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Ópera do Malandro: análise do conceito de malandragem em Chico Buarque, Notas de estudo de História

Este trabalho tem como objetivo a análise do conceito de malandragem na Ópera do Malandro de Chico Buarque de Holanda em seus componentes histórico e literário. Em primeiro lugar, foi executado um levantamento do percurso da figura do malandro na sociedade brasileira, desde seu surgimento até a sua transformação na Era Vargas, utilizando-se estudos da Antropologia, Sociologia e Literatura. Passou-se, então, a um estudo da estrutura da obra, relacionando-a ao contexto histórico em que foi pr

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 17/02/2010

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tiago-xavier-4 🇧🇷

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Baixe Ópera do Malandro: análise do conceito de malandragem em Chico Buarque e outras Notas de estudo em PDF para História, somente na Docsity! UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE TIAGO XAVIER DOS SANTOS A ÓPERA DO MALANDRO COMO DOCUMENTO HISTÓRICO PARA ANÁLISE DO CONCEITO DE MALANDRAGEM EM CHICO BUARQUE SÃO PAULO 2009 TIAGO XAVIER DOS SANTOS A ÓPERA DO MALANDRO COMO DOCUMENTO HISTÓRICO PARA ANÁLISE DO CONCEITO DE MALANDRAGEM EM CHICO BUARQUE Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura – Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito para obtenção do título de Mestre Educação, Arte e História da Cultura. Orientador: Profª Drª. Maria Aparecida de Aquino SÃO PAULO 2009 DEDICO ESTE TRABALHO À MINHA ORIENTADORA, PROF.ª. MARIA APARECIDA DE AQUINO, POR TODO O APOIO E PACIÊNCIA. MUITO OBRIGADO! AGRADECIMENTOS Agradeço a todos que contribuíram direta ou indiretamente para esta realização, principalmente ao grande amigo Fernando Martins, que sempre tinha uma palavra de sabedoria para ajudar. Agradeço à minha esposa Beatriz, por toda a compreensão, pelo amor, pelo apoio, pelo carinho e pelas noites mal dormidas nessa fase em que o tempo livre se torna extremamente raro. Agradeço aos meus pais – Luiz e Eglair - por todas as oportunidades que me ofereceram durante minha vida. Agradeço à minha filha Ana Luiza, pelo sorriso de menina que me lança, dando significado todo especial à vida. RESUMO Este trabalho tem como objetivo a análise do conceito de malandragem na Ópera do Malandro de Chico Buarque de Holanda em seus componentes histórico e literário. Em primeiro lugar, foi executado um levantamento do percurso da figura do malandro na sociedade brasileira, desde seu surgimento até a sua transformação na Era Vargas, utilizando-se estudos da Antropologia, Sociologia e Literatura. Passou-se, então, a um estudo da estrutura da obra, relacionando-a ao contexto histórico em que foi produzida e às críticas que dirige a esse contexto. Por fim, foram selecionadas algumas canções que não fazem parte da Ópera do Malandro, mas são do cancioneiro do autor Chico Buarque, servindo como apoio documental para entender o conceito de malandragem presente em sua obra. Para efetuar esta análise, partiu-se do exame do texto verbal das canções em busca de significados que possam estar implícitos. Conclui-se que a análise desses elementos estruturais integrados permitiu elucidar aspectos do contexto histórico e da criação ficcional que não são explicitados pelo enredo da obra. Palavras – chave: Literatura. Música. Crítica literária. Malandragem. Chico Buarque. Malandro. 10 1 - INTRODUÇÃO A Ópera do Malandro como documento histórico para análise do conceito de malandragem em Chico Buarque de Holanda. “Eu fui fazer um samba em homenagem à nata da malandragem, que conheço de outros carnavais. Eu fui à Lapa e perdi a viagem, que aquela tal malandragem não existe mais.”. 1 A epígrafe, trecho da música Homenagem ao Malandro, de Chico Buarque de Holanda, é dotada de elementos importantes para que reflexões possam ser feitas sobre a malandragem enquanto tema. O compositor propõe um tributo a um personagem que, segundo sua constatação, “não existe mais” devido às transformações pelas quais o mesmo passou no decorrer do tempo. Tais modificações, averiguadas por Chico Buarque, podem ser examinadas ao se considerar a figura do malandro presente em letras de música e obras de dramaturgia e literatura. Uma análise da figura do malandro pode ser processada na musica popular brasileira, em compositores da década de 1920 e 1930. Podemos citar como exemplo Noel Rosa, poeta de grandes clássicos da música popular brasileira, que propõe retirar do título de malandro que é dado ao sambista qualquer aspecto que possa macular sua imagem, chamando-os de “rapaz folgado”. “Malandro é palavra derrotista que só serve pra tirar todo valor do sambista. Proponho ao povo civilizado não te chamar de malandro, e sim, de rapaz folgado.” 2 1 BUARQUE, Chico. Ópera do Malandro. Círculo do livro, SP. 1978. p.103. 2 ROSA, Noel. Rapaz Folgado. In: SongBook Noel Rosa. [S.I]: Lumiar Discos, [s.d], CD. 11 O malandro apresentado por Noel Rosa é um indivíduo interessado apenas em sua própria sobrevivência, que faz do bar o seu lar e seu “escritório”, como na canção Conversa de Botequim,3 que tem muitas dividas e vive de pequenos expedientes, como em Fita Amarela 4 e tem uma identidade particular, pois seus gestos e sua maneira de falar “não tem tradução” 5 para outros idiomas. O malandro de Noel usa de sua astúcia para conseguir o que deseja. Contrapondo ao perfil de rapaz folgado desenhado por Noel Rosa, podemos encontrar nas canções de compositores das décadas de 1940 em diante, caso do sambista Moreira da Silva, a configuração de outra face da malandragem associada à figura que usa de artifícios ilícitos para enganar os outros. Nas canções Bilhete Premiado 6 e O Conto da Mala,7 o malandro cantado por Moreira da Silva assume ares de contraventor ao promover um “Cassino de Malandro” 8 no fundo de um botequim. 3 Para orientar o leitor transcrevo a letra de Noel: “Seu garçom faça o favor de me trazer depressa / Uma boa média que não seja requentada / Um pão bem quente com manteiga à beça / Um guardanapo e um copo d'água bem gelada / Feche a porta da direita com muito cuidado / Que eu não estou disposto a ficar exposto ao sol / Vá perguntar ao seu freguês do lado / Qual foi o resultado do futebol / [...] / Vá pedir ao seu patrão / Uma caneta, um tinteiro, / Um envelope e um cartão, / Não se esqueça de me dar palitos / E um cigarro pra espantar mosquitos / Vá dizer ao charuteiro / Que me empreste umas revistas, / Um isqueiro e um cinzeiro / [...] / Telefone ao menos uma vez / Para três quatro quatro três três três / E ordene ao seu Osório / Que me mande um guarda-chuva / Aqui pro nosso escritório / Seu garçom me empresta algum dinheiro / Que eu deixei o meu com o bicheiro, / Vá dizer ao seu gerente / Que pendure esta despesa / No cabide ali em frente / [...]”. ROSA, Noel. Guiba. [S.l.]: Empowerment, [s.d.], CD. 4 Eis a Letra da canção Fita amarela: “Quando eu morrer, não quero choro, nem vela / Quero uma fita amarela gravada com o nome dela / [...] / Não tenho herdeiros, não possuo um só vintém / Eu vivi devendo a todos mas não paguei nada a ninguém / Quando eu morrer, não quero choro, nem vela / Quero uma fita amarela gravada com o nome dela / Quando eu morrer, não quero choro, nem vela / Quero uma fita amarela gravada com o nome dela / Meus inimigos que hoje falam mal de mim / Vão dizer que nunca viram uma pessoa tão boa assim/ [...]”. ROSA, Noel. Guiba. [S.l.]: Empowerment, [s.d.], CD. 5 Igualmente, transcrevo trecho da música Não tem tradução: “Tudo aquilo que o malandro pronuncia / Com voz macia é brasileiro, já passou de português”. ROSA, Noel. SongBook Noel Rosa. [S.l.]: Lumiar Discos, [s.d.], CD. 6 Eis a letra da canção Bilhete Premiado: “O moço, olha aqui / É que eu achei um bilhete / Parece que está premiado / Duzentos contos de réis / E ainda tenho mais dez / Para levar num hospital de aleijado / Eu vou com muito cuidado / E o senhor confira na lista / E guarde o dinheiro e o bilhete também / Eu tenho medo de ladrão / Me dê quinhentos do seu / Que é para a despesa / E pagar a pensão, alí do capitão / Ele mete a mão no bolso e tira a pelêga e me dá / Sem falar nada e quer ter razão / Se ficar consigo aquele indivíduo / É um bobalhão, mas veio em boa ocasião / E o vigarista sorrindo / Desaparece na esquina / E o otário fica satisfeito / Com aquela bolada de grupolina / Que tanto fascina / O dr. Budina Joaquina Valentina”. SILVA, Moreira da. O último malandro. Rio de Janeiro: EMI, 2003, CD. 7 Transcrevo trecho da letra: “O moço, eu tenho uma herança / Alí no banco em frente / No testamento pode ver / Não sei o que vou fazer / Tanto dinheiro / Vim da roça / Sou um fazendeiro, sou mineiro / E não conheço bem o Rio de Janeiro / Olhe esta procuração / Que eu lhe espero / Na Frei Caneca, na minha pensão / É bem de frente à detenção / Otário cansou de esperar / Partiu para a Frei Caneca / Bateu no portão / Veio atender o prontidão / Vim procurar prá entregar / Este dinheiro a João do 12 Essa metamorfose de rapaz folgado em criminoso ou contraventor possivelmente ocorre a partir da constituição brasileira de 1937, sob influência da política implantada por Getúlio Vargas. Tal constituição, no artigo 136 9, estabelece o trabalho como um “dever social” protegido pelo Estado. O estatuto legal condena a malandragem e deposita sobre o malandro a categoria de marginal. O Estado Novo passa a ser então o divisor de águas da posição que o malandro ocupa na sociedade. Os malandros descritos por Noel Rosa e por Moreira da Silva em suas canções são, em sua maioria, habitantes dos morros e das ruas cariocas, freqüentadores de botequins. O que os diferencia é justamente o aspecto do malandro narrado por Moreira, que aparece como contraventor e tem como modo de ganhar a vida o ato ilícito com intuito de lograr o próximo. Talvez o fato de Noel Rosa ter falecido em 1937 possa explicar a hipótese de que não tenha tido tempo para retratar em seus sambas as modificações que ocorriam na sociedade durante o governo de Getúlio Vargas, bem como as mudanças em relação à imagem do malandro. E são essas mudanças que envolvem as características da malandragem um dos temas da obra escrita por Chico Buarque de Holanda, a Ópera do Malandro, produzida em 1978. Uma peça de teatro que foi montada em um período - ainda que em processo de abertura política - em que o Brasil vivia sob a vigilância dos militares. Chico Buarque, por não ter a liberdade de criação que o permitisse criticar abertamente o regime, o fez das mais variadas formas. Para a Ópera do Malandro, Chico Buarque optou por um distanciamento épico, ou seja, outro período da história do nosso país é utilizado como pano de fundo temporal para sua trama, que se passa em meados da década de 1940, sob o governo de Getúlio Vargas. Aragão / Foi quem me deu a direção / Ô moço, é tapiação / O tal mineiro é um espertalhão / Mala vazia tal herança / Perca a esperança / Vá à polícia se queixar depressa / Me levaram na conversa”. SILVA, Moreira da. Moreira da Silva – MO“RINGO”EIRA [S.l.]: Continental, 1970, CD. 8 Da mesma forma em relação à música Cassino de malando: “Tenho um bom golpe, e no baralho / Conheço todos os cortes. Não admito / Que algum Vargulino vá lá no meu cassino /soltar o fricote – Eu pulo logo no cangote / Tenho bons parceiros, sempre cheios de dinheiro / No meu famoso cassino, lá também dá bom grã-fino./ Promovo a bebida, e no final da partida / O otário é quem perdeu, e quem ganhou tudo fui eu./ Tenho licença, faço e desfaço tudo com inteligência”. SILVA, Moreira da. Para sempre: Moreira da Silva. Rio de Janeiro: EMI, [s.d.], CD. 9 “Art.136 – O trabalho é um dever social. O trabalho intelectual, técnico e manual tem direito a proteção e solicitude especiais do Estado. A todos é garantido o direito de subsistir mediante o seu trabalho honesto e este, como meio de subsistência do indivíduo, constitui um bem que é dever do Estado proteger, assegurando-lhe condições favoráveis e meios de defesa”. BRASIL. Constituição Brasileira de 1937. Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/brasil/leisbr/1988/ 1937.htm>. Acesso em Março/2009. 15 Em Homenagem ao Malandro, 14 fala-se de uma malandragem profissional e das alternativas encontradas pela genuína malandragem, já que não mais havia espaço para eles. Se Eu Fosse Teu Patrão 15 refere-se às relações de exploração impostas aos menos favorecidos em uma estrutura capitalista. Teresinha 16 e O Casamento dos Pequenos Burgueses 17 tratam da dessacralização da mulher e do amor, além de tratar de um assunto sempre presente na peça - a hipocrisia existente na moralidade conservadora da burguesia. A Ópera trata daquilo que foi o malandro brasileiro ou no que essa malandragem se transformou após as modificações políticas que ocorreram no país. Desde o título, a obra de Chico Buarque nos traz entendimentos diversos quanto à construção da figura do malandro e sua transformação. Diversos são também os malandros que fazem parte da Ópera – encontramos, entre eles, o malandro tradicional, representado na figura de João Alegre, em seus trajes característicos: chapéu de lado, paletó branco, camisa de seda e sapatos bicolores. Sambista, autor fictício da peça, João alegre é um típico artista nacional que perde espaço em tempos de importação cultural. Na companhia de João Alegre, o público acompanha as mudanças sociais, culturais e 14 Apresento trecho da letra de Homenagem ao Malandro: “Agora já não é normal, o que dá de malandro regular profissional, malandro com o aparato de malandro oficial, malandro candidato a malandro federal, malandro com retrato na coluna social; malandro com contrato, com gravata e capital, que nunca se dá mal. Mas o malandro para valer, não espalha, aposentou a navalha, tem mulher e filho e tralha e tal. Dizem as más línguas que ele até trabalha, Mora lá longe chacoalha, no trem da central”. BUARQUE, Chico. Ópera do Malandro. Círculo do livro, SP. 1978. p.103-104. 15 Eis trecho da letra da canção Se eu Fosse Teu Patrão: “Quando tu quebrava, E tu desmontava, E tu não prestava mais não, Eu comprava outra, morena, Se eu fosse o teu patrão.” BUARQUE, Chico. Ópera do Malandro. Círculo do livro, SP. 1978. p.129-130. 16 A letra desta canção encontra-se na página 42 deste trabalho. 17 Eis a letra de O Casamento dos Pequenos Burgueses: “Ele faz o noivo correto / E ela faz que quase desmaia / Vão viver sob o mesmo teto / Até que a casa caia / Até que a casa caia / Ele é o empregado discreto / Ela engoma o seu colarinho / Vão viver sob o mesmo teto / Até explodir o ninho / Até explodir o ninho / Ele faz o macho irrequieto / E ela faz crianças de monte / Vão viver sob o mesmo teto / Até secar a fonte / Até secar a fonte / Ele é o funcionário completo / E ela aprende a fazer suspiros / Vão viver sob o mesmo teto / Até trocarem tiros / Até trocarem tiros / Ele tem um caso secreto / Ela diz que não sai dos trilhos / Vão viver sob o mesmo teto / Até casarem os filhos / Até casarem os filhos / Ele fala de cianureto / E ela sonha com formicida / Vão viver sob o mesmo teto / Até que alguém decida / Até que alguém decida / Ele tem um velho projeto / Ela tem um monte de estrias / Vão viver sob o mesmo teto / Até o fim dos dias / Até o fim dos dias / Ele às vezes cede um afeto / Ela só se despe no escuro / Vão viver sob o mesmo teto / Até um breve futuro / Até um breve futuro / Ela esquenta a papa do neto / E ele quase que fez fortuna / Vão viver sob o mesmo teto / Até que a morte os una / Até que a morte os una”. BUARQUE, Chico. Ópera do Malandro. Círculo do livro, SP. 1978. p.76-78. 