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Guias e Dicas
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O Fogo no Parque Nacional das Emas, Notas de estudo de Engenharia Florestal

O Parque Nacional das Emas (PNE), tal qual ele é hoje, é resultado de uma longa história de convívio com o fogo. Entretanto, apesar da reconhecida importância das queimadas nesse Parque, sabíamos apenas que o fogo era um evento freqüente nas estações secas e que, não raro, atingia áreas enormes. Praticamente nada havia sido documentado sobre extensão, freqüência e localização das queimadas. Aludia-se também à existência de queimadas originadas por raios, mas também nenhum estudo ou registro si

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 17/01/2010

Éder_Naves78
Éder_Naves78 🇧🇷

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Baixe O Fogo no Parque Nacional das Emas e outras Notas de estudo em PDF para Engenharia Florestal, somente na Docsity! MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE Secretaria de Biodiversidade e Florestas Helena Frahça Mário Barroso Ramos Neto E “4 E Pv PS Biodiversidade Al O FOGO NO PARQUE NACIONAL DAS EMAS EQUIPE TÉCNICA DO PROBIO: Gerente: Daniela América Suárez de Oliveira. Carlos Alberto Benfica Alvarez, Cilulia Maria Maury, Júlio César Roma, Márcia Noura Paes. REVISÃO, SUPERVISÃO EDITORIAL E ACOMPANHAMENTO GRÁFICO Cilulia Maria Maury - PROBIO REVISÃO FINAL Maria Beatriz Maury de Carvalho NORMALIZAÇÃO DE REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Helionídia Carvalho de Oliveira – Ibama PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO Fernando Brandão FOTOGRAFIAS GENTILMENTE CEDIDAS POR Mário Barroso Ramos Neto Ministério do Meio Ambiente – MMA Centro de Informação e Documentação Luiz Eduardo Magalhães – CID Ambiental Esplanada dos Ministérios – Bloco B – térreo – CEP – 70068-900 Tel.: 5561 4009 1235 Fax: 5561 4009 1980 – email: cid@mma.gov.br Catalogação na Fonte Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis E25 O Fogo no Parque Nacional das Emas/Helena França,Mário Barroso Ramos Neto,Alberto Setzer - MMA, 2007. 140 p. : il. color ; 29,70cm. (Série Biodiversidade, v. 27) Bibliografia ISBN 85-7738-041-6 1. Cerrado. 2. Fogo 3. Ecologia. I. França, Helena, Ramos Neto, M.B., Setzer, A. II. Ministério do Meio Ambiente. III. Secretaria de Biodiversidade e Florestas. IV. Título. CDU (2.ed.)574.2 Ao Professor Dr. Leopoldo Magno Coutinho, que nos mostrou a beleza do Cerrado e despertou nossa paixão pelo estudo do fogo, e ao Sr. Antônio Malheiros da Cruz, por sua extrema dedicação e amor ao Parque Nacional das Emas Apresentação Muito se tem discutido sobre como melhor prevenir e combater o fogo nos preciosos remanescentes de ecossistemas mantidos nas poucas unidades de conservação existentes no grande bioma Cerrado. Os avanços recentes da pesquisa ecológica e da paleoecologia nos cerrados brasileiros e nas demais savanas tropicais do mundo indicam que a pergunta correta não é como suprimir o fogo mas, sim, como conviver com ele, ou seja, dentro de limites devemos tolerar a presença do fogo como um processo ecológico natural dos ecossistemas do bioma Cerrado. Tive o prazer de visitar o Parque Nacional das Emas algumas vezes, sempre acompanhado de turmas de bolsistas ou de alunos de pós-graduação em ecologia da Universidade de Brasília, orientando projetos de pesquisa ecológica sobre a exuberante flora e fauna do Parque durante intensos cursos de campo com duas semanas de duração cada. A presença do fogo e dos seus efeitos sobre a vegetação e a fauna é onipresente – percebe-se nitidamente que este elemento é um dos principais processos ecológicos que determinam os ecossistemas do Parque Nacional das Emas. O fogo inspira temor e reverência nos humanos. A atual ocorrência freqüente de grandes queimadas e incêndios no bioma Cerrado é percebida como causadora de diferentes impactos adversos: danos à vegetação e fauna (biodiversidade); danos à paisagem (estética); danos ao solo, águas e ar (ciclagem de nutrientes e efeito estufa); danos às instalações, aos sistemas de transporte e aos cultivos; e danos à saúde humana. Entretanto, existe uma percepção deficiente dos técnicos, governantes e do público em geral quanto à complexidade da questão: as causas dos incêndios; o papel do fogo na ecologia do cerrado; os impactos ambientais dos incêndios; e as alternativas de prevenção e controle. Na civilização ocidental atual o conceito de natureza é entendido ora como o que é produzido no universo independentemente da intervenção humana, ora como a paisagem construída pelo homem. Ocorre que os humanos estão presentes no meio ambiente do velho mundo há milhões de anos e no meio ambiente do novo mundo há pelo menos 12 mil anos, e não há ecossistema algum no planeta terra atualmente que não tenha sofrido algum grau de alteração causada pelo homem. Saber o que constitui uma significativa degradação do meio ambiente não é uma questão trivial, se aceitamos a noção moderna de que os ecossistemas são sistemas dinâmicos, cuja composição, estrutura e função varia ao longo do tempo. Identificar alterações ambientais pressupõe o conhecimento prévio da variabilidade natural dos ecossistemas e uma clara definição dos objetivos de manejo pretendidos para um determinado ecossistema – especialmente quando o objetivo pretendido é conservar uma amostra representativa de ecossistemas naturais e sua biodiversidade. O fogo não é um fenômeno estranho ou exógeno ao Cerrado – assim embora todo evento de queima cause um distúrbio nos ecossistemas de Cerrado, apenas aqueles que se afastam do regime de queima normal provocam perturbações e estresses nos ecossistemas. Tanto o regime de queima utilizado nos últimos 300 anos pelos pecuaristas para renovação das pastagens nativas (queima bienal no final da seca), quanto aquele praticado nos últimos 30 anos nas unidades de conservação da região (exclusão do fogo preconizada, porém na prática com ocorrência de grandes incêndios em intervalos de três a cinco anos), podem ser considerados anormais e, portanto, estressantes para o ecossistema e sua biodiversidade. Em recente artigo* argumentei que a mudança mais significativa no regime de queima na região dos cerrados ocorreu há cerca de 300 anos atrás com a substituição do ameríndio Jê pelo europeu e a introdução de herbívoros de grande porte (especialmente o gado bovino), provocando um forte aumento na freqüência e alteração da estação de queima, com significativos impactos nos ecossistemas e sua biota. Neste artigo propus que o nosso referencial, quando se busca saber como era o cerrado “pristino”, “primitivo” ou “natural”, ou quando se quer determinar quais os limites de aceitação do fogo, enquanto fenômeno “natural”, deve ser o cerrado como era manejado pelos índios Jê entre 4.000 e 300 anos AP. Isto significa que além de tolerar a ocorrência de incêndios provocados por raios durante o verão deveríamos também permitir a ocorrência em mosaico de queimadas em baixa freqüência na estação da seca nas formações abertas mais tolerantes ao fogo. O presente trabalho, que tenho a satisfação de apresentar, resulta de 30 anos de registro e observações da ocorrência do fogo no Parque Nacional das Emas. Embora temporalmente isto seja apenas um lapso de tempo, em termos evolutivos, não permitindo sugerir sua influência na origem dessa vegetação savânica, permitiu, no entanto, que os autores pudessem afirmar que “o Parque Nacional das Emas (PNE), tal qual ele é hoje, é resultado de uma longa história de convívio com o fogo”. Além da enorme contribuição para a compreensão do papel do fogo no Cerrado, as observações registradas e as recomendações deste trabalho se mostrarão úteis não só para as indicações de manejo do Parque Nacional das Emas, mas poderão servir de modelo, adequadas às particularidades de cada uma, para as demais unidades de conservação do Cerrado. A qualidade deste trabalho deve-se aos autores, os quais parabenizo pelo esforço: Helena França é bióloga formada pela Universidade de São Paulo com mestrado em Sensoriamento Remoto no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e doutorado em Ecologia no Instituto de Biociências da USP. É professora da * Dias, B.F.S., 2006. Degradação Ambiental: Os Impactos do Fogo sobre a Biodiversidade do Cerrado. In: I. Garay e B. Becker (orgs.), Dimensões Humanas da Biodiversidade: O desafio de novas relações homem-natureza no século XXI. Petrópolis, Editora Vozes, 483pp. Universidade de Taubaté (UNITAU) e do Centro Universitário SENAC/SP, e integra o grupo de Eletricidade Atmosférica (ELAT) da Divisão de Geofísica Espacial do INPE. Mario Barroso Ramos Neto, é biólogo formado pela Universidade de São Paulo com mestrado e doutorado em Ecologia pelo Instituto de Biociências da USP. Trabalha na ONG Conservação Internacional como gerente de conservação do Cerrado. Alberto Setzer formou-se pela Escola de Engenharia Mauá, obteve o mestrado no Technion Institute of Technology, em Israel, e o doutorado na Purdue University em Engenharia Ambiental, e pós-doutorado na Joint Research Center, na Itália, em sensoriamento remoto. Trabalha no Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) desde 1983, dedicando-se ao monitoramento operacional de queimadas em imagens de satélites para o Brasil, e à meteorologia Antártica, tendo sido o principal divulgador desde meados dos anos 80 da verdadeira escala dos incêndios e queimadas no território brasileiro. Espero que este livro estimule um manejo mais efetivo do fogo no Parque Nacional das Emas e nas demais unidades de conservação do bioma Cerrado, de forma a assegurar a efetiva conservação de amostras representativas de ecossistemas e processos ecológicos naturais e sua biodiversidade. Braulio F. de Souza Dias Diretor de Conservação da Biodiversidade, MMA pesquisas nas mais diversas áreas do conhecimento e o monitoramento contínuo do PNE permitirão respondê-las. Contudo, esperamos contribuir para o debate e aprofundamento desse tema e suscitar o interesse de estudantes, cientistas, conservacionistas, educadores e outros profissionais não só na questão do fogo no Parque das Emas, mas na conservação do Cerrado como um todo. O mapeamento das queimadas no Parque das Emas, apresentado no primeiro capítulo, foi realizado pelos pesquisadores Helena França e Alberto Setzer, e contou com o apoio financeiro da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) em sua primeira fase - período 1973-1995 (Processo 95/2674-9); do MMA (Ministério do Meio Ambiente) na segunda - período 1996 – 2003 (Termo de Referência no 79852 – Contrato PNUD no 2002/000850) e do INPE e do Ibama, na sua totalidade. O segundo capítulo resultou do trabalho do pesquisador Mário Barroso Ramos Neto e contou com o apoio da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), do programa Natureza e Sociedade do WWF-Brasil, Ibama, Oréades e da Conservação Internacional. Helena França Mário Barroso Ramos Neto Alberto Setzer Sumário Lista de Figuras ................................................................................................ 17 Lista de Tabelas ................................................................................................ 21 Lista de Siglas ................................................................................................... 23 Capítulo 1 Mapeamento de queimadas no Parque Nacional das Emas: 1973-2003 ......... 25 1.1 O Parque Nacional das Emas .................................................................... 27 1.2 Identificação de queimadas nas imagens Landsat .................................... 28 1.3 O fogo no Parque Nacional das Emas ....................................................... 33 1.3.1 O fogo no manejo das pastagens.................................................... 34 1.3.2 Os grandes incêndios ...................................................................... 43 1.3.3 As queimadas naturais .................................................................... 52 1.3.4 Recorrências de queimadas no período 1973-2003 ...................... 64 1.4 Perspectivas de pesquisas ........................................................................ 64 Capítulo 2 Manejo do fogo no Parque Nacional das Emas ................................................. 69 2.1 Introdução ................................................................................................... 71 2.2 Histórico das ocorrências do fogo ............................................................. 73 2.3 Características do fogo e das comunidades vegetais ............................... 77 2.4 Características pós-queima ....................................................................... 79 2.5 O capim-flecha na dinâmica do fogo .......................................................... 81 2.6 A sazonalidade no processo de recuperação de áreas queimadas ......... 90 2.7 Ecossistemas aquáticos ............................................................................ 99 2.8 Fauna ........................................................................................................ 100 2.9 Causas das queimadas ............................................................................ 101 2.10 O fogo no Plano de Manejo ...................................................................... 102 Capítulo 3 Considerações finais ........................................................................................ 123 Referências bibliográficas ............................................................................. 129 19 FIGURA 46 – Mapa de recorrência de queimadas no Parque Nacional das Emas, GO, no período novembro 1994 a abril 2003 FIGURA 47 – Área e tempo decorrido desde a última queimada no Parque Nacional das Emas, GO FIGURA 48 – Tempo decorrido desde a última queimada FIGURA 49 – Recorrência de queimadas no período 1973 a 2003 FIGURA 50 – Recorrência de queimadas no Parque Nacional das Emas, GO, no período 1973 a 2003 FIGURA 51 – Variação da Fitomassa separada em seus componentes após 1, 2, 3 e 4 estações úmidas em campo sujo com capim-flecha (Tristachya leiostachya), no Parque Nacional das Emas, GO FIGURA 52 – Contribuição relativa dos componentes amostrados ao longo do tempo, em campo sujo com capim-flecha (Tristachya leiostachya), após 1, 2, 3 e 4 estações úmidas no Parque Nacional das Emas, GO FIGURA 53 – Contribuição relativa dos componentes amostrados de capim-flecha (Tristachya leiostachya), após 1, 2, 3 e 4 estações úmidas em campo sujo, no Parque Nacional das Emas, GO FIGURA 54 – (a) Curvas de acúmulo de combustível (X=(L/k)(1-e-kt)) para campo sujo com e sem capim-flecha (b) FIGURA 55 – Variação do número médio de morfoespécies por parcelas nas amostragens após 1, 2, 3 e 4 estações úmidas, em campo sujo sem capim-flecha (Tristachya leiostachya), no Parque Nacional das Emas, GO FIGURA 56 – Variação do número médio de morfoespécies por parcelas nas amostragens, após uma, duas, três e quatro estações úmidas, em campo sujo com capim-flecha (Tristachya leiostachya), no Parque Nacional das Emas, GO FIGURA 57 – Incremento de fitomassa epigéia de campo sujo pós-queimadas realizadas na estação seca (junho), transição (setembro) e úmida (novembro), Parque Nacional das Emas, GO FIGURA 58 – Número médio de morfoespécies por parcelas nos tratamentos da estação seca (junho), transição (setembro) e estação úmida (novembro), em campo sujo do Parque Nacional das Emas, GO FIGURA 59 – Número médio de morfoespécies por parcela nos três tratamentos, separados em graminóides e não-graminóides, em campo sujo do Parque Nacional das Emas, GO 20 FIGURA 60 – Número médio de morfoespécies floridas por parcelas nos tratamentos da estação seca (junho), transição (setembro) e úmida (novembro), em campo sujo do Parque Nacional das Emas, GO FIGURA 61 – Exemplo de painel para acompanhamento do perigo de incêndio existente em áreas de produção de eucalipto FIGURA 62 – Orientação para revisão dos aceiros do Parque Nacional das Emas, GO 21 Lista de Tabelas TABELA 1 – Imagens Landsat utilizadas no mapeamento das queimadas do Parque Nacional das Emas, GO TABELA 2 – Área queimada anualmente no Parque Nacional das Emas, GO, no período 1973-1983 TABELA 3 – Recorrência de queimadas no período 1973-1983 TABELA 4 – Área queimada anualmente no Parque Nacional das Emas, GO, no período 1984-1994 TABELA 5 – Recorrência de queimadas no Parque Nacional das Emas, GO, no período 1984-2003 TABELA 6 – Número de polígonos e área das queimadas naturais e antrópicas no Parque Nacional das Emas, GO, no período 1994-2003 TABELA 7 – Área queimada no Parque Nacional das Emas, GO, no período novembro de 1994 a abril de 2003 TABELA 8 – Estação de ocorrência das queimadas TABELA 9 – Dimensões das queimadas naturais no período novembro de 1994 a abril de 2003 TABELA 10 – Recorrência de queimadas no período novembro/1994-abril de 2003 TABELA 11 – Área e tempo decorrido desde a última queimada no Parque Nacional das Emas, GO TABELA 12 – Recorrência de queimadas no período 1973 a 2003 TABELA 13 – Regimes de queima no Parque Nacional das Emas, GO TABELA 14 – Parâmetros e valores obtidos pelo modelo de acúmulo de combustíveis em áreas de campo sujo com e sem predominância de capim-flecha no Parque Nacional das Emas (1997-1998) TABELA 15 – Número médio de morfoespécies por parcela após 1, 2, 3 e 4 estações úmidas, em áreas de campo sujo com e sem a presença do capim-flecha (Tristachya leiostachya), no Parque Nacional das Emas, GO M ár io R am os N et o 29 como é comum nas queimadas do PNE, tem a propriedade de absorver a radiação solar numa ampla faixa do espectro ótico e, portanto, de refleti-la muito pouco. Nessas condições, as queimadas são de fácil identificação nas imagens multi- espectrais obtidas na região do visível e do infravermelho próximo e médio (0,4 a 2,5 μm), pois aparecem como manchas escuras que contrastam com a vegetação circundante não atingida pelo fogo (Figura 4). Porém, essa camada tem breve permanência sobre o solo, dificilmente ultrapassando algumas semanas, já que o vento e a chuva podem facilmente removê-la da superfície. O segundo tipo de cicatriz corresponde ao solo exposto, praticamente sem vegetação, cinzas ou carvão (Figura 5). A duração dessa cicatriz depende da velocidade da rebrota da vegetação. A nova camada de folhas