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Prevenção e atenção às ist/aidsna saúde mental no brasil:análises, desafios e perspectivas, Notas de estudo de Enfermagem

PREVENÇÃO E ATENÇÃO ÀS IST/AIDS NA SAÚDE MENTAL NO BRASIL: ANÁLISES, DESAFIOS E PERSPECTIVAS

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 16/07/2010

gerson-souza-santos-7
gerson-souza-santos-7 🇧🇷

4.8

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Baixe Prevenção e atenção às ist/aidsna saúde mental no brasil:análises, desafios e perspectivas e outras Notas de estudo em PDF para Enfermagem, somente na Docsity! PREVENÇÃO E ATENÇÃO ÀS IST/AIDS NA SAÚDE MENTAL NO BRASIL: ANÁLISES, DESAFIOS E PERSPECTIVAS MINISTÉRIO DA SAÚDE Brasília - DF 2008 PREVENÇÃO E ATENÇÃO ÀS IST/AIDS NA SAÚDE MENTAL NO BRASIL: ANÁLISES, DESAFIOS E PERSPECTIVAS SÉRIE B. TEXTOS BÁSICOS DE SAÚDE SÉRIE PESQUISAS, ESTUDOS E AVALIAÇÃO, N. 11 BRASÍLIA - DF 2008 MINISTÉRIO DA SAÚDE Secretaria de Vigilância em Saúde Programa Nacional de DST e Aids “Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.” João Guimarães Rosa GRANDE SERTÃO: VEREDAS, 1956 SUMÁRIO PREFÁCIO INTRODUÇÃO CAPÍTULO 1 POLÍTICAS PÚBLICAS DE PREVENÇÃO E ATENÇÃO ÀS IST/HIV/AIDS NOS SERVIÇOS DE SAÚDE MENTAL NO BRASIL CAPÍTULO 2 O DESAFIO DE CONSTRUIR A INTEGRALIDADE DAS AÇÕES EM SAÚDE MENTAL E IST/AIDS NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE CAPÍTULO 3 SINTESE DE REVISÃO DA LITERATURA: PREVALÊNCIA DE IST E COMPOR TAMENTOS DE RISCO EM PACIENTES PSIQUIÁTRICOS CAPÍTULO 4 PROJETO PESSOAS - METODOLOGIA DOS COMPONENTES QUANTITATIVO E QUALITATIVO CAPÍTULO 5 PROJETO PESSOAS - RECRUTAMENTO E ANÁLISE DESCRITIVA CAPÍTULO 6 PROJETO PESSOAS - AVALIAÇÃO DE SERVIÇOS DE SAÚDE MENTAL NA ASSISTÊNCIA E PREVENÇÃO ÀS INFECÇÕES SEXUALMENTE TRANSMISSÍVEIS CAPÍTULO 7 PROJETO PESSOAS - PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES DE PESSOAS COM TRANSTORNOS MENTAIS SOBRE AS INFECÇÕES SEXUALMENTE TRANSMISSÍVEIS E A AIDS E SUAS FORMAS DE PREVENÇÃO CAPÍTULO 8 MODELOS DE INTERVENÇÃO: UMA ALTERNATIVA DE PREVENÇÃO ÀS IST/HIV PARA PACIENTES COM TRANSTORNOS MENTAIS – PROJETO PRISSMA CAPÍTULO 9 PROJETO PESSOAS - DISCUSSÃO, RECOMENDAÇÕES E PERSPECTIVAS 7 9 13 19 31 33 51 71 85 109 127 ANEXOS ANEXO A – QUESTIONÁRIO DE AVALIAÇÃO PRELIMINAR ANEXO B – ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA ANEXO C – QUESTIONÁRIO DE AVALIAÇÃO DOS SERVIÇOS DE SAÚDE ANEXO D – PROTOCOLO GERAL ANEXO E – CONTROLE DE AGENDAMENTOS ANEXO F – ACONSELHAMENTO ANEXO G – FLUXOGRAMA E INSTRUTIVOS DE COLETA DE SANGUE ANEXO H – ENTREVISTA DE SEGUIMENTO ANEXO I – ROTEIRO DA ENTREVISTA QUALITATIVA ANEXO J – IMPRESSÕES GERAIS DO SUPERVISOR DE CAMPO SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA EM SEU SERVIÇO PÁGINAS DE INTERESSE EQUIPE TÉCNICA 137 142 180 202 212 214 220 231 239 241 251 252 9 INTRODUÇÃO Indivíduos portadores de transtornos mentais (PTM) estão potencialmente sujeitos a um maior risco de diversas condições de saúde, incluindo as infecções sexualmente transmissíveis (IST); dentre essas, a infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV), a sífilis e as hepatites B e C. Características clínicas e comportamentais, além das condições sociais, são os principais fatores associados à uma maior vulnerabilidade dessa população (COURNOS, 1997; ROSENBERG, 2001). Chama atenção a falta de uma política pública voltada para os PTM que vise não somente aos aspectos psiquiátricos, mas também aqueles voltados para a saúde integral dos pacientes. Além disto, ainda são limitados os estudos que avaliam a importância e magnitude das IST e as condições de vulnerabilidade nessa população. Em geral, são estudos com pequeno tamanho amostral, sem uma adequada representatividade, podendo gerar indicadores de risco e prevalências de IST superestimadas, tanto no Brasil quanto em outros países. Nesse sentido, em julho de 2002, o Programa Nacional de DST e Aids (PN-DST/ AIDS) publicou um edital cujo principal objetivo foi o desenvolvimento de uma pesquisa nacional com amostra representativa que fosse capaz de estimar estes indicadores, estabelecendo assim um importante marco para o desenvolvimento de políticas públicas voltadas para a prevenção e atenção às IST entre os PTM no país. Em resposta ao edital, em agosto de 2002, o Grupo de Pesquisas em Epidemiologia e Avaliação em Saúde, Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (GPEAS/UFMG), apresentou uma proposta que foi aprovada pelo PN-DST/AIDS em dezembro do mesmo ano. Os principais objetivos desta proposta foram: 1) determinar a prevalência de HIV, sífilis e hepatites B e C em hospitais psiquiátricos e em serviços substitutivos (CAPS) públicos; 2) descrever o perfil sociodemográfico, de comportamento e situação de risco, e de atenção à saúde; 3) avaliar a existência de associação entre a prevalência de HIV, sífilis e hepatites B e C e as características sociodemográficas, de comportamento e situação de risco, e de atenção à saúde dos participantes; 4) avaliar a estrutura dos serviços (hospitais, CAPS) envolvidos no estudo; e 5) descrever os aspectos etnográficos/qualitativos e de representação social dos participantes. Diante dos desafios metodológicos de um projeto desse porte e das limitações orçamentárias do edital, optou-se pela realização de um estudo-piloto preliminar que avaliasse a viabilidade do projeto principal, em estreita colaboração entre o GPEAS/ UFMG, a Coordenação Geral de Saúde Mental do Ministério da Saúde (CSM) e o PN- DST/AIDS; nasceu assim o Projeto PESSOAS (Pesquisa em Soroprevalência de Aids na Saúde Mental). O estudo-piloto ocorreu entre 2003 e 2004, tendo sido financiado pelo PN-DST/AIDS (PROJETO 914/BRA/3014 – UNESCO) e desenvolvido em Belo Horizonte em um hospital psiquiátrico e em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Foram 10 avaliados aspectos específicos de viabilidade tais como estimativas de participação, obtenção de consentimento, avaliação de confiabilidade do questionário semi- estruturado e do instrumento de avaliação dos serviços. A duração das entrevistas, as dificuldades operacionais para coleta de sangue e a realização das sorologias propostas foram também avaliadas. Os resultados do estudo-piloto indicaram a viabilidade do estudo nacional, com aspectos as serem aperfeiçoados, dentre os quais um detalhado planejamento de coleta, armazenamento dos soros e realização dos exames (GUIMARÃES, 2004). Os instrumentos se mostraram confiáveis e adequados para o estudo proposto (GUIMARÃES, 2008; OLIVEIRA, 2006). Após o estudo-piloto, o projeto principal foi novamente submetido ao PN-DST/ AIDS, tendo sua aprovação final ocorrido em 2005. Foi feito um redimensionamento do protocolo, com adequação dos instrumentos, ajuste do plano amostral e convite aos centros, além dos trâmites éticos e administrativos pertinentes. A viabilidade operacional do projeto foi conseguida por meio de uma ampla colaboração interinstitucional envolvendo as Unidades de Assistência e Tratamento (UAT), Laboratorial (ULAB) e de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico (UPDT) do PN-DST/AIDS, a Coordenação Geral de Saúde Mental do Ministério da Saúde, a Fundação Ezequiel Dias (FUNED), as Coordenações Estaduais/Municipais de DST e Aids e de Saúde Mental e os centros participantes, além da Universidade Federal de Minas Gerais como instituição executora, através do GPEAS. Os anos seguintes, 2006 e 2007, foram dedicados às articulações com os centros, treinamento das equipes, coleta e processamento dos dados. Finalmente, a produção dos primeiros resultados preliminares do Projeto foi apresentada em seminário realizado no mês de agosto de 2007, em Brasília. A Figura 1 mostra o cronograma geral do projeto. Desde a publicação do edital até a divulgação desses resultados passaram- se cinco anos de intenso trabalho e dedicação dos pesquisadores, dos supervisores de centros, de toda a equipe do PN-DST/AIDS e da Coordenação Geral de Saúde Mental, envolvidos diretamente no projeto. Com o lançamento desta publicação, esperamos poder contribuir para uma ampla divulgação da situação epidemiológica e assistencial investigada. Esta divulgação está direcionada para toda a rede de atenção aos PTM no Brasil, e também para organizações não-governamentais e entidades da sociedade civil interessadas e preocupadas com a saúde integral desta e de outras populações, o que inclui a prevenção às IST, em especial o HIV/aids. Os resultados da presente investigação propiciam a estes atores sociais delinear com maior propriedade o problema aqui enfocado, bem como um projeto para seu adequado enfrentamento, com vistas a negociar a sua inclusão na agenda de temas prioritários que devem ser alvo de políticas públicas. Entende-se aqui política pública como a resposta dada pelo Estado a um conjunto de demandas postas pela sociedade (MATTOS, 1999). Ao responder a esta necessidade vivida ou manifestada pela sociedade, o Estado empresta ao problema maior ou menor importância, define seu caráter, lança mão de instrumentos para seu 11 equacionamento, define responsabilidades e adota, ou não, planos de trabalho ou programas (TEIXEIRA, 1997). A resposta do poder público aos preocupantes resultados aqui descritos consiste em um desafio de enorme magnitude e compromisso social, mas entendemos ser este um compromisso fundamental de todos aqueles envolvidos direta ou indiretamente no Projeto PESSOAS, desde sua origem. Neste documento, inicialmente procuramos abordar o tema sob a perspectiva dos dois programas nacionais diretamente envolvidos no Projeto PESSOAS, i.e., o PN- DST/AIDS e a Coordenação Geral de Saúde Mental do Ministério da Saúde (Capítulo 1). Em seguida, apresentamos uma reflexão sobre a integralidade do cuidado à saúde enfatizando as interfaces entre as IST/AIDS e a saúde mental no Brasil (Capítulo 2). O Capítulo 3 apresenta síntese de artigo de revisão da literatura recentemente publicado nos Cadernos de Saúde Pública (CAMPOS et al., 2008), com ênfase em dados atualizados sobre a prevalência das infecções pelo HIV, sífilis e hepatites entre pacientes psiquiátricos no Brasil e no mundo, bem como os principais fatores que potencialmente colocam esta população em maior risco para as IST. O artigo pode ser acessado na íntegra em http:// www.ensp.fiocruz.br/csp/bib.html. Em seguida, descrevemos uma síntese metodológica do projeto PESSOAS (Capítulo 4) com os principais resultados do recrutamento, descrição da população estudada e soroprevalências no Capítulo 5, e da avaliação dos serviços participantes no Capítulo 6. O Capítulo 7, finalmente, é dedicado aos resultados do componente qualitativo do Projeto PESSOAS. Concluímos com dois capítulos, um deles descreve um modelo de intervenção para pacientes com transtornos mentais graves adaptado à realidade brasileira, ainda em avaliação (Projeto PRISSMA) (Capítulo 8) e o outro que discute os principais resultados do Projeto PESSOAS, aponta recomendações e aborda as perspectivas de colaboração com outros grupos de pesquisa no Brasil e no mundo (Capítulo 9). REFERÊNCIAS CAMPOS, L. N. et al. HIV, syphilis and hepatitis B and C prevalence among patients with mental illness: a review of the literature. Cadernos de Saúde Pública, [S.l.], 2008. In press. COURNOS, F.; MCKINNON, K. HIV seroprevalence among people with severe mental illness in the United States: a critical review. Clinical Psychology Review, [S.l.], v. 17, p. 259-269, 1997. GUIMARÃES, M. D. C. et al. Reliability and validity of a questionnaire on vulne-rability to sexually transmitted infections among adults with chronic mental illness –PESSOAS Project. Brazilian J. Psychiat, [S.l.], v. 30, n. 1, p. 55-59, 2008. GUIMARÃES, M. D. C. PROJETO PESSOAS - Estudo de soroprevalência da infecção pelo HIV, sífilis, hepatites B e C em instituições públicas de atenção em saúde mental: um estudo multicêntrico nacional - Avaliação preliminar. Relatório técnico final. [S.l.: s.n.], 2004. 47 p. 14 Com essa perspectiva, a prevenção e atenção às IST e ao HIV/aids nos serviços de saúde mental coloca em evidência a necessidade de novas abordagens da sexualidade e o sofrimento mental. Com este novo olhar, a sexualidade deixa de ser vista como sintoma para ser encarada como algo saudável e desejável, em uma perspectiva de qualidade de vida e direitos humanos capaz de reconhecer e aceitar a diversidade, e não como mais um fator de discriminação e exclusão. Esta visão integradora possibilita uma reflexão sobre a qualidade da atenção e sobre o enfrentamento de questões relativas à discriminação e ao estigma que permeiam a vida social e familiar, além do tratamento. Coloca também em evidência a necessidade urgente de um novo olhar em relação às IST, ainda negligenciadas em nosso país. Esta publicação busca, com este objetivo, divulgar o resultado de um esforço conjunto da Coordenação Geral de Saúde Mental e do Programa Nacional de DST e Aids do Ministério da Saúde no sentido de gerar novos conhecimentos, buscando promover uma política científica e tecnológica integradora e abrangente, capaz de inovar e produzir resultados compatíveis com as crescentes demandas que vêm sendo colocadas por esses novos paradigmas. Embora tenha ocorrido no país, nas duas últimas décadas, uma ampliação significativa do financiamento em pesquisa e desenvolvimento tecnológico em IST/HIV/aids e saúde mental, ainda são poucos os estudos voltados a questões que estão na interface entre estas duas áreas do conhecimento. É essa lacuna que este livro se propõe a explorar. Os indicadores e informações aqui apresentados, ainda que parciais, certamente contribuirão para o equacionamento de algumas das questões que estão na convergência destas duas políticas públicas. O desafio, diante dos resultados apresentados, será a integração dos esforços na interface entre ambas as políticas, para assegurar que de fato ocorra a necessária incorporação dos conhecimentos gerados ao processo decisório governamental nos diversos níveis de prevenção e atenção: federal, estadual e municipal. Não basta, no entanto, a geração de novos conhecimentos e tecnologias. É necessário que o sistema de saúde se reestruture para efetivamente incorporá- los. Nesse sentido, como se verá a seguir, em que pese as importantes conquistas historicamente alcançadas, é essencial a clareza na identificação dos novos desafios que terão de ser enfrentados. Um balanço dos 20 anos da Reforma Psiquiátrica no Brasil revela importantes avanços, com um saldo bastante positivo, mas também indica obstáculos a ser superados. A reforma possibilitou a construção e a incorporação de novos referenciais na atenção aos chamados portadores de transtornos mentais no país. Esses novos referenciais permitiram a introdução de conceitos inovadores, recolocando a noção de transtorno mental e de loucura em uma nova perspectiva, a de sofrimento mental. 