16 econômicas que acabam por extinguir a tradicional malandragem, abrindo espaço para um novo malandro, não mais marginalizado nos recantos da Lapa, e sim, regularizado, profissionalizado, obedecendo aos moldes da moderna burocracia brasileira.18 Tematizar o malandro em uma peça dramática não é uma idéia original de Chico Buarque, e sim, uma relação intertextual com outras duas obras dramáticas - a “Ópera dos Mendigos” (1728), de John Gay e “Ópera dos Três Vinténs” (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. John Gay foi um poeta e dramaturgo nascido em 30 de junho 1685 na cidade de Barnstaple, ao sul da Inglaterra. Autor de várias peças teatrais, Gay tem o ápice de sua carreira com a Ópera dos Mendigos, talvez sua obra mais conhecida. Na época de sua primeira encenação, em janeiro de 1728, o teatro de Londres passava por modificações e experimentações em suas montagens. Embora os gêneros tradicionais não estivessem satisfazendo o público em geral, a atitude de John Gay, com a Ópera dos Mendigos, de misturar elementos de variados gêneros era vista como perversa: 19 “A nota introdutória do texto de John Gay, editada pelas publicações Dover, apresenta The Beggar’s Opera como uma das primeiras ballad operas inglesas e define ballad opera como sendo uma forma de ópera cômica desenvolvida durante o século XVIII, na qual o diálogo era intercalado com novas letras compostas para baladas familiares e músicas folclóricas” 20 Bertolt Brecht, poeta e dramaturgo alemão, nasceu em 10 de fevereiro de 1898, na cidade de Augsburg. Filho de um industrial católico com uma protestante, o dramaturgo nasceu em um período onde o imperialismo era a via que a Europa encontro para a expansão do capitalismo: “A Alemanha vivia um período de progressos econômicos, industriais e tecnológicos, em contrapartida, ocorria um crescimento 18 GARCIA, Valéria Cristina Gomes. A malandragem na construção da 'Ópera do malandro', de Chico Buarque: uma análise literária e musical. UNESP: Araraquara, 2007. p.09. 19 ARDAIS, Débora Amorim Garcia. Movimentos da escritura em John Gay, autor de Beggar’s Opera. UFRGS: Porto Alegre, 2008. p.18. 20 ARDAIS, Débora Amorim Garcia. Op.cit. 2008. p.18. 17 da classe trabalhadora e uma expansão do movimento socialista alemão. Nos primeiros anos do século XX estava estratificada, capitalista e, ao mesmo tempo, absolutista, hierárquica, comandada por uma administração burocrática. Sujeita a grandes tensões. Como não vivia em um Estado democrático, não havendo alívios na atividade política ou na participação do eleitorado, o teatro tornou-se a válvula de escape para as agitações, esperanças e descontentamentos dos alemães.” 21 Para Bertolt Brecht, o teatro não deve apenas oferecer meios de instrução acerca da realidade, mas sim, ter a função de despertar o encantamento pelo conhecimento e organizar no espectador sentimentos de prazer em relação à possibilidade de mudança da realidade. É com este pensamento que Brecht vai escrever a sua Ópera dos Três Vinténs. 22 A Tanto em Gay quanto em Brecht, a característica marcante do comportamento social é marcada pela corrupção do sistema público e do uso das instituições públicas para fins privados. O malandro é colocado então, em ambas as obras, não como um tipo social específico, mas representado por todos os indivíduos que agem de maneira corrupta, independente de sua origem social. Na Ópera do Malandro, este aspecto é tematizado pela figura do delegado Chaves, que usa a instituição pública para benefício particular seu e de seus “sócios”, Duran e Max Overseas. Encontramos, porém, um malandro especial em Chico Buarque, que é a representação do padrão do ser brasileiro, identificando uma maneira própria de ser nacional. Este é João Alegre, o malandro típico que é a metáfora do brasileiro em suas origens e que vai perder espaço devido às transformações a que será submetido. Para melhor compreender a intertextualidade entre estas três obras e também afim de obter um entendimento melhor do nosso objeto de estudo, devemos nos atentar para o século XVIII, período em que foi produzida a Ópera dos Mendigos, de John Gay. Esta obra foi encenada pela primeira vez em 1728, no Teatro Londrino Lincoln’s Inn Fields, representando a Londres do Século XVIII. De temática satírica, a Ópera dos Mendigos atinge a polícia e os políticos corruptos de sua época. O personagem 21 OLIVEIRA, Ana Paula Pedroso de. O Teatro de Brecht em dois Gestus de Helene Weigel. In: Revista Cena. UFRGS: Porto Alegre, 2006. p. 03. 22 OLIVEIRA, Ana Paula Pedroso de, op.cit. p. 03. 20 o campo da contravenção, maculando sua imagem por meio de características pré-rotuladas e vinculadas ao ‘mal’”27. Tanto a “Ópera do Malandro”, quanto a “Ópera dos Mendigos” e a “Ópera dos Três Vinténs” apresentam em seus títulos, em momentos históricos diferentes, uma crítica comum – ao misturar elementos relacionados à pobreza e à miséria com a palavra ópera, acabam criando um novo conceito sobre ópera. “Em oposição à palavra ópera está a caracterização que cada uma delas recebe nos três textos analisados. A começar pelo texto de John Gay, The Beggar’s Opera (Ópera do mendigo), a palavra mendigo que caracteriza a ópera do autor inglês denota um pedinte, alguém que para sobreviver necessita da ajuda de outras pessoas. A mesma relação de oposição entre a palavra ópera e a sua caracterização ocorre tanto no texto de Bertolt Brecht, Die Dreigroschenoper (Ópera dos três vinténs), como no de Chico Buarque, a Ópera do malandro. A caracterização de três vinténs aponta para algo reduzido, ou seja, simbolicamente destituído de quase todo valor. Por outro lado, a caracterização de malandro denota um sujeito que não trabalha porque não gosta e vive da astúcia e da lábia, recebendo também essa palavra – malandro - uma conotação negativa”.28 Este trabalho focará suas atenções na personagem de João Alegre que representa, além da figura de sambista e autor-fictício, uma parábola do percurso do malandro brasileiro. Este malandro, criado por Chico Buarque, apresenta uma diferença daqueles criados por Gay e por Brecht – João Alegre resume, em seu ethos, as características do povo brasileiro, desde o surgimento de sua identidade cultural até sua transformação causada pela força política e econômica do capitalismo nacional.29 Será seguindo a trajetória do personagem-autor que poderemos traçar a história do malandro 27 WILLEN, Franciscus. Trabalho e malandragem como repressão e transgressão nas canções da ‘Ópera do Malandro’ de Chico Buarque. PUC. São Paulo, 2003. p.71. 28 LEONE, Sueli Regina. Três óperas às avessas: elos intertextuais. Caderno de pós-graduação em Letras. Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, v. 3, n. 1, p. 14, 2004. 29 GARCIA, Valéria Cristina Gomes. A malandragem na construção da 'Ópera do malandro', de Chico Buarque: uma análise literária e musical. UNESP: Araraquara, 2007. p.11. 21 no Brasil, da sua origem à dissolução de sua figura e também sua institucionalização após as mudanças políticas, econômicas e culturais que ocorreram na sociedade brasileira a partir das décadas de 30 e 40. Para esclarecer a construção desse personagem na Ópera do Malandro, faz-se necessária uma análise da estrutura da obra e da construção de seus diferentes planos. A Ópera do Malandro se estrutura basicamente em três planos: o da realidade histórica em que foi produzida - não presente no corpo de seu texto; o da realidade histórica ficcional – no qual encontraremos o contexto do Governo Vargas, cenário onde se passa a trama da peça; e o plano da realidade escrita pelo autor-fictício, ou seja, a Ópera de João Alegra inserida na obra de Chico Buarque. Apesar de estes planos apresentarem-se claramente separados, eles se fundem e se interpenetram, tornando-se inerentes na construção de um significado único da obra. A análise da mistura destes três planos é fundamental para a compreensão das metáforas criadas por Chico Buarque e representadas pelo malandro sambista. Para que possamos deixar às claras a figura de João Alegre, é necessário que se faça um estudo do surgimento do malandro no Brasil. Para que essa análise seja possível, nos utilizaremos de várias obras que possam auxiliar-nos na compreensão da formação do povo brasileiro. Uma delas é Raízes do Brasil 30, de Sérgio Buarque de Holanda. Nesta obra, o historiador brasileiro analisa as condições que o território brasileiro oferecia para sua colonização e também o modelo escolhido para efetuá-la – uma conquista dentro dos padrões europeus, em um território extremamente desfavorável. Os moldes europeus impostos a um território mais vasto que todo o velho continente geram características que se tornarão fundamentais na formação do povo brasileiro. Uma destas características é a presença de um comportamento social marcado pelo predomínio dos interesses pessoais sobre os interesses públicos. Outra característica dessa nova nação brasileira é a ausência de uma unidade social, fazendo com que haja um relaxamento das forças institucionais. Dessa forma, a legalidade passa a ser pautada a partir dos privilégios pessoais. Somadas à escravidão negra, que trouxe para o Brasil uma grande parcela de sua população, tais características reforçam e contribuem para a formação de certos elementos do povo brasileiro, visto como um 30 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 22 povo que pauta suas ações baseados na malandragem. Em capítulo dedicado à figura do malandro, estudaremos a trajetória de sua construção de maneira mais detalhada. A Ópera do Malandro é uma obra dramático-musical, portanto, será avaliada aqui como uma obra da literatura brasileira. Para que possamos analisar as características do malandro e sua construção em nossa literatura, utilizaremos o ensaio Dialética da Malandragem, de Antônio Cândido.31 Este autor, ao fazer uma análise do personagem Leonardinho, da obra Memórias de um Sargento de Milícias de Manuel Antônio de Almeida, nos traz reflexões que nos permitem o estudo das diferenças entre o pícaro espanhol e o malandro brasileiro. O pícaro é um personagem astuto, ardiloso, esperto e sagaz, presente nas novelas picarescas espanholas. O gênero picaresco tem sua estréia em 1554, com a obra Lazarillo de Tormes, novela espanhola anônima escrita em primeira pessoa em estilo epistolar (como uma longa carta). A obra conta a história de Lázaro de Tormes, desde seu nascimento e mísera infância até seu casamento, na idade adulta. É considerada precursora da novela picaresca por elementos como o realismo, a narrativa em primeira pessoa e o teor moralizante e pessimista. Lazarillo de Tormes é um esboço irônico e cruel da sociedade espanhola no século XVI, que mostra as suas falhas e atitudes hipócritas, especialmente de clérigos religiosos. O gênero picaresco atinge sua plena definição com a novela Gusmán de Alfarache, escrita por Mateo Alemán em duas partes: a primeira em Madrid em 1599 com o título Primeira parte do Guzman Alfarache, e a segunda em Lisboa, em 1604, intitulado Segunda parte da vida de Guzman Alfarache, perspectiva da vida humana. O livro relata as aventuras de um jovem pícaro, de caráter autobiográfico, uma vez que chegou a meia-idade. Por esta razão, o livro contém partes iguais de aventuras picarescas e comentários moralizantes do narrador, já adulto, que reprova sua vida passada. O Gusmán de Alfarache, deste modo, é concebido desde o prólogo como um extenso sermão doutrinal dirigido a uma sociedade pecadora, e foi recebido como tal por seus contemporâneos e, portanto, é uma mistura entre um romance e um divertido discurso moral.32 31 CÂNDIDO, Antônio. Dialética da malandragem (Caracterização das memórias de um sargento de Milícias). In: ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. São Paulo: Círculo do Livro, 1988. 32 PALMA-FERREIRA, João. Do Pícaro na Literatura Portuguesa, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, col. Biblioteca Breve, 1ª edição, 1981. 25 E o malandro, com sua maneira própria de agir e falar, é um habitante que integra esta influência que o Rio exerce sobre o restante do país. Sobre o modo de falar e a identidade do carioca, o artigo de Mônica Pimenta Velloso é de grande valia para o entendimento destas questões, retratadas, por exemplo, no samba Não Tem Tradução, composto por Noel Rosa em 1933. Nesta música, Noel defende o samba e a língua portuguesa, criticando a chegada do cinema falado ao Rio de Janeiro em 1929, que acabou introduzindo estrangeirismos ao linguajar cotidiano do brasileiro. Noel defende apaixonadamente o poder transformador do samba e a maneira de falar das pessoas simples quando diz que “a gíria que o nosso morro criou, bem cedo a cidade aceitou e usou” ou valorizando a linguagem popular como fala própria do que é ser brasileiro, transcendendo a língua portuguesa. “Tudo aquilo que o malandro pronuncia, com voz macia, é brasileiro, já passou de Português”. 40 Esta passagem de Não Tem Tradução demonstra a importância cultural da figura do malandro no início do século XX, no Brasil, já que o malandro é compositor de sambas, artista popular que movimentará o cenário cultural da cidade do Rio de Janeiro. Sua figura transita pelas diferentes classes sociais e sua voz se faz ouvir através do samba, que deixa de ser uma manifestação artística praticada apenas nos morros e subúrbios e passa a ser veiculado pela indústria fonográfica, em 1917, e pela indústria radiofônica, em 1932. O malandro sambista passa então por um processo de profissionalização, e sua arte passa a ser destinada à gravação de discos e à divulgação nos programas de rádio. Se por um lado, o morro ganha voz dentro de uma produção comercial que passa a ser consumida até mesmo pelas classes mais abastadas, por outro o malandro perde muitos de seus laços com o campo social a que sempre foi integrado, pois sua profissionalização exige que os músicos populares individualizem seu processo de composição em detrimento das composições que outrora ocorriam em âmbito coletivo, para que possa ser captado como força de trabalho musical.41 Se antes a música era composta por um grupo que se sentava em torno da mesa de um bar e cada 40 ROSA, Noel. Não Tem Tradução. In: SongBook Noel Rosa. [S.I]: Lumiar Discos, [s.d], CD. 41 SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. 2 ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. p.32. 26 um dos integrantes podia oferecer seu palpite, agora, após a veiculação musical no rádio e na gravação de discos, o processo de composição tornou-se individualizado. Nas rodas de samba, o malandro visita a alta sociedade e é visitado por ela, já que a atividade de músico lhe oferece a possibilidade de que sua arte seja apreciada por classes sociais mais abastadas. A figura do malandro sambista do começo do século XX e suas ações, sua produção musical e por onde ele transita, são aspectos de extrema importância na nossa análise, já que na Ópera do Malandro está presente a referência ao artista nacional, representado na peça por João Alegre, que a cada dia passa a ser mais desvalorizado devido à maciça importação cultural, principalmente advinda dos Estados Unidos. O dicionário define malandragem como uma súcia de malandros, ou como a qualidade, o comportamento e a psicologia do malandro.42 Se formos buscar a origem etimológica da palavra, malandragem, provavelmente, tem sua origem no termo italiano malandrim, que significa vadio ou gatuno. A incorporação do vocábulo à língua portuguesa tem registros no século XIX, com sentido de corja de malandros, que abusa da confiança alheia.43 Uma pergunta então se faz presente, de maneira insidiosa: o que é um malandro? Se buscarmos a resposta no mesmo dicionário, temos por malandro o sujeito que abusa da confiança dos outros, ou que não trabalha e vive de sua astúcia, de suas artimanhas, um indivíduo preguiçoso, mandrião ou mesmo um sujeito esperto e astuto. A palavra malandro é carregada de significados e funda-se na astúcia e nas artimanhas de alguém que causa avaria moral e financeira, enganando outras pessoas. Estes prejuízos, vistos do ponto de vista legal, podem ser considerados atos lesivos leves – por exemplo, a sedução de uma mulher através de sua astúcia, para dela conseguir favores amorosos ou sexuais - ou graves – alcançados por prática de crime. Por crime, entende-se “ação ou omissão ilícita culpável, tipificada em norma penal, que ofende valor social preponderante em determinada circunstância histórica.” 