vai, paulatinamente, recobrindo o solo e diminuindo sua reflectância espectral. Em geral, esse tipo de cicatriz também tem curta duração no Cerrado, da ordem de algumas semanas, pois a rebrota inicia-se alguns dias depois da queimada, mesmo na ausência de chuvas. FIGURA 3 – Vegetação do Parque Nacional das Emas, GO. 30 A terceira forma de identificação de áreas queimadas no cerrado é justamente pela vegetação que rebrota após a queimada (Figura 6). A nova cobertura é verde e viçosa e não tem folhas secas. Nas imagens, a camada de folhas jovens contrasta fortemente com a vegetação não queimada, geralmente com muitas folhas secas. Essa cicatriz de queimada é a de mais longa duração no PNE, e embora o contraste com a vegetação circundante diminua com o tempo, ela pode ser identificada durante um, dois e, às vezes, até três anos depois da queimada, desde que o local não seja atingido novamente pelo fogo. O quarto tipo de cicatriz resulta da temperatura da superfície. Áreas queimadas, desprovidas de cobertura vegetal, são mais quentes do que aquelas recobertas por vegetação. Esse contraste de temperatura é, em geral, evidenciado nas imagens termais do Landsat. Por isso, as cicatrizes de queimadas aparecem como manchas de tonalidade mais clara do que a da vegetação não queimada (Figura 7). A duração dessa cicatriz não é longa – da ordem de algumas semanas – pois ela vai desaparecendo com a rebrota da vegetação. Conforme uma nova camada de plantas vai recobrindo a superfície, a temperatura diminui e a cicatriz vai deixando de ser perceptível. FIGURA 4 – Queimadas recentes. Há uma camada de carvão e cinzas sobre o solo. FIGURA 5 – Solo exposto em decor- rência de queimada. A camada de cinzas e carvão foi parcialmente removida. 31 Esse trabalho foi realizado com a interpretação visual de 60 imagens Landsat, produzidas pelo INPE (Tabela 1) e digitalizadas em um Sistema de Informações Geográficas. As imagens do período 1973-1995 foram geradas em papel fotográfico e as demais, no formato digital. O mapeamento das queimadas do período 1973-1983 foi feito com 23 imagens do sensor MSS (Multi Spectral Scanner) a bordo dos satélites Landsat 1, 2 e 3, cuja resolução espacial é de 80m. A composição de bandas empregada em geral foi canal 4 (0,5-0,6μm), canal 5 (0,6-0,7μm) e canal 7 (0,8-1,1 μm) nas cores azul, vermelho e verde, respectivamente. Porém, em muitas datas uma única banda estava disponível e, portanto, somente ela foi utilizada. Também foram empregadas três imagens pancromáticas do sensor RBV (Return Bean Vidicon) do Landsat-3, um imageador analógico tipo câmara de televisão, cujas imagens têm 40m de resolução espacial no intervalo espectral 0,5-0,75μm (Freden e Gordon 1983). Todas as imagens disponíveis no INPE relativas a esse período foram consultadas e a maioria utilizada. Tanto as imagens MSS como as RBV foram geradas na escala 1:250.000. A interpretação foi visual e os contornos das queimadas foram feitos em overlay, e posteriormente digitalizados. FIGURA 6 – Vegetação em rebrota após a queimada. Observar contraste com a vegetação seca, em volta. FIGURA 7 – Cicatrizes de queimadas na imagem termal. As tonalidades mais claras correspondem às tempe- raturas mais elevadas. 34 1.3.1 O fogo no manejo das pastagens O PNE foi criado em 1961 (Ibama, 1989), mas praticamente nada se sabe sobre as queimadas que nele ocorreram nas duas primeiras décadas de sua existência. Nenhuma documentação a esse respeito foi localizada no Ibama. As poucas informações existentes são esparsas e imprecisas e se restringem aos depoimentos de antigos funcionários do Parque e de fazendeiros da região. Eles mencionam a ocorrência de grandes queimadas de origem antrópica no PNE desde sua criação, mas não foi possível precisar datas, causas, localizações e extensões delas. Segundo as informações orais do Sr. Antônio Malheiros da Cruz, que trabalhou no PNE desde sua criação e foi chefe dessa unidade de 1984 a 1992, a regularização fundiária do Parque só foi concluída em 1984. Até essa data, ainda havia criação de gado no interior do PNE, cuja vegetação era utilizada como pastagem natural. As queimadas eram prática comum entre os fazendeiros que, dessa forma, promoviam a rebrota da vegetação que alimentava o gado. Essas queimadas eram feitas em etapas, ao longo da estação seca de cada ano, e abrangiam praticamente todo o Parque (França e Setzer, 1997). Nessa época, não havia rede de aceiros ou outras medidas para conter o fogo que, então, podia se propagar por extensas áreas no interior do PNE. Além disso, queimadas nas fazendas vizinhas adentravam as terras do Parque, porque, além dos rios, praticamente não havia barreiras para o fogo. A primeira imagem de satélite disponível recobrindo o Parque das Emas, é uma MSS Landsat de agosto de 1973. A partir dessa data, foi possível recuperar várias imagens que permitiram documentar a ocorrência de queimadas no PNE. Antes disso, porém, a inexistência de dados impossibilitou o mapeamento delas. Mas, apesar da falta de informações, pode-se supor que o regime de queimadas durante as duas primeiras décadas de existência do PNE tenha sido semelhante ao do período 1973-1983. Essa suposição apóia-se no fato de que as condições gerais do Parque, no que diz respeito às queimadas – presença de gado, manejo de pastagens com fogo, ausência de aceiros etc – permaneceram inalteradas desde sua criação até 1984. O período 1973-1983 Nesse período, predominaram queimadas antrópicas de grandes extensões. Elas ocorreram durante a estação seca para manejo das pastagens naturais. Áreas particularmente grandes foram queimadas em 1975 e 1978. Em 1975 as queimadas totalizaram 86% do Parque. Em 1978, um incêndio incontrolável atingiu todo o PNE durante os dias 19 e 20 de agosto, depois de uma geada, segundo depoimento do Sr. Malheiros. Infelizmente, não há imagens disponíveis documentando esse evento. Nos anos 1977 e 1980 mais da metade do PNE foi queimada, no mínimo. Em 1981, queimadas atingiram pelo menos 44% do Parque. Em relação a 1973, 1976 e 1982, a quantidade de imagens e suas datas não bastaram para mapear a 35 totalidade das queimadas. Nenhuma imagem de 1974 foi localizada e não foi possível delimitar as queimadas ocorridas nesse ano com base nas imagens de 1975. Ressalte-se que, em cerca de 50% das imagens do período 1973-1983, o extremo norte do Parque não foi abrangido. Dessa forma, as áreas queimadas desse período estão, com certeza, subestimadas (Tabela 2 e Figura 8). TABELA 2 – As estimativas de áreas queimadas no período 1973-1983 estão, em geral, subestimadas por motivos diversos como, por exemplo, número de imagens insuficiente e porção norte do Parque não abrangida nas imagens. Apesar da ausência de informações de campo e da baixa resolução das imagens MSS, foram identificadas oito queimadas cujas causas possivelmente foram naturais. Elas ocorreram no período de transição entre a estação seca e chuvosa ou na estação de chuvas de 1976, 1979 e 1981, e suas áreas não excederam 3km2. As Figuras de 9 a 18 mostram, ano a ano, as localizações das queimadas, porém sem individualizar diferentes eventos de queima. Nessas figuras, estão classificadas como “outras” as áreas não recobertas pelas imagens e aquelas nas quais não foram identificadas queimadas. Não se pode, portanto, afirmar que queimadas não ocorreram nessas áreas. Em 1973, por exemplo, apenas uma imagem – de 22 de agosto – estava disponível. Possivelmente, ocorreram outras queimadas nesse ano, depois dessa data mas, pela ausência de imagens dos meses seguintes, elas não puderam ser mapeadas. A resolução espacial dos dados MSS (80m), a escala de trabalho (1:250.000) e a impossibilidade de manipular o contraste das imagens, visto que elas foram produzidas em papel fotográfico, muitas vezes impediram a identificação e o mapeamento de pequenas queimadas, bem como a delimitação de faixas estreitas de mata ciliar não atingidas pelo fogo. 36 FIGURA 8 – Área queimada anualmente no Parque Nacional das Emas, GO, no período 1973- 1983. Obs.: Não há informações de 1974 e, para muitos anos, a área queimada está subestimada. FIGURA 9 – Queimadas no Parque Nacional das Emas, GO, em 1973. 39 FIGURA 14 – Queimadas no Parque Nacional das Emas, GO, em 1979. FIGURA 15 – Queimadas no Parque Nacional das Emas, GO, em 1980. 40 FIGURA 16 – Queimadas no Parque Nacional das Emas, GO, em 1981. FIGURA 17 – Queimadas no Parque Nacional das Emas, GO, em 1982. 41 A Tabela 3 e as Figuras 19 e 20, resultantes da sobreposição dos mapas anuais, mostram a recorrência mínima de queimadas no PNE no período 1973- 1983. FIGURA 18 – Queimadas no Parque Nacional das Emas, GO, em 1983. TABELA 3 – Recorrência de queimadas no período 1973-1983. 44 na maior parte das estações chuvosas, quando há maior incidência de raios. Exceção foi o ano de 1987, cujas imagens e informações constantes nos relatórios do PNE, permitiram mapear as queimadas originadas por raios entre os meses de setembro e dezembro. Nesses eventos naturais, 36% da área do Parque foi queimada. TABELA 4 – Área queimada anualmente no Parque Nacional das Emas, GO, no período 1984-1994. FIGURA 21 – Área queimada anualmente no Parque das Emas, GO, no período 1973-1983. Obs.: Notar a periodicidade dos grandes incêndios, a cada três anos, a partir de 1985. 