15 Foi possível sobretudo a importante conquista da desinstitucionalização, com a gradual redução de leitos em hospitais psiquiátricos que, na maioria dos casos, não passavam de depósitos de enfermos e excluídos, rompendo com uma situação de extrema perversidade social e com o modelo assistencial que favorecia a ocupação indiscriminada desses leitos. Viabilizou-se, com isso, a concepção e implantação gradual de um novo modelo de cuidado, extra-hospitalar e de base comunitária, que fomenta o protagonismo, a autonomia e a co-responsabilidade dos gestores, trabalhadores, usuários e rede social. O novo modelo possibilitou uma significativa melhora no tratamento dos portadores de transtornos mentais na rede de atenção psicossocial, com a criação de Centros de Atenção Psicossocial - CAPS (hoje em número 1.189) e de residências terapêuticas, ampliação de leitos em hospitais gerais, inclusão de ações de saúde mental na Atenção Básica e a criação do Programa “De volta para casa”. Este novo modelo baseou-se em alguns princípios fundamentais: inclusão social, ao priorizar tratamentos que possibilitam que o indivíduo mantenha a convivência com a família e com a sociedade; acolhimento integral, enfatizando a não-discriminação e a promoção dos direitos humanos; integração com a atenção básica e apoio às equipes do Programa de Saúde da Família, promovendo o atendimento integral e rejeitando a ênfase na atenção hospitalar. Esses avanços sem dúvida, facilitam a integração da Política Pública em Saúde Mental com as demais Políticas de Prevenção e Atenção no SUS, como, entre outras, as referentes às IST/HIV/aids. Essa integração permitirá novos avanços na Reforma Psiquiátrica, introduzindo, em uma perspectiva revolucionária e integradora, a dimensão da qualidade de vida e saúde integral aos portadores de sofrimento mental. A pobreza, a exclusão social e a vulnerabilidade dessa população a agravos diversos de saúde além do sofrimento mental, entre os quais as doenças infecciosas e as doenças sexualmente transmissíveis, impõem que se repensem as atuais estratégias setorializadas, focalizadas exclusivamente nas ações em prevenção e atenção em saúde mental, estendendo-as para uma visão mais ampla de saúde coletiva. Em outras palavras, isso significa compreender a Reforma Psiquiátrica na perspectiva da Reforma Sanitária Brasileira. Tal integração irá requerer, com esse enfoque, que se reforcem e se agilizem os mecanismos necessários de referência e contra-referência, não apenas no âmbito da rede de serviços de saúde mental, mas também nos demais; no caso, os serviços de prevenção e atenção às IST/HIV/aids. Ela deverá se realizar na perspectiva do acesso universal com qualidade, assegurando a adequada disponibilidade de insumos de prevenção, diagnóstico, aconselhamento e tratamento. Esse esforço integrador, para ser bem sucedido, deverá apoiar-se no fortalecimento da política científica e tecnológica, tanto em saúde mental quanto em IST/HIV/aids, o 16 que exigirá estratégias diversas. Destacam-se, entre essas, o necessário apoio a estudos sentinela e a pesquisas multicêntricas de âmbito nacional e regional que possibilitem ações baseadas em informações de qualidade (epidemiológicas, sociais e outras), assegurando-se a efetiva incorporação do resultado dessas pesquisas ao processo decisório governamental. Para tanto, será necessária maior interação entre os serviços e as instituições de pesquisa, além das universidades, públicas ou privadas. Os resultados do Projeto PESSOAS apresentados neste livro ilustram bem a importância de investigações dessa natureza, voltadas à articulação entre pesquisas e serviços. Tais investigações, que, pela primeira vez, permitiram dimensionar em escala nacional as condições de vulnerabilidade dos portadores de sofrimento mental ao HIV/ aids e outras IST, apontam para a urgência de intervenções nesse campo, subsidiando possíveis estratégias colaborativas de ação. Essas estratégias colaborativas impõem a necessidade urgente de uma agenda conjunta entre a Coordenação Geral de Saúde Mental e o PN-DST/AIDS, no tocante à sua política científica e tecnológica, subsidiando a integração de suas políticas setoriais. A colaboração entre a Coordenação Geral de Saúde Mental e o PN-DST/AIDS, embora bem sucedida, se concentrou até o momento no Projeto PESSOAS aqui apresentado, na política de redução de danos aos usuários de álcool e outras drogas nos CAPS e no apoio a projetos com organizações não-governamentais. Embora os esforços tenham sido até aqui muito bem sucedidos, é necessário agora avançar. Os recursos da Coordenação Geral de Saúde Mental e os significativos investimentos em pesquisa e desenvolvimento tecnológico pelo PN-DST/AIDS (nos últimos quatro anos, da ordem de 32 milhões de reais), poderão viabilizar outras estratégias colaborativas, favorecendo uma nova agenda conjunta em pesquisa e desenvolvimento, em apoio à prevenção e atenção às IST/HIV/aids para os pacientes portadores de sofrimento mental. Para tanto, esta nova agenda conjunta deverá contemplar, com dinamismo e ousadia, quatro estratégias básicas: capacitação de recursos humanos; melhoria da qualidade da informação; elaboração de indicadores para monitoramento e avaliação; e ampliação significativa do investimento em ciência, tecnologia e inovação, apoiando redes nacionais e internacionais de pesquisa, a exemplo da Rede de Pesquisa em Saúde Mental e IST/HIV/aids, em estruturação a partir do projeto PESSOAS. 19 1 Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais 2 Departamento de Farmácia Social, Faculdade de Farmácia, Universidade Federal de Minas Gerais 3 Instituto Raul Soares, FHEMIG CAPÍTULO 2 O DESAFIO DE CONSTRUIR A INTEGRALIDADE DAS AÇÕES EM SAÚDE MENTAL E IST/AIDS NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE Mariângela Leal Cherchiglia1 , Francisco de Assis Acurcio2 , Ana Paula Souto Melo3 INTRODUÇÃO O final dos anos 1970 e o começo dos 1980 constituíram-se como um marco na política brasileira em torno do processo de redemocratização do país. Inúmeras forças sociais, representadas por sindicatos, entidades profissionais, associações de bairros, movimentos contra a carestia, minorias excluídas e partidos políticos empreenderam uma luta engajada, formando um bloco expressivo de pressão para exigir do governo militar mudanças estruturais importantes. A vitória democrática da oposição em 1982, nos principais estados brasileiros, abriu espaço para que representações das forças sociais, que se fortaleceram ao longo da década de 1970, ocupassem posições estratégicas nos setores decisórios do cenário político do país, fato que foi fundamental para a discussão e implantação de políticas públicas reformadoras, ainda que em um primeiro momento circunscritas a alguns estados brasileiros (MARQUES, 2002). Nesse contexto de combate ao Estado autoritário, emergem críticas à ineficiência da assistência pública em saúde e ao caráter privatista da política de saúde do governo federal ao mesmo tempo em que se inicia a implantação de programas de saúde baseados nos princípios norteadores do projeto delineados pelo movimento sanitário brasileiro, ou seja, eqüidade, universalidade e saúde como um direito e dever do Estado (TENÓRIO, 2002). Ao se articularem, os crescentes movimentos sociais em defesa desses princípios e diretrizes, marcando uma mudança de sistema de saúde no Brasil e o início do processo de redemocratização, formaram o pano de fundo para que os atores dessa história dessem início à construção de políticas específicas, coerentes com o novo modelo assistencial proposto, a exemplo da política de enfrentamento ao HIV/aids no país, além de lutar por uma reforma psiquiátrica baseada na desinstitucionalização da atenção e reinserção social dos portadores de sofrimento mental (ALVES, 2006; MARQUES, 2002). 20 A culminância desse processo seria a instituição do Sistema Único de Saúde (SUS) pela Constituição Federal de 1988 com seus princípios de universalização, integralidade, descentralização e participação popular. Desde 1990, com a promulgação da Lei Orgânica da Saúde, criaram-se condições para a instituição, no Ministério da Saúde, da Coordenação Nacional de Saúde Mental, instância inédita no Brasil, responsável pela formulação e implementação política na área. Ao mesmo tempo, inicia-se uma nova fase no Programa Nacional de DST e Aids, marcada pela implementação de um novo modelo de gerência da epidemia de HIV/aids, respaldada pelos empréstimos do Banco Mundial ao governo brasileiro. Tais inflexões vão permitir a institucionalização das duas políticas setoriais aqui enfocadas. De um lado, uma política de saúde mental que visa: i) a reorientação do modelo assistencial em saúde mental; ii) a redução e progressiva desativação de leitos hospitalares psiquiátricos; iii) a substituição dos hospitais psiquiátricos por uma rede de serviços comunitários de atenção diária articulados com a atenção básica; iv) a construção de uma rede de atenção à saúde mental: serviços e recursos locais; v) a construção de projetos de inclusão social baseados na intersetorialidade; vi) o entendimento das questões relativas ao álcool e outras drogas como problema de saúde pública (BRASIL, 2008a). De outro lado, a política nacional de infecções sexualmente transmissíveis (IST) e aids, que tem como objetivo: i) promover o acesso universal a insumos de prevenção, diagnóstico e tratamento das IST/aids; ii) fortalecer, implementar e ampliar as ações de IST, HIV e aids na rede SUS, de forma integral e equânime; iii) promover a defesa dos direitos humanos e reduzir o estigma e a discriminação às pessoas vivendo com HIV/ aids e às populações vulneráveis; iv) fortalecer a governança da resposta às IST e ao HIV/aids nas três esferas de governo, envolvendo atores e instituições governamentais e não governamentais, visando à sustentabilidade das ações da sociedade civil (BRASIL, 2008b). Nesses quase 30 anos percorridos no processo de implementação da política de saúde vigente, o SUS e as políticas setoriais de saúde mental e de IST/aids conseguiram lograr relativo sucesso: Redução nas desigualdades sociais e geográficas no uso de serviços de saúde; aumento do número de brasileiros que têm acesso a serviço de saúde de uso regular; aumento da participação do SUS como fonte de financiamento dos serviços; aumento da participação dos postos e centros de saúde na prestação dos serviços utilizados; consolidação do programa de saúde da família como estratégia de redefinição do modelo de atenção à saúde integral, centrado na atenção básica e na família. Observam-se avanços na política de saúde mental, como a redução do número de leitos psiquiátricos, aumento significativo dos serviços de atenção ambulatorial denominados CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), de residências terapêuticas e do número de famílias recebendo o auxílio-reabilitação do Programa ‘”De volta para casa”, assim como uma inversão da proporção de recursos financeiros do SUS destinados 21 aos hospitais psiquiátricos em relação aos serviços extra-hospitalares. Quanto à Política de IST/aids pode-se destacar a redução em 50% na taxa de mortalidade devida à aids, decréscimo da incidência de tuberculose nos pacientes com HIV e a provisão regular de medicamentos anti-retrovirais, garantida por lei federal e mundialmente reconhecida. Ainda que seja forçoso reconhecer os significativos avanços proporcionados pela implantação do SUS e, mais especificamente, dessas duas políticas setoriais, é igualmente importante destacar que o preceito constitucional da integralidade da atenção ainda clama por sua realização na prática. Pode-se dizer que as políticas de saúde mental e de IST/ aids têm evoluído, tradicionalmente, segregadas das outras áreas da saúde, e não como membros indissociáveis do corpo setorial do SUS. Segundo Hartz & Contandriopoulos (2004) o conceito de integralidade remete, portanto, obrigatoriamente ao de integração de serviços por meio de redes assistenciais, reconhecendo a interdependência dos atores e organizações, em face da constatação de que nenhum deles dispõe da totalidade dos recursos e competências necessários para a solução dos problemas de saúde de uma população em seus diversos ciclos de vida. Tal situação, expressa na grande fragmentação observada na organização das ações e serviços de saúde, representa um desafio para o avanço do sistema, não só no que diz respeito à integralidade, mas a todos os outros princípios orientadores do SUS. Este desafio, crucial para a saúde no país, deve ser enfrentado pelos gestores e profissionais de saúde, bem como pelos usuários dos serviços de saúde, seus familiares e a comunidade em geral. OS SENTIDOS E AS DIMENSÕES DA INTEGRALIDADE EM SAÚDE O debate sobre a integralidade em saúde remonta aos anos 1960, época em que surgiram grandes questionamentos e críticas sobre as atitudes fragmentadas de ensino adotadas pelas escolas médicas nos Estados Unidos. Isso ocorreu em função da demanda da chamada “medicina integral” (MATTOS, 2001). No Brasil, o movimento da medicina integral associou-se ao movimento da medicina geral comunitária e ao da medicina preventiva, constituindo, posteriormente, uma das bases do movimento sanitário que se consolidou nos anos 1980. Entretanto, o movimento sanitário incorporou matizes bastante específicos construindo o seu eixo de interpretação de forma bastante aproximada ao da medicina integral, ao considerar as práticas em saúde como práticas sociais. Dessa forma, as críticas estenderam-se às relações da prática de assistência médica privada, ao capital e ao lucro advindo da extraordinária mercantilização da atenção, convergindo na proposta de conquista da saúde como direito dos indivíduos, o que exige a presença do Estado no seu provimento e regulação do mercado (MATTOS, 2001). 