aspectos modificam-se no jogo das transformações do sistema ou do todo a que se referem. Essas competências implicam, pois, no contexto da tarefa solicitada, uma decisão sobre o que se relaciona ou pertence a certo objetivo ou meta a ser alcançada. São, por isso, indicadores ou sinais da presença de algo que queremos valorizar identificando, caracterizando, reconhecendo, selecionando ou destacando. Caracterizar Segundo o dicionário, caracterizar é “determinar o caráter de; assinalar, distinguir, indicar; descrever, notando as propriedades características; retratar, delinear ou representar um caráter”. 1 DICMAXI MICHAELIS PORTUGUÊS / Moderno Dicionário da Língua / Versão 1.0 / Fevereiro de 1998 / DTS Software do Brasil Ltda. 85ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica Relacionar (a mesma informação em diferentes linguagens) Segundo o dicionário, relacionar significa “fazer ou fornecer a relação de; arrolar, pôr em lista;/narrar, expor, descrever, referir;/comparar (coisas diferentes) para deduzir leis ou ana- logias;/fazer relações, conseguir amizades, travar conhecimento”. Sugere-se que ordenar, organizar e contextuar componham um terceiro agrupamento de competências transversais referentes à Competência III e às habilidades a ela relacionadas. Compreender Segundo o dicionário, compreender significa “conter em si, constar de; abranger;/estar incluído ou contido;/alcançar com a inteligência; entender;/perceber as intenções de;/esten- der a sua ação a;/dar o devido apreço”. Refletindo sobre os significados que o dicionário atribui aos termos organizar e ordenar, podemos concluir que ambos são formas de compreender-se um conjunto de coisas ou termos. Formas de compreensão porque implicam, na perspectiva do sujeito, coordenar perspectivas. Segundo Piaget, compreender significa, assim, estruturar algo de forma reversível (Macedo, 1997). Coordenar diferentes perspectivas é uma competência transversal fundamental. Do pon- to de vista corporal, por exemplo, supõe movimentar braços, pernas, tronco, cabeça, etc. de formas diferentes, em ritmos diferentes, articulados com a respiração, visão, etc. tudo isso em favor de um objetivo ou intenção. Significa poder considerar cada parte em si mesma com suas características, propriedades, formas de expressão e, ao mesmo tempo, as partes que lhe são complementares e o todo ou contexto de que fazem parte. Ocorre que, de ordinário, muitas vezes trabalhamos de modo indiferenciado, ou seja, confundimos tudo ao mesmo tempo. Ou- tras vezes, trabalhamos de modo justaposto, ou seja, em união ou integração dos termos que compõem o sistema realiza-se por contigüidade espacial ou temporal, ou os termos são postos juntos, mas não se coordenam de forma interdependente. Podemos, igualmente, ao invés de coordenar as perspectivas, realizar de modo sincrético, ou seja, reunir ou fundir os elementos dispersos, mas sem integrar. A terceira forma, que o desafio proposto em qualquer situação- problema, é a da diferenciação e integração. Contextuar Contextuar ou contextualizar significa “incluir ou intercalar em um texto”. Contexto significa o “encadeamento de idéias de um escrito, argumento ou composição”. Encadear significa “ligar com cadeia; acorrentar, prender;/coordenar (idéias, argumentos etc.); concatenar;/tirar a ação ou o movimento a; cativar, sujeitar;/atrair, ligar por afeto; afeiçoar;/formar série, ligar-se a outros;/fazer seguir na ordem natural.” Contextuar corresponde, como nas outras competências analisadas no presente agrupa- mento, a algo inclusivo, que liga, por exemplo, diferentes palavras e outros indicadores semânticos, compondo uma frase, parágrafo ou texto. O compromisso contextual está presente em todos os itens da prova do Enem. Deve estar presente, igualmente, em qualquer situação-problema, pois é o recorte ou o contexto em que se realizou que nos permite julgar o valor de uma tomada de decisão. Por intermédio do contexto, propomos os enunciados dos itens. O objetivo é propor um problema, tal que as informações mais importantes estão presentes no enunciado. Com isso, convida-se o aluno a focar-se no próprio texto do enunciado. É ali que as informações estão dadas. O convite é para que leia o enunciado com cuidado, que interprete o que está