45 FIGURA 22 – Queimadas no Parque Nacional das Emas, GO, em 1984. FIGURA 23 – Queimadas no Parque Nacional das Emas, GO, em 1985. 46 FIGURA 24 – Queimadas no Parque Nacional das Emas, GO, em 1986. FIGURA 25 – Queimadas no Parque Nacional das Emas, GO, em 1987. 49 FIGURA 30 – Queimadas no Parque Nacional das Emas, GO, em 1992. FIGURA 31 – Queimadas no Parque Nacional das Emas, GO, em 1993. 50 A Tabela 5 e as Figuras 33 e 34, resultantes da sobreposição dos mapas anuais, mostram a recorrência mínima de queimadas no PNE no período 1984- 1994. FIGURA 32 – Queimadas no Parque Nacional das Emas, GO, em 1994. TABELA 5 – Recorrência de queimadas no Parque Nacional das Emas, GO, no período 1984-2003. 51 FIGURA 33 – Recorrência de queimadas no Parque Nacional das Emas, GO, no período 1984-1994. FIGURA 34 – Mapa de recorrência de queimadas no Parque Nacional das Emas, GO, no período 1984-1994. 54 As Figuras de 36 a 43 mostram as queimadas mapeadas no período entre novembro de 1994 e abril de 2003, diferenciando-as quanto à origem antrópica ou natural. Entretanto, nem sempre é possível individualizar os polígonos de queimadas nas Figuras, pois alguns são muitos pequenos para a escala de apresentação. A área queimada em cada ano de observação nunca excedeu 39% do Parque, e quando consideradas somente as queimadas naturais, elas nunca excederam 30% do PNE (Tabela 6). As áreas queimadas naturalmente a cada ano aparentemente se estabilizaram entre 10 e 30% da área do PNE. Entretanto, o período de estudo deve ser estendido para verificar se esses valores permanecerão nesse intervalo. Em 1995 não foram registradas ocorrências de queimadas naturais. As únicas queimadas observadas nesse ano foram antrópicas, causadas por acidentes durante a queima dos aceiros. FIGURA 35 – Área queimada anualmente no Parque Nacional das Emas, GO, no período novembro de 1994 a abril de 2003. Obs.: O período 94/96 vai de novembro de 1994 a maio de 1996; os demais sempre se iniciam em junho e terminam em maio do ano seguinte. 55 FIGURA 36 – Queimadas no Parque Nacional das Emas, GO, entre novembro de 1994 e maio de 1996. FIGURA 37 – Queimadas no Parque Nacional das Emas, GO, entre junho de 1996 e maio de 1997. 56 FIGURA 38 – Queimadas no Parque Nacional das Emas, GO, entre junho de 1997 e maio de 1998. FIGURA 39 – Queimadas no Parque Nacional das Emas, GO, entre junho de 1998 e maio de 1999. 59 Quase todas as queimadas ocasionadas por raios ocorrem no período chuvoso, de outubro a abril, ou no de transição entre as estações chuvosa e seca, nos meses de maio e setembro. No período da estiagem, quando a vegetação encontra-se seca e as condições de propagação do fogo são maiores, queimadas naturais são raras devido à ausência de tempestades de raio (Ramos Neto, 2000). Por outro lado, todas as queimadas antrópicas ocorreram durante a seca (Tabela 8). TABELA 8 – Estação de ocorrência das queimadas. Em geral as tempestades de raios são seguidas por chuva, e por isso muitas queimadas naturais são extintas logo após seu início. Nesses casos, o tamanho final dessas queimadas não excede algumas dezenas ou centenas de metros quadrados. Das 123 queimadas naturais registradas no período de estudo 1995- 2003, praticamente a metade foi inferior a 1km2 e a soma de suas áreas foi de cerca de 17km2, equivalente a 1% da área total das queimadas naturais (Tabela 9 e Figura 35). Conforme comentado anteriormente, é possível que muitas queimadas naturais de pequenas dimensões não tenham sido identificadas devido à resolução espacial de 30m das imagens TM e ETM/Landsat e à escala de trabalho empregada (1:50.000). Entretanto, em alguns eventos, as queimadas naturais não são acompanhas por chuvas e podem atingir grandes dimensões, superiores a 100km2, como ocorreu em 1997, 1999 e 2001. 60 O tamanho final das queimadas naturais no PNE nem sempre é determinado por causas naturais como a chuva ou a presença de rios que impedem a propagação do fogo. Freqüentemente são os aceiros e estradas que atuam como barreiras ao avanço das queimadas, ou mesmo o combate ao fogo, conforme conduta adotada pelo Ibama nesse período. Ao contrário do período anterior, quando os grandes incêndios deixavam a quase totalidade do Parque homogênea quanto ao estágio de desenvolvimento TABELA 9 – Dimensões das queimadas naturais no período de novembro de 1994 a abril de 2003. FIGURA 44 – Intervalos de tamanho das queimadas naturais ocorridas no período de novembro de 1994 a abril de 2003. 61 TABELA 10 – Recorrência de queimadas no período de novembro de 1994 a abril de 2003. FIGURA 45 – Recorrência de queimadas no período de novembro de 1994 a abril de 2003. da vegetação e biomassa acumulada, o novo regime de queimadas criou um verdadeiro mosaico na cobertura vegetal do Parque. As queimadas naturais, de tamanhos, datas e localizações variadas, resultaram em áreas com diferentes densidades de biomassa e fases fenológicas. Áreas recém queimadas não atingiram densidade de biomassa suficiente para propagação do fogo, agindo como barreira para queimadas vizinhas (Ramos Neto, 2000). No período novembro de 1994 a abril de 2003, cerca de 85% do PNE foi queimado pelo menos uma vez (Tabela 10 e Figura 45). A sobreposição de todos as áreas queimadas nesse período mostra o mosaico da cobertura vegetal em relação à freqüência de queimas (Figura 46). 64 1.3.4 Recorrências de queimadas no período 1973-2003 A sobreposição de todos os mapas de queimadas do período de 1973 a 2003 mostra áreas com altíssima freqüência de queimadas – 17 ou 18 queimadas em 30 anos – e revela que 62 % do PNE já queimou no mínimo entre 9 e 12 vezes nesse período. Ressalte-se novamente, que esses valores estão subestimados, principalmente nos anos anteriores a 1984, devido à insuficiência de imagens (Tabela 12 e Figuras 49 e 50). 1.4 Perspectivas de pesquisas O mapeamento das queimadas no PNE do período posterior a abril/2003 está sendo feito com a interpretação de imagens do satélite sino-brasileiro CBERS (China-Brazil Earth Resources Satellite). No Brasil, desde junho de 2004, o livre acesso às imagens desse satélite, cujo sensor CCD (Câmara Imageadora de Alta Resolução) fornece dados com 20m de resolução espacial, FIGURA 48 – Tempo decorrido desde a última queimada. 65 introduziu novas perspectivas de pesquisa ambientais no Brasil. Desde então, o monitoramento das queimadas do Parque não está mais necessariamente restrito às instituições governamentais de pesquisa, nem condicionado ao apoio de agências financiadoras. Outros pesquisadores, estudantes, ONGs e demais interessados podem agora, com bastante facilidade, monitorar qualquer unidade de conservação no Brasil, inclusive o PNE e suas queimadas. TABELA 12 – Recorrência de queimadas no período 1973 a 2003. FIGURA 49 – Recorrência de queimadas no período 1973 a 2003. 66 No período anterior a 1984, o mapeamento das queimadas aqui apresentado foi limitado às poucas imagens MSS disponíveis, pois naquela ocasião, o arquivo digital estava inacessível. Por isso, o mapeamento de queimadas nesse período certamente não foi completo. Entretanto, a recuperação das imagens digitais MSS Landsat do período 1973-1984, que está sendo conduzida pelo INPE, possibilitará complementar o mapeamento e melhor caracterizar o regime de queimadas no PNE nesse período. A exemplo das imagens CBERS, o livre acesso às imagens MSS, bem como às imagens TM-Landsat do período 1984-2001, previsto para breve, permitirá que o trabalho aqui apresentado seja completado e eventualmente corrigido por outros interessados. O Brasil possui uma rede de detecção de descargas elétricas, a RINDAT (Rede Integrada Nacional de Detecção de Descargas Atmosféricas) já implantada e em funcionamento. Essa rede, ainda em expansão, passou a recobrir o PNE desde o final de 2002. Entretanto a eficiência de detecção e a acurácia de localização das descargas nuvem-solo na região do Parque ainda não estão suficientemente adequadas para caracterizar o regime de raios e identificar os eventos causadores de queimadas naturais nessa área (Naccarato FIGURA 50 – Recorrência de queimadas no Parque Nacional das Emas, GO, no período 1973 a 2003. M ár io R am os N et o 71 2.1 Introdução O fogo e sua ocorrência em áreas naturais protegidas é um dos temas mais polêmicos quando se trata de Cerrado. Apesar de reconhecido como evento natural ou parte da dinâmica do Cerrado, tanto por técnicos como por cientistas (Pivello, 1992; Miranda et al., 2002), sua aceitação dentro de unidades de conservação está longe de chegar a um consenso. Assumindo uma posição de proteção, o manejo realizado em nossas unidades de conservação de Cerrado segue uma forte orientação para a exclusão do fogo, desconsiderando características locais ou possíveis serviços que uma queima possa promover. Por ser uma ferramenta importante para o ser humano, o fogo tem aumentado de freqüência nos últimos milhares de anos, além de haver alcançado ambientes com menor probabilidade de queima, como as florestas tropicais e equatoriais (Goldammer e Crutzen, 1993). Apesar da ocorrência do fogo estar