24 Isto propiciou, por um lado, a construção de seus próprios processos de avanços e reformas. Por outro lado, a segregação resultou na insuficiência da rede de saúde no que concerne à atenção integral aos portadores de sofrimento mental e de IST/aids, uma vez que os profissionais e os serviços não têm sido efetivamente integrados à rede do SUS (CAMPOS, 2003; NUNES; JUCÁ; VALENTIM, 2007; SILVA et al, 2005). Essas lacunas se acentuam quando se sabe do grau de vulnerabilidade do paciente com transtornos mentais em relação às infecções sexualmente transmissíveis. Quando esses pacientes são portadores de HIV/aids tem-se um complicador a mais, pois os serviços de assistências a esses pacientes também são dissociados tanto da atenção básica quanto dos serviços de saúde mental. Por sua vez, as evidências confirmam que pacientes portadores de transtornos mentais apresentam alto risco para as infecções sexualmente transmissíveis e aids, apresentando elevada prevalência de infecção pelo HIV e hepatite C com taxas variando de 3,1% a 22% (COURNOS; MCKINNON, 1997; MCKINNON et al, 2005; ROSENBERG et al, 2005). Segundo diversos autores esses pacientes apresentam maior vulnerabilidade para IST/aids devido a: i) dificuldades cognitivas e habilidades sociais para negociar sexo seguro; ii) uso de drogas ilícitas; iii) privação social: maior grau de pobreza, desemprego e ausência de moradia; iv) falta de informação e conceitos errôneos sobre a infecção pelo HIV; v) comportamento de risco sexual para IST/aids - uso inconsistente de preservativo, múltiplos parceiros, parceiros sexuais de alto risco (MEADE; SIKKEMA, 2005; ROSENBERG et al, 2001; VANABLE et al, 2007). SAÚDE DA FAMÍLIA NA DIREÇÃO DA INTEGRALIDADE O Programa de Saúde da Família (PSF) é considerado como a estratégia condutora da busca do novo modelo assistencial, capaz de compreender e operacionalizar a abordagem integral do processo saúde-doença e responder de forma mais efetiva aos problemas de saúde da população, tanto em nível individual quanto coletivo, por meio do trabalho de uma equipe multidisciplinar dedicada à saúde dos indivíduos, da família e da comunidade. Portanto, o PSF deveria ser o nível articulador da assistência e o coordenador do cuidado integral ao paciente com transtorno mental. Podem-se identificar aspectos de confluência entre a política de saúde mental e aquela que rege o PSF. Os princípios da integralidade da atenção e da participação social, além das propostas de ampliação do conceito de saúde-doença, da interdisciplinaridade no cuidado e da territorialização das ações, são orientadores simultaneamente das ações do Modelo Psicossocial de Cuidado e do PSF. Entretanto, reconhecem-se dificuldades para adequar o modelo assistencial aos princípios reformadores, com maior eqüidade no acesso e na integralidade das práticas. A estratégia de reorganização do modelo de atenção à saúde mental, vislumbrada pelo Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) é o dispositivo para a progressiva 25 desinstitucionalização dos portadores de transtornos mentais. Por outro lado, o PSF seria um importante articulador da rede de saúde mental, no intuito de superar o modelo hospitalocêntrico, centrar o cuidado na família e não no indivíduo doente, trabalhar com os conceitos de vigilância à saúde e no de enfoque no risco e desenvolver atividades que incluam a prevenção e a promoção da saúde mental. Ademais, politizando as ações de saúde de modo a lidar com os determinantes sociais do adoecimento, o PSF seria capaz de realizar práticas intersetoriais e desenvolver o exercício da cidadania e os mecanismos de empowerment (NUNES; JUCÁ; VALENTIM, 2007). Essa mesma integração deveria ocorrer entre o PSF e os serviços de assistência especializada em HIV/aids (SAE), de forma a intensificar o acompanhamento dos indivíduos infectados. A colaboração entre os serviços de saúde ajudará a assegurar uma assistência contínua, o que significa que o indivíduo será acompanhado em todos os estágios, da prevenção da infecção ao tratamento. O diagnóstico precoce das doenças associadas ao HIV poderia ser feito pelo PSF, com competência para decidir sobre quando encaminhar os pacientes aos serviços especializados (SILVA et al, 2005). Na prática concreta, no entanto, esses modelos entram em conflito. De um lado, os esforços de consolidação da Política de Saúde Mental ainda têm se deparado com grandes impasses na operacionalização de uma rede de cuidados e, especialmente, na capacidade de desenvolver ações que se estendam ao espaço social mais amplo. Quanto ao PSF, além da incipiência das suas ações na área de saúde mental, aquelas já existentes têm requerido uma sensibilização específica de seus profissionais. Esses não estão familiarizados com o universo da saúde mental, sua lógica e linguagem, o que não lhes permite levar em conta a idiossincrasia dos problemas historicamente vividos pelos portadores de transtornos mentais. Pode-se supor que um dos principais limitantes a essas ações situa-se, ainda, na área relativa à clínica da saúde mental (NUNES; JUCÁ; VALENTIM, 2007). A integração entre os serviços de atenção básica/PSF é praticamente inexistente. Verifica-se que esse nível de atenção não é praticado no atendimento em HIV/aids. O cuidado aos pacientes portadores de HIV/aids revela ênfase no encaminhamento para os serviços especializados, desvinculando-se os casos da unidade básica e transferindo- se a responsabilidade pelo acompanhamento dos casos. As ações em HIV/aids do PSF se restringem ao pré-natal e ao planejamento familiar, sendo obrigatória a abordagem e o oferecimento da testagem para o HIV nessas situações. Os demais casos são encaminhados para outros serviços especializados (SILVA et al, 2005). A despeito da potencialidade observada no que se refere à integração entre ações e serviços em saúde mental, e também no âmbito das IST/aids, as experiências ainda são pontuais no Brasil, apesar de se contar com evidências consistentes da importância dessa integração em outros países (BIRKHEAD et al, 2007; HODGINS, 2007; LUM; KWOK; CHONG, 2008; PERREAULT et al, 1999; STOPKA et al, 2007). 26 Para Nunes; Jucá; Valentim (2007), as dissonâncias das práticas das ações de saúde mental e do PSF apontam para (i) o desconhecimento acerca da Reforma Psiquiátrica, a falta de capacitação em saúde mental dos profissionais e técnicos do PSF e o não reconhecimento dos problemas clínicos dos pacientes pelos CAPS e hospitais psiquiátricos; (ii) a não-identificação, por parte da população, dos problemas em saúde mental como uma prioridade, nas áreas estudadas; (iii) a falta de condições para o atendimento desses casos no PSF, o que inclui a inexistência de medicações psiquiátricas para fornecer aos pacientes; (iv) a inexistência de uma rede em saúde mental, inclusive a falta de entrosamento com serviços de saúde mental que funcionem como retaguarda e permitam a referência e contra-referência. Segundo Silva et al (2005), as principais dificuldades na integração dos serviços de atenção básica/PSF e os serviços especializados no atendimento aos portadores de HIV/aids (SAE) seriam: i) os profissionais do PSF desconhecem as formas de acesso ao SAE e a rotina deste; ii) os profissionais do SAE desconhecem a rotina e a dinâmica de atendimento em HIV/aids do PSF; iii) não existe um sistema de referência e contra- referência efetivo, o que dificulta o processo de articulação entre os serviços e o atendimento integral aos indivíduos portadores de HIV/aids. São inegáveis os avanços na assistência ao paciente com transtorno mental. Mas também são inegáveis seus limites, postos em grande parte pelo isolamento que a política assumiu. Assim, a política e sua implementação se ocuparam predominantemente com os problemas de saúde diretamente relacionados com o “psíquico”. As eventuais especificidades do adoecimento do paciente com transtorno mental, sejam elas produzidas no âmbito biológico e/ou cultural, não puderam ser abordadas adequadamente permanecendo como um grande desafio para a construção de uma assistência integral (CAMPOS, 2003; NUNES; JUCÁ; VALENTIM, 2007). O manejo do território na perspectiva do cuidado ao portador de transtorno mental, incluindo a incorporação das relações e dinâmicas sociais que aí se realizam, pressupõe o desenvolvimento de novas tecnologias, que questionam uma clínica tradicionalmente pautada no indivíduo e que, muitas vezes, negligencia os aspectos sociais e políticos das experiências dos sujeitos. A dicotomia mente/corpo - legitimada e reforçada historicamente, que ainda hoje organiza concepções e práticas, associada aos valores que desqualificaram e excluíram os portadores de doenças mentais do convívio social, produziram fortes enraizamentos no imaginário coletivo, inclusive o dos cuidadores em saúde e das famílias. Um sistema de saúde integrado pressupõe oferta organizada de assistência, garantindo um processo de referência e contra-referência em uma rede articulada de distintos níveis de complexidade do SUS, com fluxos e percursos definidos, ordenados e compatíveis com a demanda. É necessário que os agentes desse sistema conheçam os processos que envolvem a assistência ao paciente portador de transtorno mental, 29 MATTOS, R. A. Os sentidos da integralidade: algumas relexões acerca de valores que merecem ser defendidos. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. (Org.). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, 2001. p. 39-64. MCKINNON, K. et al. HIV and people with serious and persistent mental illness. In: CITRON, K.; BROUILLETTE, M. J.; BECKETT, A. (Ed.). HIV and psychiatry: A training and resource manual. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. p. 138-152. MEADE, C.; SIKKEMA, K. J. HIV risk behavior among adults with severe mental illness: a systematic review. Clin. Psychol. Rev., [S.l.], v. 25, p. 433-457, 2005. NUNES, M.; JUCÁ, V. J.; VALENTIM, C. P. B. Ações de saúde mental no Programa Saúde da Família: confluências e dissonâncias das práticas com os princípios das reformas psiquiátrica e sanitária. Cad. Saúde Pública, [S.l.], v. 23, n. 10, p. 2375-2384, 2007. PERREAULT, M. et al. L’intégration des services de santé mentale de première ligne. Étude du modèle développé à la Clinique communautaire de Pointe-St- Charles. Santé mentale au Québec, [S.l.], v. 24, n. 2, p. 28-51, 1999. PINHEIRO, R.; FERLA, A; SILVA JÚNIOR, A. G. 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HIV counseling and testing integration in California: an innovative approach to increase HIV counseling and testing rates. Public Health Rep., [S.l.], v. 122, p. 68-73, 2007. Suplemento 2. TANAKA, Oswaldo Yoshimi; LAURIDSEN-RIBEIRO, Edith. Desafio para a atenção básica: incorporação da assistência em saúde mental. Cad. Saúde Pública, [S.l.], v. 22, n. 9, p. 1845-1853, 2006. TENÓRIO, F. A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos dias atuais: história e conceito. Hist. Cienc. Saude, Manguinhos, v. 9, n. 1, p. 25-59, 2002. VANABLE, P. A. et al. Diferences in HIV-related knowledge, attitudes, and behavior among psychiatric outpatients with and without a history of a sexually transmitted infection. J. Prev. Interv. Community, [S.l.], v. 33, n. 1-2, p. 79-94, 2007. 30 31 1 Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil 2 Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil; HIV Center for Clinical and Behavioral Studies, New York State Psychiatric Institute e Columbia University, Nova Iorque, NY, USA 3 Centro de Referência e Treinamento em Doenças Infecto-Parasitárias, Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte e Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil 4 Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil; Instituto Raul Soares, Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil 5 Instituto Raul Soares, Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil 6 HIV Center for Clinical and Behavioral Studies, New York State Psychiatric Institute e Columbia University, Nova Iorque, NY, USA 7 HIV Center for Clinical and Behavioral Studies, New York State Psychiatric Institute e Columbia University, Nova Iorque, NY, USA CAPÍTULO 3 SÍNTESE DE REVISÃO DA LITERATURA: PREVALÊNCIA DE IST E COMPOR TAMENTOS DE RISCO EM PACIENTES PSIQUIÁTRICOS Lorenza Nogueira Campos1, Mark Drew Crosland Guimarães 2, Ricardo Andrade Carmo3, Ana Paula Souto Melo 4, Helian Nunes de Oliveira5, Katherine Elkington6, Karen McKinnon7 Poucos estudos têm investigado a prevalência da infecção pelo HIV, sífilis ou hepatites B e C entre pacientes psiquiátricos. Além disso, esses estudos não têm sido suficientemente claros para se estimar a real prevalência de tais infecções nesta população. A maioria dos estudos é originária de países desenvolvidos, tendo sido baseados em amostras pequenas e, em geral, não representativas. Conduzimos a seguir uma revisão sistemática da literatura publicada sobre a prevalência de IST e comportamentos de risco entre pacientes psiquiátricos utilizando as bases de dados MEDLINE e SCIELO além da busca manual de referências citadas em estudos selecionados (CAMPOS et al, 2008). O artigo pode ser acessado, na íntegra, em http://www.ensp.fiocruz.br/csp/bib.html. Foram identificados 13 estudos sobre a prevalência de HIV, sífilis e hepatites B e C em pacientes psiquiátricos em países em desenvolvimento e 22 em países desenvolvidos. Em geral, as prevalências variaram de 0% a 29,0% para o HIV; de 1,6% a 66,0% para a hepatite B; de 0,4% a 38,0% para a hepatite C; e de 1,1% a 7,6% para a sífilis. Estes estudos indicam que pacientes psiquiátricos podem estar desproporcionalmente afetados pelo HIV/aids e outras IST em vários países. A revisão também enfocou a busca de fatores de risco para as IST nesta população. Vários fatores de risco, tais como características sociodemográficas, comportamentais, uso de substâncias, condições psiquiátricas e conhecimento sobre o HIV/aids foram identificados e discutidos, embora a literatura atual não demonstre achados significativos gerados a partir de estudos representativos. Vários estudos mostram, consistentemente, 34 com qualquer diagnóstico psiquiátrico, aptos a responder ao questionário e a assinar o termo de consentimento livre e esclarecido. Para os pacientes internados, observou-se um período mínimo de sete dias para estabilização clínica antes de se proceder ao convite para participação. O projeto foi aprovado em todas as instâncias, incluindo os centros participantes, o Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (COEP/UFMG, Etic 125/05) e a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) do Ministério da Saúde. Os participantes assinaram termo de consentimento livre e esclarecido, sendo as identificações dos questionários, soros e demais materiais feitas exclusivamente por meio de número único, garantindo assim a confidencialidade das informações. PLANO AMOSTRAL Considerando os objetivos do estudo de se estimar a prevalência de quatro diferentes infecções, optou-se por uma estimativa de tamanho amostral baseada nos seguintes parâmetros: estimativa média das condições de 50%, um nível de precisão de 0,2%, e um nível de confiabilidade de 5%. O tamanho da amostra foi estimado em 2.401 pacientes (FOREMAN, 1991; LEVY; LEMESHOW, 1991; SIQUEIRA; SAKURAI; SOUZA, 2001). Considerando uma perda de 40% (MELO; GUIMARÃES, 2005), o número amostral final foi calculado em 3.362. A amostra foi estratificada por região do país (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste), com partilha proporcional de acordo com a distribuição dos casos de aids notificados até dezembro de 2003, e com o tipo de atendimento (hospitais e CAPS). O número de leitos hospitalares e capacidade de atendimento dos CAPS, até janeiro de 2004, foi estimado em, respectivamente, 49.290 (38%) e 81.505 (62%), totalizando 130.795 pacientes, sendo essa a partilha por centros (BRASIL, 2004b) (Tabela 1). Até dezembro de 2003, 69% dos casos de aids notificados no Brasil proviam da região Sudeste (BRASIL, 2004a). As regiões Sul, Nordeste, Centro-Oeste e Norte contribuíam com 16%, 9%, 5% e 2%, respectivamente. O tamanho da amostra estimado e partilhado por centros e regiões pode ser visto na Tabela 2. Após os cálculos amostrais, o plano amostral foi conduzido em dois estágios: 1. seleção aleatória dos centros (hospitais ou CAPS) dentro de cada região; e, 2. seleção aleatória dos participantes dentro de cada centro. A Figura 1 mostra a localização dos centros selecionados. Estágio 1: Seleção aleatória dos centros O número de centros dentro de cada região e estrato, visando a atingir o tamanho amostral desejado, foi escolhido aleatoriamente por amostra probabilística simples. Foram preparadas listas de todos os hospitais ou CAPS cadastrados no Ministério da Saúde de acordo com o número de leitos para os hospitais ou número de atendimentos, para os CAPS, da seguinte forma: em planilha excel, criou-se uma coluna com valores de 1 a N, sendo N o total de leitos existentes em cada região, ordenados de acordo com os 35 hospitais ou CAPS. Deste modo, cada centro correspondeu a uma sub-amostra do total N, naj a na(j+1), sendo (a) a identificação do hospital ou CAPS e (j) o número de leitos ou atendimento de cada hospital ou CAPS, respectivamente. Em