44 Os juristas brasileiros diferenciam crime e contravenção apenas por grau quantitativo, não 42 HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Nova Fronteira, p. 869. 43 CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 78 e 711 44 ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário Jurídico Brasileiro Acquaviva. São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 1993, p. 393. 27 colocando distinções em sua natureza, já que ambos são manifestações do ilícito, sujeito a sanções penais.45 Logo, a contravenção, tipificada em lei, é menos grave que o crime, o que faz com que a punição seja mais branda. Aqueles que fazem elogios à malandragem a definem como uma forma de defesa que os menos favorecidos estabelecem contra sociedades estratificadas que impedem, de diferentes maneiras, a ascensão social entre as classes. Buscar essa elevação social e conquistar prestígio perante a sociedade parece ser um dos objetivos do malandro. E isto pode ser verificado em vários textos da música e da literatura brasileira. Na representação ficcional, a malandragem é conceituada como uma estratégia para atingir estes objetivos. Apenas para fazer referência a algumas obras dramáticas que retratam personagens com características malandras, já que estas obras não fazem parte do corpus deste trabalho, vale citar como exemplo várias peças teatrais brasileiras: A vingança da cigana (1794), de Caldas Barbosa; O Noviço (1845) e Comédia- sem título (1847) de Martins Pena; O primo da Califórnia (1855) e Torre em concurso (1862) de Joaquim Manuel de Macedo; O demônio familiar (1857) de José de Alencar; Ingleses na costa (1864), O tipo brasileiro (1872) e Como se fazia um deputado (1882) de França Júnior; Capital Federal (1892) de Artur Azevedo; O simpático Jeremias (1918) de Gastão Trojero; Fogo de vista (1923) de Coelho Neto; O rei da vela (1937) de Oswald de Andrade; Bonito como um Deus (1955) de Millôr Fernandes; Gimba (1959) de Gianfrancesco Guarnieri; Boca de Ouro (1959) de Nelson Rodrigues; O santo e a porca (1958), A farsa da boa preguiça (1960) e Auto da compadecida (1965) de Ariano Suassuna. Estas obras, apesar de não serem objetos de nosso estudo, são de fundamental importância para a compreensão do que é o malandro e a malandragem. É possível observar nestes textos dramáticos que o malandro sempre viveu marginalizado na sociedade, disfarçado em inúmeros tipos, com seus traços de sedução, astúcia e crime, golpista, caça-dotes e contraventor.46 45 ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário Jurídico Brasileiro Acquaviva. São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 1993, p. 381. 46 JÚNIOR, Gilberto Rateke. Artes, manhas e artimanhas do malandro na literatura dramática brasileira: astúcia, sedução e criminalidade em O Noviço e Ópera do malandro. UFSC: Florianópolis, 2006. 30 2 – AS MALANDRAGENS PRESENTES NA ÓPERA DO MALANDRO. Etimologicamente, ‘representação’ provém da forma latina ‘repraesentare’49 – fazer presente ou apresentar de novo. Fazer presente alguém ou alguma coisa ausente, inclusive uma idéia, por intermédio da presença de um objeto. Como em uma peça teatral, onde a função dos atores no palco é representar uma personagem, fazer presente no tablado algo ou alguém que só existe devido à criatividade do autor da peça e à competência do ator em representá-lo, em torná-lo presente. Não significa que a personagem de uma peça realmente exista. Porém, ela representa uma existência que é plausível dentro da realidade histórica em que a peça está inserida: "A ficção do teatro não visa a reproduzir uma situação do “real”, mas pretende extrair, através da ilusão que ela postula e desmente ao mesmo tempo, os próprios procedimentos pelos quais, contraditoriamente, o social é construído." 50 Ainda em Chartier, vemos que a representação é o produto do resultado de uma prática, já que a literatura, a música, a pintura e qualquer linguagem de manifestação artística representam uma realidade e estas são produtos da ação de seus autores: 51 “A literatura, por exemplo, é representação, porque é o produto de uma prática simbólica que se transforma em outras representações. O mesmo serve para as artes plásticas, que são representação porque são produtos de uma prática simbólica. Então, um fato nunca é o fato. Seja qual for o discurso ou o meio, o que temos é a representação do fato. A representação é uma referência e temos que nos aproximar dela, para nos aproximarmos do fato. A 49 CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 923 50 CHARTIER, Roger. Formas e sentido. Cultura escrita: entre a distinção e apropriação. Campinas, SP: Mercado de Letras; Associação de Leitura do Brasil (ALB), 2003. – (Coleção Histórias de Leitura). p.25. 51 CHARTIER, Roger. A História Hoje: dúvidas, desafios, propostas. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.13, 1990, p.108. 31 representação do real, ou o imaginário é, em si, elemento de transformação do real e de atribuição de sentido ao mundo”.52 Tomar a “Ópera do Malandro” como uma produção artística que é o retrato de seu tempo será uma grande preocupação neste trabalho. Saber exatamente de que lugar social e cultural e de que tempo histórico se escreve. Michel de Certeau aborda esta questão na obra A Escrita da História. No capítulo As produções de um lugar, o pesquisador francês explica a importância de compreender o espaço social de onde se compõe uma obra: “Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção sócio-econômico, político e cultural. Implica um meio de elaboração que circunscrito por determinações próprias: uma profissão liberal, um posto de observação ou de ensino, uma categoria de letrados, etc. Ela está, pois, submetida a imposições, ligada a privilégios, enraizada em uma particularidade”. 53 Chico Buarque é um homem de seu tempo e, portanto, seu discurso e sua obra estarão impregnados das marcas do momento histórico em que viveu. Chico Buarque não nasceu pronto: o artista Chico Buarque. Ele se fez Chico Buarque a partir dos elementos sociais que o cercavam, e sua produção artística não foge a isto. Antes de iniciarmos uma análise da obra dramática de Chico Buarque, é interessante fazermos um levantamento crítico de alguns elementos presentes no conceito de dramaturgia de Bertolt Brecht, já que a Ópera dos Três Vinténs influencia de forma direta a construção estética e até mesmo temática da Ópera do Malandro. Brecht tinha como preocupação a linguagem teatral e sua inovação. Em seu teatro, podemos notar um empenho em romper com o arrebatamento emocional que o texto teatral causa no espectador, afastando-o da realidade social e conduzindo-o a uma realidade idealizada, tornando-o passivo, apático e alienado. Para Brecht, os valores burgueses e sua maneira de fazer teatro são os principais responsáveis pelo 52 MAKOWIECKY, Sandra. Representação: a palavra, a idéia, a coisa. Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas. dez. 2003, no.57, p.01-25. ISSN 1678-7730. 53 CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 66-77. 32 distanciamento que há entre o público e sua realidade social. Buscando uma linguagem que rescinda com as características do teatro tradicional, Brecht rompe com tudo que já havia sido produzido. Essa ânsia por uma nova linguagem exige que o teatro seja visto como teatro, ou seja, como uma representação crítica da realidade, e não uma nova realidade idealizada que hipnotize o público e o afaste de um possível posicionamento crítico. Para Brecht, o teatro não deveria ser visto como uma realidade própria, e sim, uma representação crítica da realidade, podendo levar o espectador ao pensamento crítico em relação a sua sociedade, representada no texto dramático. Para tornar possível este objetivo, muitas são as técnicas que podem ser utilizadas. Uma delas é a parábase, encontrada no teatro da Grécia clássica, quando os atores, durante o intervalo entre a encenação dos atos, retiravam suas máscaras e faziam discursos ao público referentes à política ou explicavam a peça enaltecendo as qualidades do autor. Outra técnica é o uso de uma linguagem mais popular, apesar de encontrarmos obras de Brecht, como A Irresistível Ascensão de Arturo Ui, compostas em versos amplos e uma linguagem muito próxima da shakespeariana. No entanto, há um distanciamento posto entre o espectador e a realidade idealizada no palco, uma vez que a linguagem nobre da peça refere-se sempre à marginalidade, construindo uma ironia crítica na estrutura teatral e despertando essa crítica na platéia. Ao elaborar essa nova linguagem teatral, Brecht quer formar um público que entenda de teatro, ou seja, um público que faça uso da crítica. Dessa maneira, ele compara o espectador de teatro ao público que vai a um estádio acompanhar uma partida esportiva. Da mesma forma como um indivíduo acompanha um jogo, por exemplo, de futebol e entende as regras, Brecht quer que o público de teatro conheça seu funcionamento, saiba que aquilo que está vendo não passa de uma peça teatral, não é uma realidade idealizada. É uma realidade que apenas se passa no tablado em que está, por seus atores, sendo representada. Somente por meio deste distanciamento crítico, o público pode julgar a peça que se passa no palco, tornando-se um público politizado. Sendo assim, Brecht deixa à mostra toda a aparelhagem do teatro, todos os equipamentos – são expostos os canhões de iluminação, os atores aguardam no palco sua vez de entrar em cena e cartazes com trechos do texto representado são postos à vista do espectador para que possa acompanhar criticamente a trama desenvolvida no tablado. Tais características retiram do público e dos atores a ilusão da quarta parede - uma parede imaginária situada na frente do palco do teatro, através da qual a platéia assiste passiva à ação do mundo encenado. A peça de teatro, para Brecht, é vista como 35 divulgação”. 57 Tendo em conta de que o censor é designado, na mesma obra, como um “funcionário público encarregado da revisão e censura de obras literárias ou artísticas, ou da censura aos meios de comunicação de massa: jornais, rádio, etc.” 58 Não é intuito de nossa pesquisa constatar quais eram os critérios utilizados pelos militares para a recriminação de uma obra ou os artifícios que artistas e jornalistas utilizavam para driblar a censura, já que estavam impedidos de expressar livremente suas idéias. Porém, cabe aqui uma pequena explanação acerca deste momento da história brasileira. O mundo vivia, nas décadas de 60 e 70, sob influências políticas antagônicas. Era a época da Guerra-Fria, que se caracterizou no contexto internacional pelo confronto ideológico entre as concepções capitalista e socialista de organização política e social. Estados Unidos e União Soviética exerciam sua influência em diferentes países do mundo – ora pela força militar, ora pela força econômica: “Durante os tempos de Guerra Fria, o planeta era encarado como uma espécie de enorme tabuleiro de xadrez. A partida era disputada por dois jogadores, Estados Unidos e União Soviética, empenhados, tanto quanto possível, em tomar novas áreas ao adversário. Pacientemente, ano a ano, estadunidenses e soviéticos moviam seus peões em diversas partes do globo, atacando ou defendendo governos nacionais e grupos em disputa pelo poder local. No início dos anos 1950, um dos palcos dessa competição era a Coréia.” 59 E o Brasil teve, em 1964, um golpe militar que derrubou o presidente João Goulart. Jango, como era conhecido, não tinha o apoio da alta sociedade brasileira devido às suas propostas que visavam regulamentar o capital estrangeiro e promover as chamadas Reformas de Base – reforma agrária e tributária. Tais medidas pretendiam realizar melhor distribuição da renda nacional, o que fez com que o presidente não fosse 57 HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Nova Fronteira, p. 237. 58 HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Nova Fronteira, p. 237. 59 DIAS JÚNIOR, José Augusto e ROUBICEK, Rafael. Guerra Fria – a era do medo. São Paulo: Ática, 2005. p.37. 36 visto com bons olhos pelos militares, que o acusaram de simpatizar com idéias soviéticas - motivo pelo qual também gerava desconfianças ao governo dos Estados Unidos que, vendo em Goulart uma ameaça aos seus planos de conter o avanço comunista na América, pois já lhes bastava o caso de Fidel Castro em Cuba, financiou o golpe em 31 de março de 1964, colocando os militares no comando do país. Processo que ocorreu em quase toda a América Latina - tomada, a partir da década de 1960, por ditaduras militares. Os primeiros meses após o golpe foram marcados pela detenção de aproximadamente 50 mil pessoas. Os militares, de rua em rua, de casa em casa, procuravam suspeitos, livros, documentos, cartazes, panfletos – qualquer indício que ligasse os acusados ao governo anterior. 60 Durante os vinte anos em que ficaram no poder, o governo militar calou, censurou, prendeu, torturou e matou muitos dos seus opositores que defendiam a volta da democracia e a supressão das desigualdades políticas, sociais e econômicas no país. “O Brasil só voltaria à normalidade democrática 21 anos depois, ao fim do governo do general João Baptista Figueiredo, em 15 de março de 1985. Entre um e outro, os presidentes foram os também generais Costa e Silva (que assinou o AI-5, em 13 de dezembro de 1968, fechando o Congresso e extinguindo praticamente todas as garantias pessoais e constitucionais, incluindo o habeas corpus), Garrastazu Médici (o mais à direita entre todos, em cujo governo, de 30/10/69 a 15/03/74, houve mais violações aos direitos humanos, perseguições políticas e censura às artes e à imprensa do que em qualquer outro) e Ernesto Geisel, que propôs a abertura política “lenta, segura e gradual”.61 Para conter o avanço de idéias consideradas subversivas pelos militares, a censura foi o modo de repressão utilizado pelo governo. Durante todo esse tempo, o país viveu sob a tutela de uma classe de funcionários públicos que tinha a tarefa de determinar o que a população podia ler, ver, ouvir, falar ou saber. A censura acobertava crimes que manchavam a vida de figuras poderosas: 60 GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p.73. 61 MOURA, Roberto M. A censura e a música popular no Brasil. Disponível em: <http://www.bocc.ubi.br>. Acesso em: 25 maio 2007. p.2. 37 “Quem acha que a censura é tola precisa visitar os arquivos jornalísticos da década. Seus objetivos essenciais – proteger a tortura, represar a sucessão presidencial e esconder escândalos administrativos – foram perseguidos com precisão e até esperteza. Tolo, ridículo mesmo, é o país que ela inventou. Em 1974, a censura foi usada para debelar um surto de meningite no Brasil. Morreram, naquele ano, sem que a população fosse avisada, 2575 pessoas em São Paulo e 305 no Rio de Janeiro”.62 O governo tinha o poder de amordaçar a imprensa. Para isso, se valia da censura e de seus muitos artifícios, como multas, cassações e fechamento de veículos, silenciando qualquer atitude que o regime considerasse perigoso ou suspeito. Em junho de 1970, o então diretor do jornal O Estado de São Paulo, Júlio de Mesquita Neto, falou sobre o tema “Censura e Liberdade de Imprensa” durante a 11º Semana de Estudos de Jornalismo, realizada na Escola de Comunicações e Artes da USP: Se o sr. lê O Estado de S. Paulo, sabe que o jornal vem sendo editado praticamente sob protesto. Desde o dia 13 de dezembro de 1968 que não publicamos nosso primeiro editorial. Não comentamos matéria política por não dispormos de liberdade suficiente para dizer o que pensamos. [...] A verdade é que há uma censura e que essa censura freqüentemente não permite divulgação de uma série de fatos. Temos de agir nesse contexto. Publicamos o que, dentro do possível, podemos, e chegamos ao ponto de ter edições apreendidas na boca da rotativa. 