atualmente relacionada à expansão da ocupação humana, muitas comunidades vegetais naturais já conviviam com ele antes da presença humana, pois o homem não é o único responsável pelo fogo (Goldammer 1993). Causas naturais são conhecidas, como descargas elétricas (raios) e vulcanismo. Como o vulcanismo é restrito a algumas áreas do planeta, descargas elétricas são os principais iniciadores naturais de fogo (Komarek, 1972). Pinto Jr. e Pinto (2000) indicam que entre 50 e 100 raios da nuvem para o solo ocorrem no mundo a cada segundo. A importância das descargas elétricas como iniciadoras de queimadas determinou a criação de sistemas de detecção de relâmpagos (Brookhouse, 1999), como o “Lightning-Location and Fire Forecasting System” (Knapp, 1995), e modelos empíricos de previsão de fogo considerando a freqüência de raios, como os apresentados por Price e Rind (1994). Mesmo sendo um evento com um potencial devastador, há muitos anos o fogo deixou de ser visto apenas como um agente destruidor da natureza. As principais publicações acadêmicas que abordam a ecologia do fogo aceitam- no como evento natural para muitas comunidades (Gill et al., 1981; Chandler et al., 1983; Booysen e Tainton, 1984; Frost e Robertson, 1987; Trabaud, 1987; Collins, 1990; Goldammer, 1990; Crutzen e Goldammer, 1993; Whelan, 1995; Pyne et al. 1996). Registros indiretos em carvão fóssil indicam fogo em idades anteriores à existência do homem primitivo (Coutinho, 1981; Komarek, 1972). No entanto, apesar das evidências, sempre existiu resistência em aceitar a ocorrência de queimadas naturais nos cerrados (Pivello, 1992), como no caso do primeiro Plano de Manejo do Parque Nacional das Emas, em que se afirma que queimadas naturais são eventos raros ou ausentes nos cerrados (IBDF/ FBCN, 1981). Komarek (1964, 1968 e 1972) realizou os primeiros estudos detalhados sobre descargas elétricas e queimadas naturais. No entanto, sem a utilização de equipamentos de detecção de relâmpagos, queimadas naturais são de difícil confirmação. Na ausência destes equipamentos, apenas os registros em áreas 74 Para o Parque Nacional das Emas, pode-se identificar ou supor períodos com características diferentes de queima. A partir de uma cronologia inversa, 1994 marca o término de um ciclo que se iniciou na década de 80, no qual os incêndios catastróficos na estação seca, com recorrência a cada três anos, era a ocorrência mais marcante. Além destas, queimadas naturais continuavam a acontecer, mas não de forma suficiente para quebrar o sincronismo dos grandes incêndios. Como apresentado no Capítulo 1, este período foi bem caracterizado por França e Setzer (1997). Anteriormente à década de 80, segundo relatos de fazendeiros e antigos funcionários, parte do Parque era utilizada como pastagem para o gado. Assim, determinadas áreas eram anualmente queimadas durante a estação seca. Como não havia aceiros nem a preocupação de se conter as queimadas, elas atingiam extensas áreas. No entanto, como se tratavam de queimadas anuais, a intensidade não era tão grande, pois não havia tempo para o acúmulo de grande quantidade de fitomassa combustível. França e Setzer (1997) apresentam as áreas queimadas neste período a partir de 1973. Antes da utilização da área por fazendeiros, esta foi, possivelmente, utilizada por índios (Barbosa et al. 1994). É reconhecido o uso do fogo por populações indígenas na região, principalmente para favorecer a caça ou a frutificação de determinadas espécies. Antes dos índios, o fogo possivelmente queimava num “regime natural”, sem a interferência humana, mas isto ocorreu a milhares de anos atrás, quando o clima, a vegetação e a fauna eram outros. Após 1994, com a melhoria das condutas preventivas contra as grandes queimadas, estabeleceu-se um novo regime de queima. O regime atual é caracterizado pela baixa ocorrência de queimadas antropogênicas durante a estação seca e a alta incidência de queimadas naturais durante a transição e a estação úmida. A área média queimada anualmente está em torno de 19.000 ha (desvio padrão de 13.000 ha), determinando um intervalo de queima médio (período estimado de recorrência) de cerca de seis a sete anos. O componente sazonal influencia as queimadas, sendo necessário caracterizá-las de maneira distinta durante a seca, transição e período úmido. O tamanho das áreas queimadas varia conforme a época da queima. Durante a estação úmida existe a maior variação de tamanho, predominando áreas queimadas menores, enquanto que durante a transição, principalmente setembro, as áreas queimadas tendem a ser maiores. As intensidades do fogo se apresentam maiores durante o período de transição e seco, e menores durante o período úmido. A principal característica do regime aqui descrito é a importância das queimadas naturais provocadas por raio. Apesar da comunidade científica aceitar a ocorrência de queimadas naturais (Warming, 1908; Komarek, 1972; Coutinho 1980 e 1990; Tutin et al., 1996; Middleton et al., 1997), registros com localizações precisas e área queimada não estão disponíveis para o Cerrado. 75 Na maioria das áreas naturais protegidas, mesmo onde existe um certo controle das ocorrências de fogo, as queimadas antropogênicas são muito mais freqüentes que as naturais, muitas vezes iniciadas em áreas vizinhas (Pivello e Coutinho, 1992). A atual baixa freqüência de queimadas antropogênicas na área de estudo pode ser explicada pela presença de aceiros preventivos, mantidos em razoáveis condições, principalmente nos limites do Parque. A queima anual durante as estações secas, que vem sendo executada desde 1995, tornam os aceiros barreiras efetivas para o deslocamento das frentes de fogo, fato evidenciado pela alta freqüência de queimadas que foram, pelo menos parcialmente, contidas pelos aceiros. Outra razão é a mudança nos usos das terras fora dos limites do Parque. Nas culturas mecanizadas, presentes em boa parte das fazendas vizinhas ao Parque, não se utilizam queimadas. Além disso, um programa de educação, ainda que incipiente, orienta os proprietários vizinhos quanto aos riscos do uso do fogo no manejo de suas áreas. A orientação dos visitantes também é importante para evitar queimadas acidentais, e a presença de condutores treinados para acompanhar os turistas no Parque foi fundamental neste trabalho. Por último, uma brigada de combate permanece de prontidão durante a estação seca, para atuar contra qualquer foco de fogo que ponha o Parque em risco. Com o aumento da proteção durante o período seco, fica evidenciada a importância das queimadas naturais provocadas por raios, principalmente durante o período úmido. Na ausência de queimadas antropogênicas, os combustíveis acumulados podem queimar, desde que existam iniciadores (raios) e condições climáticas adequadas. Para Schüle (1990), a freqüência de fogo natural está condicionada à presença de sazonalidade climática, tempestade de raios e ao grande acúmulo de biomassa. Na área do Parque, entre 1995 e 2003, não foram observadas tempestades de raio durante os meses de seca (junho a agosto), sendo que estas começam a ocorrer na região a partir de setembro e se mantêm presentes até maio, ocorrendo em maior freqüência durante os meses de setembro a fevereiro. Whelan (1995), lembra que as tempestades de raios, principais responsáveis pelas descargas elétricas, não ocorrem de forma homogênea sobre a superfície da Terra e mesmo a alta incidência de raios não corresponde necessariamente a muitos focos de incêndios, pois nem todos raios que chegam ao chão provocam queimadas. Em nenhum dos períodos estudados foi encontrada uma correlação significativa entre a área queimada e o intervalo de queima no Parque Nacional das Emas. Este resultado é contrário ao encontrado por Li et al. (1999), onde a distribuição natural de tamanho das queimadas em florestas pode ser estimada quando o intervalo de queima de uma paisagem é conhecido, utilizando a distribuição de probabilidade exponencial negativa. 