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Guias e Dicas
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Missal, de Cruz e Sousa Fonte CRUZ E SOUSA, João da. PÉREZ, José (o, Notas de estudo de Cultura

literatura

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 20/07/2010

allan-oliveira-12
allan-oliveira-12 🇧🇷

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Baixe Missal, de Cruz e Sousa Fonte CRUZ E SOUSA, João da. PÉREZ, José (o e outras Notas de estudo em PDF para Cultura, somente na Docsity! Missal, de Cruz e Sousa Fonte: CRUZ E SOUSA, João da. PÉREZ, José (org.). Missal, Evocações. In: Cruz e Sousa: Prosa. 2 ed. São Paulo : Cultura, 1945. v. 2. pp.5-126. (Série Clássica Brasileiro-Portuguesa, Os mestres da língua, 14). Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br> A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais. Texto-base digitalizado por: Luiz Abel Silva Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima sejam mantidas. Para maiores informações, escreva para <bibvirt@futuro.usp.br>. Estamos em busca de patrocinadores e voluntários para nos ajudar a manter este projeto. Se você quer ajudar de alguma forma, mande um e-mail para <parceiros@futuro.usp.br> ou <voluntario@futuro.usp.br> MISSAL Cruz e Souza ORAÇÃO AO SOL Sol, rei astral, deus dos sidérios Azues, que fazes cantar de luz os prados verdes, cantar as águas! Sol imortal, pagão, que simbolizas a Vida, a Fecundidade! Luminoso sangue original que alimentas o pulmão da Terra, o seio virgem da Natureza! Lá do alto zimbório catedralesco de onde refulges e triunfas, ouve esta Oração que te consagro neste branco Missal da excelsa Religião da Arte, esmaltado no marfim ebúrneo das iluminuras do Pensamento. Permite-me que um instante repouse na calma das Idéias, concentre cultualmente o Espírito, como no recolhido silêncio das igrejas góticas, e deixe lá fora, no rumor do mundo, o tropel infernal dos homens ferozmente rugindo e bramando sob a cerrada metralha acesa das formidandas paixões sangrentas. Concede, Sol, que os manipanços não possam grotescamente, chatos e rombos, com grimaces e gestos ignóbeis, imperar sobre mim; e que nem mesmo os Papas, que têm à cabeça as veneráveis orelhas e os chavelhos da Infalibilidade, para aqui não venham com solene aspecto abençoador babar sobre estas páginas os clássicos latins pulverulentos, as teorias abstrusas, as regras fósseis, os princípios batráquios, as leis de Crítica-megatério. E faz igualmente, Sultão dos espaços, com que os argumentos duros, broncos, tortos, não sejam arremessados à larga contra o meu cérebro como incisivas pedradas fortes. Livra-me tu, Luz eterna, desses argumentos coléricos, atrabiliários, como que feitos à maneira das armas bárbaras, terríveis, para matar javalis e leões nas selvas africanas. Dá que eu não ouça jamais, nunca mais! A miraculosa caixa de música dos discursos formidáveis! E que eu ria, ria – ria simbolicamente, infinitamente, até o riso alastrar, derramar-se, dispersar-se enfim pelo Universo e subir, aos fluidos do ar, para lá no foco enorme onde vives, Astro, onde ardes, Sol, dando então assim mais brilho à tua chama, mais intensidade ao teu clarão. Pelo cintilar de teus raios pelas ondas fulvas, flavas, ó Espírito da Irradiação! Pelos empurpuramentos das auroras, pela clorose virgem das estepes da Lua, pela clara serenidade das Estrelas, brancas e castas noviças geradas do teu fulgor, faculta-se a Graça real, o magnificente poder de rir – rir e amar, perpetuamente rir… perpetuamente amar… Ó radiante orientalista do firmamento! Supremo artista grego das formas indeléveis e prefulgentes da Luz! pelo exotismo asiático desses deslumbramentos, pelos majestosos cerimoniais da basílica celeste a que tu presides, que esta Oração vá, suba e penetre os etéreos passos esplendorosos e lá para sempre viver, se eternize através das forças firmes, num álacre, cantante, de clarim proclamador e guerreiro. DOLÊNCIAS Tu, na emoção desse encanto doloroso e acerbo da Arte, te sentirás, um dia, velho, fatigado, como um peregrino que percorreu