seguida, foi escolhido um número aleatório entre 1 e N. O centro correspondente ao intervalo em que esse número se localizava foi então escolhido para compor a amostra dentro de cada região. Esta operação foi repetida até que o número estimado de pacientes fosse atingido em cada região. Adicionalmente, objetivando obter uma maior variabilidade amostral entre as unidades selecionadas na região Sudeste, ajustou-se o número final de pacientes a serem selecionados de acordo com o centro com o menor número de leitos, da seguinte forma: Probabilidade amostral de cada um dos centros selecionados na região Sudeste= P(n) = Número de leitos/Total de leitos; Ajuste da probabilidade amostral = A(n)=P(i)/ P(n), sendo P(i) aquele com menor probabilidade; Ajuste do número final de pacientes para Região Sudeste = A(f )= A(n)*(Número de leitos de cada centro). Após a escolha dos centros, foi feito convite formal a cada centro selecionado em ofício conjunto elaborado pelos Programas de DST e Aids e Saúde Mental, solicitando anuência, avaliação ética e compromisso por escrito de intenção de participação. Caso o centro não pudesse participar, centros substitutos foram escolhidos até completar o número desejado. Selecionaram-se onze hospitais e quinze CAPS. A lista final dos centros pode ser vista na Tabela 3, incluindo tamanho amostral e a relação deste número com o total de leitos ou número de atendimentos de cada centro. O número de participantes de cada centro é relativamente homogêneo, enquanto que a relação amostra/universo apresenta uma variação de 10% a 100%. Estágio 2: Seleção aleatória dos participantes Para os hospitais, foram preparadas listas dos pacientes internados no momento da pesquisa. Para cada centro, foi então escolhido, por meio de amostra probabilística simples, o número de participantes estimado, sem reposição, considerando que o tamanho da amostra inicial foi superestimado em 40%, antecipando as perdas. Para os CAPS, cujos pacientes comparecem semanalmente ou pelo menos uma vez por mês, criaram-se listas com uma seleção aleatória pré-definida e os pacientes foram selecionados por ordem de atendimento, também por amostra probabilística simples. AVALIAÇÃO PRELIMINAR E CONSENTIMENTO Os pacientes recrutados, seguindo as planilhas amostrais, foram inicialmente avaliados quanto à capacidade para responder ao questionário e condição legal para assinatura do termo de consentimento. Durante o processo de seleção dos participantes, foi aplicado um instrumento de avaliação preliminar (Anexo A), adaptado do Minimental State Examination (MMSE) (FOLSTEIN, M. F.; FOLSTEIN, S. E.; MCHUGH, 1975). O principal objetivo desta etapa foi avaliar a orientação espaço-temporal, a habilidade para 36 compreender o projeto e a capacidade para responder ao questionário. Foram feitas dez perguntas objetivas com respostas estruturadas tais como, saber nome e data, operação aritmética simples, memorização, dentre outras. Além disso, avaliou-se o estado mental do paciente, em particular a presença de sintomas delirantes e o grau de deficiência mental. Somente após estas avaliações objetivas e subjetivas, feitas por profissionais de saúde mental devidamente treinados, os participantes foram convidados a assinar o termo de consentimento, para, em seguida, dar prosseguimento com a entrevista e demais procedimentos. ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA E QUESTIONÁRIO DE AVALIAÇÃO DO SERVIÇO Todos os pacientes aptos a participar da pesquisa, e que concordaram com essa participação, foram submetidos a uma entrevista semi-estruturada para verificar as características sociodemográficas, de comportamento e situação de risco e de atenção à saúde, incluindo: idade, nível de instrução, residência, renda familiar, diagnóstico, tratamentos e condutas, história e diagnóstico de IST, tempo de internação, conduta sexual, uso de álcool e drogas ilícitas, tabagismo, encarceramento, violência verbal, física e sexual e outros fatores associados com o risco de transmissão das infecções de interesse. Informações complementares foram extraídas dos prontuários médicos. O questionário foi avaliado e testado em estudo piloto preliminar (GUIMARÃES et al, 2008). As entrevistas foram aplicadas por profissionais da área de saúde especificamente treinados para o projeto e supervisionados em todas as etapas pelo responsável local pela pesquisa. A entrevista encontra-se no Anexo B e está também disponibilizada em http:// www.medicina.ufmg.br/cpq/gpeas.php. Foi realizada análise de confiabilidade das entrevistas. Para isto, uma amostra aleatória de 5% dos participantes foi convidada a repetir a entrevista, no prazo máximo de uma semana após a primeira entrevista. Para a avaliação dos centros (objetivo 4), foi utilizado o instrumento de avaliação de estrutura de serviços adaptado e testado no estudo piloto para as instituições psiquiátricas (hospitais e CAPS). A aplicação deste instrumento foi feita pelo supervisor local no decorrer da pesquisa e objetivou avaliar a estrutura dos serviços. A avaliação foi realizada por meio do levantamento de informações em 14 seções do questionário, que incluíam a identificação da unidade, características do serviço, capacidade instalada de atendimento, recursos humanos, disponibilidade de exames laboratoriais, biossegurança, equipamentos e instrumentos, disponibilidade de documentos normativos e técnicos, sistema de informação, medicamentos, sistema de referência e contra-referência, avaliação do desempenho do serviço em relação às IST, garantia dos direitos individuais do paciente e avaliação da obtenção das informações para o questionário. O questionário de avaliação dos serviços encontra-se no Anexo C e está também disponibilizado na página http://www.medicina.ufmg.br/cpq/gpeas.php. 39 efetuadas. Associações ajustadas para cada infecção foram estimadas separadamente para idade e sexo, utilizando razões de prevalência (RP) com intervalo de 95% de confiança, obtidos por intermédio do modelo de regressão de Poisson. TREINAMENTO O treinamento do Projeto PESSOAS ocorreu nos dias 1º, 2 e 3 de fevereiro de 2006 em Belo Horizonte, MG. No dia 1º de fevereiro, foram feitas apresentações por representantes das instituições envolvidas, um histórico e síntese metodológica do Projeto PESSOAS, seguida da apresentação do protocolo da pesquisa, passo-a-passo, identificando cada etapa e cada instrumento a ser utilizado na pesquisa (Anexo D). A apresentação do protocolo da pesquisa incluiu detalhamento das seguintes etapas: 1) seleção aleatória dos participantes; 2) aplicação da avaliação preliminar a fim de determinar a aptidão do paciente para assinar o termo de consentimento e responder o questionário semi-estruturado; 3) convite para participação na pesquisa, leitura do termo de consentimento e aconselhamento pré-teste, caso o paciente aceitasse realizar a coleta de sangue; 4) realização da entrevista semi-estruturada; 5) coleta de dados do prontuário médico; 6) codificação e verificação; 7) realização de re-entrevistas para 5% da amostra de cada centro; 8) coleta de sangue e novo aconselhamento pré-teste; 9) aplicação do questionário de avaliação de serviços; 10) encaminhamento do material das entrevistas para a Central de Dados, localizada na sede do Grupo de Pesquisas em Epidemiologia e Avaliação em Saúde (GPEAS); 11) encaminhamento dos soros para o LACEN/MG; 12) realização dos exames sorológicos pelo LACEN/MG; 13) digitação e análise dos dados pelo GPEAS; 14) devolução dos resultados sorológicos de cada participante para os supervisores. Foram também muito enfatizados a necessidade e o compromisso das instituições no sentido de devolverem os resultados dos exames aos participantes. No dia 2 de fevereiro, foi apresentado o termo de consentimento, sendo reiterada a importância de fornecer todos os esclarecimentos sobre os procedimentos ao paciente no momento do convite para participar da pesquisa. Em seguida, foi realizada uma dinâmica em grupo para ilustrar a abordagem do paciente psiquiátrico para participação na pesquisa, aplicação do termo de consentimento e realização do aconselhamento pré e pós-teste. Efetuou-se, então, uma leitura detalhada da entrevista semi-estruturada e seu respectivo manual de instrução, discutindo as definições e padronizações utilizadas item por item. O treinamento incluiu a execução da entrevista com um paciente fictício gravada em fita cassete. Após ouvirem a entrevista na íntegra, esclareceram-se dúvidas quanto à dinâmica da entrevista e itens específicos do questionário. Na parte da tarde desse mesmo dia, realizou-se a simulação da entrevista, também com paciente fictício, para exemplificar a dinâmica da abordagem inicial, aplicação da avaliação preliminar, convite, leitura do termo de consentimento, aconselhamento pré-teste e entrevista. 40 Nesta simulação, cada supervisor/entrevistador fazia uma pergunta e anotava as respostas obtidas em sua cópia do questionário. No dia 3 de fevereiro, na parte da manhã, foi realizada leitura do questionário de avaliação de serviços e seu respectivo manual de instrução. Discutiram-se as definições e padronizações de cada item do questionário. No final da manhã, foram prestados os devidos esclarecimentos sobre o pagamento da supervisão de campo e entrevistadores. Na parte da tarde, apresentou-se o fluxograma da coleta de sangue, passo a passo, incluindo práticas de biossegurança, coleta do sangue, centrifugação, armazenamento em tubos de plástico e congelamento dos soros. Ao final do treinamento foi solicitado que os supervisores nos enviassem um relatório do treinamento, descrevendo: 1) suas impressões gerais; 2) avaliação de cada etapa do treinamento; 3) problemas detectados; 4) número atual de atendimentos/ leitos realizados/disponíveis por mês; 5) proposta para a operacionalização da coleta de sangue; 6) aproveitamento pessoal; 7) avaliação final. COMPONENTE QUALITATIVO No que se refere à singularidade dos sujeitos e à subjetividade envolvida nos riscos, cuidados e prevenção das IST, objetos do presente estudo (Hepatites B e C, Sifílis), além da infecção pelo HIV/aids, o grupo de pesquisadores do Projeto PESSOAS optou por uma análise aprofundada das experiências e representações de pessoas acompanhadas em serviços de saúde mental (Hospitais e CAPS) para compreender suas idéias e concepções sobre esses agravos e suas maneiras de pensar e agir no que se refere aos seus riscos. O EIXO QUALITATIVO NO CONTEXTO DO PROJETO PESSOAS A discussão sobre riscos à saúde inclui as formas de pensar a saúde e a doença e as maneiras de agir, individual e coletivamente, o que concerne tanto à organização dos serviços de saúde como às posturas, representações e interações sociais relativas ao cuidado consigo e com os outros. No caso das IST, objeto do nosso estudo, a imbricação destas categorias psicossociológicas traz no seu centro tudo o que se refere às maneiras de pensar e agir sobre a sexualidade. A questão central, no eixo qualitativo da presente pesquisa, diz respeito, pois, às crenças, introjeção de valores, subjetividade e práticas dos sujeitos diante do risco de se infectarem ou de infectarem outras pessoas. Pressupõe-se que as representações sobre estas doenças, sobre risco em saúde e sobre risco em geral, na vida, estão interligadas, definindo possibilidades de aprendizagem, de manutenção ou mudança de postura para a prevenção, bem como para o cuidado após o adoecimento. Tal pressuposto torna-se mais abrangente, pois coloca-nos a questão da compreensão e das atitudes dos sujeitos por serem estes, também, portadores de algum tipo de agravo mental. 41 Como estas pessoas elaboram e constróem suas posturas diante do risco, em relação à vivência de sua sexualidade? O que acreditam ser risco real ou imaginário e como este está inscrito no seu círculo social? Que limites existem sobre a negação do risco nesta população específica? Assim, o objetivo do componente qualitativo foi compreender as representações em torno do risco e da prevenção de infecção pelo HIV e adoecimento pela aids, buscando relacioná-las à sexualidade, trajetórias de vida e interações sociais de pessoas portadoras de doença mental, atendidas em serviços hospitalares e da rede básica de atendimento em saúde mental (CAPS). REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO Trata-se de pesquisa de cunho qualitativo, tendo como referencial teórico- metodológico a teoria das representações sociais (TRS). Jovchelovitch & Guareschi (1995) enfatizam o significado dessas representações enquanto um fenômeno psicossocial que se encontra arraigado no espaço público e nos processos através dos quais o indivíduo desenvolve uma identidade social, cria símbolos e abre-se para uma diversidade de um mundo coletivo. Os significados, elaborados por um grupo social, transformam-se, tornam- se subjetivados e são expressos nas atitudes, palavras e ações nas relações com os outros. A TRS tem-se mostrado um importante instrumento para os estudos de situações sociais, em razão de seu valor heurístico e de sua contribuição para a análise das relações intergrupais, da influência da cultura na introjeção de valores e da definição de comportamentos, sendo utilizada na sociologia, na psicologia social e na antropologia, dentre outros. As representações são construídas socialmente, com maior ou menor possibilidade de mudança, mas sempre explicitando as relações do conhecimento do senso comum com as informações científicas e outras que circulam no meio social. Para os portadores de doença mental, essas representações são apropriadas dentro das limitações pelo tipo de agravo, mas estão presentes, fundamentando formas próprias de lidar com os riscos de infecção, com a prevenção e controle da aids. O risco é, então, considerado como inscrito no contexto de vida do sujeito em forma de representação, que é traduzida em significados e valores, organizada de acordo com um substrato cultural, e vivenciada com a inclusão de uma materialidade e de uma subjetividade que são definidas na ambigüidade entre a maior ou menor possibilidade de escolha do indivíduo e maior ou menor sujeição ao que está instituído. Na materialidade e subjetividade incluem-se o acesso à informação recebida e compreendida, aos bens sociais, de consumo e de serviços, às regras e normas provenientes da sociedade, além da capacidade da família e dos profissionais de saúde em contrapor a vulnerabilidade proveniente do próprio agravo mental com a construção de um substrato que permita aos sujeitos crescerem em sua autonomia. 