63 Contudo, os meios de comunicação como a Revista Veja e o jornal O Estado de São Paulo usavam de subterfúgios para preencher as lacunas deixadas pelos textos censurados – tornou-se comum, neste período, a publicação de receitas culinárias ou poemas de Camões. Mas a imprensa não era a única a sofrer sanções. Além dela, toda e qualquer obra artística passava pelo julgamento dos censores antes de chegar ao público. A arte, como forma de manifestação do pensamento, sempre foi e em qualquer ocasião será considerada uma arma perigosa, principalmente por regimes autoritários, não abertos às críticas. E a manifestação artística que foi a mais perseguida pelos 62 “A CENSURA” em Veja, São Paulo, 26-12-1979, p.30. 63 MESQUITA NETO, Júlio de. In: Nosso século: 1960-1980. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p.56. v.5. 40 limites que, eu acho, no espírito da censura, podem passar. Agora, se eles me fizerem recuar mais, eu paro”.69 Mas não parou. Chico Buarque foi perseguido de tal maneira que os censores nem perdiam tempo analisando a obra do artista. Bastava sua assinatura para que a música fosse censurada. Tal situação obrigou-o a criar um pseudônimo. Em 1984, Julinho da Adelaide surgia no cenário musical brasileiro assinalando obras como Acorda amor, Milagre Brasileiro e Jorge Maravilha. Os artistas faziam tal esforço para driblar a censura com o intuito simples de, não apenas do direito à livre expressão, mas também para manterem-se no mercado. Ao que parece, a censura fazia esforços para inviabilizar as carreiras de alguns artistas considerados subversivos. Com alguns, os militares foram vitoriosos. Como exemplos, podemos citar Sirlan, Sidney Miller, Taiguara e Geraldo Vandré. Homens que tiveram suas obras apagadas devido ação de censura. Muito diferente do que aconteceu com Chico Buarque que, mesmo tendo de se isolar na Itália, mesmo tendo as músicas e peças teatrais proibidas, deu continuidade à sua trajetória artística. A dramaturgia de Chico Buarque inicia-se em 1968, com a peça Roda Viva, passando por Calabar, escrita em 1973; Gota d’Água, de 1975; e em 1978, é encenada a Ópera do Malandro. Todas as peças sofreram repreensões impostas pelo regime ditatorial. Roda Viva teve uma desaprovação mais dura, já que foi proibida e seus atores e diretores foram espancados: “A Companhia acabou sendo alvo do CCC (Comando de Caça aos Comunistas), tanto na temporada paulista quanto em Porto Alegre: cenários foram destruídos e atores espancados. Roda Viva acabou sendo proibida de ser encenada em todo o território nacional.” 70 Chico Buarque escreveu suas obras dramáticas em um momento significativo, quando a produção literária tomava para si uma função de resistência ao autoritarismo 69 BUARQUE, Chico. Revista Veja, 1971. Disponível em: <http://www.chicobuarque.com.br>. Acesso em: 20 mar. 2005. 70 MACIEL, Diógenes André Vieira. O teatro de Chico Buarque. In: FERNANDES, Rinaldo de. Chico Buarque do Brasil. Rio de Janeiro: Garamond, 2004, p.233. 41 ditatorial e a crítica a este poder despótico. A Ópera do Malandro teve um destino menos trágico. Foi proibida no ano de seu lançamento e liberada para encenação no ano seguinte. Obviamente que o enfoque, as concepções estéticas e o momento político (dez anos separam Roda Viva da Ópera do Malandro) são bastante distintos entre as duas obras. Primeiramente, a Ópera do Malandro foi produzida em 1978, um momento em que os militares, gradativamente, promoviam a abertura política. Havia um abrandamento na vigilância que o governo promovia à produção artística. Já Roda Viva foi encenada um ano após o Ato Institucional N° 5, de 1968, que deu ao regime militar poderes absolutos e as primeiras conseqüências foram o fechamento do congresso e a cassação das liberdades individuais da população. O AI5, como até hoje é chamado, fortaleceu a chamada “linha dura” do regime. “o AI-5 impôs à imprensa a mais brutal censura da história do Brasil. Absolutamente, nada que “ofendesse” o governo podia ser noticiado. A partir daí a violência tornou-se um método de dominação. Todos os jornais, inclusive os que apoiaram o golpe, foram censurados e alguns de seus diretores presos.”71 O texto de Roda Viva não foi o principal alvo das proibições. Foi considerado secundário frente à produção extremamente agressiva, com elementos vanguardistas, de José Celso Martinez Correa, o Zé Celso. 72 A produção levou o conceito de valorizar a participação do espectador ao extremo, a ponto de chocar o público – em dado momento da peça, estudantes que encenavam um protesto eram espancados pela polícia, que entrava em cena com intuito de conter a manifestação. Membros da platéia eram agredidos e o objetivo era estimular a mudança de comportamento do público, fazendo- os sentir na própria pele os horrores da perseguição política para que estes abandonassem suas posturas passivas em relação à situação vigente no país. Agressivo demais para o crivo dos censores da ditadura. Na Ópera do Malandro, há uma leveza bem mais aceita, comparado à Roda Viva. Nada choca a platéia, exceto algumas palavras consideradas de baixo calão que 71 CHIAVENATO, Júlio José. O Golpe de 64 e a ditadura militar. 3 ed. São Paulo: Moderna, 1994. p.74 72 MACIEL, Diógenes André Vieira. Op cit. p.233. 42 eram faladas ou cantadas. Antônio Cândido faz uma análise muito expressiva sobre a presença de uma linguagem considerada baixa, chula, repleta de palavrões na literatura da década de 70: “Não se cogita mais de produzir (nem de usar como categorias) a Beleza, a Graça, a Simetria, a Harmonia. O que vale é o Impacto, Produzido pela Habilidade ou a Força. Não se deseja emocionar o leitor nem suscitar contemplação, mas causar choque.” 73 Roda Viva e Ópera do Malandro, apesar de terem sido produzidas no período ditatorial brasileiro, abordam de maneiras muito distintas a realidade deste período. Enquanto Roda Viva faz críticas à fabricação de ídolos, característica típica da indústria cultural, 74 a Ópera do Malandro também critica a indústria cultural através da figura de João Alegre, representante da classe artística brasileira que, ao final da peça aparentemente se vende para o mercado. Para a indústria cultural, o interesse comercial necessita de um público massificado com características criadas pelas instituições que produzem e difundem as mensagens. 75 Apesar de a Ópera do Malandro fazer críticas ao período histórico em que foi produzida, ou seja, de ser uma peça que represente a realidade histórica da década de 70, sua realidade histórica ficcional é ambientada na década de 40, no Rio de Janeiro. Esse distanciamento épico era um recurso dramático utilizado por muitos autores na dramaturgia e na literatura brasileira da década de 70, como uma forma de driblar a censura e fugir das circunstâncias a que seus trabalhos eram submetidos. A imagem de Getúlio Vargas aparece na capa do livro publicado em 1978, dividindo o espaço de uma nota de dólar junto com a imagem do malandro carioca. Essa imagem representa a 73 CÂNDIDO, Antônio, 1981 apud: PELLEGRINI, Tânia. Gavetas vazias: ficção e política nos anos 70. São Carlos: EDUFSCar; Mercado das Letras, 1996. 74 Indústria Cultural é um termo cunhado pelos filósofos e sociólogos alemães Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973), membros da Escola de Frankfurt. O termo aparece no capítulo Kulturindustrie - na obra Dialética do Esclarecimento, de 1947. Neste capítulo os autores analisam a produção e a função da cultura no capitalismo e criaram o conceito de Indústria Cultural para definir a conversão da cultura em mercadoria. ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. 75 PELLEGRINI, Tânia. Gavetas vazias: ficção e política nos anos 70. São Carlos: EDUFSCar; Mercado das Letras, 1996. 45 “O sentimento final de magia, de felicidade de todos, de exaltação de que “reina a paz no meu país” é a crítica à imbecilização das massas pela propaganda nacionalista da ditadura militar”. 80 Ao contrário do que possa parecer, a ópera do Epílogo Ditoso não é uma ironia ao Estado Novo, e sim, um grande deboche do discurso de progresso nacional proclamado pelos militares nas décadas de 60 e 70. Lembremos que o alvo da indignação social de Chico Buarque e de sua crítica é a postura política e econômica imposta pela ditadura militar, e que o estado novo é utilizado por Chico Buarque como recurso distanciamento épico e como alegoria de um poder corrompido. Além da relação com os acontecimentos políticos de seu tempo, a Ópera do Malandro apresenta uma relação muito estreita com a estética modernista. Lembremos que Chico Buarque se baseou em outras duas peças, uma inglesa e outra alemã, para escrever a sua ópera e fazer sua crítica às mudanças que ocorriam na sociedade brasileira – uma característica antropofágica que estava em sintonia com as vanguardas modernistas. Tal experiência antropofágica pode muito bem ser explicada pelo uso de diversos gêneros musicais. Segundo Arturo Gouveia, estes gêneros são: “[...] retirados da tradição e recriados, imbuídos de conteúdos críticos e acréscimos de vozes (masculinas e femininas, individuais e coletivas, ora separadas, ora misturadas em uma mesma realização) e instrumentos, o que aumenta consideravelmente a percepção da complexidade da obra”. 81 Chico Buarque retoma as duas óperas anteriores, de John Gay e Bertolt Brecht, e na sua recriação emprega valores específicos de nossa cultura, além de colocar em questão problemas políticos, econômicos e sociais que fazem parte da nossa realidade, construindo o personagem principal em torno da figura de João Alegre, que é o típico malandro brasileiro. Dessa maneira, Chico Buarque mantém em sua ópera estreitas ligações com a estética proposta pela vanguarda modernista, ao valorizar temas 80 GOUVEIA, Arturo. A malandragem estrutural. In: FERNANDES, Rinaldo de. Chico Buarque do Brasil. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. p.201. 81 GOUVEIA, Arturo. Op.cit. p.197. 46 nacionais e enfatizar elementos característicos da cultura brasileira. 82 A composição da Ópera do Malandro não se trata de reescrever elementos apropriados das óperas de Gay e Brecht. Trata-se de transformar as óperas anteriores em uma obra de arte dramática diferente, única e muito brasileira. Os personagens, mesmo que mantenham semelhanças com os das óperas de Gay e Brecht, como Chaves é o chefe de polícia e Max é o chefe dos bandidos, estão inseridos e adequados ao cenário político brasileiro e suas ações se desenvolvem dentro destas características. As prostitutas, por exemplo, realizam sua passeata reivindicando melhores condições de trabalho no dia primeiro de maio, data muito explorada pela propaganda ideológica de Getúlio Vargas para a valorização do trabalhador brasileiro. O malandro, neste contexto, fica daquilo que é oficialmente projetado para a sociedade. Mas quem é o malandro na Ópera do Malandro? Se formos pensar na malandragem institucionalizada, profissionalizada, os malandros da Ópera do Malandro são vários – Max, Duran, Vitória, Chaves, Teresinha, Lúcia e Geni. Agora, se formos pensar na malandragem tradicional da lapa, do morro e do subúrbio carioca, este malandro é João Alegre, nome criado a partir do autor da Ópera dos Mendigos, John Gay. Em uma clara homenagem ao dramaturgo inglês, Chico Buarque coloca João Alegre como personagem/autor-fictício da sua ópera, em uma estrutura conhecida nas artes em geral como mise-en-abîme, termo em francês que significa cair no abismo. Na pintura, um exemplo seriam os quadros que possuem dentro de si uma cópia do seu próprio quadro. Na Ópera do Malandro, temos a ópera de João Alegre dentro da ópera de Chico Buarque. É João Alegre quem propõe a crítica em relação a situação do artista nacional, assumindo uma postura de indignação a favor dos marginalizados. É ele quem abre a peça apresentando a situação da malandragem instituída na sociedade, mas o malandro tradicional sofrendo todas as penas; é ele quem tira o teatro da representação formal ao estilo de Brecht, assumindo a passeata; é ele quem fecha o espetáculo, cantando a morte da malandragem tradicional. João Alegre corresponde na Ópera do Malandro ao papel de John Gay na Ópera dos Mendigos, que faz críticas ao contexto sócio-político da Inglaterra do século XIX. Chico Buarque, com João alegre, faz uma original recriação de intertextualidade nos moldes estéticos da vanguarda modernista: 82 GOUVEIA, Arturo. Op.cit. p.202. 47 “João Alegre, criado a partir do autor histórico John Gay, é outro personagem que revela o trabalho de contextualização na recriação intertextual. John Gay é o autor da Ópera dos Mendigos, João Alegre é o autor fictício da Ópera do malandro, ou seja, é o personagem/autor fictício, criado por Chico Buarque. Essa apropriação e transformação podem ser consideradas como características das Vanguardas modernistas. Lembremo-nos de Tarsila do Amaral que, utilizando a técnica do cubismo em seus quadros, aprendida na França, soube dar-lhe características temáticas bem nacionais, explorando a nossa cultura.” 83 Modernista também é o uso das canções na Ópera do Malandro, já que são diversos os gêneros musicais utilizados na obra. Cada uma das canções apresenta desdobramentos do enredo, enriquecendo detalhes dos personagens que não são explicitados no texto teatral. Essa característica de fragmentação da obra, separando o texto falado do texto cantado, é uma característica que Chico Buarque trouxe das óperas anteriores, mas também uma característica marcante da literatura da década de 70: “[...] a tendência alegórica dessa narrativa [da década de 70] indica que há um elemento importante a ser observado: só através do caos aparente, da fragmentação, da acumulação de elementos, da fusão de gêneros, a literatura conseguiu apresentar uma imagem da totalidade do mundo referencial completamente caótico e estilhaçado.” 84 Podemos ilustrar a característica da fragmentação com a canção da personagem Teresinha, que recebe título homônimo à personagem: “O primeiro me chegou como quem vem do florista Trouxe um bicho de pelúcia, trouxe um broche de ametista Me contou suas viagens e as vantagens que ele tinha Me mostrou o seu relógio, me chamava de rainha Me encontrou tão desarmada que tocou meu coração Mas não me negava nada, e, assustada, eu disse não. 83 GARCIA, Valéria Cristina Gomes. Op cit. p.27. 84 PELLEGRINI, Tânia. Op.cit. p.27. 50 que possa haver mudanças na sociedade. A Ópera do Malandro, além de buscar elementos que nos identifique como nação, explora nossos problemas e nossas contradições e aponta nossa dependência cultural e econômica em relação às grandes potências mundiais. João Alegre, quando passa a ser valorizado como autor nacional, tem no final de sua obra um apanhado de óperas tradicionais italianas: “[...] o desfecho de sua obra é um aglomerado de paródias da cultura estrangeira – principalmente da européia clássica – para demonstrar, talvez, que o brasileiro, mesmo quando cria, está subordinado a uma outra cultura dominante.” 88 Chico Buarque se apropria da melodia de árias de óperas tradicionais e faz paródias, construindo a estrutura da ópera do Epílogo Ditoso. Dessa forma, ele não apenas ironiza o gosto da nova burguesia capitalista que surge no Brasil, como também faz um trabalho de remontagem com as características modernistas. Essa burguesia nascente no Brasil, com predileção pela arte estrangeira, principalmente da Europa e dos Estados Unidos será alvo das críticas de Chico Buarque. A crítica à preferência da burguesia por musicais estrangeiros pode ser encontrada logo no prólogo da Ópera do Malandro, quando o produtor diz: “E a nossa companhia chegou a conclusão que é chegada a hora e a vez do autor nacional, este profissional sempre às voltas com intrincados problemas que o impedem de se comunicar mais amiúde com seus conterrâneos e, não raro, de viver dignamente do ofício que um dia resolveu abraçar.” 