ansiosamente todas as vias-sacras torturantes e perigosas. Essa maravilhosa seiva de pensamentos, toda essa púrpura espiritual, as vivas forças impetuosas do teu sangue, agindo poderosamente no cérebro, irão aos poucos, momento a momento, desaparecendo, num brilho esmaecido, vago, o brilho branco e virgem das estrelas glaciais. A tu’alma será condenada à solidão e silêncio , como certas formosuras claustrais de monjas que brumalmente aparecem por entre as celas, deixando no espírito de quem as vê, quase que o mistério de um religioso esplendor… E, já assim emudecido e gelado para as nobres sensações do Amor, ficarás então como se estivesses morto – sem cabelos, sem dentes, sem nariz, sem olhos – sem nenhumas dessas expressões físicas que tornam os seres humanos harmoniosamente perfeitos. Em vão te recordarás da doçura de mãos aveludadas e brancas, da amorosa diafaneidade de uns olhos claros… As tuas Iedos, as tuas Lésbias e as tuas Aldas, fluidamente te passarão na memória, alvas e frias… Pó infinitamente tratar de idéias como de astros prodigiosos, sonhaste com os opulentos, doirados prestígios da Glória; pensaste na Elevação, como na solenidade augusta das montanhas. Mas, velho já, lembrarás um sol apagado, cuja forma material poderá persistir talvez ainda e cuja chama fecundadora e ardente se extinguirá para sempre… Não crer em nada, não sentir nada, não pensar nada, será tua filosofia da senilidade. E, neste estado do ser, mais cruel que Budismo, deixarás, como disse Heine, que a morte vá enfim tapar-te a boca com um punhado de terra… No entanto, pela tua retina cansada, desfilará tudo o que tu outrora amaste com intensidade: os ocasos, de verberações de metal sobre o mar e sobre o rio. Os finos frios radiantes, de azul resplandecente. A Lua, como estranha rosa branca, perfumando o ar, derramando lactescências luminosas nos campos alfombrosos. Os navios, as escunas e os hiates, todas as embarcações admiráveis, que fazem sonhar, balouçando nas ondas, em relevos nítidos, em gravuras esmaltadas ao fundo dos horizontes. Tudo o que pensaste, o que trabalhaste pela Forma, com nervos e com sangue; tudo o que te deixou despedaçado, na amargura da luta com o estilo e com a frase, cantará grandioso, solene, como os Salmos de Salomão. Com essa natureza mística, quase religiosa, que possues, o Mundo te parecerá uma catedral vastíssima, colossal, de biliões e biliões de torres de cristal, de safira, de rubim, de ametista, de onix, de topásio e d’esmeralda. E, à hora longínqua de profundo luar glacial e imóvel, de cada uma dessas torres sugira um espectro branco dos teus sonhos, como uma ronda fantástica, e os sinos plangentes vibrarão ao mesmo tempo, com tristezas noturnas e lancinantes, por todo o sepulcramento de teus Ideais. E tu, velho, embora, na torre verde d’esmeralda, ficarás egrégio, vencedor, imortal, eterno, só e sereno, ao alto, sob as estrelas eternas. OCASO NO MAR Num fulgor d’ouro velho o sol tranqüilamente desce para o ocaso, no limite extremo do mar, d’águas calmas, serenas, dum espesso verde pesado, glauco, num tom de bronze. No céu, de um desmaiado azul, ainda claro, há uma doce suavidade astral e religiosa. Às derradeiras cintilações doiradas do nobre Astro do dia, os navios, com o maravilhoso aspecto das mastreações, na quietação das ondas, parecem estar em êxtase na tarde. Num esmalte de gravura, os mastros, com as vergas altas lembrando, na distância, esguios caracteres de música, pautam o fundo do horizonte límpido. Os navios, assim armados, com a mastreação, as vergas dispostas por essa forma, estão como a fazer-se de vela, prontos a arrancar do porto. Um ritmo indefinível, como a errante etereal expressão das forças originais e virgens, inefavelmente desce, na tarde que finda, por entre a nitidez já indecisa dos mastros… Em pouco as sombras densas envolvem gradativamente o horizonte em torno, a vastidão das vagas. Começa, então, no alto e profundo firmamento silencioso, o brilho frio e fino, aristocrático das estrelas. Surgindo através de tufos escuros de folhagem, além, nos cimos montanhosos, uma