44 iniciar a entrevista, os participantes foram informados sobre os riscos e benefícios da pesquisa, com os devidos esclarecimentos sobre seus objetivos e finalidades, lembrando a importância da preservação do sigilo e o respeito à vulnerabilidade desse grupo. Após os esclarecimentos, leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, as entrevistas foram iniciadas em duas partes: a primeira, contemplando os dados objetivos de vida do sujeito, que foram anotados na folha do roteiro (Anexo I) ou gravadas, e, a segunda parte, obrigatoriamente gravada, abordando as questões pertinentes ao tema. Não houve definição do número de participantes, a priori, sendo o critério para suspensão da coleta de novas entrevistas o da saturação dos dados (repetividade e exaustão dos significados em torno dos temas tratados), com a análise preliminar do material resultando em 40 entrevistas realizadas, uma delas perdida por dificuldades técnicas. Os serviços de saúde escolhidos para a coleta foram: o Hospital Galba Veloso e o Instituto Raul Soares, dois hospitais psiquiátricos de Belo Horizonte, Minas Gerais, o CERSAM Betim, localizado no Bairro Citrolândia em Betim, Minas Gerais, que funciona no conjunto da Colônia Santa Izabel, antigo serviço de atendimento e moradia de pacientes hansenianos, além do CAPS Carmo, localizado no estado do Rio de Janeiro. Foram realizadas trinta entrevistas em Minas Gerais e nove no Rio de Janeiro, pela facilidade de acesso dos pesquisadores a esses serviços e considerando que a representatividade desse tipo de pesquisa está na saturação dos conteúdos e não na distribuição espacial no país, que foi um dos critérios para a seleção da parte quantitativa do projeto. Após a coleta de dados pelas entrevistas, os prontuários dos respectivos entrevistados foram consultados e anotaram-se os dados objetivos que caracterizam o histórico e o contexto da doença mental e de vida dos entrevistados. MÉTODO DE ANÁLISE DAS ENTREVISTAS A análise das entrevistas fundamenta-se em noções da análise estrutural de narração proposta por Demazière & Dubar (1997), seguindo as teorias de Barthes (1981) e Greimas (1966, 1981). A técnica de análise prevê uma divisão do trabalho de interpretação das falas em três etapas. A primeira etapa corresponde à análise de cada entrevista, separadamente. Nessa etapa, o primeiro momento é o de leitura vertical (BLANCHET; GOTMAN, 1992), buscando o sentido global de cada entrevista, quando também são marcadas noções e palavras que chamam a atenção, permitindo conhecer o “tom” da entrevista e indicar temas presentes. Num segundo momento, chamado de leitura horizontal (BLANCHET; GOTMAN, 1992), o conjunto do texto é decorticado em seqüências numeradas em ordem crescente (S1, S2, S3...), fazendo surgir os enunciados que explicitam o campo de significações para a pessoa que fala em torno de cada objeto da narração. Esses objetos encontram- 45 se, obviamente, espalhados ao longo da fala, pois essa é sempre um processo de idas e vindas para apresentá-los e justificá-los. Em seguida, os objetos e suas explicações são reagrupados, reorganizando as seqüências por temas/unidades de significado, na totalidade do relato, tentando encontrar, acompanhar e reproduzir o trabalho de categorização que o próprio entrevistado realizou. A análise estrutural de narração permite, assim, recuperar a complexidade das experiências dos entrevistados, em uma leitura horizontal, e os enunciados são categorizados nas suas similitudes e diferenciações, nas disjunções e conjunções apresentadas. Esta fase resulta na síntese de cada entrevista, com o que se chama “reconstrução dos dados”, para explicitação do conteúdo de cada uma. Nesse momento, cada entrevistado já recebe um pseudônimo, que foi escolhido por ele ou, quando não quis fazê-lo, pelo pesquisador. A segunda etapa do trabalho consiste em encontrar o que é comum e discordante no conjunto de entrevistados para agrupar e categorizar os significados explicitados, em uma leitura chamada de transversal por Blanchet & Gotman (1992), desvelando as representações que os entrevistados têm sobre as doenças, os riscos e a prevenção das IST. Em seguida, passa-se à terceira etapa, correspondente ao fechamento da análise, que podemos chamar de teorização, na qual as categorias surgidas na análise das entrevistas serão aprofundadas pelas leituras e reflexões teóricas do pesquisador (DEMAZIÈRE; DUBAR, 1997; DUBAR, 1998; PAILLÉ; MUCCHIELLI, 2005). Os dados encontrados nos prontuários foram utilizados de forma complementar para contextualizar a história de vida dos entrevistados. REFERÊNCIAS BARTHES, R. Introduction à l’analyse structurale des récits. In: L’ANALYSE structurale du récit. Paris: Seuil, 1981. p. 7-33. (Communications, 8). BLANCHET, Alain; GOTMAN. L’enquête et ses méthodes: l’entretien. Paris: Nathan, 1992. 112 p. BRASIL. Ministério da Saúde. Casos de Aids notificados: janeiro a dezembro de 2003. Boletim Epidemiológico, [S.l.], ano 17, n. 1, 2004a. ______. Ministério da Saúde. Coordenação Geral de Saúde Mental. Relatório interno. Brasília, 2004b. ______. Ministério da Saúde. Fluxograma para o diagnóstico de HIV. 2003. Disponível em: <http://www.aids.gov.br/data/documents/storedDocuments/%7BB8EF5DAF-23AE-4891-AD36- 1903553A3174%7D/%7BD7D56D58-92C6-4B97-BB1A-C4804EC8D9DD%7D/luxograma.jpg>. DEMAZIÈRE, D.; DUBAR, C. Analyser les entretiens biographiques: l’exemple de récits d’insertion. Paris: Nathan, 1997. 46 DUBAR, C. Trajetórias sociais e formas identitárias: alguns esclarecimentos conceituais e metodológicos. Educ. Soc., [S.l.], v. 19, p. 13-30, 1998. FOLSTEIN, M. F.; FOLSTEIN, S. E.; MCHUGH, P. R. Minimental state: a practical method for grading the cognitive state of patients for the clinician. J. Psychiat. 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Paris: PUF, 1961. 49 FIGURA 1 AMOSTRA PROBABILÍSTICA PROPORCIONAL ✓ Tipo de serviço ✓ Casos de AIDS por região Estágio I Seleção dos Centros Hospitais 11 CAPS 15 Estágio II Seleção dos Pacientes Hospitais 1.281 CAPS 2.119 51 CAPÍTULO 5 PROJETO PESSOAS - RECRUTAMENTO E ANÁLISE DESCRITIVA Mark Drew Crosland Guimarães1, Francisco de Assis Acurcio2, Lorenza Nogueira Campos3, Ana Paula Souto Melo4, Mariângela Leal Cherchiglia5, Ricardo Andrade Carmo6, Helian Nunes de Oliveira7, Carla Jorge Machado8 RECRUTAMENTO A Figura 1 e a Tabela 1 mostram o recrutamento de acordo com as diferentes etapas do Projeto. Abordaram-se 3.255 pacientes, dos quais 2.763 (84,9%) foram considerados aptos a participar da pesquisa pela avaliação preliminar. Dentre os não-aptos (n=492), a maioria apresentava algum grau de desorientação espaço-temporal, de desagregação do curso do pensamento ou fuga de idéias (94,7%), e algum nível de deficiência mental (leve a grave) (83,2%), enquanto que somente 7,4% responderam corretamente a sete ou mais itens da avaliação preliminar, em comparação com 92,3% dos participantes (n=2.475). Outros motivos para um paciente ser considerado não-apto foram: confusão mental, desorientação ou delírio, déficit cognitivo, pensamentos desagregados, demência, deficiência auditiva ou mutismo, doença psiquiátrica grave, agressividade, não oferecer condições de abordagem, não manter contato verbal, apresentar-se em crise ou contra-indicação clínico-psiquiátrica registrada. Dentre os aptos, 288 (10,4%) não participaram do projeto por motivos variados (p. ex: recusa total, não-localizado, não-comparecimento, não-elegível, paciente interditado, óbito, aceitou somente colher sangue). Aproximadamente 90% dos participantes aptos (n=2.475) realizaram a primeira entrevista, sendo que para a maioria deles (97,3%) isso ocorreu na primeira tentativa, e 83% (n=2.300) coletaram sangue para as sorologias. Um total de 2.238 (81,0%) participantes realizaram ambos os procedimentos, entrevista e coleta de sangue. Cerca de 6% (n=139) dos pacientes foram re-entrevistados. 1 Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais 2 Departamento de Farmácia Social, Faculdade de Farmácia, Universidade Federal de Minas Gerais 3 Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais 4 Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Medicina, UFMG; Instituto Raul Soares, FHEMIG 5 Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais 6 Centro de Referência e Treinamento em Doenças Infecto-Parasitárias, Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte e Universidade Federal de Minas Gerais 7 Instituto Raul Soares, FHEMIG 8 Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar), Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade Federal de Minas Gerais 54 doenças do aparelho digestivo (1,8%). A maior parte dos entrevistados, 62,5% relatou corretamente os nomes dos medicamentos psiquiátricos em uso e 35,4% indicaram alguma reação adversa relacionada aos mesmos. Somente 26,3% afirmaram terem sido vacinados contra hepatite B. História de infecções sexualmente transmissíveis (IST) ao longo da vida foi relatada por 23,0% dos pacientes, sendo que 236 (9,5%), 83 (3,3%), 82 (3,3%), 72 (2,0%), 71 (2,9%) e 52 (2,1%) relataram episódios de gonococcia, sífilis, herpes, condiloma, infecção por clamídia e cancro, respectivamente. Já nos últimos seis meses, 118 pacientes (4,8%) relataram pelo menos uma IST, sendo 37 (1,5%), 34 (1,4%), 30 (1,2%), 23 (1,0%), 14 (0,6%) e 7 (0,3%), respectivamente, relativos a episódios de infecção por clamídia, herpes, gonorréia, condiloma, sífilis e cancro nos últimos 12 meses. A grande maioria dos pacientes já haviam ouvido falar de aids (93,6%), enquanto que somente 27,0% haviam feito o exame anti-HIV anteriormente à pesquisa (n=668); a maior parte destes sabia do resultado (86,4%), dos quais 3,8% eram positivos. Finalmente, a auto- percepção de risco para adquirir o HIV foi definida como algum ou alto para 40,8% dos participantes. Com relação às variáveis relacionadas ao consumo de substâncias lícitas e ilícitas (Tabela 8), o tabagismo foi relatado por 71,2% e 52,3% para, respectivamente, alguma vez ou atualmente, com idade de início abaixo dos 15 anos para 45,0% dos participantes. O consumo diário foi de 1 a 20 cigarros para 82,7% dos participantes. Além disso, 77,3% afirmaram fumar dentro do serviço, sendo que 26,8%, 13,3%, 10,7% e 6,4% trazem cigarros de casa, os recebem de outras pessoas, de outros pacientes ou de funcionários, respectivamente. O uso de álcool alguma vez na vida foi relatado por 64,4% dos pacientes, com início do uso antes dos 15 anos para 24,8%. Somente 2,5% afirmaram ter bebido pelo menos uma vez na instituição. A maconha foi a droga mais utilizada, tanto alguma vez na vida quanto no último mês (21,9% e 8,8%, respectivamente), seguida pela cocaína (10,6% e 3,4%), crack (6,4% e 5,4%), alucinógenos (4,3% e 0,8%), anfetaminas (4,2% e 1,6%) e solventes (1,2% e 0,4%). A maconha foi também a droga ilícita mais utilizada dentro do serviço de atenção (1,1%). O uso de droga injetável foi relatado por somente 2,9% (n=72), sendo que, destes, 87,5% (n=63) relataram já ter compartilhado seringas. Em relação ao comportamento sexual (Tabela 9), a grande maioria já tivera relação sexual (87,6%), com uma menor proporção de sexualmente ativos nos últimos seis meses (61,3%). A primeira relação sexual ocorreu antes de 18 anos para a maioria (67,0%), e, em geral, deu-se com um parceiro do sexo oposto tanto para mulheres (98,1%) quanto para homens (90,2%). O uso de preservativo foi extremamente baixo nessa população. Apenas 8,0% declararam ter usado preservativo em todas as relações sexuais durante a vida, enquanto que somente 16,2% usaram preservativo em todas as relações sexuais nos últimos seis meses. Dos participantes sexualmente ativos, 39,8% e 60,1% nunca usaram preservativos em toda a vida ou nos últimos seis meses, respectivamente. Além disto, 27,4% relataram que o(a) parceiro(a) sexual já recusara usar o preservativo 55 alguma vez e somente 24,7% usaram preservativo na última relação. Aproximadamente 30,0% dos pacientes relataram ter oferecido ou recebido dinheiro ou drogas em troca de sexo. Por último, são preocupantes os dados sobre violência nessa população. Uma grande parcela relatou já ter sofrido violência verbal (68,9%), física (58,0%) ou sexual (18,6%), pelo menos uma vez. A Figura 2 sintetiza alguns dos principais marcadores de vulnerabilidade nessa população. Percebe-se que a maioria dos participantes era sexualmente ativa, tanto ao longo da vida quanto nos últimos seis meses. No entanto, a proporção de uso de preservativos em todas as relaçõe sexuais durante toda a vida foi muito baixo, mesmo quando comparado com o comportamento sexual de adultos brasileiros (8% e 24%, respectivamente) (BERQUÓ et al, 2004). De forma semelhante, o uso de preservativos na última relação sexual foi também muito mais baixo do que a média de adultos brasileiros (26% e 65%, respectivamente) (BERQUÓ et al, 2004). Além disso, foi alta a proporção de pacientes com múltiplos parceiros, apesar de ter havido redução nos últimos seis meses. Chama atenção a alta proporção de pacientes com história de alguma IST, tanto ao longo da vida quanto nos últimos doze meses. Apesar disso, somente um quarto destes havia feito exame anti-HIV. ESTIMATIVAS DAS SOROPREVALÊNCIAS A Tabela 10 mostra os resultados de soroprevalência para cada marcador com o intervalo de 95% de confiança corrigido pelo desenho amostral. A prevalência geral variou de 0,80% para o marcador de infecção anti-HIV a 2,63% para o anti-HCV, enquanto que a prevalência do anti-HBc, marcador de exposição para a hepatite B, foi muito superior (14,7%). Prevalências específicas por idade e sexo revelaram um padrão que demanda atenção das autoridades de saúde pública: para sífilis e HIV, as taxas mais elevadas verificaram-se entre mulheres mais jovens (1,39% e 1,09%, respectivamente), enquanto que para três marcadores de hepatites B e C, as taxas mais elevadas foram observadas entre homens mais velhos (2,97%, 24,59% e 4,71%, respectivamente, para HBsAg, anti-HBc e anti-HCV). Comparativamente à menor prevalência para cada marcador, a prevalência de HIV em mulheres mais jovens foi duas vezes o valor da prevalência de HIV para homens jovens; a prevalência de sífilis em mulheres jovens foi quase duas vezes à de homens mais velhos; a prevalência de HBsAg entre homens mais velhos foi quase três vezes à de mulheres mais velhas; a prevalência de anti-HBc entre homens mais velhos foi mais de três vezes à de mulheres mais jovens; e, finalmente, a prevalência de anti-HCV entre homens mais velhos foi mais de quatro vezes à de mulheres mais jovens. A escassez de estudos com amostras representativas realizados no Brasil torna a comparação com outros estudos uma tarefa árdua. Contudo, tomando-se por base os estudos existentes com amostras em âmbito nacional, a prevalência da infecção 56 pelo HIV na população de pacientes psiquiátricos foi duas vezes a de mulheres grávidas (prevalência=0,4%) e quase nove vezes a de recrutas militares (prevalência=0,09%). Adicionalmente, a prevalência do HIV foi superior à estimativa para a população brasileira adulta (prevalência=0,61%). Ademais, a prevalência de todos os marcadores de hepatite C e hepatite B foi superior na população do presente estudo, comparativamente aos dados de outros trabalhos realizados, incluindo um estudo com amostra representativa da população do município de São Paulo (HCV=1,42% e anti-HBc=5,9%). Por outro lado, a prevalência de sífilis entre os pacientes psiquiátricos foi inferior relativamente a um outro estudo representativo para parturientes (prevalência=1,7%), mas superior comparativamente à prevalência entre recrutas militares (0,9%) ou outras populações (Figuras 3 a 7) (DOURADO et al, 2004; FIGUEIRÓ FILHO et al, 2007; FOCACCIA et al, 1998; NASCIMENTO et al, 2008; REICHE et al, 2000; RODRIGUES; GUIMARÃES, 2004; SOUZA et al, 2004; SZWARCWALD et al 2005; SZWARCWALD; SOUZA, 2006; TOLEDO et al, 2005). Finalmente, chama atenção a alta proporção de pacientes com pelo menos um dos marcadores sorológicos positivo (20%), indicando a necessidade de prover cuidados imediatos para essa população. REFERÊNCIAS BERQUÓ, E. et al. Comportamento sexual da população brasileira e percepções do HIV/AIDS. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. (Série Avaliação, 4). Disponível em: <http://www.aids.gov.br/avalia4/ home.htm>. Acesso em: 25 jan. 2008. DOURADO, I. et al. HIV-1 seroprevalence in the general population of Salvador, Bahia State, Northeast Brazil. Cadernos de Saúde Pública, [S.l.], v. 23, p. 25-32, 2007. FIGUEIRÓ FILHO, E. A. et al. Freqüência das infecções pelo HIV-1, rubéola, sífilis, toxoplasmose, citomegalovírus, herpes simples, hepatite B, hepatite C, doença de Chagas e HTLV-I/II em gestantes no Estado do Mato Grosso do Sul. Rev. Soc. Bras. Med. Trop., [S.l.], v. 40, p. 181-187, 2007. FOCACCIA, R. et al Estimated Prevalence of Viral Hepatitis in the General Population of the Municipality of São Paulo, Measured by a Serologic Survey of a Stratiied, Randomized and Residence-Based Population. Braz. J. Infect. Dis., [S.l.], v. 2, p.269-284, 1998. NASCIMENTO, M. C. et al. Prevalence of hepatitis B and C serological markers among first-time blood donors in Brazil: a multi-center serosurvey. J. Med. Virol., [S.l.], v. 80, p. 53-57, 2008. REICHE, E. M. et al Prevalence of american trypanosomiasis, syphilis, toxoplasmosis, rubella, hepatitis B, hepatitis C, human immunodeiciency virus infection, assayed through serological tests among pregnant patients, from 1996 to 1998, of Londrina State University, Paraná, Brazil. Rev. Soc. Bras. Med. Trop., [S.l.], v. 33, p. 519-527, 2000. 59 TABELA 3 TEMPO DAS DIVERSAS ETAPAS, EM DIAS, DE ACORDO COM OS CENTROS, PROJETO PESSOAS, 2007. Centro Coleta Término da coleta e entrega soros na FUNED Realização dos exames e entrega resultados no GPEAS Processamento no GPEAS e envio para os Centros Devolução dos resultados aos pacientes 01 67 14 63 2 161 02 27 22 146 2 165 03 91 17 69 2 182 04 79 19 91 2 165 05 34 10 146 2 182 06 59 14 118 2 206 07 145 13 33 2 203 08 50 16 125 2 180 09 52 20 70 2 189 11 35 17 124 2 116 12 29 12 148 2 150 13 74 35 78 2 182 14 92 22 70 2 194 15 105 18 68 2 182 16 57 27 77 2 96 17 84 32 57 2 182 18 81 10 92 2 200 19 78 28 70 2 182 20 52 18 107 2 181 21 84 27 78 2 158 22 91 21 77 2 182 23 103 38 36 2 167 24 131 16 42 2 136 25 39 25 124 2 165 26 70 16 91 2 200 27 65 6 111 2 90 MÉDIA 72 20 89 2 169 60 TABELA 4 ANÁLISE DESCRITIVA PRELIMINAR DA DEVOLUÇÃO DOS RESULTADOS DE EXAMES E ACONSELHAMENTO PÓS- TESTE DOS PAR TICIPANTES, PROJETO PESSOAS, 2007. População n (%) Fizeram a coleta de sangue 2.300 (100) Questionários de aconselhamento digitados no GPEAS 1 1.803 (78,4) Número de tentativas para devolução dos exames: 2 Uma 1.479 (82,0) Duas 63 (3,6) Três 129 (7,2) Quatro 99 (5,5) Devolução dos resultados e aconselhamento pós-teste: 2 Sim 1.499 (83,1) Não 304 (16,9) Situação do participante após o projeto: Vinculado ao serviço 1.479 (82,0) Encaminhado para outro serviço 282 (15,6) Alta sem encaminhamento 93 (5,2) Abandonou o serviço 33 (1,8) 1 Em relação ao total de participantes que coletaram sangue (n=2.300) 2 Após quatro tentativas e em relação ao total de questionários digitados (n=1.803) 61 TABELA 5 ANÁLISE DE PAR TICIPAÇÃO, PROJETO PESSOAS, 2007. Característica Participante (n=2.475) Não participante (n=288) Não-apto (n=492) X2 (p-valor) 1 X2 (p-valor) 2 Local da pesquisa: CAPS 1.577 (63,7) 223 (77,4) 210 (42,7) 21,4 75,8 Hospital 898 (36,3) 65 (22,6) 282 (57,3) (<,0001)* (<,0001)* Sexo: Feminino 1.277 (51,6) 153 (55,0) 197 (41,0) 1,2 16,6 Masculino 1.198 (48,4) 125 (45,0) 279 (59,0) (0,276) (<,0001)* Idade: ≤35 anos 880 (35,6) 94 (33,9) 111 (23,6) 0,3 25,2 >35 anos 1.595 (64,4) 183 (66,1) 359 (76,4) (0,593) (<,0001)* Escolaridade: ≥ 8 anos 742 (30,0) 67 (36,4) 55 (16,0) 3,3 29,2 < 8 anos 1.733 (70,0) 117 (63,6) 289 (84,0) (0,070) (<,0001)* Diagnósticos Psiq: TMG3 1.408 (56,9) 169 (58,9) 291 (59,1) 0,3 0,8 Outros 1.067 (43,1) 119 (41,3) 201 (40,9) (0,561) (0,355) 1 Comparando participante com não participante 2 Comparando participante com não-apto 3 Transtorno Mental Grave (TMG) = esquizofrenias/transtorno bipolar/depressão com sintomas psicóticos * p-valor<0,05 64 TABELA 8 DISTRIBUIÇÃO DE FREQÜÊNCIA, VARIÁVEIS RELACIONADAS AO CONSUMO DE SUBSTÂNCIAS LÍCITAS OU ILÍCITAS (N=2.475), PROJETO PESSOAS, 2007. Variáveis n (%) Uso de tabaco alguma vez: 1.762 (71,2) Uso atual de tabaco: 1.295 (52,3) Idade de início do tabagismo (< 15 anos): 1 582 (45,0) Número de cigarros/dia (1-20): 1 1.071 (82,7) Fuma dentro do serviço: 2 1.001 (77,3) Uso de álcool alguma vez: 1.594 (64,4) Idade de início de consumo de álcool (< 15 anos): 3 394 (24,8) Uso de bebida alcóolica no CAPS/hospital: 3 39 (2,5) Uso de droga ilícita alguma vez: Maconha 541 (21,9) Cocaína 262 (10,6) Crack 212 (6,4) Alucinógenos 106 (4,3) Anfetaminas 104 (4,2) Solvente 29 (1,2) Uso de droga ilícita no último mês: Maconha 217 (8,8) Cocaína 85 (3,4) Crack 133 (5,4) Alucinógenos 21 (0,8) Anfetaminas 40 (1,6) Solvente 9 (0,4) Uso de drogas ilícitas dentro do CAPS/hospital: Maconha 27 (1,1) Cocaína/crack/solvente 17 (0,7) Uso de droga injetável alguma vez: 72 (2,9) Compartilhamento de seringa/agulhas: 4 63 (87,5) 1 Em relação ao total de fumantes (n=1.295) 2 Em relação ao total de fumantes dentro do serviço (n=1.001) 3 Em relação ao total de usuários de bebida alcóolica (n=1.591) 4 Em relação ao total de usuários de drogas injetáveis (n=72) 65 TABELA 9 DISTRIBUIÇÃO DE FREQÜÊNCIA DE VARIÁVEIS RELACIONADAS AO COMPORTAMENTO SEXUAL (N=2.475), PROJETO PESSOAS, 2007. Variáveis n (%) Já tiveram relação sexual: 2.168 (87,6) Relação sexual nos últimos seis meses: 1.517 (61,3) Idade da primeira relação (< 18 anos): 1 1.452 (67,0) Frequência de uso de preservativo (toda vida): 1 Todas as vezes 179 (8,3) Na maioria das vezes 342 (15,8) Menos da metade das vezes 761 (35,1) Nunca 862 (39,8) Ignorado 24 (1,1) Freqüência de uso de preservativo (últimos 6 meses): 2 Todas as vezes 245 (16,2) Na maioria das vezes 124 (8,2) Menos da metade das vezes 194 (12,8) Nunca 912 (60,1) Ignorado 42 (2,8) Parceiro recusou usar preservativo alguma vez: 1 594 (27,4) Uso do preservativo na última relação sexual: 1 535 (24,7) Houve troca de dinheiro/drogas por sexo alguma vez: 1 648 (29,9) História de violência verbal alguma vez: 1.700 (68,9) História de violência física alguma vez: 1.431 (58,0) História de violência sexual alguma vez: 458 (18,6) 1 Dentre aqueles com relação sexual 2 Dentre aqueles sexualmente ativos nos últimos seis meses 66 TABELA 10 SOROPREVALÊNCIA DE HIV, HEPATITE B, HEPATITE C E SÍFILIS, POR IDADE E SEXO, PROJETO PESSOAS, 2007. Marcador N Estimativa Pontual (%)a Intervalo de 95% de Confiança Total Sífilis 2.062 1,12 (0,61 - 2,09) HIV 2.237 0,80 (0,37 - 1,76) HBsAg 2.206 1,64 (1,03 - 2,59) Anti-HBc 2.206 14,70 (10,93 -19,78) Anti-HCV 2.238 2,63 (1,67 - 4,13) Sexo Idade Feminino 40 + Sífilis 633 1,05 (0,46 - 2,42) HIV 690 0,88 (0,26 - 3,06) HBsAg 681 1,08 (0,46 - 2,51) Anti-HBc 681 15,84 (11,99 - 20,93) Anti-HCV 690 1,79 (1,04 - 3,10) < 40 Sífilis 449 1,39 (0,48 – 4,04) HIV 471 1,07 (0,28 – 4,03) HBsAg 466 1,11 (0,45 – 2,78) Anti-HBc 466 7,03 (4,67 – 10,60) Anti-HCV 472 1,08 (0,42 – 2,75) Homens 40 + Sífilis 499 0,78 (0,26 – 2,40) HIV 553 0,71 (0,30 – 1,70) HBsAg 541 2,97 (1,64 – 5,37) Anti-HBc 542 24,69 (16,51 – 36,90) Anti-HCV 551 4,71 (3,02 – 7,34) < 40 Sífilis 481 1,28 (0,48 - 3,46) HIV 523 0,53 (0,17 - 1,60) HBsAg 518 1,61 (0,62 - 4,15) Anti-HBc 517 10,91 (7,91 - 15,05) Anti-HCV 522 3,23 (1,35 - 7,70) a Ajustado pela covariância amostral (estimador sanduíche de Huber/White) e ponderado proporcionalmente de acordo com o tamanho amostral relativamente ao total populacional de cada centro) 69 FIGURA 5 SOROPREVALÊNCIA (%) DE ANTI-HBC PARA DIFERENTES POPULAÇÕES E ANO, BRASIL FIGURA 6 SOROPREVALÊNCIA (%) DE HCV PARA DIFERENTES POPULAÇÕES E ANO, BRASIL Fonte: Focaccia et al, 1998; Nascimento et al, 2008 Fonte: Focaccia et al, 1998; Figueiró Filho et al, 2007; Nascimento et al, 2008; Reiche et al, 2000 Pessoas Geral (São Paulo) Doadores Voluntários (SP, Salvador, Manaus) P ro p o rç ã o 14,70 5,90 4,60 Pessoas Geral (São Paulo) Gestante (Londrina) Doadores Voluntários (SP, Salvador, Manaus) Gestante (Campo Grande) P ro p o rç ã o 2,60 1,42 0,80 0,58 0,10 70 FIGURA 7 SOROPREVALÊNCIA (%) DE SÍFILIS PARA DIFERENTES POPULAÇÕES E ANO, BRASIL Fonte: Rodrigues et al, 2004; Szwarcwald et al, 2005; Figueiró Filho et al, 2007; Souza et al, 2004; Reiche et al, 2000 Pessoas Recrutas (Brasil) Parturientes (Brasil) Gestantes (Londrina) Gestantes (MS) Gestante (Campo Grande) P ro p o rç ã o 1,10 0,90 1,70 1,60 0,80 0,80 71 CAPÍTULO 6 PROJETO PESSOAS - AVALIAÇÃO DE SERVIÇOS DE SAÚDE MENTAL NA ASSISTÊNCIA E PREVENÇÃO ÀS INFECÇÕES SEXUALMENTE TRANSMISSÍVEIS 1 Ana Paula Souto Melo2, Francisco de Assis Acurcio3 , Mariângela Leal Cherchiglia4, Carolina Crosland Guimarães Veloso5, Mark Drew Crosland Guimarães6 INTRODUÇÃO O tema avaliação de serviços de saúde vem ganhando relevância na literatura a partir da década de 80, apesar de ainda ser uma área incipiente no Brasil, o que revela nossa limitada “cultura avaliativa” (NEMES et al, 2004). A situação não é diferente quando se avaliam os serviços de saúde mental. Há pouca produção científica sobre o assunto, tornando escassos os parâmetros de qualidade da assistência prestada por esses serviços. A qualidade do cuidado pode ser avaliada por meio de indicadores de estrutura (p.ex., recursos materiais, humanos, arranjos organizacionais), de processo (p.ex., atividades inerentes à atenção à saúde incluindo interação profissionais de saúde e população assistida) e de resultados (p.ex., mudanças no estado de saúde da população promovidas pelos cuidados recebidos) (DONABEDIAN, 1988; VUORI, 1991). Nas últimas décadas, o Brasil vem realizando modificações significativas no modelo de atenção em saúde mental. Até a década de 70, o modelo adotado era centrado exclusivamente na assistência prestada pelos hospitais psiquiátricos. Nas décadas seguintes, com o avanço da Reforma Psiquiátrica, observou-se a abertura dos serviços de atenção ambulatorial denominados CAPS (Centros de Atenção Psicossocial). A implantação desses serviços buscava a construção de alternativas ao modelo hospitalocêntrico e, coerentemente com o movimento da reforma sanitária, foram introduzidas noções como regionalização, territorialização, diversificação e complexificação do modelo. Ademais, a mudança do paradigma que orienta as práticas em saúde mental inclui outras dimensões além da assistência, tais como a reinserção 1 Texto adaptado, com autorização, do artigo: MELO, A. P. S. et al. Avaliação de serviços de saúde mental: assistência e prevenção às doenças sexualmente transmissíveis no contexto do projeto PESSOAS. Rev. Med. Minas Gerais, [S.l.], v. 17, n. 1/2, p. S240-S248, 2007. Suplemento 4. 2 Departamento de Farmácia Social, Faculdade de Farmácia, UFMG; Instituto Raul Soares, FHEMIG 3 Departamento de Farmácia Social, Faculdade de Farmácia, UFMG 4 Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Medicina, UFMG 5 Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Medicina, UFMG 6 Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Medicina, UFMG 74 O tipo de atendimento profissional prestado aos participantes no próprio serviço, avaliado pelos prontuários médicos, indicou que nos hospitais 100% dos pacientes foram atendidos por psiquiatras, enquanto que nos CAPS esse percentual foi de 94,6%. Para outras categorias profissionais avaliadas, como clínica médica, neurologia, enfermagem, assistência social encontrou-se relatos de atendimento em 79,4%, 4,7% e 99,4%, 89,3% dos hospitais, enquanto que as mesmas foram observadas em 18,4%, 0,7% e 61,9%, 54,6% dos CAPS, respectivamente (GUIMARÃES et al, 2007). Os principais problemas encontrados com relação à disponibilidade de exames laboratoriais foram: o número insuficiente de cotas e a demora para a autorização e realização dos exames, assim como para o recebimento dos resultados. Além disso, havia relato de dificuldade com o transporte de pacientes e impedimentos para a realização de exames de alta complexidade. Apenas 11,5% dos serviços relataram não apresentar problemas com a disponibilidade de exames, sendo que um deles alegou que não há procura. O sistema de esterilização de materiais funcionava sob as normas preconizadas em 53,8% das instituições. Destas, 91,0 % eram hospitais sendo que apenas 26,7% dos CAPS possuíam sistema de esterilização de materiais. Os hospitais verificaram-se mais bem equipados que os CAPS, sendo relevante a informação de que a quase totalidade dos CAPS não possuía equipamentos para atendimento de urgências clínicas, p.ex. ambú, laringoscópio e balão de oxigênio (Tabela 1). Além disto, 33,4% dos CAPS consideraram o estado de conservação desses equipamentos como muito ruim e regular, enquanto que todos os hospitais os consideraram bons. Somente hospitais, 27,3% destes, relataram possuir o equipamento de eletroconvulsoterapia (ECT). Quase todas as instituições (96,1%) possuíam legislação em saúde mental. Em torno de metade das instituições tinha acervo bibliográfico e manuais de IST, e apenas 38,5 % oferecia acesso à internet aos profissionais. O serviço de arquivo médico e de estatística esteve presente em 69,2% dos serviços. Nenhum serviço era totalmente informatizado, sendo que 73,1% eram parcialmente informatizados e 26,9% não eram informatizados. Entre os CAPS, cerca de um terço (33,4%) não era informatizado, enquanto que nos hospitais esse percentual foi de 18,2%. Para 80,8% dos serviços, a disponibilidade de medicamentos para a atenção em saúde mental foi considerada suficiente e nenhum serviço a classificou como muito insuficiente. Já com relação aos medicamentos para o manejo de urgências clínicas, 19,2% e 23,1% dos serviços consideraram sua disponibilidade muito insuficiente e insuficiente, respectivamente. Entre os CAPS, essa estimativa foi ainda pior, já que 60,0% deles classificaram-na como insuficiente e muito insuficiente. Oitenta e um por cento dos serviços dispunham de programa de dose individualizada, enquanto que a padronização de medicamentos ocorria em 92,3%. Apenas 19,2% dos serviços indicaram que o sistema de referência e contra- referência estava totalmente estruturado, sendo que 65,4% dos serviços o consideraram como parcialmente estruturado e 15,4% como ausente. A maioria descreveu o serviço 75 de referência como pouco satisfatório (65,4%). Já para o sistema de contra-referência, os serviços relataram estar pouco satisfeitos, insatisfeitos e satisfeitos em 73,1%, 19,2% e 7,7%, respectivamente. Os principais problemas encontrados no sistema de referência e contra-referência foram dificuldades para marcar consultas médicas nas unidades básicas de saúde e consultas especializadas, além da obtenção de retorno das clínicas especializadas. Observou-se pouco diálogo entre os serviços e pouca oferta de vagas. Em apenas 26,9% das instituições existiam programas de educação sexual (Tabela 2), a maioria nos CAPS (33,4%). Tais programas eram realizados por meio de oficinas com os pacientes, com temática acerca de sexualidade e planejamento familiar, e também com palestras mensais e cursos de educação sexual. Trinta e um por cento dos serviços indicaram oferecer programas e atividades de educação específicos para IST, 25% desses considerados pouco satisfatórios ou insatisfatórios. Houve relato de distribuição de camisinhas em apenas 30,8% dos serviços, sendo a grande maioria CAPS e apenas um hospital psiquiátrico. Os motivos alegados para a não distribuição de camisinhas foram o seu fornecimento pelas unidades básicas e a falta de programas de educação sexual nas instituições. Uma instituição identificou o serviço como local impróprio para tanto, onde se acreditava que não poderia haver relações sexuais. Outra indicou como pressuposto que os pacientes não mantinham relações sexuais durante a internação. Entretanto, um dos centros relatou que os pacientes internados mantinham visitas íntimas. Em 61,5% das instituições, no momento da pesquisa, havia pelo menos um paciente sabidamente portador da infecção pelo HIV/aids. Em apenas 11,5% instituições os pacientes falavam sobre o problema em atividades de grupo. A maioria dos serviços (57,7%) tinha como conduta encaminhar esses pacientes, agendar-lhes as consultas e transportá-los até os serviços especializados para seu acompanhamento e tratamento. Quando verificava-se que algum paciente da instituição estava infectado por alguma IST, incluindo a aids, o procedimento mais comum era o registro nos prontuários, além de comunicar o fato ao paciente, à família e aos outros profissionais de saúde da instituição (23,1%). Finalmente, em 73,1% das instituições era garantida a inviolabilidade da correspondência dos pacientes. Cerca de 77,0% dos serviços possuíam registro de queixas, sendo que a forma de registro variava de assembléias de pacientes (23,1%), livro de queixas (11,5%), caixas de sugestões (11,5%) e ouvidoria (7,7%). Nenhuma instituição relatou a presença de cela-forte ou espaços restritivos ou punitivos. As principais dificuldades relatadas durante o preenchimento do instrumento de avaliação dos serviços foram: a busca de informações em diversos setores dos serviços, a falta de informatização para a coleta de dados estatísticos e a deficiência de registro nos setores técnicos e administrativos. Ademais, foram encontradas dificuldades na obtenção de informações sobre os profissionais e sua qualificação, bem como sobre o número de consultas por especialidades e sobre a realização de exames. 