sendo proposto. Que coordene as idéias, os argumentos apresentados e que interprete a pergunta ou o desafio que o enunciado ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica86 faz. Além disso, propõe-se que o aluno articule, como um texto só, as diferentes respostas apresentadas como alternativas e decida sobre a que melhor corresponda. Em uma visão de sistema e em que o todo é tomado como regulador é importante que a situação-problema a ser investigada seja uma parte, um recorte, que expresse o todo ao qual se encaixa. Mas que, enquanto parte, tenha função de todo, ou seja, que crie um contexto para a tarefa a ser realizada. Aqui a questão é como escolher ou recortar, por exemplo, do conjunto dos conteúdos trabalhados em uma disciplina ou conjunto de disciplinas, ou área de conheci- mento, situações ou problemas que sejam significativos para o todo ao qual pertencem e que, como recorte, haverão de representar em um contexto de avaliação. O recorte, ao delimitar ou definir um problema, torna possível, ainda que como frag- mento de algo geral, observar ou avaliar, no espaço e no tempo de uma prova, que deve ser aplicada simultaneamente para milhares de pessoas e que não pode durar mais do que quatro horas, por exemplo. O contexto, como mencionado, define em uma situação-problema, o recorte, ou seja, o que a configura como algo problemático e que demanda uma tomada de posição (algo a resolver, no sentido de ser definido) e a mobilização dos recursos disponíveis para isso. O contexto, nesse sentido, representa o todo, pois o contexto – em seu sentido pleno – dispensa o recurso à memória, etc. O contexto atualiza, apresenta as informações relevantes a serem traduzidas em conhecimento e que são base para as tomadas de decisão. O contex- to oferece as alternativas e com isso abre o problema, no sentido, de que convida o sujeito a posicionar-se. Organizar ou Reorganizar (as informações) Organizar é criar, preparar e dispor convenientemente as partes de um organismo;/dis- por para funcionar; estabelecer com base;/constituir-se, formar-se; tomar organização defini- tiva;/arranjar, ordenar, preparar”. Ordenar Segundo o dicionário, entre outros significados, ordenar é “colocar(-se), dispor(-se) em ordem; organizar(-se);/dar ordem, determinar, mandar que se faça algo;/resolver, decidir-se a;/ aparelhar-se, dispor-se, preparar-se”. Ordenar, como competência transversal, supõe tomar decisões ou resolver um problema em sua perspectiva inclusiva. Ou seja, trata-se de definir a posição de um termo em relação aos demais. Diferente da lógica das classes, em que o termo é definido pelo que é, ou não é, comparativamente ao critério ou referência, na lógica das relações todos os termos estão in- cluídos, porque são definidos pelo lugar que ocupam em relação aos outros termos e ao crité- rio que organiza, isto é, dá sentido e direção ao posicionamento definido pela ordenação. Assim, se na lógica das classes a tarefa é reunir termos equivalentes entre si com respeito a um dado critério, na lógica das relações trata-se de organizar as diferenças (para mais, menos ou igual, por exemplo) que presidem as relações entre todos os termos, com respeito a um critério ou valor. Assim, na lógica das relações, que fundamenta as competências transversais analisa- das nesse agrupamento, um termo é e não é ao mesmo tempo, ou seja, é mais com referência a outro termo que, na dimensão escolhida, tem menos, e é menos com referência a outro termo maior. Sugere-se reunir, como um outro agrupamento, as competências transversais expressas nas ações de traduzir, interpretar, calcular ou demonstrar realizadas no contexto de uma tare- fa, qualificada como situação-problema. 87ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica Demonstrar (compreensão) Demonstrar, como explica o dicionário, é “provar com um raciocínio convincente;/descrever e explicar de maneira ordenada e pormenorizada, com auxílio de exemplos, espécimes ou experi- mentos;/indicar ou mostrar mediante sinais exteriores; manifestar;/dar(-se) a conhecer, revelar(-se)”. Interpretar Segundo o dicionário, interpretar, entre outros significados, é “aclarar, explicar o senti- do de;/tirar de (alguma coisa) uma indução ou presságio;/ajuizar da intenção, do sentido de;/ reproduzir ou exprimir a intenção ou o pensamento de.” Interpretar é dar sentido à experiência. Aprender a refletir em outro plano. Na perspec- tiva de Piaget, interpretar é o mesmo que assimilar, pois implica o trabalho de traduzir, em termos do sujeito, aspectos do objeto ou acontecimento que estão sendo objeto de assimila- ção. Interpretar é avaliar, isto é, atribuir um valor (de sobrevivência biológica, social, cultural, etc.) ao objeto de interpretação. A situação-problema recorta, organiza, destaca, etc., um aspecto da experiência e pro- põe uma reflexão sobre a experiência recortada. A situação-problema descreve como algo aconteceu. Apresenta o contexto, que encaixa e dá sentido e autonomia ao acontecimento. A interpretação questiona o porquê isso aconteceu. A interpretação apóia-se nos dados das experiências, nos indicadores ou sinais, que possibilitam a realização de inferências ou julga- mentos que a expressam. Interpretar é, também, uma forma de generalizar, no sentido de sair de algo particular e organizá-la como algo geral ou destacado do contexto. Como aconselha Raths (1976), “para desenvolver a habilidade de interpretar é necessá- rio ter muitos tipos de experiências e depois ter a prática para ver o sentido de tais experiên- cias”. Além disso, ele lembra que, “ao dar oportunidades para que as crianças façam interpreta- ções, o professor pode usar mapas, tabelas, gráficos e fotografias ... É importante lembrar que os dados apresentados na figura devem confirmar a interpretação.” Deve-se insistir na importância, ou mesmo a condição, para interpretar e observar-se bem o que é objeto de interpretação, destacar os indícios, sinais, indicadores a serem usados ou que serão base para o julgamento. Interpretar, assim, será sempre uma inferência ou conclusão auto- rizada pelos indicadores. Nesse sentido, a interpretação tem sempre uma base subjetiva, pois caracteriza uma tomada de decisão ou valor assumido por uma pessoa ou grupo. Daí a importân- cia de se definir os critérios ou regras para a interpretação, de se desenvolver controles mútuos, ou seja, de objetivar-se a interpretação. A situação-problema, por tudo o que já comentamos, é um tipo de tarefa muito interessante para o desenvolvimento dessa competência transversal. Para terminar, transcrevo mais um trecho, do texto de Raths (1976): A operação de interpretação refere-se a inferências e generalizações que podem ser feitas a partir de descrições. A interpretação não se limita a simples tradução; está mais próxima da descrição. Interpretar supõe acrescentar sentido, ler nas entrelinhas, preencher os vazios, e, dentro dos limites de determinado material, ampliar o seu conteúdo. Interpretar é compreender relatórios: numéricos, de figuras, gráficos, artísticos e literários. John Stuart Mill disse certa vez: “O grande problema da vida é fazer inferências.” É difícil imaginar que possamos viver um dia comum sem fazer interpretações a partir de dados. Às vezes, temos tendências para ultrapassar os dados, e alguns tendem a deformar os dados através de erros grosseiros. Outras vezes, podemos apresentar excesso de cautela, embora a cautela seja desejável. Não é pouco comum a incapacidade para interpolar e extrapolar, ver sentido íntimo e sentido ampliado, bem como as limitações dos dados e reconhecer quando se aplica a probabilidade. Basta dizer que aprender a correlacionar causa e efeito é uma importante habilidade de pensamento – mas uma habilidade que parece pouco acentuada nas práticas escolares. Traduzir (na linguagem ordinária) “Transladar, verter de uma língua para outra;/interpretar;/demonstrar, explicar, manifes- tar, revelar;/representar, simbolizar;/explanar, exprimir;/realizar (uma idéia, um pensamento)”. ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica90 vez mais disponíveis, aumentando de volume com velocidade impressionante. O mero acúmulo dos mesmos não conduz sequer ao aumento no nível ou na qualidade das informações de que se dispõe. Para falar-se propriamente em informação, é preciso haver alguém, uma pessoa, com interesses, com vontades. Uma informação é um dado interpretado, com significado para al- guém. Sem pessoas interessadas, um banco de dados pode tornar-se apenas um entulho. Analogamente, o mero acúmulo de informações não conduz ao conhecimento. Informa- ções são sempre efêmeras, fragmentárias, pouco articuladas, estando em permanente circulação. Se a palavra-chave automaticamente associada “a dados é banco”, no caso das informações, a palavra-chave é veículo. Jornais, revistas, TVs, livros são veículos de informação. Para a obtenção de informações a partir de um banco de dados, é necessária uma repre- sentação, uma organização adequada dos mesmos. Da mesma forma, para a construção do conhecimento, é preciso relacionar informações, interconectá-las, tecer teias de significações. A Competência III diz respeito bem diretamente a esses processos de mapeamentos de infor- mações tendo em vista o enfrentamento de situações-problema (“selecionar, organizar, relaci- onar, interpretar dados e informações representados de diferentes formas para tomar decisões e enfrentar situações-problema”). A Competência IV complementa os mesmos de modo decisi- vo ao referir-se diretamente à construção de argumentos. De fato, para a construção do conhecimento, é necessário articular, relacionar de múlti- plas formas as informações disponíveis. É preciso representá-las de modo conveniente tendo em vista a comunicação das idéias envolvidas. O conhecimento pressupõe um nível de conexão entre as idéias muito superior ao existente, usualmente, em um jornal ou em uma revista. As palavras-chave para a caracterização do conhecimento são compreensão e teoria, esta última palavra, em seu sentido mais nobre, relacionado com a capacidade de visão organizada. Co- nhecer é apreender, compreender o significado. E o significado constrói-se por meio de rela- ções estabelecidas de modo pertinente. Para tanto, ainda que as relações causais, ou do tipo “se, ... então” não bastem, a construção de argumentações é um elemento fundamental. Todo conhecimento, toda teoria, da mais informal, enraizada no senso comum, a mais formalizada teoria científica, pressupõe o desenvolvimento da capacidade de argumentar. No dia-a-dia ou na escola, é necessário articular idéias, ordenar o pensamento, procurar conven- cer-se e aos outros sobre a razoabilidade das conclusões ou das decisões. Na construção da cidadania, na articulação do compromisso entre os interesses e proje- tos pessoais e coletivos, a confiança na possibilidade de um acordo no discurso é verdadeira- mente crucial. E, como já lembrava Nietzsche, a maneira mais pérfida (e eficiente!) de combater uma causa é defendê-la intencionalmente com um péssimo argumento. A Competência IV e as habilidades correspondentes Como formas de manifestação de competências, de modo geral, todas as habilidades que envolvam a comparação entre diferentes pontos de vista, a exploração de informações, represen- tadas de diferentes formas, visando a extrapolações, o confronto de valorizações ou de perspec- tivas, a análise qualitativa ou quantitativa de situações-problema para fundamentar logicamente a tomada de decisões, relacionam-se, mediata ou imediatamente, com a Competência IV. Assim como todas as habilidades envolvem, de alguma forma, o domínio das linguagens (Competência I), ou a compreensão de fenômenos (competência II), sobre todos os temas ou situações é possível explorar a construção de argumentações. No rol das 21 habilidades, as que podem ser mais diretamente relacionadas com a competência IV são as seguintes: “3, 4, 5, 6, 8, 13, 14, 15, 19, 20, 21”. Entre essas, uma habilidade característica do núcleo da Competência IV é a de número 19: Confrontar interpretações diversas de situações ou fatos de natureza histórico-geográfica, técnico-cientí- fica, artístico-cultural ou do cotidiano, comparando diferentes pontos de vista, identificando os pressu- postos de cada interpretação e analisando a validade dos argumentos utilizados. De fato, em todos os âmbitos, vivemos, permanentemente, a necessidade de confrontar interpretações, de fatos ou situações vivenciadas por uma diversidade de pessoas ou de culturas. 91ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica A tolerância é o valor maior para viabilizar um diálogo fecundo, uma interação produtiva, uma compreensão mútua, uma fusão de horizontes. Mas a confiança na racionalidade do dis- curso, na ação que visa ao entendimento, passa, necessariamente, pelo discernimento na argu- mentação. É necessário transparência na escolha dos pressupostos que sustentam qualquer argumentação, na sinceridade, no diálogo, na solidariedade entre a lógica e a retórica. Como forma de manifestação da Competência IV, como exercício para a vivência da comparação de diferentes pontos de vista, todos, supostamente, bem fundamentados, a habi- lidade 19 parece extremamente fecunda para a produção de questões em diferentes contex- tos, em diferentes disciplinas. 95ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica As ações da Competência V podem ser acrescidas qualitativamente pelo aluno que demonstrar domínio da Habilidade 5 no tocante à capacida- de criativa e a compreensão da diversidade sociocultural, uma vez que os valores humanistas são bastante evidenciados na produção artística e literária. Habilidade 7 Identificar e caracterizar a conservação e as transformações de ener- gia em diferentes processos de sua geração e uso social, e comparar diferentes recursos e opções energéticas. A identificação e a comparação entre vários recursos e opções formam a etapa geradora e essencial de qualquer processo de criação de propostas. Habilidade 8 Analisar criticamente, de forma qualitativa ou quantitativa, as impli- cações ambientais, sociais e econômicas, dos processos de utilização dos recursos naturais, materiais ou energéticos. Complemento necessário ao processo engendrado na Habilidade 7, na medida em que a análise crítica permite reconhecer falhas e rejeitar ações executadas, levando à percepção de novos eventos e da elabora- ção de propostas que superem os problemas já revelados. Habilidade 9 Compreender o significado e a importância da água e de seu ciclo para a manutenção da vida, em sua relação com condições socioambientais, sabendo quantificar variações de temperatura e mudanças de fase em processos naturais e de intervenção humana. Esta habilidade remete à Competência V na medida em que é comple- mentar à Habilidade 8 pela importância que a utilização da água, como recurso natural cada vez mais crítico, vem assumindo nos dias atuais. A própria descrição da habilidade realça a importância, no estudo do ci- clo da água, das formas de intervenção humana e suas conseqüências. Habilidade 10 Utilizar e interpretar diferentes escalas de tempo para situar e descre- ver transformações na atmosfera, biosfera, hidrosfera e litosfera, ori- gem e evolução da vida, variações populacionais e modificações do espaço geográfico. A compreensão dos fenômenos físicos, químicos, biológicos e sociais numa perspectiva histórica e geológica é importante pela percepção de seu caráter cíclico, constituindo-se em valiosa fonte de informação para auxiliar a formulação de propostas de intervenção na realidade. Habilidade 11 Diante da diversidade da vida, analisar, do ponto de vista biológico, físico ou químico, padrões comuns nas estruturas e nos processos que garantem continuidade e a evolução dos seres vivos. Da mesma forma como a Habilidade 10 contribui com a Competência V por apresentar, em perspectiva histórica, fenômenos e processos e seu caráter cíclico, o domínio da Habilidade 11 nos permite reconhecer pa- drões comuns que permeiam as diferentes estruturas e processos que garantem a continuidade e evolução da vida, permitindo, à semelhança da Habilidade 3, extrapolações e a percepção desses padrões em estru- turas e processos superiores, facilitando a formulação de propostas mais abrangentes de intervenção na realidade. Habilidade 12 Analisar fatores socioeconômicos e ambientais associados ao desen- volvimento, às condições de vida e saúde das populações humanas, por meio da interpretação de diferentes indicadores. A importância da Habilidade 12 em relação à Competência V, refere-se aos processos já descritos para as Habilidades 7 e 8, mas que se revela ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica96 fundamental pela abrangência do seu conteúdo, ligado às grandes con- dições de melhoria da qualidade de vida como um todo. Habilidade 13 Compreender o caráter sistêmico do planeta e reconhecer a importân- cia da biodiversidade para preservação da vida, relacionando condi- ções do meio e intervenção humana. As mais variadas formas de vida, manifestadas em