89 Se o autor nacional não está conseguindo se comunicar com pessoas de seu próprio país, significa que sua arte não está sendo apreciada e valorizada. E João Alegre é um artista brasileiro. Malandro, autor-fictício e artista desvalorizado devido a invasão da cultura estadunidense na cultura nacional, seu percurso dentro da peça é de grande importância para compreendermos as críticas à exploração do povo pela nova ordem capitalista e também às mudanças que ocorrem na sociedade, transformando o malandro tradicional em criminoso, devido ao surgimento de uma malandragem profissional, 88 GARCIA, Valéria Cristina Gomes. Op.cit. p.30. 89 BUARQUE, Chico. Op.cit. p.19. 51 estrutural e institucionalizada. A primeira canção da peça, no prólogo O Malandro, João Alegre canta uma seqüência de acontecimentos desencadeados por um ato da típica malandragem: “O malandro / Na dureza Senta à mesa / Do café Bebe um gole / De cachaça Acha graça / E dá no pé O garçom / No prejuízo Sem sorriso / Sem freguês De passagem / Pela caixa Dá uma baixa / No português O galego / Acha estranho Que o seu ganho / Tá um horror Pega o lápis / Soma os canos Passa os danos / Pro distribuidor Mas o frete / Vê que ao todo Há engodo / Nos papéis E pra cima / Do alambique Dá um trambique / De cem mil réis O usineiro / Nessa luta Grita (ponte que o partiu) Não é idiota / Trunca a nota Lesa o Banco / Do Brasil Nosso banco / Tá cotado No mercado / Exterior Então taxa / A cachaça A um preço / Assustador Mas os ianques / Com seus tanques Têm bem mais /O que fazer E proíbem / Os soldados Aliados / De beber A cachaça / Tá parada 52 Rejeitada / No barril O alambique / Tem chilique Contra o Banco / Do Brasil O usineiro / Faz barulho Com orgulho / De produtor Mas a sua / Raiva cega Descarrega / No carregador Este chega / Pro galego Nega arrego / Cobra mais A cachaça / Tá de graça Mas o frete / Como é que faz? O galego / Tá apertado Pro seu lado / Não tá bom Então deixa / Congelada A mesada / Do garçom O garçom vê / Um malandro Sai gritando / Pega ladrão E o malandro / Autuado É julgado e condenado culpado pela situação.” 90 A letra da música descreve um círculo vicioso em que a pequena malandragem se vê rodeada de personagens que, para atingir facilmente os objetivos traçados, envolvem-se em um jogo de oportunismo e aproveitamento das circunstâncias. A canção demonstra então que não apenas o malandro comum vive no mundo das fraudes e da esperteza oportuna, mas toda uma sociedade que vive tentando se dar bem a qualquer custo. No texto O prazer da influência: John Gay, Bertolt Brecht e Chico Buarque de Hollanda, Leopoldo M. Bernucci analisa o papel da pequena malandragem, ou seja, o pequeno contraventor às voltas com uma sociedade envolvida em um jogo de ações recíprocas de ilegalidades: “Na canção "O Malandro," não é apenas o malandro quem vive na malandragem, mas toda a sua corte: o garçom, o dono do bar, 90 BUARQUE, Chico. Op.cit. p.21-23. 55 de trabalho pré-capitalistas tinham configurações muito diferentes, baseadas na servidão e na ausência de mobilidade social. Mas com as revoluções burguesas – principalmente a Revolução Francesa e a Revolução Industrial – provocando transformações nas formas de produção e as relações políticas e econômicas, surgem novas formas de relacionamento entre patrão e empregado: o advento do assalariado. Através do seu trabalho, teoricamente o assalariado pode vislumbrar uma ascensão social, pois recebe pelo seu trabalho e pode se empenhar, dedicar-se a ele para atingir seus anseios: “[...] a economia capitalista era, e só podia ser, mundial. Esta feição global acentuou-se continuamente no decorrer do século XIX, à medida que estendia suas operações a partes cada vez mais remotas do planeta e transformava todas as regiões cada vez mais profundamente. Ademais, essa economia não reconhecia fronteiras, pois funcionava melhor quando nada interferia no livre movimento dos fatores de produção. Assim, o capitalismo, além de internacional na prática, era internacioonal na teoria. O ideal dos seus teóricos era uma divisão internacional do trabalho que garantisse o crescimento máximo da economia.”94 “[...] Entào, o fato maior do século XIX é a criação de uma economia global única, que atinge progressivamente as mais remotas paragens do mundo, uma rede cada vez mais densa de transações econômicas, comunicações e movimentos de bens, dinheiro e pessoas[...].” 95 O capitalismo não apenas mudou as relaçoes de trabalho e sim, toda e qualquer forma de relação travada entre os seres humanos e destes com a natureza. O capitalismo transformou as realções do homem com ele mesmo e com o mundo. Na Ópera do Malandro, as novas relações de trabalho estão representadas por Duran e sua esposa, Dona Vitória. Duran é um rufião que, dentro das normas da lei trabalhista, contrata prostitutas para trabalhar em suas casas noturnas. Significa então que as mulheres são contratadas por Duran sob um acordo pré-estabelecido, com carteira assinada, além dos direitos e deveres serem garantidos pelas leis trabalhistas, que começaram a ser fundamentadas durante a Era Vargas. Dóris Pelanca, Fichinha, 94 HOBSBAWN, Eric J. A era dos impérios: 1875-1914. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p.66. 95 HOBSBAWN, Eric J. Op cit. p.95. 56 Dorinha Tubão, Shirley Paquete, Jussara Pé de Anjo e Mimi Bibelô são legalmente contratadas e recebem, com a função de torná-las mais atraentes, ajuda de custo para maquilagem e perfumaria, tornando-as assim melhor preparadas para os clientes. Duran, cujo nome indica ser ele um indivíduo “durão” no trato com suas “funcionárias” e outras pessoas em seu redor, trata seus empregados como um simples número estatístico, fazendo com que desapareça qualquer tipo de relação humana. “... É, inspetor, a dívida ta em trinta contos e no dia primeiro passa a trinta e três. Hein? Tem nada demais, dez por cento ao mês. A inflação tá galopando aí fora... Abatimento? Sei. Bem, eu vou examinar com a maior boa vontade... Oliveira, Oliveira... Cremilda Pacheco de Oliveira? Celina, Conceição, Cremilda, é minha sim... Vulga Marli Sodoma, quarenta e um aninhos, hummmm... Atentado ao pudor, é? Olha, inspetor, sinceramente, eu não sei o que é que essa senhora ainda está fazendo aqui no meu fichário. O quê? Não, não me interessa. A imagem da minha empresa não pode ficar comprometida por causa duma Marli Sodoma! Não, já decidi. Nem por três vinténs. Aciona aí a Operação Faxina, tá bom? O quê? Mudou, é? Ha ha, essa é boa. Operação Detergente, como é que é mesmo? Sei... Elimina a gordura sem deixar vestígio? Ha ha ha, formidável, essa agora...” 96 Duran não se vê como um malandro, apesar de sê-lo. Lembremos que na primeira cena da peça, ele diz que “tem que dar um basta nessa malandragem! No dia em que todo brasileiro trabalhar o que eu trabalho, acaba a miséria”. 97 Fica claro, na solução encontrada por ele para livrar-se da prostituta Marli Sodoma, que o negócio que ele dirige não é visto como um bordel, e sim como uma empresa. Obviamente que, numa relação impessoal entre empregador e empregado, a “operação faxina” é a saída encontrada para livrar-se da funcionária que lhe causa problemas. Podemos verificar em Sérgio Buarque de Holanda essa nova relação entre patrão e empregado que surge com o sistema de produção industrial: 96 BUARQUE, Chico. Op.cit. p.27 97 BUARQUE, Chico. Op.cit. p.27 57 “foi o moderno sistema industrial que, separando os empregadores e empregados nos processos de manufatura e diferenciando cada vez mais suas funções, suprimiu a atmosfera de intimidade que reinava entre uns e outros e estimulou os antagonismos de classe. O novo regime tornava mais fácil, além disso, ao capitalista, explorar o trabalho de seus empregados, a troco de salários ínfimos”.98 Dona Vitória, Esposa de Duran, tem a função de embelezar e instruir as meninas no uso dos variados acessórios. Estes tais acessórios são descontados da folha de pagamento das prostitutas. Em um trecho da peça, Chaves, o chefe de polícia, envia uma moça conhecida como Fichinha para trabalhar nas casas administradas por Duran. Nordestina, abandonada pelo noivo, Fichinha chega ao Rio de Janeiro em busca de oportunidades de trabalho. Duran a contrata, pois alega que houve comoção na história contada pela moça. Mas, para ser contratada com todos os direitos trabalhistas garantidos, fichinha é obrigada a pagar uma taxa: “FICHINHA: Pagar? Eu não tenho nada. Me levaram até a bolsa. DURAN: Bem, assim também fica impraticável. Eu to querendo ajudar, mas assim... Você tem que fazer uns exames, tem que fazer tratamento nessa boca, enfim, só pra começar precisa importar um caixote de penicilina. E quem vai pagar? Tem graça... Ora... Vá lá, vá lá. Vou te dar um salvo conduto provisório pra entrar na ronda. Sobre cada dez mil-réis que você receber, a agência cobra cinco de comissão, certo? [...] E mais dez por cento pelos acessórios [...] ou você pensa que vai arranjar homem com essa carcaça que o diabo lhe deu? [...] Seios de paina, bunda de borracha, bota de sargento, avental de babá, hormônio, foliculina, gumex, pomada japonesa, vibradores, consoladores, chicotes, diafragmas laminados. Isto é ciência! E as minhas funcionárias entram com a arte!”99 98 BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio, Raízes do Brasil , São Paulo, Companhia das Letras, 1995. p.142 99 BUARQUE, Chico. Op.cit. p.32-33. 60 nas atitudes do proxeneta de um ponto de vista que valorize o ser humano, Duran demonstra cinismo e hipocrisia em suas ações, pois explora a mão de obra alheia por meio de instrumentos legais, levando o trabalhador à situação de miséria e à perda de sua dignidade. Quando o trabalhador não serve mais como instrumento para atingir seus ganhos, o patrão o descarta. É o que acontece com a prostituta Dóris Pelanca, que devido à idade um pouco avançada não tem mais o mesmo encanto de antes, e sofre com as dificuldades de conseguir clientes: “DURAN Escuta, Dóris Pelanca, se você não arranja macho é porque ta velha pra cachorro e tem mais é que pendurar essa vulva! [...] pode ir passando o resto. Vamos, vamos, a blusa, a saia, tudo. [...] Conceição dos Santos Filha, 35 anos, vulga Dóris Palmer, depois Dóris Palmito, depois Dóris Pelanca, sim... Treze anos de casa... [...] Anda, tira os sapatos... Não, pode ficar com essas botinas de lembrança, mas devolve as minhas meias... Não tava gostando dos meus figurinos? Agora mesmo é que você não faz mais um michê na tua vida. Vitória, Vitória, arranja um traje à paisana pra essa mulher e dá bilhete azul”. 104 As relações humanas baseadas nos valores burgueses são pautadas no poder do dinheiro. O capitalismo descarta aquilo que não lhe gera lucro, pois é intrinsicamente amoral e desumano. Por não servir mais ao lucro do patrão, Dóris é mão-de-obra descartada, o que a obriga a mendigar no cais do porto, pois as mesmas leis que antes ela serviu agora não a amparam. Não há com ela nenhuma consideração por todo o tempo que prestou serviços à Duran. Não há amparo da legislação e muito menos amparo humano. Somente o descaso a uma pessoa que não serve mais aos propósitos a que outrora fora útil – garantir os ganhos de seu patrão. Se pensarmos nas relações de trabalho anteriores ao capitalismo, encontraremos vínculos de proteção e amparo que os donos dos burgos prestavam a seus trabalhadores, mantendo-os sob sua proteção. A finalidade das relações comerciais era a troca de produtos e serviços. O dinheiro era o meio existente para efetuar tais permutas. Já no mundo capitalista, as novas leis de mercado transformam as relações entre as pessoas, fazendo com que passem a valer somente as leis que privilegiem o 104 BUARQUE, Chico. Op.cit. p.97-98. 61 dono do capital. O dinheiro não é mais o meio para efetuar transações, como era no passado. No mundo capitalista, o dinheiro deixa de ser meio de se obter algo para ser o fim da busca humana. Marshall Berman, em sua obra Tudo o que é sólido desmancha no ar, analisa as transformações de valores na moderna sociedade capitalista, ao afirmar que tudo tem seu valor de mercado na sociedade capitalista burguesa. O ser-humano então fica condicionado ao valor de mercado, passando a existir apenas por aquilo que pode produzir de lucro para aqueles que detêm o capital. O dinheiro passa a deter um poder abstrato que domina e controla as relações humanas. Tudo passa a ter valor de mercado. Até mesmo opositores ao capitalismo passam a fazer parte deste sistema, já que tudo passa a ser comercializável.105 Um exemplo característico são indústrias que ganham muito dinheiro vendendo camisetas com a foto estampada de Che Guevara. O capitalismo absorve seus críticos e os revende, tornando-os parte do sistema. “[...] até o livro mais crítico ao capitalismo será vendido por esse mesmo capital, e essa é a única forma de sobrevivência das idéias até mesmo mais opostas ao sistema”. 106 Na Ópera do Malandro encontraremos, presentes nos relacionamentos estipulados pelas personagens, inúmeras destas características burguesas, como se pode perceber nas relações que mantém a família composta por Duran e sua esposa Vitória, além de Teresinha, filha do casal. Juntos, os três constituem uma típica família de classe média, representando os valores da incipiente burguesia brasileira da década de 30. O casamento de Teresinha é visto por seus pais, Duran e Vitória, como um meio de atingir ascensão social. Os dois sonham casar a filha com algum bom partido da alta sociedade, colocando o nome da família nos melhores círculos sociais. “DURAN Teresinha é nosso maior investimento, Vitória! Ninguém aqui criou essa menina pra mulher de malandro não! O que a gente aplicou nela, é pra futura mulher de ministro de Estado, pelo menos. 105 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: aventura da modernidade. Tradução de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.p.126. 106 GARCIA, Valéria Cristina Gomes. A malandragem na construção da 'Ópera do malandro', de Chico Buarque: uma análise literária e musical. UNESP: Araraquara, 2007. p.38. 62 E quando ela arrumar um ministro de Estado, que o traga pela porta da frente e me apresente a ele, entendido?” 107 Entretanto, Teresinha vê em Max Overseas, chefe de contrabandistas, uma possibilidade de enriquecimento. Com idéias extremamente capitalistas, Teresinha busca transformar a atividade ilegal de Max em um negócio lícito e rentável. Para isso, ela precisa seduzir o contrabandista para tomar conta de seus negócios, e acaba casando- se com ele, contrariando a vontade de seus pais. Aproveitando-se do período em que Max passa na cadeia, Teresinha cuida dos papéis e legaliza a empresa do marido, que deixa de ser uma quadrilha de contrabandistas e passa a se chamar MAXTERTEX Limitada, com registro em cartório e endereço comercial. A firma passa então ao ramo de importação do náilon, vindo dos Estados Unidos e moda entre a elite brasileira. O náilon passa a caracterizar, na Ópera do malandro, a abertura do mercado brasileiro ao capital externo. Para Teresinha, o casamento com Max é a grande oportunidade para garantir-lhe lucro e riqueza, inerente ao momento de mudanças econômicas do cenário nacional: “TERESINHA [...] está todo mundo precisando duma coisa nova, mais aberta, mais limpa e arejada. Tá na cara que tem que mudar tudo e já! Tem que abrir avenidas largas, tem que levantar muitos arranha céus, tem que inventar anúncios luminosos, e a MAXTERTEX faz parte do grande projeto [...] A nova civilização! É claro que os malandrinhos, os bandidinhos e os que acham que sempre dá-se um jeitinho, esses vão apodrecer debaixo da ponte [...] e vai ter um lugar ao sol para quem quiser lutar e souber vencer na vida. É daí que vem o progresso.” 