76 DISCUSSÃO Os resultados da avaliação dos serviços participantes do Projeto PESSOAS indicaram que tanto os hospitais psiquiátricos como os CAPS apresentaram dificuldades no atendimento da demanda de suporte clínico aos pacientes. Esse dado é preocupante diante da maior vulnerabilidade da população de pacientes psiquiátricos para doenças clínicas, principalmente aqueles com quadros psiquiátricos mais graves (DWORKIN,1994; JESTE et al, 1996; MCKINNON et al, 1999; NEWMAN; BLAND,1991; PHELAN; STRADINS; MORRISON, 2001; ROBSON; GRAY, 2007). Entretanto, esses resultados devem ser compreendidos dentro do contexto do Projeto PESSOAS, cuja unidade de análise principal foi o indivíduo selecionado dentro de cada serviço. Ainda que as instituições participantes tenham sido selecionadas aleatoriamente, o desenho amostral não buscou especificamente a representatividade para todos os CAPS ou hospitais brasileiros. Assim, os dados referentes aos serviços têm caráter complementar e podem subsidiar as análises dos índices de positividade para as IST nessa população, bem como os fatores a estas associados. Os CAPS funcionam, em sua grande maioria, entre 8 e 12 horas diárias, de segunda a sexta, o que é condizente com dados do Ministério da Saúde, segundo os quais 75% dos CAPS incluem-se entre as modalidades I e II. No Brasil, apenas 3,7% dos CAPS são estruturas mais complexas, denominadas CAPS III, com funcionamento 24 horas por dia, como os hospitais psiquiátricos (BRASIL, 2007). Evidenciou-se uma precária interlocução com os serviços de referência e contra- referência, principalmente no tocante à atenção clínica aos aspectos não-psiquiátricos dos pacientes. Apenas 19,2% dos serviços relataram que o sistema de referência e contra-referência estava totalmente estruturado. Tanto os CAPS como os hospitais referiram à precariedade do retorno dos encaminhamentos da clínica médica e de outras especialidades. As barreiras de acesso aos serviços, que potencialmente colocam essa população em risco de desassistência, têm sido tema de discussão. Estudos sobre a relação entre os serviços de saúde mental e a atenção e prevenção às IST/aids indicam que os médicos clínicos estão menos inclinados a fazer um trabalho cuidadoso junto a pessoas com sintomas precoces de HIV que também apresentam uma doença mental grave, enquanto que os prestadores de serviços em saúde mental são relutantes em tratar os clientes que são HIV positivos (SULLIVAN et al, 1999). Esses dados apontam para a fragmentação do cuidado dos aspectos físicos e mentais dos pacientes psiquiátricos no sistema de saúde. Entre os resultados das entrevistas realizadas com os pacientes no Projeto PESSOAS (GUIMARÃES et al, 2007) verificou-se que havia registros de diagnósticos não-psiquiátricos em 23% dos prontuários. Contudo, os pacientes relataram co- morbidade clínica referida em 44,8% destes, evidenciando uma discrepância entre os dados que pode indicar uma ineficácia na avaliação clínica desses pacientes. 79 ______. Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. HumanizaSUS: equipe de referência e apoio matricial. Brasília, 2004a. ______. Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva. Secretaria de Atenção à saúde. Legislação em saúde mental: 1990-2004. 5. ed. ampl. Brasília, 2004b. 340 p. (Série E. Legislação de Saúde). BROWN, S. Excess mortality of schizophrenia: a meta-analysis. Br JPsychiatry, [S.l.], v. 171, p. 502- 508, 1997. COLLINS, P. Y. et al. What is the relevance of mental health to HIV/AIDS care and treatment programs in developing countries? 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Avaliação da qualidade da assistência no programa de AIDS: questões para a investigação em serviços de saúde no Brasil. Cad. Saúde Pública, [S.l.], v. 20, p. 310-321, 2004. Suplemento 2. 80 NEWMAN, S. C.; BLAND, R. C. Mortality in a cohort of patients with schizophrenia: a record linage study. Canadian Journal of Psychiatry, [S.l.], v. 36, p. 239-245, 1991. PHELAN, M.; STRADINS, L.; MORRISON, S. Physical health of people with severe mental illness. British Medical Journal, [S.l.], v. 322, p. 443-444, 2001. PINTO, D. S. et al. Sexuality, vulnerability to HIV, and mental health: an ethnographic study of psychiatric institutions. Cad. Saúde Pública, [S.l.], v. 23, p. 2224-2233, 2007. ROBSON, D.; GRAY, R. Serious mental illness and physical health problems: a discussion paper. Int. J. Nurs. Stud., [S.l.], v. 44, p. 457-466, 2007. SACKS, M. H. et al. HIV related risk factors in acute psychiatric inpatients. Hosp. Comm. Psych., [S.l.], v. 41, p. 440-442, 1990. STROUP, T. S.; GILMORE, J. 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Características Hospital N=11(%) CAPs N=15(%) Total N=26(%) Tipo de serviço Hospital 11 (100) 0 ( - ) 11 (42,3) CAPS 0 ( - ) 15 (100) 15 (57,7) Natureza jurídica Público Estadual 6 (54,4) 0 ( - ) 6 (23,2) Público Municipal 0 ( - ) 15 (100) 15 (57,7) Privado Lucrativo 4 (36,6) 0 ( - ) 4 (15,3) Filantrópico 1 (9,0) 0 ( - ) 1 (3,8) Assistências prestadas Internação 11 (100) 2 (13,3) 13 (50,0) Urgência psiquiátrica 7 (63,6) 6 (40,0) 13 (50,0) Leito de observação diurno 5 (45,5) 9 (60,0) 14 (53,8) Leito de observação noturno 5 (45,5) 0 ( - ) 5 (19,2) Atendimento ambulatorial 8 (72,7) 12 (80,0) 20 (76,9) Atendimento domiciliar 1 (9,1) 12 (80,0) 13 (50,0) Atividade de recreação 10 (90,9) 12 (80,0) 22 (84,6) Oficinas terapêuticas 9 (81,8) 15 (100) 24 (92,3) Atendimento familiar 9 (81,8) 15 (100) 24 (92,3) Reunião com pacientes 11 (100) 13 (86,7) 24 (92,3) Relação com associação de usuário 6 (54,5) 8 (53,3) 14 (53,8) Cooperativa de trabalho solidário 1 (9,0) 6 (40,0) 7 (26,9) Profissionais Insuficientes 5 (45,5) 12 (80,0) 17 (65,4) CONTINUA 85 CAPÍTULO 7 PROJETO PESSOAS - PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES DE PESSOAS COM TRANSTORNOS MENTAIS SOBRE AS INFECÇÕES SEXUALMENTE TRANSMISSÍVEIS E A AIDS E SUAS FORMAS DE PREVENÇÃO Maria Imaculada de Fátima Freitas1 , Suely Broxado de Oliveira2, Alain Giami3, Adriana da Silva Gomes4, Renato Diniz Silveira5 , Mark Drew Crosland Guimarães6 INTRODUÇÃO A discussão aqui apresentada diz respeito aos resultados do eixo qualitativo do Projeto PESSOAS, cuja metodologia encontra-se no Capítulo 4. Foram investigados modos de pensar e agir para a prevenção e controle do HIV/aids e infecções sexualmente transmissíveis (IST), com entrevistas semi-estruturadas e aprofundadas, realizadas com pessoas acompanhadas em quatro serviços públicos de saúde mental. A análise das falas dos sujeitos foi do tipo compreensiva, fundamentada em noções da teoria da análise estrutural de narração (BARTHES, 1981; GREIMAS, 1966, 1981) retomadas por Demazière & Dubar (1997) e Dubar (1998), e buscou interpretar as entrevistas como um processo de reflexão do sujeito sobre os objetos abordados, que o leva a uma reconstrução de seus próprios modos de interpretá-los (PAILLÉ; MUCCHIELLI, 2005). Para a discussão dos resultados, utilizou-se a Teoria das Representações Sociais (GIAMI, 2004; GIAMI; VEIL, 1994; HERZLICH, 1972, 2002, 2005; JODELET, 1989, 1994, 1997; MOSCOVICI, 1961), em uma abordagem que considera que as representações são um conjunto de informações e construções imaginárias das pessoas e da coletividade, presentes nos processos sociopsicológicos desses e que podem influenciar ou definir suas condutas. Nesse contexto teórico, buscou-se, no estudo, compreender as representações de pessoas com transtornos mentais graves acerca do HIV/aids e IST, interpretando-as como um modo de se posicionarem em relação ao fenômeno dessas doenças e seus riscos de transmissão. 1 Escola de Enfermagem, Universidade Federal de Minas Gerais 2 Instituto de Psiquiatria, Universidade Federal do Rio de Janeiro 3 Institut National de la Recherche Médicale (INSERM), Paris 4 Escola de Enfermagem, Universidade Federal de Minas Gerais 5 Instituto Raul Soares, FHEMIG 6 Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais 86 Os resultados apontaram representações centradas no risco de infecção, com narrativas que mostram idéias sobre o risco enquanto uma categoria psicossociológica. Psicológica, porque se trata de uma racionalidade subjetiva, porque cada um carrega desejos e idéias sobre si mesmo que o tornam mais ou menos propenso a correr riscos. Sociológica, porque o risco apreendido pelo sujeito como tal é também um aprendizado nas relações com os outros, com valores e julgamentos provenientes das instituições sociais e com informações que circulam na sociedade (BAJOS; LUDWIG, 1995; LE BRETON, 1995). Finalmente, ressalta-se que as práticas analisadas no presente estudo são aquelas relatadas pelos sujeitos participantes, tomadas como narrativas descritivas da ação ou de posturas imaginadas para si mesmos, que são reveladoras de representações ou constituem uma maneira de se expressarem em contradição com estas. Considera-se, portanto, que representações e condutas não se situam obrigatoriamente em uma relação de causa-efeito, uma orientando a outra, mas se trata de uma relação complexa que pode até ser contraditória, como afirma um dos entrevistados: “se eu fizesse o que penso, o mundo acabaria” (E10). A loucura tem, pois, limites. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS OS PAR TICIPANTES, SEUS CONTEXTOS DE VIDA E ADOECIMENTOS Foram entrevistados 22 homens e 17 mulheres, sendo, destes, 10 pacientes internados no Hospital Galba Veloso, nove hospitalizados no Instituto Raul Soares, (Belo Horizonte), 11 acompanhados no CERSAM Betim (Minas Gerais) e nove no CAPS Carmo (Rio de Janeiro). Dez homens encontravam-se em regime de hospitalização e 12 em atendimento ambulatorial (Cersam e CAPS) e, dentre as mulheres, nove estavam hospitalizadas e oito sendo atendidas ambulatorialmente. Todos tinham mais de 18 anos, foram contactatos pelos coordenadores de campo do Projeto PESSOAS nas instituições nas quais eram acompanhados, encontravam- se fora de crise e aceitaram participar livre e esclarecidamente, assinando o termo de consentimento. As entrevistas tiveram duração média de uma hora, foram gravadas em áudio, transcritas com utilização de pseudônimos e numeradas em ordem crescente, como por exemplo E1, E2, E3 (Ver Anexo A, com apresentação da síntese da situação de cada entrevistado), para organização do banco de dados e apresentação dos resultados. As entrevistas foram analisadas separadamente, sendo cada sequência da construção do diálogo entrevistado/entrevistador numerada em ordem crescente, como S1, S2, S3 (Ver Anexo B, com exemplo de parte do sequenciamento de uma entrevista). Em seguida, as entrevistas foram tratadas tranversalmente, para se encontrar as conjunções e disjunções do conteúdo do conjunto, identificando-se as representações aí contidas. 89 aceito socialmente. Obviamente, o termo ‘doente mental’ não é utilizado por nenhum entrevistado (esse é um termo que profissionais de saúde e o público ainda utilizam, e identifica, na generalidade, qualquer pessoa com quadro de transtorno mental e com comportamentos e hábitos diferentes do corrente na sociedade), mas muitos se identificam como: “sou doido”, “fiquei doido”, “saio doido pela rua”, “fico fraco da cabeça”, “sou PMD”, “sou médium”, “sou manso, mas viro outro quando me pisam no calo’,‘ tenho sistema nervoso”, “fico agressivo demais e não consigo me controlar”, “fico nervoso à toa”, “fico descontrolado”, mas também “fico assim porque fizeram uma feitiçada para mim”. Para todos, há ainda uma certeza na convivência com outras pessoas com transtornos mentais: o ‘doido’ maior é o outro. E1 expressa isto ao relatar uma tentativa frustrada de fuga do hospital: “Eu tava achando que ia agüentar pular o muro numa boa. Também eu quero (fugir), porque eu não estou doente não, eu quero, não estou doido. Estou consciente. No meio dos doidos fica pior ainda, não fica?” (S18). As idéias de anormalidade e ser diferentes subjazem em todas essas representações. Para homens e mulheres, explicitou-se que a diferença ressentida como ‘ser menos do que os outros’ interfere nas interações e significa manter a representação de que as relações afetivas e sexuais não são possíveis ou o são somente, no caso dos homens, com outros homens para ganhar algum dinheiro ou droga e com mulheres que “fazem sexo por dinheiro”, “prostitutas” ou que “fingem que não são, mas só querem alguma coisa material” e com as quais nunca haverá troca de “verdadeiro afeto” (E3). No caso das mulheres, relações afetivas ou sexuais com homens aparecem representadas, na sua maioria, como possíveis, mas sempre com uma grande decepção em seguida pela traição ou por agressões, inclusive físicas, porque “os homens só querem aproveitar das mulheres” (E16). Também a representação sobre o próprio agravo como impedidor de relações amorosas: “quem quer saber de mulher assim, doida?” (E6, E9). A depreciação e a baixa auto-estima acabam perpetuando um círculo vicioso de encontros amorosos e sexuais decepcionantes e agressivos, que também contribuem para manter representações negativas sobre os homens e sobre si mesmas. As histórias relatadas desvelam também dificuldades