76 Segundo as observações entre 1995 e 1999, apesar da maior incidência de queimadas naturais em fevereiro, a área total queimada acumulada nesse mês (1.321ha) foi relativamente pequena, em contraste com o mês de setembro, que apresentou a maior área queimada acumulada (24.020ha). Queimadas de grandes dimensões em setembro estão relacionadas, além das condições meteorológicas, ao estado da vegetação. A maior incidência de focos de incêndio deve ser conseqüência do número de raios que atinge a vegetação, enquanto que as dimensões das áreas queimadas devem estar associadas às condições climáticas e ao estado da vegetação. Este padrão de queimadas no período de transição da estação seca para a úmida também foi observado por Soares (1989). Komarec (1972) identificou este mesmo padrão nas savanas africanas, dando a denominação de “persistência de padrões climáticos”. TABELA 13 – Regimes de queima no Parque Nacional das Emas, GO. 79 1990). No Parque, com a proteção eficiente contra queimadas antropogênicas, fica evidente a importância das queimadas naturais durante os meses mais úmidos. Mais importante que a presença destas queimadas são as diferenças nas respostas das comunidades vegetais em queimadas durante os meses mais úmidos. Este fato abre novas questões e oportunidades de pesquisa em relação à ecologia do fogo nos cerrados. A aceitação do regime antropogênico como “adequado” ou “esperado” para os cerrados é muito mais decorrente da extensão, intensidade e persistência das queimadas de origem humana durante a estação seca, do que de qualquer análise lógica baseada nas possibilidades e probabilidade de queimadas naturais. Pelo menos para o Parque Nacional das Emas, queimadas naturais durante a estação seca são eventos raros. No período de 1995 a 2004 ocorreu apenas uma tempestade de raio durante a estação seca, mesmo assim sem causar nenhum foco de incêndio. O maior problema relacionado à aceitação generalizada de um regime de queima durante a estação seca é o fato da maioria das informações científicas disponíveis sobre a resposta da vegetação e da fauna do cerrado ao fogo advirem das queimadas de junho a agosto e, em muito menor proporção, setembro, o qual em muitas áreas de Cerrado ainda é um mês seco. Assim, quase todo nosso conhecimento sobre a ecologia do fogo para os cerrados é baseado em queimadas que nada tem a ver com padrões naturais. Este problema é grave para áreas onde o objetivo principal é a conservação, buscando a diminuição de influências antropogênicas externas. 2.4 Características pós-queima As condições pós-queima e as características dos organismos de uma área são os principais determinantes da dinâmica de recuperação da vegetação após a queima, superando mesmo as características do próprio evento de queima, tais como intensidade e tempo de residência (Frost e Robertson, 1987). Onde o fogo é um distúrbio freqüente, o processo de recuperação é condicionado, principalmente, pelos mecanismos de resposta da vegetação e condições ambientais subseqüentes, principalmente associadas ao ciclo hidrológico (Cook e Mordelet, 1997). No caso dos ciclos hidrológicos determinarem os padrões de resposta da vegetação, o mecanismo envolvido é chamado “determinismo ambiental” pelos autores supra citados. Quando o que determina as respostas da vegetação ao padrão de queima é a importância relativa de vários grupos funcionais de plantas, os mesmos autores chamam o mecanismo de “precedente biogeográfico”. Nas savanas, em geral, o condicionante ambiental da resposta da vegetação está fortemente ligado à sazonalidade e às quantidades de chuva (determinismo ambiental). Para os cerrados, as estações secas variam em extensão, conforme a região, concentradas em um único período. 80 Nos cerrados, a maioria dos vegetais apresenta algum mecanismo de proteção, evitação ou resiliência contra os efeitos do fogo (Coutinho, 1990). Deste modo, em áreas em que o fogo é um evento recorrente, espera-se que, após a queima, a grande maioria dos organismos permaneça na área. Os mecanismos de proteção mais comuns para o componente arbóreo são, principalmente, associados ao aumento do isolamento térmico decorrente da suberização dos troncos. Gemas também podem estar protegidas através de catafilos. Pelo fato das queimadas em cerrado serem predominantemente de superfície, o componente herbáceo/arbustivo é o mais intensamente atingido durante a passagem do fogo. Os valores de porcentagem de combustão deste componente chegam a mais de 90% da fitomassa (Kauffman et al., 1994; Miranda et al., 1996; Miranda et al., 2002), sendo os mecanismos diretos de proteção contra a queima menos eficientes. Predominam, então, mecanismos para evitar a queima, principalmente por meio da proteção de gemas abaixo da superfície, e mecanismos de rápida recuperação para a ocupação dos espaços abertos, bem como do aproveitamento do curto aporte de nutrientes logo após a queima. Outro mecanismo é o sincronismo da floração ou germinação associados à queima, estratégia que favorece a ocupação de espaços abertos após o fogo. Como a recuperação da vegetação implica em incremento de fitomassa, com o passar do tempo existe uma tendência ao acúmulo de material combustível. Existindo um iniciador (raio ou o homem) e condições meteorológicas adequadas (principalmente umidade e temperatura), uma nova queimada pode acontecer, fechando o ciclo de distúrbio-recuperação. Sabe-se que a maior contribuição de biomassa combustível das savanas vem do componente herbáceo/subarbustivo, principalmente das gramíneas e ciperáceas (Frost e Robertson ,1987; Pivello e Coutinho, 1992; Miranda et al., 1996; Cheney e Sullivan, 1997). Materiais com até 6mm de diâmetro, chamados de combustíveis finos (Luke e MCArthur, 1978), correspondem à quase totalidade do componente herbáceo/subarbustivo e são a principal fonte de combustível nas queimadas das savanas e campos. Nos cerrados abertos predominam gramíneas perenes, do tipo C4, existindo muita variação na dominância específica conforme a região estudada e o grau de sombreamento (Klink e Joly, 1989). O Parque Nacional das Emas é dominado por uma gramínea C4 perene, o capim-flecha (Tristachya leiostachya) (Ramos Neto e Pinheiro-Machado, 1996). Coutinho (1990) chama a atenção para o comportamento fenológico desta espécie, que seria responsável por um grande incremento de fitomassa combustível, e conseqüente ciclo de queima a intervalos de três a quatro anos, observados até 1994. O evento de queima em áreas de Cerrado, geralmente, provoca a eliminação da parte aérea das plantas do componente herbáceo-arbustivo sem, contudo, provocar uma mortalidade significativa que descaracterize este componente. A vegetação queimada é capaz de rebrotar após alguns dias, mesmo durante a estação seca, devido a diferentes estratégias de proteção das gemas e armazenamento de água e nutrientes. Com a eliminação da parte aérea, a produção primária é alterada (Coutinho et al., 1982; Meirelles e Henriques, 1992), tendendo a se estabilizar com o 81 passar do tempo. A quantidade de combustível acumulada vai depender não só da variação da produtividade primária, mas também das taxas de decomposição e do consumo por herbívoros. A importância dos consumidores primários nos cerrados brasileiros é geralmente subestimada. Saúvas e cupins têm, entretanto, um papel ativo no consumo de fitomassa verde e seca, transportando e transformando grandes quantidades desse material (Coutinho et al., 1982). O conhecimento sobre a dinâmica dos combustíveis é indispensável para a previsão do comportamento das queimadas e do risco de queima. Estas informações são importantes no planejamento do manejo do fogo de uma unidade de conservação em ambientes susceptíveis a ele. A seguir, é apresentada uma caracterização do acúmulo da fitomassa epigéia após uma queima, descrevendo a contribuição dos componentes amostrados e comparando áreas com e sem o capim-flecha (Tristachya leiostachya). 2.5 O capim-flecha na dinâmica do fogo Ramos Neto (2000) mostra o incremento da fitomassa epigéia em áreas com e sem capim-flecha e ressalta diferenças marcantes decorrentes da presença ou não desta espécie. A Figura 51 mostra a variação da fitomassa em áreas com capim-flecha ao longo de sucessivas estações úmidas, evidenciando a contribuição dos seguintes componentes: capim-flecha, graminóides, não- graminóides e serapilheira. A Figura 52 mostra a contribuição relativa desses componentes. Fica evidente a contribuição do capim-flecha e, em menor grau a serapilheira, no acúmulo de fitomassa epigéia. FIGURA 51 – Variação da fitomassa separada em seus componentes após 1, 2, 3 e 4 estações úmidas em campo sujo com capim-flecha (Tristachya leiostachya), no Parque Nacional das Emas, GO. 84 FIGURA 54 – (a) Curvas de acúmulo de combustível (X=(L/k)(1-e-kt)) para campo sujo com e sem capim- flecha (Tristachya leiostachya); (b) Comparação entre os valores obtidos com o modelo (X=(L/k)(1-e-kt)) e os obtidos em campo para área com capim-flecha. 85 Os dados apresentados indicam que tanto a produção, como o acúmulo de combustível, pode não ser constante ano a ano após a queima e que apenas uma espécie, o capim-flecha, pode determinar diferenças significativas na produção e acúmulo de combustível. Os valores de produção encontrados para o Parque Nacional das Emas não são constantes ano a ano. Foi verificado que o primeiro período de observação (1ª estação úmida) apresenta valores de fitomassa não muito elevados, aumentando nas amostragens seguintes. Este aumento é mais evidente na área com capim-flecha (Ramos Neto 2000), onde os valores de fitomassa produzida elevam-se até valores superiores aos apresentados em outros trabalhos, mas ainda dentro do descrito para os cerrados. Nos primeiros meses após a queima é difícil separar visualmente áreas com e sem capim- flecha. As diferenças entre as áreas se tornam mais evidentes no segundo ano após a queima. O evento mais marcante deste período é a floração do capim- flecha, quando ocorre uma mudança radical na fisionomia, refletindo na produção de fitomassa epigéia. As diferenças de produtividade encontradas não devem ser decorrentes de características dos ambientes amostrados, apesar desta ser a explicação intuitivamente mais simples. Não existem diferenças significativas nas quantidades de precipitação entre as duas áreas, nem nas características físicas do solo (Latossolo Vermelho Amarelo distrófico) ou topografia. O lençol freático não é próximo à superfície em nenhuma das áreas que, deste modo, deve ter pouca influência sobre o componente herbáceo/subarbustivo, não devendo ser o responsável pelas diferenças observadas na produtividade. O histórico das queimadas nas últimas três décadas é semelhante para as áreas estudadas. Uma possibilidade seriam as características químicas do solo, mas como se trata de solos naturalmente pobres em nutrientes e ricos em alumínio, as diferenças, se existirem, devem ser sutis. TABELA 14 – Parâmetros e valores obtidos pelo modelo de acúmulo de combustíveis em áreas de campo sujo com e sem predominância de capim-flecha (Tristachya leiostachya) no Parque Nacional das Emas, GO (1997-1998). 