lua amarela, de face chara de chim, verte um óleo luminoso e dormente em toda a amplidão da paisagem. Junto ao cais, olhando as vagas repousadas, a taciturna figura do bêbado destacava em silhouette sombria. E ele gesticulava e falava, movia os braços, proferia palavras ásperas e confusas, como os tartamudos. Eu via-lhe as mãos, todo o corpo invadido por um convulsivo temos, que não era, de certo, a desoladora e enregelada doença da senilidade. O seu aspecto, ao mesmo tempo piedoso e feroz, traduzia a expressão terrível que deixa o bronze inflamado da Dor calcinando naturezas nervosas e violentas. Trôpego, espectral, fazia pensar, pela corpulência, na massa formidanda de um desses ursos melancólicos, caminhando aos boléus, como que numa bruma de pesadelo… Os seus grandes olhos d’árabe, muito perturbados pelo álcool, tinham o brilho amargo de um rio de águas turvas e tristes. Era talvez um desses seres nebulosos, gerados do sangue aventureiro e venenoso de uma bailarina e de um judeu, sem episódios pitorescos, frescos e picantes de alegria e saúde. Um desses seres tenebrosos, quase sinistros, a quem faltou um pouco de graça, um pouco de ironia e riso para florir e iluminar a vida. Alma sem humor — essa força fina e fria, radiante, que deu a Henri Heine tanta majestade. No entanto, quanto mais eu observava esse fascinado alcoólico, pasmando instintivamente, na confusão neblinosa da embriagues, para as ondas adormecidas na noite, mais meditava e sentia as profundas visões de sonâmbulo que lhe vagavam no cérebro as saudades e nostalgias. Porque o álcool, pondo uma névoa no entendimento, apaga, desfaz a ação presente das idéias e fá-las recuar ao passado, levantando e fazendo viver, trazendo à flor do espírito, indecisamente, embora, as perspectivas, as impressões e sensações do passado. Nos límpidos espaços nem um movimento, um frêmito leve de aragem perturbava a harmoniosa tranqüilidade da noite clara, por entre os finos rendilhados prateados das estrelas. Mais amplo, mais vasto e sereno ainda, o silêncio descia, pesava na natureza, sobre os telhados, que pareciam, agrupados, aglomerados nos infindáveis renque das casas, enormes dorsos escuros de montanhas, de elefantes., de dromedários. Sobrepujando, avassalando tudo, com expressões misteriosas de Idade Média, as elevadas torres das igrejas, como vigias colossais de granito, erectas para o firmamento na luminosa sonoridade do luar, tinham a nitidez dos desenhos. E a luz do astro noturno e branco, da Verônica do Azul, congelada de mágoas, envolvia a face atormentada do bêbado como num longo sudário de piedades eternas… SABOR Os ingleses, fidalgo entendimento de artista, para significar - o melhor - dizem na sua nobre língua de prata: the best… O que os ingleses chamam the best é finamente o que eu quero exprimir com a palavra — sabor — que, para a requintada espiritualidade, marca alto na Arte — filtrada, purificada pela exigência, pelo excentrismo da Arte. Após a delícia frugal de um lunch de frutas silvestres e claros vinhos, numa colina engrinaldada de rosas, quando o sol sob nuvens aparece e desaparece, numa confortante meia-sombra de luz, não é apenas o gozo das frutas e dos vinhos que te fica saboreando no paladar. O asseado aspecto do dia levemente frio, agulhante nas carnes , o ouro novo do sol em cima, a cor bizarra, correta do verde luxuoso, o gelo fresco e cristalino nas taças sonoras espumantes de líquidos vaporosos, e o viçoso encanto de formosas mulheres, indo em bocas de aurora e dentes de neve. — toda essa impressionante, alegre palheta de pintura à água, aflora num esplendor de gozo a que tu bem podes chamar o raro sabor das coisas. A clarividência na atitude dos perfis que a essa hora pintalgam a paisagem de colorido variado, o aroma que de tudo vem e que de tudo sobe para a serenidade azul, o ritmo simpático do momento, a lassitude branda de nervos, que engolfa as idéias numa larga felicidade amável — como em amplos coxins de arminho — todas essas preciosas maneiras e pitorescos estilos que dão linha, grande tom ao viver, fazem, enfim, que de