todos os níveis no sistema global, e a forma harmoniosa e interativa pela qual essa diver- sidade estrutura-se como uma unidade interdependente devem ser va- lorizadas. A consciência de que esse todo compõe um sistema perfeito, mas com ligações delicadas, sensíveis a mudanças graves, reforçam a percepção da necessidade de uma escolha criteriosa das formas de in- tervenção humana na realidade. Habilidade 14 Diante da diversidade de formas geométricas, planas e espaciais, pre- sentes na natureza ou imaginadas, caracterizá-las por meio de pro- priedades, relacionar seus elementos, calcular comprimentos, áreas ou volumes, e utilizar o conhecimento geométrico para leitura, compre- ensão e ação sobre a realidade. As ações práticas do cotidiano podem até dispensar o conhecimento geométrico, mas certamente a maioria dessas ações seriam simplificadas se este conhecimento fosse adotado e aplicado, principalmente se essa habilidade estiver a serviço da Competência V. Habilidade 16 Analisar, de forma qualitativa ou quantitativa, situações-problema referentes a perturbações ambientais, identificando fontes, transpor- te e destino dos poluentes, reconhecendo suas transformações; prever efeitos nos ecossistemas e no sistema produtivo e propor formas de intervenção para reduzir e controlar os efeitos da poluição ambiental. Esta, muito provavelmente, seja a habilidade-síntese do ideal alocado na Competência V, ou seja, elaborar propostas de intervenção na reali- dade para resolver problemas, no caso referentes à poluição. Habilidade 17 Na obtenção e produção de materiais e de insumos energéticos, iden- tificar etapas, calcular rendimentos, taxas e índices, e analisar impli- cações sociais, econômicas e ambientais. A Habilidade 17 pode ser considerada no mesmo contexto explicativo e temático das Habilidades 7, 8 e 16. Certamente é mais complexa que as duas primeiras e, ainda, mais densa que a última por abordar assuntos de maior amplitude. Habilidade 18 Valorizar a diversidade dos patrimônios etnoculturais e artísticos, iden- tificando-a nas suas manifestações e representações em diferentes sociedades, épocas e lugares. Também podemos inserir esta habilidade na mesma lógica da Habilida- de 5, mas é perceptível que ela permite uma maior consciência das ques- tões socioculturais e artísticas na medida em que ela é uma ampliação das temáticas da quinta habilidade. Habilidade 19 Confrontar interpretações diversas de situações ou fatos de natureza histórico-geográfica, técnico-científica, artístico-cultural ou do coti- diano, comparando diferentes pontos de vista, identificando os pres- supostos de cada interpretação, e analisando a validade dos argu- mentos utilizados. A confrontação e a análise de interpretações ou ações realizadas apre- sentam-se como o melhor exercício preparatório para a elaboração de 97ENEM – Fundamentação Teórico-Metodológica propostas de intervenção na realidade, por permitir que se aprenda, com a experiência alheia, ou até com os erros próprios e de outrem. Também poderíamos alocar essa habilidade como síntese da Competên- cia V, com a vantagem de possuir uma abrangência temática superior à unicidade da Habilidade 16 – poluição. Habilidade 20 Comparar processos de formação socioeconômica, relacionando-os com seu contexto histórico e geográfico. Ao realizar a comparação e a relação descritas nessa habilidade pode-se compreender as causas e conseqüências de eventos e processos ocorri- dos em épocas e lugares distintos e analisar o resultado de escolhas e intervenções então realizadas, aprimorando, dessa forma, a capacidade de decidir por melhores propostas de intervenção na realidade. Referências bibliográficas MEIRIEU, P. Aprender... Sim, mas como? Tradução de Vanise Pereira Dresch. Porto Alegre: Artmed, 1998. INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS. ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio): Documento Básico. Brasília: MEC/Inep, 1998. PERRENOUD, P. Construir as competências desde a escola. Tradução de Bruno Charles Magne. Porto Alegre: Artmed, 1999. . Avaliação entre duas lógicas: da excelência à regulação das aprendizagens. Tradu- ção de Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Artmed, 1999.
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