86 As diferenças nos resultados nas áreas com e sem capim-flecha, revelam a importância desta espécie. Esta diferença se manifesta basicamente no acúmulo de fitomassa epigéia, que tem o efeito de provocar sombreamento e alterar a disponibilidade de nutrientes, além de aumentar o risco de queima. Como conseqüência, o capim-flecha passa a exercer um importante papel no regime de queima e nos fluxos de energia. Silva e Castro (1989) e Silva et al. (1990) consideram que, apesar do fogo aumentar a mortalidade e reduzir o crescimento de algumas gramíneas perenes, a supressão do fogo também pode trazer efeitos negativos sobre o crescimento individual e populacional de gramíneas perenes, decorrente da acumulação de necromassa. Além da fitomassa, o fogo altera a expressão das espécies. A Tabela 15 e as Figuras 55 e 56 mostram o número médio de morfoespécies por parcelas após a queima, indicando uma redução após a primeira estação úmida. Esta redução está diretamente relacionada com o acúmulo de fitomassa morta, provocando sombreamento das pequenas plantas herbáceas e subarbustivas. TABELA 15 – Número médio de morfoespécies, por parcela, após 1, 2, 3 e 4 estações úmidas, em áreas de campo sujo com e sem a presença do capim-flecha (Tristachya leiostachya), no Parque Nacional das Emas, GO. (Média ± desvio padrão) A conseqüência direta do sombreamento e da disponibilidade de nutrientes é a redução do desenvolvimento das outras espécies do estrato herbáceo/ subarbustivo. A análise do número de morfoespécies por parcela não foi sensível para detectar possíveis variações na riqueza, em grande parte pela ineficiência do método. No entanto, a eqüitatividade, parece estar reduzida nas áreas com capim-flecha, já que a dominância do capim-flecha aumenta ano a ano. Na ausência do fogo, observando a curva de acúmulo de combustível, pode-se pensar, caso não exista nenhum outro mecanismo de controle, que a quantidade de fitomassa acumulada seria tanta, que o sombreamento e indisponibilidade dos nutrientes determinaria a dominância total do capim-flecha. Este caso extremo não pode ser verificado, pois segundo França e Setzer (1997), nenhuma área do Parque ficou, nas últimas décadas, mais de seis anos sem queimar. 89 Redford (1984) considerou o cupim Cornitermes cumulans como espécie- chave na área do Parque Nacional das Emas. Pelas definições apresentadas, esta espécie é muito mais uma espécie-engenheira do que uma espécie-chave, já que participa ativamente da estrutura e no funcionamento do ecossistema. Do mesmo modo, o capim-flecha pode ser considerado como espécie-engenheira na área do Parque, pois apresenta grande densidade populacional, grande tempo de permanência, ampla distribuição espacial, capacidade de alterar de forma significativa a estrutura do ambiente e regular indiretamente grande parte dos recursos disponíveis. A regulação dos recursos se dá porque a presença desta espécie torna o ambiente mais suscetível ao fogo. O risco de queima em áreas com capim-flecha é quase o dobro daquele onde esta espécie está ausente. Devido à maior quantidade de combustível acumulado, a intensidade de queima também tende a ser maior, mobilizando uma quantidade maior de nutrientes e afetando mais fortemente o componente arbóreo. É possível que a presença de capim-flecha propicie uma gradual redução na densidade de elementos arbóreos, quando comparado com áreas sem esta espécie, merecendo estudos específicos para avaliar este impacto. Não existem informações sobre o comportamento do capim-flecha em relação à colonização de novas áreas. Esta avaliação é importante, já que ainda existem áreas sem a presença desta espécie no Parque. A agressividade expressa no aumento da dominância que esta espécie apresenta lembra o comportamento de uma espécie invasora. Para esta espécie devem ser avaliados tanto os potenciais de colonização por reprodução sexuada, como a expansão por reprodução vegetativa. No período de 1995 a 1999, avanço ou retração dos limites da distribuição do capim-flecha não foram perceptíveis. Parte dos limites estão mapeados e inseridos em sistema de informações geográficas, mas a precisão das medidas (±50 metros) ainda não permitiu identificar alterações. A Tabela 16 apresenta algumas informações sobre o esforço reprodutivo do capim-flecha (Ramos Neto e Pinheiro-Machado, 1996) indicando que, apesar da grande produção de cariopses, a maioria não forma sementes. De qualquer modo, como a produção de cariopses é muito grande, o número de sementes produzidas acaba sendo alto. Conseqüentemente, o potencial de colonização ou adensamento pelo estabelecimento de novas plantas também é grande. Observações iniciais indicam que o brotamento do capim-flecha é maior após a ocorrência de fogo, o que levaria a um adensamento de suas touceiras e aumento da dominância. Já a reprodução por sementes é prejudicada por queimadas anuais, pois a espécie só se reproduz sexuadamente na segunda estação úmida. Levantamentos realizados por Ramos Neto e Pinheiro-Machado (1996) indicam a presença de plântulas de capim-flecha apenas durante a segunda estação úmida (outubro, 1,26 plântulas/m2). Já as outras graminóides estão presentes nas amostragens da primeira, segunda e terceira estações úmidas, e a maior densidade de plântulas também foi encontrada durante a segunda estação úmida (1,33 plântulas/m2) (Tabela 16). 90 Estudos sobre a biologia do capim-flecha e monitoramento de sua expansão são imprescindíveis para a compreensão dos impactos desta espécie sobre o funcionamento e diversidade das áreas de cerrado do Parque Nacional das Emas. Questões relacionadas à competição do capim-flecha com outras espécies, em diferentes regimes de queima devem ser aprofundadas. Tópicos de interesse para o manejo do Parque serão abordados adiante. TABELA 16 – Informações sobre o esforço reprodutivo do capim-flecha (Tristachya leiostachya) em área de campo sujo do Parque Nacional das Emas, GO, (Ramos Neto e Pinheiro-Machado 1997). 2.6 A sazonalidade no processo de recuperação de áreas queimadas A precipitação anual é indicada como a variável climática mais fortemente relacionada à produtividade primária anual (Webb et al., 1983; Sala et al., 1988; Briggs e Knapp, 1995). No entanto, Lauenroth (1979) sustenta que nem sempre a precipitação anual é o fator mais importante na determinação da magnitude da produtividade primária, especialmente em áreas de alta precipitação. Nesses casos, a distribuição da precipitação e a fertilidade do solo podem ter influências significativas na produtividade. Vários trabalhos discutem as relações entre produtividade e propriedades climáticas, interações com o substrato, temperatura e fogo (Lauenroth, 1979; Schimel et al., 1985; Whelan, 1995). Uma das principais características das savanas é a marcante sazonalidade das chuvas. Como os ritmos fenológicos da vegetação de savana estão fortemente relacionados a esta sazonalidade (Sarmiento, 1984), variações na época da queima podem trazer conseqüências para a produtividade primária (Coutinho, 1982; Pandey e Singh, 1992) e a floração (Coutinho, 1976). Assim, informações sobre variação da produtividade primária e fenologia em relação à época de queima são importantes para o manejo dos ecossistemas (Sarmiento e Monasterio, 1983), pois queimadas fora de época podem encontrar a vegetação mais vulnerável a tal distúrbio. Deste modo, espécies que têm seu período reprodutivo interrompido por uma queimada podem perder os recursos investidos na produção de flores e, conseqüentemente, permanecer sem produzir propágulos por um período de tempo maior. 