que foram vivenciadas ao longo da vida, com isolamento, medo que os outros têm de doentes mentais na convivência familiar ou social (e na falta dela), recusas de ajuda, ou um simples cumprimento não dado. São dificuldades percebidas e elaboradas rapidamente em um significado de ser diferente e até perigoso, como no processo secular de preconceitos e discriminação existente em relação ao doente mental. São relatos de sofrimento ou de sujeição, mas também de agressividade e ou de incompreensão em face dessas interações. Há, portanto, um imaginário social que inclui ‘teorias’ do senso comum sobre a doença mental, nas quais cabeça e nervos estão no centro, opondo-se em inocência 90 e maldade, equilíbrio e desordem, retardamento e degeneração, além de uma determinação do modo de vida e moral como fontes de perturbação, tão antigos e tão ainda presentes (JODELET, 1989; GIAMI, 2004). Nunnally (1961) apresenta o doente mental do ponto de vista da população como estigmatizado, com representações de imprevisível, sujo, perigoso e sem senso de valores. Guilhon de Albuquerque (1978), Jacques (2002), Perussi (1995) e Schurmans (1990) apontam os mesmos resultados em seus estudos com populações e sujeitos diferentes, podendo ser citadas representações de “fraqueza na cabeça”, “cabeça ruim”, “amnésia” que levam a “um sentimento ruim, aquela ira, aquela agitação”, atitudes de agressividade, descontrole e imprevisibilidade, mostrando a falta de utilização da razão no cotidiano e a não observância de normas de condutas sociais. A imprevisibilidade de atitudes causa medo nas pessoas em torno do doente mental e vários entrevistados a isto se referem, como algo percebido, mas sobre o qual sempre acreditam que estavam certos (E1, E3, E7, E8, E9, E10.....). O uso constante de medicamentos está no centro desse conflito: a necessidade de tomá-los para se manterem sem delírios, para ‘manter a normalidade’ (E2) e para ‘cortar a agitação’ (E4, E7, E25, E33), é apontada nas falas, mas na prática, há um relaxamento no uso, de maneira ‘despercebida’ ou devido à certeza que ‘agora fiquei bem’ ou, ainda, porque ‘na igreja dizem que vou ficar curado’. O retorno às crises torna-se, assim, uma constante na trajetória da maioria dos entrevistados. As representações aqui se misturam entre as originárias de uma cultura secular com as advindas de informações científicas, mas estas últimas, não são necessariamente objetivadas em saberes ou são construídas confundindo-se informações, não sendo, por si só, capazes de engendrar posturas de cuidado consigo próprios, para o controle do agravo mental. Na prática, os conflitos e dificuldades que os familiares vivenciam no relacionamento com o sujeito portador de transtorno mental parecem acumular-se e não haver a possibilidade de rompimento com a lógica de não-adesão, levando ao ciclo de crises, reinternações, permeados, muitas vezes, por desistências e abandonos, em um contexto social que também é desfavorável pela falta de condições mínimas que assegurem um acompanhamento constante do sujeito. REPRESENTAÇÕES SOBRE INFECÇÕES SEXUALMENTE TRANSMISSÍVEIS E HIV/AIDS – PREVENÇÃO E RISCO Os estudos das representações sobre a aids, desde o aparecimento da epidemia, mostram que o sexo, o sangue e a morte são seus símbolos; no entanto, são também os símbolos da vida. Os comportamentos desviantes em relação aos três elementos atribuem sua maior representação à noção de culpabilidade: mais que um comportamento perigoso ou de simples fraqueza, é um lado condenável de hábitos desviantes, de perversão, reprovados socialmente, que se tornam responsáveis pela epidemia (SONTAG, 91 1989). A doença seria uma punição (JODELET, 1989), achado que se confirmou em inúmeros estudos posteriores (BRASILEIRO; FREITAS, 2006; FREITAS; MOREIRA, 2007; SOUZA; FREITAS, 2002; HERZLICH, 2002; OLIVEIRA et al., 2006; VIANNA; FREITAS, 2007), em diferentes grupos sociais. As representações sobre a infecção pelo HIV, diferentemente da aids como doença, não são introjetadas facilmente na população geral, nem em grupos específicos: são as informações sobre a síndrome veiculadas pela mídia e pelas relações pessoais, falando de sinais e sintomas, dos ‘estragos’ fisícos, da morte rápida após o diagnóstico e das formas de contaminação que justificam os denominados ‘grupos de risco’ (nos quais os simples mortais não se sentiam inseridos) que se estabelecem como mitos fundadores. Algum tempo depois, começa a se desvelar, com os dados epidemiológicos e as descobertas clínicas, que pode haver um tempo longo entre a infecção e o surgimento da síndrome e que os infectados também transmitem o vírus. Só assim as representações sobre a infecção comecem a se objetivar, tomar corpo na sociedade, mas sem se ancorarem fortemente na idéia de que qualquer um poder ter risco de se infectar. A idéia de que a aids é doença do outro persiste e desresponsabiliza o sujeito da prevenção. Tais representações estão presentes também entre as pessoas com transtornos mentais graves entrevistadas na pesquisa. Os homens falam na aids, considerando primeiramente que é uma doença transmissível. Para todos é uma doença incurável, exceção a um só entrevistado que insistiu sobre o fato de saber que é curável (E26). A expressão estutural do conjunto é: Aids é uma “doença que não tem cura” (explicitamente em E12, E15, E20, E27), que “só Deus pode dar um jeito” (E19), que “é perigosa porque não acharam a cura e não vão achar” (E35), que “deixa a pessoa magra e feia” (E14) que “é o fim da vida” (E36) porque “quem pega aids acabou” (E22): “O que você pensa da aids? Morte” (E15) e “Você pensa o quê disso? Ih! Todo mundo sofrendo, todo mundo sofrendo...” (E15). Porém, para alguns “tem tratamento” (E20), mesmo sendo “um sacrifícío para quem tem” (E29). A grande maioria dos homens não tem representações sobre o HIV ou sequer uma idéia de um vírus como causador da infecção. Somente E5 descreveu formas de contágio e o vírus de forma clara e um dos entrevistados se referiu à aids como proveniente de “um micróbio que come a pessoa”, relatando que já ouviu falar que “vem pelo sexo e sangue” (E19), sendo esta a representação de todos sobre a transmissiblidade. Além disso, alguns lembram que é doença que “pega só de se sentar” (E37), que “pega no beijo” (E25) e “no abraço” (E38), é “doença que veio do macaco” (E16) ou é que “veio, apareceu, foram mexer aonde não deviam lá na África... [além de] ter também aquela matéria que abafaram logo de que a aids era produto de laboratório porque o homem é capaz de fazer isso para ganhar dinheiro” (E29), “meu pai falou que pega, mas não sei como é, sei que tenho de ter cuidado” (E2). 94 Jodelet (1989), Oliveira et al. (2006), Oppenheimer (1988), Patton (1990), Souza & Freitas (2002) e Vianna & Freitas (2007), entre outros. Vale ressaltar que uma só entrevistada conhecia seu status sorológico de infectada pelo HIV, mas explicitou isso somente no início da entrevista, fazendo o gesto de levar o dedo indicador à boca em sinal de silêncio e falando bem baixinho, quando relatou: Entrevistador: Nós vamos conversar sobre sua vida, e você já começou me contando que você trabalhou na zona.... E9: Eu trabalhei. Eu considero isso um trabalho porque eu pagava a diária todos os dias... Aí eles me pagavam, o pessoal da farmácia estava prevenindo com preser..., preservativo que fala? Entrevistador: Hum, hum. E9: Com preservativo. Aí só que eu..., não, eu não tenho vergonha de falar que eu tenho isso não, mas quando o primeiro médico falou, falou que eu, que eu tinha que limpar tudo, tudinho, com bombril, desinfetante, que eu tava quente, que eu vi que eu não tava... que eu tenho que esquecer, que isso perturba muito a minha cabeça, o medo de morrer disso, porque disso eu falei que não ia morrer. Entrevistador: De que? E9: De aids (S1). Muito depois, retoma o assunto para falar de risco de engravidar e de transmissão da aids, mas, nesse momento, já sem nomeá-la: E9: “Fico morrendo de medo da camisinha estourar e eu arrumar um filho ou eu transmitir a doença que eu tenho... pegar uma doença e pegar filho também. A camisinha pode... tem homem que faz tantas coisas... não, não dá pra tantas coisas, não é nada disso não! Aí, na hora que eu bebo, eu fico com medo de engravidar e de pegar doença, entendeu? (S15). E9 explicita que não usa sempre o preservativo porque os homens com os quais tem relação não querem ou não o utilizam, além de estar sempre drogada ou bêbada ao sair para a rua “procurando” parceiros. Esta entrevistada exemplifica situações de risco vivenciadas por todos os entrevistados, que narram histórias de relações sexuais sem preservativo, apesar de a maioria dizer que sabem que ele é necessário para não “pegar aids”. Risco e prevenção: onde estão os limites? A entrevistada 28 diz: “A aids pra mim representa muita coisa, ela pode ser desde uma ignorância até um insulto. As pessoas sabem, entendem, mas teimam em fazer aquilo assim mesmo. É como um desafio, a pessoa transar sem camisinha: “qual 95 nada, isso aí é coisa de careta, coisa de coroa”. O próprio coroa também aproveitando das jovens pra ter um melhor prazer e não se importar com a saúde das jovens, mas sim com o prazer deles. Ele induzi-la a não transar com camisinha.... (S14). Eu já não corro nenhum risco, não tenho relações com ninguém há muitos anos, mas já corri, [apesar de que] ele falava as coisas pra mim, ele não era mentiroso, mas eu achava que era porque geralmente todo homem é mentiroso, né? Depois achei camisinha no bolso dele e me separei. Ele estava me traindo” (S15). Nessa fala aparecem várias representações sobre risco de infecção: 1) o risco existe porque há ignorância; 2) o risco representa um desafio para a pessoa (para provar que é mais forte do que o objeto do risco?); 3) o outro é quem tem risco de se infectar; 4) corre-se risco porque o homem prefere o prazer e o preservativo ‘atrapalha’; 5) o homem geralmente é mentiroso quando o assunto é sexo; 6) existe risco de traição pelo homem, mesmo quando ele é parceiro fixo. As demais entrevistadas têm narrativas nas mesmas vertentes, todas relacionadas às representações de como se deve e de como se vive a sexualidade, sendo mais ou menos retraídas, ou mais ou menos atiradas. A maioria se diz mais retraída, e, por isso mesmo, com menos risco, mas as que se consideram mais atiradas acham que não dá para controlar tudo ou que “um certo risco faz parte de suas vidas” porque “não têm medo” (E9, E14, E 16...). Os relatos apontam que a maioria tem histórias de início de vida sexual muito precoce, algumas (sete mulheres entrevistadas) sofreram abuso sexual por parte de familiar, tais como pai, tio, ou conhecidos da família desde crianças, por exemplo, sendo que duas delas engravidaram do pai, e a maioria nunca teve ou tem orgasmos. Em recente estudo quantitativo, realizado com pacientes de dois serviços nos Estados Unidos da América, Perry & Wright (2006) identificaram características semelhantes, que apontam para as dificuldades de uma vivência saudável nas relações sexuais. Várias mulheres dizem que as relações sexuais são uma violência, e muitas mantiveram relações para não apanhar dos companheiros, submetidas também a abusos por parte destes. As representações sobre o ato sexual são, em geral, negativas, apontando raiva, desprezo por si mesma e pelo parceiro, justificando posturas de abandono de vida sexual: “sentia dor, o negócio dele era cheio de espinho” (E13), “transava por transar, não tinha responsabilidade e homem nenhum prestava” (E16), “ter relações sexuais é engravidar, já que a cada vez que ficava com ele eu arrumava um filho” (E13), “homem é só pra botar filho na barriga da gente” (E18, E23). Para E4, “com o tempo, você não quer mais homem, [pois] não sente mais nada”. As falas se repetem: “não quero saber de homem mais não comigo, não. Quero não...” (E18), “hoje não tem mais relação, não. Tem dois anos sem. Não transo mais. (Por quê?) Ah, porque eu tava com companheiro que não presta, então...” (E21). “Meu marido não prestava, sumia, me batia, me obrigava a ter sexo...” (E33) “Eu durmo... quando eu acordo, acordo com um pé 96 em cima de mim... Eu sinto assim... abusada. Eu sinto abusada. Tô com a calça suja, a cama suja... É muito ridículo, muita rebaixeza.”(E17). Em contraposição, E6 relata sua experiência e reflete, como se fosse para justificar a falta de auto-estima das demais: “ter prazer nas relações sexuais é um aprendizado a dois, o parceiro tem de ser cuidadoso e ensinar a gostar de sexo”, reafirmado por E31, que se diz feliz com o atual companheiro, por ele ser “muito ajuizado”. Nesse sentido, E9 diz que gostaria de ter um parceiro por quem se apaixonasse, mas conta que nunca conseguiu atingir um orgasmo, “apesar de quase ter chegado lá”, porque “quando faço sexo é por dinheiro, porque de graça não; gosto de fazer, procuro, mas só por dinheiro. Quero ter prazer, com alguns eu quero, mas só que ninguém gosta da gente.” (S18). E14 conta também que os parceiros existem porque ela troca relação sexual por drogas e dinheiro, sendo que ela gostava e tinha prazer sexual com o primeiro companheiro que ficou com ela por mais tempo, “porque ele era bom, não me deixava sair de casa para comprar drogas”. Para a maioria das mulheres há a representação de uma boa sexualidade (paralela a relações amorososas) com uma vida de casal - “uma vida normal”, num imaginário social das novelas televisas: “Eu sempre quis que fosse sério, que o homem gostasse de mim, para namorar, para casar...” (E6, E8, E11, E31), que “pedisse para casar de véu e grinalda” (E17), que “ficasse perto e fosse companheiro” (E21, E28, E32, E14) e outra entrevistada relata que já teve “até um rapaz no hospital querendo namorá-la”, mas ela pensou que não podia porque não é ‘normal’: “como que namora louco com louco? Não dá certo não... porque se esses dois doidos começar a quebrar tudo dentro de casa? Ou se os dois ficar doido e trazer tudo pro Pinel os dois de uma vez? Fica difícil. Os doidos têm que namorar com normal. Porque tem o normal pra segurar, tem o normal pra proteger.” (E4). As representações entre transtorno mental e relações amorosas estão interrelacionadas aqui: há a fragilidade uma pessoa que precisa ser protegida por alguém “normal”. Tais representações não diferem do que é encontrado na população geral, havendo obviamente variantes e mulheres que não seguem e não querem esse padrão. Mulheres que desejam uma vida a dois, com relações monogâmicas, querem também acreditar que não têm riscos, porém nenhuma das entrevistadas viveu relacionamentos desse tipo. Acreditam que não tiveram riscos de se infectar porque não existia a aids e as outras doenças não eram importantes (eram curáveis) ou porque não já não objetivam mais o risco que imaginam ser uma história do passado. Hoje, a maioria diz que não corre mais riscos porque não tem mais relacionamento sexual. Todas têm a informação da necessidade de se usar preservativo, mas nunca o fizeram e não se sentem constrangidas por isso. As que têm parceiro fixo e relações sexuais atuais (quatro somente das entrevistadas) também não se sentem em risco e não fazem uso de camisinha, mesmo sabendo da sua existência e importância. Nenhuma das entrevistadas conhece o preservativo feminino,
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