108 A última frase de Teresinha, neste trecho, retrata claramente a adesão do espírito brasileiro à ordem e ao progresso imposto pelo capitalismo. É o espírito de modernização do estado a qualquer custo, e Teresinha demonstra ter um tino comercial alinhado ao momento de renovação que passa o país nas décadas de 1930 e 1940. Se pensarmos nos motivos que levam Teresinha a se casar com Max, podemos buscar em Berman uma análise social que justifique seus atos. Segundo Berman, a 107 BUARQUE, Chico. Op.cit. p.38. 108 BUARQUE, Chico. Op.cit. p.170. 65 casamento de Teresinha com Max, acontecimento que vai abalar o casal representante da incipiente burguesia brasileira, Duran e Vitória. Já na segunda cena, podemos acompanhar o casamento de Teresinha com Max Overseas, com a valorização de elementos burgueses. Desde a culinária, passando pelos objetos, pelas bebidas e pelo vestuário, há uma enorme preocupação com o luxo e o requinte. Ora, se há uma disseminação dos valores da burguesia e uma supervalorização da economia de consumo, teoricamente há mais consumidores com acesso a determinados tipos de produtos ligados ao status social burguês. Como na prática é necessário ter o capital para o consumo, alguns produtos ainda são relacionados à idéia de burguesia. Na cena do casamento entre Max e Teresinha temos uma ambigüidade na construção deste cenário requintado. O enlace entre os dois personagens acontece em um barracão, distante do centro da cidade, chamado por Max de “escritório”. Lembremos que Max Overseas é chefe dos contrabandistas, que diz trabalhar no ramo das importações, e seus capangas tem nomes sugestivos – General Eletric, Phillip Morris, Johnny Walker, Big Ben. Não é necessário especificar quais são suas especialidades. O local do casamento, cheio de caixotes de muamba, não faz o gosto de Max, que afirma que por sua vontade o casório seria no Copacabana Palace. Mas a discrição necessária por estarem casando-se escondidos dos pais da noiva obrigou-o a improvisar o barracão.111 Mesmo num lugar tão às escondidas, tão simplório, há um contraponto na escolha dos objetos que vão compor o cenário do casamento. Não há mesa, e sim um monte de caixotes improvisados. Mas não falta sobre ela uma toalha branca, de náilon, importada dos Estados Unidos. Os caixotes simulam uma mesa longa, com bancos, típica das mais tradicionais famílias burguesas. A bebida e a comida são de primeira qualidade, a prataria e as louças são das mais caras: “MAX Ô, Macacada, ajuda aqui com a mesa! (os homens pulam de onde estão e dispõe uns caixotes que, com a toalha, vão simular uma longa mesa com seus bancos) Isso, isso... Prataria de Portugal, cristais da Boêmia, toalha de náilon, cerâmica inglesa...[...]” 112 111 BUARQUE, Chico. Op.cit. p.49. 112 BUARQUE, Chico. Op.cit. p.53. 66 Max Overseas tem o dinheiro, mas não tem renome na alta sociedade. Esse status burguês será adquirido ao final da peça, com a regulamentação da MAXTERTEX nos termos legais. O único local disponível então é seu “escritório”. Porém, mesmo estando num local considerado impróprio para um casamento, os objetos compõem um cenário tipicamente burguês. Max demonstra preocupações com o luxo da festa, como combinações entre as bebidas e os pratos, e toda uma demonstração de gosto refinado com o vestuário de seus capangas, obrigados a vestir smoking, mesmo que não sirvam direito. O vestido da noiva, importado dos Estados Unidos, é considerado de última moda. “MAX Perfeito, perfeito, assim ta bem. Os queijos franceses, o salmão da Noruega, o vinho... O quê? Châuteauneuf du Pape? Ô Johnny, você ta bêbado? Quer me fazer passar vexame? Onde é que já se viu servir vinho tinto com salmão? Vai botar o vinho da Alsácia no gelo, vai! [...] Ô cambada de vagabundos! Sai ou não sai esse vestido? TERESINHA Bem que eu falei pra gente comprar o vestido num magazine. Era tão mais fácil... MAX Ora, Teresinha, espera pra ver o modelo exclusivo que eu encomendei. Não é de armarinho do Catete, não. Veio direto da Quinta Avenida, New York! [...] GENERAL Tá aqui, capitão, achei! (mostra o vestido). MAX É esse mesmo, General, parabéns! [...] Tá vendo baby, não amarrota. Amassa aqui, pode amarfanhar. É puro náilon, todo ele, até o véu, até a grinalda, até as florzinhas.” 113 Essa moda é importada dos Estados Unidos, os modos á mesa e a disposição dos objetos é européia. Interessante são as características que podem ser notadas nesta cena – um retrato do desejo de ter o que jamais terá o que não se compra: finesse, elegância, refinamento e bom gosto. O modo de agir, a linguagem e as funções de contrabandistas 113 BUARQUE, Chico. Op.cit. p.53-55. 67 demonstram certa rudeza e uma clara falta de educação, um contraponto aos elementos burgueses altamente valorizados nos figurinos e nos objetos que constroem a cena, denotando requinte. Um exemplo é a canção Tango do Covil, cantada pelos capangas de Max em homenagem à Teresinha. Cada um dos contrabandistas explicita que gostariam de ter qualidades particulares para fazer louvores à dama, mas sempre se evidencia os atributos físicos da noiva, de maneira um tanto vulgar: “Ai, quem me dera ser cantor Quem dera ser tenor Quem sabe ter a voz Igual aos rouxinóis Igual ao trovador Que canta os arrebóis Pra te dizer gentil Bem-vinda Deixa eu cantar tua beleza Tu és a mais linda princesa Aqui deste covil Ai, quem me dera ser doutor Formado em Salvador Ter um diploma, anel E voz de bacharel Fazer em teu louvor Discursos a granel Pra te dizer gentil Bem-vinda Tu és a dama mais formosa E, ouso dizer, a mais gostosa Aqui deste covil Ai, quem me dera ser garçom Ter um sapato bom Quem sabe até talvez Ser um garçom francês Falar de champinhom Falar de molho inglês Pra te dizer gentil Bem-vinda És tão graciosa e tão miúda Tu és a dama mais tesuda Aqui deste covil Ai, quem me dera ser Gardel Tenor e bacharel Francês e rouxinol Doutor em champinhom Garçom em Salvador E locutor de futebol Pra te dizer febril Bem-vinda Tua beleza é quase um crime 70 entreato da obra. A terceira intervenção será de grande importância para entendermos as mudanças que ocorrem na sociedade brasileira e a situação da malandragem frente a estas transformações. Como forma de pressionar o chefe de polícia Chaves para que prendesse Max, Duran organiza uma passeata com as prostitutas, que sairiam no dia 1° de maio empunhando cartazes com dizeres reveladores sobre os atos corruptos do delegado. O plano seria cancelado somente com a prisão de Max Overseas. Acontece que a passeata ganha uma conotação diferente, e passa a defender idéias da luta de classes, uma maneira das prostitutas expressarem-se contra a opressão. Ao entrar em cena, fazendo muito barulho e ameaçando ir às ruas, a passeata preocupa Vitória, que convida a todos para voltarem às suas casas. Em sinal de que as coisas estavam saindo do controle, a passeata atropela Vitória, demonstrando sua rebeldia. Vitória, preocupada, pede então que as luzes do teatro se acendam e o espetáculo seja suspenso, revelando o mise-en-abîme, a ópera de João Alegre dentro da Ópera do Malandro. A interrupção da obra escrita por João Alegre permite que o espectador veja com mais clareza a história escrita por Chico Buarque. A melhor compreensão da atitude tomada por vitória se dá a partir da reflexão sobre a estrutura da Ópera do Malandro. Como já foi dito aqui, a Ópera do Malandro se estrutura basicamente em três planos: o da realidade histórica em que foi produzida - não presente no corpo de seu texto; o da realidade histórica ficcional – no qual encontraremos o contexto do Estado Novo, cenário onde se passa a trama da peça; e o plano da realidade escrita pelo autor-fictício João Alegre. Neste plano da realidade histórica ficcional, encontramos Duran, Vitória e João Alegre como personagens “históricos” dentro da fábula teatral. No início da peça, é criada uma realidade em que os personagens citados se apresentam para a platéia como pessoas envolvidas com a encenação do espetáculo, e não como personagens do mesmo. Dona Vitória é presidente da “Morada da mãe solteira” 117, entidade sem fins lucrativos para onde a renda da bilheteria seria revertida, enquanto Duran seria o produtor da peça. No entanto, no plano da realidade escrita por João Alegre, eles também são personagens, dentro da ficção: “Portanto, os personagens fictícios de Chico são autores, atores e pessoas históricas dentro da sua ficção e personagens 117 BUARQUE, Chico. Op.cit. p.20. 71 fictícios de João Alegre. É uma construção em abismo, no estilo mise- en-abîme, em que as realidades vão se encaixando no início da peça, para serem desencaixadas depois.” 118 Como já dito, Duran, Vitória e João Alegre são apresentados na introdução da peça como pessoas históricas dentro da ópera escrita por João Alegre, e também como atores. Antes da cortina se abrir, João Alegre canta a música O Malandro. Isto significa que está fora do plano ficcional criado por ele, mas dentro da ficção criada por Chico Buarque. Ao abrir das cortinas, João alegre desaparece de cena, só voltando novamente entre o 1° e o 2° ato, apresentando-se novamente como autor da peça, cantando a canção que deveria homenagear a tradicional malandragem que não mais existe, pois a malandragem agora se encontra oficialmente engravatada e institucionalizada. Ao cantar sua Homenagem ao Malandro, João Alegre assume o papel da crítica, da denúncia, do descontentamento social. É João alegre quem nos apresenta o grande tema da peça – a transformação da idéia de malandragem que deixa de fazer parte de um tipo característico que vive nos subúrbios cariocas e passa a ser institucionalizada, burocratizada. A canção apresentada na passagem do 1° para o 2° ato canta a morte da malandragem tradicional, dando o mote para o que será apresentado a seguir. No 2° ato podemos acompanhar as mudanças que ocorrem com a “empresa” de Max Overseas e também as mudanças relacionadas ás prostitutas e os capangas. Após este 2° prólogo, João Alegre sai de cena para retornar apenas no final do 2° ato, quando Vitória, tomada pelo desespero devido ao rumo que ia tomando a passeata das prostitutas, pede para que entre em cena o produtor do espetáculo. Novamente ocorre a ruptura do efeito de quarta parede, pois as luzes se acendem e Duram aparece, não mais como o proxeneta, personagem de João Alegre, e sim como produtor da peça. Uma discussão ocorre entre eles sobre como deve ser feito o final da peça, pois Vitória insiste em saber os motivos pelos quais não farão o final que havia sido ensaiado. Duran chama João Alegre, que entra em cena como autor da peça ao mesmo tempo em que aparece como defensor da classe oprimida. A peça escrita por João alegre é temporariamente suspensa e todos deixam de ser personagens, passando a ser pessoas históricas dentro da ficção, numa clara alusão à estrutura teatral proposta por Bertolt Brecht, já que as questões sociais apresentadas na peça passam a ser debatidas 118 GARCIA, Valéria Cristina Gomes. A malandragem na construção da 'Ópera do malandro', de Chico Buarque: uma análise literária e musical. UNESP: Araraquara, 2007. p.44. 72 pelos atores de João Alegre. A passeata, antes uma cena da peça escrita pelo autor- fictício, passa de um protesto ficcional para se tornar um protesto político real, pois há uma discussão sobre levá-la para fora do teatro. Vitória, enfurecida, indaga João Alegre sobre a mudança no final da peça. Malandramente, João Alegre explica que, como na roda de samba, onde um tema é cantado por improviso, no teatro poderia ficar original: “JOÃO ALEGRE: A gente ta na onda do partido alto. Então, o puxador dá o mote e nego vai tirando o que pintar na mentalidade, sacou? É uma jogada que dá um pé na quadra e eu achei que no teatro ficava original.” 119 Duran quer suspender o espetáculo e Vitória ameaça ir embora caso não realizem o final que havia sido ensaiado. João Alegre alega que não permite que interfiram em sua peça, dizendo que “o que ta feito, tá feito. Partideiro que se respeita não volta a palavra atrás.”120 João Alegre, ao mudar o final que fora combinado antecipadamente, assume sua condição de representante da classe dos oprimidos. A peça adquire um tom de protesto, o mesmo tom das passeatas contra a exploração social e a ditadura, tão comuns na década de setenta. Sob aplausos das prostitutas e dos capangas, que acreditam que João Alegre não se venderá ao mercado capitalista, sendo fiel às causas de sua classe, João Alegre recusa-se a encenar o final que fora ensaiado. Duran, na figura de produtor, não vê outra solução a não ser demiti-lo, lamentando que seja o fim de uma carreira tão promissora. João Alegre é conduzido por Duran à sala da administração, para formalizar a rescisão contratual. Com as luzes ainda acessas, os atores esperam discutem seus próprios papéis dentro da ópera escrita pelo malandro João Alegre, quebrando a ilusão criada pelo teatro. No palco, dialogam e aguardam o resultado, acreditando que João Alegre se manterá fiel às causas de sua classe. Evidenciamos aqui que a Ópera do Malandro é composta por três finais, com construções e significados distintos. 119 BUARQUE, Chico. Op.cit. p.176 120 BUARQUE, Chico. Op.cit. p.177. 75 diz exatamente que a alegria e o progresso pertencem somente à elite econômica e cultural, além de demonstrar o que acontece realmente com as classes oprimidas do povo brasileiro, representadas na figura do malandro tradicional morto, em decomposição. Pois se hoje há muitos malandros que se apertam num “trem da central” para conseguir sustentar suas famílias, também há outros que vivem na clandestinidade e receberam a denominação de marginais. Além, é claro, dos malandros de terno e gravata, dos malandros com cargos públicos, dos malandros eleitos democraticamente pela população, para quem as leis funcionam como amparo às suas ações. 76 3 - CHICO BUARQUE - UM ARTISTA E SEU TEMPO HISTÓRICO Nascido em 1944, no Rio de Janeiro, filho do Historiador Sérgio Buarque de Holanda e Maria Amélia Cesário Alvim, Chico Buarque cresceu em um ambiente da classe média brasileira. Estimulado pelo pai, leu muitos clássicos durante a adolescência – Balzac, Camus, Stendhal, Flaubert, Gide, Sartre, Tolstoi e Dostoievski eram alguns dos autores presentes na vasta biblioteca do pai. 123 O ambiente familiar era intelectual e musical, já que a casa era freqüentada por vários músicos e artistas. Em 1963, Chico Buarque começou a cursar Arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, abandonada em 1965 a fim de seguir a carreira musical. Estamos falando da década de 1960, época da Bossa Nova, do Cinema Novo, do Teatro de Arena e dos CPC`s, período de grande efervescência cultural no qual Chico Buarque estava inserido. Podemos dividir a carreira musical de Chico Buarque em quatro fases – a primeira começa em 1964, com a gravação da música Tem Mais Samba. Esta não foi sua primeira criação musical. Entretanto é o próprio Chico Buarque que a define como marco zero de sua obra, por ter sido a primeira canção sua gravada em disco. 124 Este primeiro momento na carreira do compositor é denominado por Isabel Travancas 125 de “fase ingênuo-romântica” e conta com canções como Pedro Pedreiro, A Rita, Meu Refrão, A Banda, Olê Olá, Com Açucar Com Afeto, músicas para Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo Neto, Carolina, Januária e Roda Viva. Esta última, de 1967, é um marco em sua carreira e simboliza o fim da primeira e início da segunda fase, pois dá título à peça teatral de sua autoria e causou grande impacto pela direção de Zé Celso Martinez Correa. Chico Buarque deixava de ser visto como o bom moço de A Banda. A partir de 1969, sua vida pessoal e sua carreira iniciam uma nova fase. Com o grande sucesso alcançado por A Banda, possibilitando a Chico Buarque a participação em festivais e programas de televisão, a visibilidade sobre sua pessoa e suas composições ganha maiores proporções. Tanto que o compositor faz a opção de auto 123 HOLANDA, Chico Buarque. Chico Buarque – letra e música. São Paulo: companhia das Letras, 1989. p 19. 