91 Considera-se que a extensão máxima da estação de queima dos cerrados vai de maio a outubro, sendo que as queimadas se concentram normalmente no período seco. Com exceção dos trabalhos de Coutinho (1976) e Coutinho et al., (1982), que apresentam queimadas experimentais em dezembro e janeiro, respectivamente, nenhum dos trabalhos consultados apresenta dados sobre queimadas no cerrado durante a estação úmida. Coutinho (1990) chama a atenção para a presença do veranico, em janeiro, como possível época para ocorrência de queimadas, mas ressalta que, em qualquer período, a vegetação de cerrado é suscetível ao fogo. O padrão atualmente aceito de queima durante a estação seca é evidentemente antropogênico, pois a ocorrência de tempestades de raio, o único iniciador de queimadas naturais nos cerrados, tem início em setembro e se estende por toda estação úmida. A idéia corrente de estação de queima nas pradarias americanas corresponde, assim como o apresentado para os cerrados, mais a um padrão antropogênico de queima do que a um padrão natural (Howe, 1995). Da mesma forma que nos cerrados, queimadas antropogênicas nas pradarias americanas ocorrem no período mais seco, que abrange o inverno, primavera e outono, quando o crescimento da vegetação é menor. No entanto, queimadas naturais provocadas por raios acontecem no verão, estimulando a floração e o recrutamento de espécies. As queimadas na estação úmida são possíveis e podem ser freqüentes, como no caso do Parque Nacional das Emas. Este padrão de queimadas na época chuvosa é mais próximo do que seria o padrão natural, já que a sua ocorrência tem causas exclusivamente naturais. Como queimadas durante a estação úmida ocorrem no período de crescimento das plantas, seus efeitos devem ser distintos dos observados na época seca, quando o crescimento é diminuído. Os valores de produtividade primária encontrados por Ramos Neto (2000) estão dentro do esperado para áreas de savana e cerrado, podendo ser considerados baixos para o tratamento da seca e médios para os tratamentos da transição e da estação úmida. Coutinho et al., (1982) também encontraram uma produtividade maior em uma queimada realizada em estação úmida (janeiro, 6 a 7t/ha) em comparação com uma outra realizada na estação seca (junho, 5,5 t/ha), ambas em área de Cerrado em Pirassununga, São Paulo. Os valores de ppl encontrados no tratamento de junho foram significativamente inferiores aos encontrados para os tratamentos de setembro e novembro, mas são superiores aos encontrados por Meirelles e Henriques (1992), sendo próximo do valor encontrado por Batmanian (1983) e Cesar (1980). A quantidade de chuva e sua distribuição, os nutrientes disponíveis no solo, a herbivoria e o fogo são os quatro principais fatores determinantes do funcionamento das savanas (Huntley e Walker, 1982; Tothill e Mott, 1985; Frost e Robertson, 1987; Pandey e Singh, 1992; Burke et al., 1997), sendo a precipitação e a disponibilidade de nutrientes os mais importantes na determinação da produção primária logo após o fogo, em savanas tropicais. Whelan (1995) resume que o incremento da produtividade como resposta ao fogo pode ser decorrente 94 um menor incremento de fitomassa em área cujas cinzas provenientes da queima foram retiradas. É necessário ressaltar que a ocorrência de geadas é comum durante a estação seca e, quanto menor a quantidade de cobertura vegetal, mais intenso podem ser seus efeitos deletérios sobre a rebrota. No período de estudo foi verificado que as áreas queimadas em junho perderam praticamente toda rebrota após uma geada ocorrida no final de julho. Estas geadas, que ocorrem periodicamente na área do Parque, apresentam intensidades variadas e nos eventos mais fortes chegam a atingir grande parte das folhas altas das florestas. Os cerrados, por apresentarem folhas mais coriáceas, sofrem menos com estes eventos, exceto as folhas novas provenientes das rebrotas. Estas podem ser destruídas em grande parte, tendo a planta que lançar nova rebrota. Em resumo, a resposta da vegetação parece ser função de três fatores, sendo importante como eles se configuram logo após o fogo. A água, as cinzas (disponibilidade de nutrientes) e a radiação apresentam papéis diferentes ao longo do tempo, exercendo o controle principal da produtividade primária. A ocorrência de geadas pode ser um quarto fator facultativo. Destes quatro, a disponibilidade de água parece ser o fator principal pois, sem esta, o crescimento é mínimo. Quando a água é disponível logo após a queima, a resposta dependerá da disponibilidade de nutrientes e da radiação. Assim, conforme apresentado anteriormente, o capim-flecha teve, nas três situações (queima na seca, transição e estação úmida), a maior contribuição para o incremento de fitomassa epigéia. O capim-flecha é uma gramínea hemicriptófita que apresenta suas gemas apicais protegidas por uma túnica de folhas velhas (Rachid-Edwards, 1956), o que permite o rápido e vigoroso brotamento após o fogo. Apenas na amostra de 30 dias após a queima, no tratamento da estação úmida, a fitomassa das graminóides foi superior à do capim-flecha. A superação da fitomassa do capim-flecha neste tratamento foi decorrente da presença de maior fitomassa das graminóides, e não da redução de fitomassa do capim-flecha. Em queimadas durante a estação úmida, observa-se que a floração do capim-flecha pode acontecer em um ano após a queima, ao contrário do observado em queimadas durante a estação seca, quando ela ocorre quase dois anos depois. Isso possivelmente decorre do fato da floração acontecer somente quando a parte vegetativa atinge um desenvolvimento mínimo. Sabe-se que esta espécie começa o processo de floração em novembro, atingindo seu ápice em dezembro e janeiro. No caso de queimadas durante a estação seca, o desenvolvimento das touceiras é inicialmente retardado por falta de água, aumentando posteriormente com as chuvas. O desenvolvimento alcançado pelas touceiras na época de floração (novembro/dezembro), no entanto, não é suficiente para o desenvolvimento das hastes, pois decorreram apenas dois ou três meses de chuva. Com o avançar da estação úmida, as touceiras se desenvolvem até o início da estação seca, passando por um período de redução na taxa de crescimento e voltam a crescer na nova estação úmida seguinte. Só em novembro/ dezembro da segunda estação úmida, decorridos cerca de 510 dias da queima ocorrerá, então, a floração. 95 Para as queimadas durante a estação úmida, o crescimento das touceiras começa imediatamente após a queima e se mantém por tanto tempo quanto persistirem as chuvas. Durante o período de seca, há uma redução no crescimento, mas as touceiras já estão suficientemente grandes para florir, fato que acontece em novembro/dezembro – decorridos cerca de 390 dias após a queima de novembro. Para as queimadas durante os meses de transição, observa-se um comportamento semelhante àquele nas queimadas na época úmida, sendo que a floração corre com cerca de 420 dias após a queima. O número de morfoespécies por parcela não é a maneira mais acurada de medir a variação da diversidade ao longo do tempo, mas pode ser uma alternativa em situações em que a capacidade de identificação taxonômica é reduzida. Como as informações contidas numa parcela não são consideradas na amostragem da parcela seguinte, não é possível a determinação da riqueza total, servindo apenas para a obtenção de informações sobre a riqueza intraparcelas. A utilização de morfoespécies por parcela, no entanto, é capaz de indicar variações quantitativas sazonais ou entre tratamentos. Os resultados mostram, para os três tratamentos, uma variação semelhante no número de morfoespécies por parcela, apesar de existirem diferenças significativas entre as amostras (Figuras 58 e 59). A maior contribuição no número de morfoespécies por parcela é dada pelo componente não-graminóide, chegando a um número médio por parcelas superior a 14, contra uma média máxima de morfoespécies de graminóides de 6,64 por parcela. O número médio máximo encontrado foi superior a 20 morfoespécies por parcela. FIGURA 58 – Número médio de morfoespécies por parcelas nos tratamentos da estação seca (junho), transição (setembro) e estação úmida (novembro), em campo sujo do Parque Nacional das Emas, GO. 96 A primeira amostragem apresentou o menor número de morfoespécies por parcelas, para os três tratamentos. Este resultado indica que o tempo de 30 dias após a queima não é suficiente para a volta ao número de morfoespécies encontrado em estados mais tardios, principalmente para espécies não graminóides. Com 60 dias após a queima, nos tratamentos da transição e da estação úmida, o número de morfoespécies por parcelas atinge o seu máximo, enquanto que o máximo do tratamento da estação seca se dá em 150 dias após a queima. Mais uma vez, o período seco, após a queima em junho, resulta numa resposta pós-fogo retardada em relação às queimadas das épocas de transição e úmida. Isto corrobora a observação que existe alguma limitação sazonal em relação à água ou nutrientes para a maioria das espécies herbáceas das savanas tropicais (Medina, 1987). O número médio de morfoespécies encontrado após a primeira estação úmida, em área com capim-flecha queimada em junho (Ramos Neto, 2000), foi superior ao encontrado para os tratamentos da seca e transição, sem apresentar maiores valores de fitomassa. A distribuição do número médio de morfoespécies floridas por parcela apresentou uma forma semelhante para os três tratamentos, existindo apenas maior “intensidade” de floração do tratamento da estação úmida e uma defasagem no pico de floração no tratamento da estação seca, sendo este mais tardio. Em todas as amostragens ocorreram morfoespécies floridas, indicando que, mesmo em condições de seca, existem condições de floração. FIGURA 59 – Número médio de morfoespécies por parcela nos três tratamentos, separados em graminóides e não graminóides, em campo sujo do Parque Nacional das Emas, GO.
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