124 HOLANDA, Chico Buarque. Op.cit.p.19. 125 TRAVANCAS, Isabel Siqueira. De Pedro Pedreiro ao Barão da Ralé: um estudo sobre as representações do trabalhador e do malandro na obra de Chico Buarque. In: III Reunion de Antropologia del Mercosur, 1999, Posadas. III Reunion de Antropologia del mercosur, 1999. v. 1. p. 134. 77 exilar-se em Roma, na Itália, durante janeiro de 1969 à março de 1970 – uma opção de sair de um país que vivia um momento crítico de grande repressão política e cultural e a perseguição a políticos e artistas muitas vezes os obrigavam ao exílio. Chico Buarque não foi obrigado a retirar-se do país, mas optou por essa atitude política de saída voluntária. Desta segunda fase em sua carreira, que dura até meados de 1975, algumas canções são emblemáticas – Apesar de Você, Quando o Carnaval Chegar, Construção, Agora Falando Sério, Partido Alto, Sem Açúcar, e Vai Trabalhar Vagabundo, Além das canções compostas para a peça Calabar, que foram alvo da censura. Em várias destas canções nota-se uma mudança no estilo poético e musical se comparadas às músicas da primeira fase do artista. Era um período em que as forças militares ditavam as regras que a sociedade deveria seguir, e a tesoura da censura atuava de maneira intensa em perseguição aos artistas e intelectuais que lhe faziam oposição. E Chico Buarque fazia parte desta safra de artistas, apesar de não ter se filiado a nenhum partido político. Suas composições passam a ser vetadas pelos censores apenas por ter sua assinatura. Neste contexto, Chico Buarque cria a figura de Julinho da Adelaide, pseudônimo do compositor que servirá de instrumento para driblar a marcação cerrada que sofria por parte da censura instaurada pelos militares. A partir de 1976 inicia-se uma nova fase na carreira do compositor, que vai se prolongar até 1989, quando a linguagem agressiva e de protesto é substituída por uma fase mais poética. As mulheres passam a ser tema de grande parte das músicas. Desse período, constam composições como O Que Será, Mulheres de Atenas, Angélica, as canções de Os Saltimbancos, as músicas compostas para a Ópera do Malandro, canções compostas para o balé O Grande circo Místico, o samba enredo Vai Passar, Linha de Montagem, A Volta do Malandro, Bancarrota Blues, entre tantas outras. Consagrado tanto no Brasil quanto no exterior, seus discos alcançam grande número de vendagens e seus shows, atualmente esporádicos, tem garantia de total venda de ingressos. Chico Buarque passou a ser uma “unanimidade nacional”, segundo o escritor Millôr Fernandes. O compositor tornou-se um mito – aclamado pela crítica, idealizado por grande parte do seu público e amado pelas mulheres – apesar de ser apenas um ser humano. Talentoso, mas um ser humano como qualquer outro. A última fase de sua carreira começa em 1989, com o disco Chico Buarque. As composições apresentam um artista mais maduro e mais lírico, que privilegia o poeta e as composições, apontando para uma maior introspecção e preocupação com a música, a arte e o artista. Esta fase conta com canções como Tempo e Artista, A Ostra e o Vento, 80 brasileiro pauta suas relações não por uma ética de honestidade ou transparência, mas pelos vínculos afetivos que geram compromissos ligados aos sentimentos pessoais, ligados aos favores e às amizades. Essa é uma prática social que retira das relações humanas seus traços de objetividade, e inserindo-as em códigos de amizade. Essas são as características da formação da sociedade brasileira, que vamos analisar sob a égide teórica de Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil. Nossa colonização é marcada pelo fato da experiência de implantação de uma cultura européia no amplo território brasileiro. Não houve uma tentativa do europeu de adaptar-se à nova terra e sim a adaptação deste novo território aos métodos já testados e conhecidos de Portugal. Até mesmo porque, em domínio, não existe adaptação, e sim, a exploração e a destruição da cultura existente. Podemos citar como exemplo a forma como se realizou a agricultura de cana de açúcar, com o sistema de plantation, resultando na exploração predatória do solo, cujos graves efeitos podem ser observados até hoje. Essa experiência colonizadora resultou em determinadas características do povo brasileiro, que herdou dos povos ibéricos uma forte valorização do conceito de individualidade. Sendo assim, nossa nação surge sob uma política de privilégios, que dará ênfase aos interesses particulares em detrimento dos interesses de toda sociedade. Segundo Sérgio Buarque, as leis surgem de uma necessidade de conter os interesses e os desejos particulares, e não com o intuito de construção uma sociedade organizada que se desenvolva sob o conceito de nação. Logo, haverá uma debilidade nas estruturas sociais, devido ao exacerbado individualismo que levará à “falta de uma hierarquia organizada”. 127 Esse amálgama de características permitirá o surgimento, na sociedade brasileira, da figura do malandro, que terá a possibilidade de transitar entre as diferentes classes sociais. São dois princípios muito interessantes que nos permitem entender as origens do malandro no final do século XIX e início do Século XX – Em primeiro, citamos as relações de hierarquia da nascente sociedade brasileira, fundadas em privilégios pessoais. Somada a esta característica, temos a nobreza lusitana que nunca se constituiu de maneira hermética, impermeável. Sempre foi constante a substituição de nomes e cargos – uns se tornavam ilustres, outros caiam no ostracismo social. Lembremos que uma das características do malandro está na possibilidade de transitar entre as diferentes 127 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op.cit. p.33. 81 camadas sociais, e isso só lhe foi permitido em uma sociedade em que as classes admitissem sujeitos que não fazem parte do seu meio. A nascente sociedade brasileira não se constituiu de forma fechada – escravos e senhores ocupavam o mesmo espaço social, como pode ser notado nas pinturas de Jean-Baptiste Debret. Em suas obras, podemos verificar a nobreza almoçando com os filhos de escravos em torno da mesa, ou sentados na relva com os escravos, compartilhando o alimento. Somente uma sociedade com características que permitam uma permeabilidade entre as classes poderia ser propícia para o surgimento do malandro. Outro elemento muito característico do malandro é a sua aversão a qualquer tipo de trabalho que se encaixe dentro de formalidades oficiais, pois o trabalho, na sua visão, representa uma sujeição à autoridade daqueles que detém o capital. Em nosso processo histórico de colonização, o trabalho não é visto como algo que trará ao ser humano um ganho pessoal, mas sim como algo exterior, que lhe é forçado para suprir suas necessidades. Segundo Sérgio Buarque, esta é uma característica de nossa sociedade que faz com que valorizemos o ócio. 128 Como já vimos, não há na formação da nascente nação brasileira uma organização hierárquica e social bem definida, e sim uma organização pautada em regras individuais. Aliada a falta de uma moral relacionada ao trabalho, essa forma de organização da sociedade será um fator determinante para o surgimento da cultura de malandragem. Pois o malandro não é alienado. Ele tem a consciência da exploração social do trabalho do pobre para o enriquecimento de alguns poucos privilegiados. Portanto, o malandro é o indivíduo que não vai sujeitar sua força de trabalho a esta exploração, e vai buscar atividades que lhe sejam agradáveis e prazerosas, como a atividade de músico. Em qualquer forma de organização social sempre estarão presentes dois tipos humanos – o trabalhador e o aventureiro. O trabalhador é o tipo ligado ao seu local de origem, que usa seus esforços, ou seja, seu trabalho gradual, contínuo, para atingir seus objetivos e suprir suas necessidades básicas. Já o aventureiro não se limita às fronteiras de suas origens e busca sempre transformar os empecilhos em degraus que o auxiliam na busca de suas ambições. 129 Enquanto o trabalhador valoriza as ações que lhe proporcionam um ganho pessoal, o aventureiro valoriza práticas que lhe tragam ganho imediato, não importam as conseqüências. Ações que obriguem o aventureiro a esperar pacientemente qualquer ganho lento ou coletivo são vistas como inaceitáveis. A 128 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op.cit. 129 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op.cit. 82 conquista e colonização do novo mundo, considerado pelo europeu como inóspito e de tradições bárbaras, coube ao aventureiro. Muitas são as referências aos tipos de portugueses que para cá foram enviados – desonestos, aventureiros, desajustados em sua pátria mãe que não eram mais úteis aos propósitos da Coroa por lá, mas por aqui, na nova pátria, poderiam conquistar seu espaço. Somente este tipo aventureiro unia força e coragem suficientes para encarar os desafios de uma terra vasta e desconhecida. Ao chegar aqui, com anseios de conquistar seu espaço, o aventureiro busca oportunidades de enriquecer com as possibilidades oferecidas. Portanto, não houve preocupação por parte destes homens de viabilizar leis que garantissem o bem comum, configurando uma sociedade civil organizada ou até mesmo uma nova nação. Ao contrário, estes homens queriam enriquecer a qualquer custo e voltar com capital suficiente para ser aceito novamente em sua terra natal. Fica mais fácil a compreensão, portanto, do caráter individualista de nossas leis, de nossa forma de organizar a sociedade, colocando nosso código civil a serviço de interesses particulares em detrimento dos interesses coletivos. Algumas vantagens o tipo aventureiro trouxe à colonização do país e a mais importante delas seria a objetividade e a eficiência em realizar as ações a que se propõe. Este pragmatismo, com que o aventureiro português recriou aqui sua nação, foi de fundamental importância no processo de colonização dessa nova terra. Quando não podia repetir aquilo que praticava em sua terra, fez uso daquilo que lhe era proporcionado no novo mundo e reinventou, aqui, sua pátria. Este é o espírito do malandro, que se vale das oportunidades que aparecem para modificar sua situação. O malandro é dotado deste pragmatismo, pois não se entrega ao trabalho gradual de construção de seu futuro, e sim, dedica-se ao agora, ao hoje, para transformar as adversidades a seu favor: “Dessa forma, podemos concluir que os aventureiros portugueses são os avós do tradicional malandro carioca, representado na Ópera do Malandro.” 130 Quando pensamos na nossa colonização, não podemos esquecer que nossa sociedade formou-se agrária e patriarcal, com hierarquias claras, porém, com os vários 130 GARCIA, Valéria Cristina Gomes. A malandragem na construção da 'Ópera do malandro', de Chico Buarque: uma análise literária e musical. UNESP: Araraquara, 2007. p.53. 85 formalidade. A resistência à ampliação da cidadania não era viável aos projetos de manutenção de poder das oligarquias aristocráticas. A não definição entre a esfera pública e a privada não permitiu a implantação da igualdade perante a lei, princípio base do raciocínio democrático liberal. Atualmente ainda notamos que a população brasileira escolhe, nas eleições de nossa democracia representativa, os governantes através de critérios patriarcais. O Brasil rural inserido no Brasil legal, com a tradição paternalista presente desde o princípio da história de nosso país. Mudam os governos, surgem expectativas de melhora, mas a estrutura política não se dissolve. À margem da política nacional, a população é esquecida, sem participação ativa nas decisões do poder público. Somos meros pacientes, a espera do remédio milagroso para as doenças sociais. Um aumento significativo, elevado, no setor urbano industrial ocorria paralelamente à instauração da República. Não é de se estranhar que surja, a partir deste momento, o movimento operário, tendo a figura dos anarquistas, dos anarco-sindicais e dos comunistas, posteriormente, como corporificação deste movimento. 136 Uma ameaça impendente de revolução era motivo de temores por parte das classes dominantes, que encontraram saída para este impasse na prática da repressão e da tortura. Um meio, segundo Paulo Sérgio Pinheiro, de assegurar à classe média seu direito de participação e preservar a hegemonia das classes mais altas. A igreja católica - lembremos que o catolicismo é a religião oficial do Brasil - era uma instituição conivente com as elites e teve um papel importante neste processo através das premissas de conformismo e fatalismo que ela propagava: “contribuíram para abrandar a face explicitamente repressiva do controle social por parte do controle oligárquico”.137 A polícia passou a tomar uma postura de extrema violência para com a parcela não abastada da comunidade, devido a esse medo por parte das oligarquias. Torturas, deportações e exílios tornaram-se práticas comuns, utilizadas pelo aparato de segurança policial. Porém, as inúmeras denúncias, inclusive de alguns jornais da época, de maus 136 PINHEIRO, Paulo Sérgio. “Violência do Estado e classes populares”. DADOS: Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, nº22, 1979 – pp.5-24. 137 PINHEIRO, Paulo Sérgio. Op.cit. p.7. 86 tratos utilizados por policiais, mostram que os desfavorecidos não eram pacíficos frente a ação da polícia. Com a criação do DOPS - Delegacia de Ordem Política e Social – em 1920 e da união entre a polícia os empresários, o mecanismo de tortura e repressão se especializa. Torna-se intensiva a busca por agitadores nas indústrias, com agentes disfarçados e a função de varrer das instituições aqueles que “subvertiam” ou “corrompiam” as massas. Portanto, o projeto republicano mostrou-se ilusório, apesar do objetivo de valorização da nova forma estatal e política e da expectativa de melhoras, promovida pela propaganda estatal. Não se cristalizaram os conceitos liberais de igualdade e direito à cidadania para todos. Em sua maioria, a comunidade mostrou-se distante do direito de participação política e logo eram obrigados a se conter, pela violenta repressão, quando reivindicavam seus direitos. Direitos estes que as elites aristocráticas não apenas reprimem, mas tomam para si quando não define limites entre a vida pública e a vida pessoal, utilizando-se de subsídios públicos para garantirem seu direito privado e afastando, impondo maiores barreiras, as benfeitorias cobiçadas pelas camadas mais pobres da sociedade. Na Ópera do Malandro fica evidente a crítica à desordem existente no país sobre a linha tênue que separa a esfera pública da particular. Chaves, o inspetor de polícia, representa a confusão entre estes dois mundos, uma vez que faz conchavos com aqueles a quem deveria combater: “CHAVES: É, eu sei que o momento é impróprio. Mas é que justamente hoje o meu outro sócio telefonou e me deu um aperto. Se tu não me paga, eu não posso pagar a ele. Também não posso chegar para ele e dizer que to duro porque o meu sócio contrabandista joga tudo no cassino e não me paga o combinado. Não fica bem prum chefe de polícia, entende? Esse meu outro sócio é um homem muito sério. Cobra juros de vinte por cento ao mês. [...] [...] É bom. Tu ta trabalhando à vontade, na maior liberdade, e se tiver juízo faz fortuna. Agora, eu to colaborando contigo e preciso ver o meu, né? Tu não tem telefone, não tem residência fixa e eu não sou puta de praia pra ficar te catando em cabana de pescador. Não posso me expor desse jeito”.138 138 BUARQUE, Chico. Op.cit. p.65-66. 87 Ao saber que sua filha Teresinha está casada com o contrabandista Max Overseas, Duran exige que Chaves aplique a “operação detergente” para se livrar do genro, em troca do abatimento da dívida que Chaves tem com o proxeneta: “DURAN: É só dar a pista daquele delinqüente que o inspetor Chaves completa o serviço. TERESINHA: Mas vem cá. Vocês tão falando do dindinho? VITÓRIA: Dindinho? TERESINHA: O inspetor Chaves, ué. Meu padrinho de casamento. Ah, ele é uma pessoa encantadora! Tão fino! Até perguntou por vocês... Não sei onde foi que saiu essa fama de mau... Ele e o Max são amigos de infância. Jogam biriba, bebem no mesmo copo, falam as mesma gírias e torcem pro Vasco da Gama.”139 Ao ficar sabendo das ligações de Chaves com Max, Duran muda de estratégia e passa a chantagear o inspetor: “DURAN: Pois é, vou ter que alterar meus planos. Mas é interessante... Veja só que bonita manchete pro Diário da Noite: inimigo público número um é o melhor amigo do chefe de polícia. Que bomba! Só não sei é se um funcionário na posição do Chaves resiste a um escândalo desses. (...) Depois de tanto sacrifício, tanta dedicação à causa pública, morrer na praia por tão pouco... Por uma amizade dessas...”140 Diante de tais ameaças, Chaves se vê obrigado a prender o amigo contraventor. Mas este ato não estabelece a ordem das coisas, já que Chaves não está 139 BUARQUE, Chico. Op.cit. p.85 140 BUARQUE, Chico. Op.cit. p.86 90 que executa suas canções “de ouvido”, seria o malandro, que não é músico profissional, mas toca para divertir a si próprio e aqueles que o acompanham. Neste artigo encontramos uma oposição entre o conceito de “trabalho” - representado pelo violoncelista erudito – e o conceito de “labor” – representado pelo tocador de machete. 144 O trabalho seria a atividade que busca idealizar algo fora do ser- humano, que transcende a visão humana, enquanto o labor seria a diversão, o entretenimento em que a atividade se esgota em si mesmo. Esse estilo popular de música acaba caindo na preferência do público e é bastante comum referências a execução de viola nos ambientes das famílias mais abastadas. Concluímos então que o malandro, como músico com talento, que valoriza seu “labor”, passa a ter trânsito entre este público, e sua ociosidade é transformada em atividade prazerosa não apenas para si, mas também para outras pessoas. Este é o período em que a polca é a grande febre musical e este gênero é responsável pela inauguração de um mercado das músicas dançantes, que faz oposição a música séria e erudita. Da polca, temos uma evolução para o maxixe, que incorporará ritmos africanos da música de escravos com a música de salão, fazendo com que haja um sincretismo cultural, concretizando no plano artístico o trânsito entre o mundo da ordem e o mundo da desordem. 145 O malandro, representante do mundo da desordem, terá trânsito no mundo da ordem devido à sua música e sua alegria. O malandro terá circulação entre os extremos. Com a lei áurea, que aboliu a escravatura no Brasil no final do século XIX, o negro passa de cativo a reserva de mão-de-obra barata e acaba marginalizado pela nova situação, já que não houve políticas públicas que desses subsídios a estes seres-humanos recém libertos de investirem em seu crescimento pessoal. Como forma de manter suas raízes culturais, os negros passam então a reforçar sua sociabilidade e cultivar sua identidade nas festas e nas reuniões familiares. Nestes eventos, ocorria um sincretismo religioso e racial, já que negros e brancos conviviam juntos no mesmo espaço. Tal sincretismo ocorria principalmente nas casas das “tias”. “Tia Ciata”, a mais famosa delas, fazia de sua casa um retiro onde os negros podiam manter vivas suas tradições. Seu verdadeiro nome era Hilária Batista de Almeida, casada com o médico negro João Batista da Silva, que gozava de certo prestígio político. Em sua casa foi criado o samba “Pelo Telefone”, o primeiro a ser gravado em disco, composição de Donga e Mário de 144 WISNIK, José Miguel. Op.cit. p.13-79. 145 WISNIK, José Miguel. Op.cit. p.13-79. 91 Almeida. A casa de Tia Ciata era dotada de seis cômodos, um corredor e um quintal. Estes espaços abrigavam diferentes classes sociais e diferentes ritmos: “Metáfora viva das posições de resistência adotadas pela comunidade negra, a casa continha os elementos ideologicamente necessários ao contato com a sociedade global: ‘responsabilidade’ pequeno-burguesa dos donos (o marido era profissional liberal valorizado e sua esposa, uma mulata bonita e de porte gracioso); os bailes na frente da casa (já que ali se executavam músicas e danças mais conhecidas, mais ‘respeitáveis’), os sambas (onde atuava a elite negra da ginga e do sapateado) nos fundos; também nos fundos a batucada – terreno próprio dos negros mais velhos, onde se fazia presente o elemento religioso – bem protegido por seus ‘biombos’ culturais da sala de visitas (noutras casas, poderia deixar de haver os tais ‘biombos’: era o alvará policial puro e simples)”. 146 A comparação entre os lugares reservados ao samba e ao choro se faz importante para a compreensão do enraizamento do samba nas classes sociais compostas por negros e mestiços desfavorecidos. O samba é de origem negra e proletária, enquanto o choro vem de uma matriz mais branca, pertencente ás classes mais abastadas. O choro era uma maneira que o músico popular encontrou de executar a música importada que animava bailes e salões elegantes na segunda metade do século XIX. Samba era coisa de preto pobre e ficou socialmente marcada por este estigma. Sambistas eram perseguidos pela polícia enquanto o choro ganhava a sala de visitas sem risco algum de chocar a burguesia. Enquanto isso, o samba era confinado no fundo do quintal. “Nos fundos, além dos terreiros, havia espaço para o samba de diversão, para a dança, já repletos de improvisação; nos cômodos intermediários, os lundus e as polcas; e nas salas de visita o choro que já desfrutava de certo prestígio e muitas vezes já reproduzia as “salas de concerto”, onde há “música para ouvir” e os bailes que representavam a “responsabilidade pequeno-burguesa” dos donos da casa (SODRÉ, 1998, p.15). Havia, portanto, um sincretismo entre as diferentes culturas, entre negros e brancos, entre pobres e ricos, que 146 SODRÉ, Muniz. Op.cit. p.20. 92 vem consolidar mais uma vez a convivência entre os opostos na nossa sociedade”. 147 Somente um processo histórico de colonização marcada pelo jogo de interesses particulares, e não pelo rigor da lei garantindo o bem estar social, pode nos dar um ambiente como a casa da Tia Ciata, onde o trânsito de elementos pelas diferentes classes sociais contribuiu para a configuração da figura do malandro. Lembremos que a Ópera do Malandro é uma obra dramática, portanto, é tratada aqui como uma obra da literatura brasileira. Além disso, também é analisada neste trabalho como um documento histórico para entendermos o conceito de malandragem presente na obra de Chico Buarque. Portanto, temos aqui uma visão de que uma obra literária é um registro de uma determinada sociedade em que foi produzida. Um texto literário traz à tona as críticas, as produções e os pensamentos de uma determinada época. Já dizia o dramaturgo Máximo Gorki que a literatura tem por tarefa auxiliar o homem a compreensão de si próprio. Para nos ajudar a compreender a figura do malandro, vamos nos valer das análises literárias acerca do fenômeno da malandragem: “Minha hipótese é que a sociologia da malandragem produzida nos anos 70 desempenha um papel canônico na compreensão desse fenômeno social, pois as interpretações “clássicas” de Antonio Candido, na literatura, de Gilberto Vasconcelos e Cláudia Matos, na música, e de Roberto da DaMatta, no folclore, podem ser vista como uma espécie de “fundadores de discursividade” que, no conjunto, somam para a formação de uma estrutura narrativa sobre a qual apóia-se o sentido da cultura da malandragem”.148 Segundo Gilmar Rocha, o ensaio Dialética da Malandragem149 (Caracterização das memórias de um sargento de milícias), de Antônio Candido, inaugura o que ele define por “sociologia da malandragem” no âmbito da crítica de 147 GARCIA, Valéria Cristina Gomes. A malandragem na construção da 'Ópera do malandro', de Chico Buarque: uma análise literária e musical. UNESP: Araraquara, 2007. p.56. 148 ROCHA, Gilmar. “Eis o malandro na praça outra vez”: a fundação da discursividade malandra no Brasil dos anos 70. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 10, n. 19, 2º sem. 2006. p. 108-121. 149 CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem (Caracterização das memórias de um sargento de milícias). In: ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. São Paulo: Círculo do Livro, 1988. p. 187-217. 95 Memórias de um sargento de milícias é um romance que serve como registro de sua época, por ser bastante descritivo e retratar com realismo a sociedade do período em que foi produzida. Por ser uma obra que nos serve de documentação para entender determinado recorte temporal, o romance nos revela muitas das características das pessoas de baixa classe, além do problema dos escravos recém-libertos que farão parte da constituição social dos malandros no final do século XIX e da malandragem tradicional carioca do início do século XX. Malandragem essa da qual João Alegre é o nosso expoente. Mas antes de retomarmos a análise da Ópera do Malandro, é imprescindível a análise de outras obras que tratam do tema da malandragem. Gilberto Vasconcelos faz referências à malandragem como sendo uma metáfora político-cultural cujo significado histórico pode ser acompanhado em sua totalidade na musica popular brasileira.152 A sociedade brasileira, com seu caráter autoritário, antidemocrático e capitalista seria contrabalanceada pela presença da malandragem na música. O malandro, dado à boemia, seria para Vasconcelos um contraponto ao mundo que exerce pressões pelo poder do capitalismo. Existe no Brasil uma dificuldade grande em se incutir na população uma ideologia calcada nos valores do trabalho. O compositor popular então passa a assumir, desde o momento de transição do trabalho escravo para o trabalho livre, um comportamento social e um valor estético que valorize o exercício da malandragem. Uma maneira de resistir, de recusar, de fazer frente aos apelos do mundo do trabalho e da produção capitalista. Isso faz com que o compositor popular esteja preparado para a eventualidade de cair na pobreza e na miséria. A malandragem se insere no cotidiano do cancioneiro popular não apenas como uma prática de uma experiência estética, mas também como uma regra de sobrevivência. “Com o tempo, a voz do malandro passou a confundir- se com a voz do compositor popular, formando uma só voz, e a malandragem tornou-se sinônimo de samba, convergindo para uma única identidade cultural”. 153 152 VASCONCELOS, Gilberto. Música popular – de olho na fresta. Rio de Janeiro: Graal, 1977. 153 ROCHA, Gilmar. “Eis o malandro na praça outra vez”: a fundação da discursividade malandra no Brasil dos anos 70. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 10, n. 19, 2º sem. 2006. p. 108-121. 96 Desde o surgimento do samba, nas primeiras décadas do século XX, houve a incorporação da figura do malandro. A expressão social do malandro surge quando se passa a cantar sua recusa ao trabalho, sua ode à vadiagem. A malandragem, mesmo perseguida e reprimida com violência, passa a ser então um estilo de vida das classes pobres do Rio de Janeiro. Para Claudia Matos,154 o samba consiste em uma crônica da vida social carioca, e a partir dele pode-se ter acesso ao discurso da malandragem, ao seu imaginário. No texto O Malandro no Samba,155 Matos escreve que o samba será responsável pela construção de uma “mitologia da malandragem” que vai manifestar toda simbologia do universo do malandro, de uma cultura que se viu jogada às margens da sociedade – a cultura negra popular carioca. O Malandro deixa de ser o locutor e passa a ser a própria mensagem. O malandro, antes de ser um sujeito histórico, é uma figura de linguagem, um discurso social crítico. Em seu livro Carnavais, malandros e heróis, Roberto DaMatta156 desenvolve uma interpretação da realidade brasileira através da forma como é realizado o carnaval, as paradas e as procissões. O tema central do livro é o dilema existente entre características autoritárias e violentas presentes na sociedade brasileira e a busca de um mundo democrático e não conflitivo nesta mesma sociedade. O livro não apresenta soluções para este dilema, e sim um conflito constante entre pólos antagônicos que conduz a toda uma série de ritos e mitos que acentuam as principais alternativas. Na obra de DaMatta encontramos uma análise dos tipos sociais característicos da sociedade brasileira – o caxias, o renunciador e o malandro. Cada um destes tipos está ligado a uma atividade social específica: enquanto o caxias é ligado às paradas militares e o renunciador ligado às procissões, o malandro – tipo que nos interessa – é ligado ao carnaval, um rito que subverte a ordem, que é a passagem entre a ordem e a desordem. Roberto DaMatta analisa o mito de Pedro Malasartes, personagem da cultura portuguesa que também faz parte da cultura brasileira, famoso por sua lábia e pelo seu “jeitinho” de resolver as adversidades, o que o torna conhecido como “maior enganador” das 154 MATOS, Cláudia. Acertei no milhar – malandragem e samba no tempo de Getúlio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. 155 MATOS, Cláudia. Cap. 2 – Ré: O malandro no samba. In: VARGENS, João Baptista M.(Org.). Notas musicais cariocas. Petrópolis: Vozes, 1986. p. 35-62. 156 DaMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis – para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. 97 redondezas. Características típicas do malandro – representante do deslocamento das regras formais, da renúncia ao mercado formal de trabalho e com seu modo de andar, vestir e falar bastante individualizado. O carnaval é a máxima representação da malandragem, pois nele o mundo da ordem é totalmente subvertido. Seria o carnaval uma paródia da nossa organização social? Pedro Malasartes é o malandro folclórico, símbolo do brasileiro esperto, nosso anti-herói. João, irmão mais velho de Pedro, se vê obrigado a trabalhar para manter a família, já que seus pais já não podem mais prover o sustento devido à idade avançada. João arruma uma ocupação em uma fazenda e acaba escravizado por meio de dívidas. Quando João consegue livrar-se do fazendeiro, está pobre e endividado. Pedro, para vingar o irmão, resolve trabalhar na mesma fazenda. Para vingar o irmão, Pedro tenta tirar do fazendeiro o máximo de vantagens que conseguir. Lembremos que Pedro Malasartes não é um trabalhador ingênuo, e sim, um pragmático aventureiro que não tem nada a perder. Usando sua astúcia, suas artimanhas, Malasartes lesa o fazendeiro até conseguir uma boa quantia em dinheiro e completar sua vingança. “Saindo do plano da fábula, para analisarmos nossa realidade nela figurativizada, veremos, em Pedro Malasartes, a própria ética do brasileiro excluído e explorado. O tipo trabalhador é aquele que é explorado, enganado e maltratado pelas classes dominantes, ou seja: ser honesto e trabalhador não compensa. Já o aventureiro é aquele que, através da sua astúcia, da sua malandragem, consegue driblar as leis dos poderosos e enriquecer às suas custas, ou seja: é o tipo que se dá bem, é o modelo do que vale a pena fazer.” 157 Este é o nosso malandro. Não se submete à lógica do mercado, já que essa atitude não lhe trará bons rendimentos. Então o malandro prefere permanecer à margem e usa sua esperteza e seu talento para tirar vantagens nas adversidades e tirar proveito da riqueza da elite. Em uma apresentação concisa, pode-se dizer que a malandragem compõe-se em um sistema simbólico que se manifesta na música, na literatura e nas narrativas folclóricas em que o malandro é uma solução parcial para a contradição existente entre a 157 GARCIA, Valéria Cristina Gomes. Op. Cit. p. 60.
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