tudo se experimente um radiante, aguçado sabor. Não basta, pois, o paladar. Esse, apenas, materializa. Não é, portanto, suficiente, que se sinta o sabor na boca, que o examine, que se o depure, que se o saiba distinguir com acuidade, com atilamento. É necessário, indispensável que, por um natural desenvolvimento estético, se intelectualiza o sabor, se perceba que ele se manifesta na abstração do pensamento. Por fim, as palavras, como têm colorido e som, têm do mesmo modo, sabor. O cinzelador mental, que lavora períodos, faceta, diamantiza a frase; a mão orgulhosa e polida que, na escrita, burila astros, fidalgo entendimento de artista, deve ter um fino deleite, um sabor educado, quando, na riqueza da concepção e da Forma, a palavra brota, floresce da origem mais virginal e resplende, canta, sonoriza em cristais a prosa. Para a profundidade, a singularidade de todo o complexo da Natureza, o artista que sente claro, entende claro, pensa claro, saboreia claro. LENDA DOS CAMPOS Por uma doirada tarde azul, em que os rios, após as chuvas torrenciais, sonorizam cristalinamente os bosques, os camponeses de uma vila risonha, numa unção bíblica, conduziam ao tranqüilo cemitério florido o loiro cadáver branco de uma virgem noiva, morta de amor, tão bela e tão nova, umedecida no féretro, como se tivesse acabado de nascer da rosada luz da manhã. Infantil ainda,viera outrora da Alemanha através de castelos feudais, de montanhas alpestres, de árvores velhas e enevoadas… E, então, desde o dia de sua morte, uma lenda espalhou-se, como a dos Niebelugen, em todas aquelas cabeças ingênuas, rudes e humildes. Ela era a deusa fantástica, a visão encantada dos antigos palácios medievais de vidraçaria gótica, onde as rainhas mortas apareciam brancas ao luar, à flor dos lagos e rios, suspirando toda a tragédia histérica dos convulsivos amores passados, que os ventos de hoje como que ainda melancolicamente repetem… Era a monja das aldeias dos castelos feudais, graves e solenes, cheios de névoas alemãs, atravessados de fantasmas que fazem mover alvas e longas clâmides de linho no ar neutralizado da meia-noite… E, por altas horas, em certos dias, ao luar, a imaginação apreensiva dos homens e mulheres do campo, via uma virgem loira, de ignoto aspecto de ondina mágica, surgir do solo em exalações fosforescentes, o coração traspassado de flechas inflamadas, arrastando soturnamente pela areia luminosa uma vasta túnica branca, os cabelos de sol soltos para trás, candidamente pálida, cantando a canção sonâmbula do túmulo e desfolhando grandes grinaldas de flores de laranjeiras, cujas frescas e níveas pétala cheirosas redemoinhavam, agitadas por um vento frio — pelo vento gelado e soluçante da Morte. NOTAMBULISMO Enquanto, fora, na noite, gralha, grasna e grulha o Carnaval em fúria, vai, Mergulhador, rindo para o espaço a tua aguda risada acerba. Os luminosos lírios das estrelas desabrocharam já nos faustosos brocados do Firmamento, como que para ritmar em claras árias de luz a tua torva risada triste. Apavora-te o Sol flamejante, eterno, na altura infinita. Não queres a aflitiva evidência do sol, que tudo põe num relevo brusco, que pinta as chagas de vermelho, faz sangrar as dores, perpetuar em bronze o remorso. Amas a sombra, que esbate os aspectos claros, esfuminha os longes, turva e quebra a linha dos corpos. Queres a noite, longas trevas amargas que confundam máscaras hediondas de Gwimplaines com faces loiras de deusas. Noite igualmente deliciosa e dilacerante que te anule para os sentimentos humanos, que te disperse no vácuo, dissolva imortalmente o espírito num som, num aroma, num brilho. Noite, enfim, que seja o vasto manto sem astros que tu arrastes pelo mundo a fora, perdido no movimento supremo da Natureza, como um misterioso braço de rio que, através de fundas selvas escuras, vai, por estranhas regiões, sombriamente morrer no Mar… A noite tem, para a tua delicada sensibilidade, o majestoso poder de apagar-te dos olhos esses sinistros animais terríveis que babujam ao sol e desfilam, diante de ti, na truculenta marcha cerrada de pesadas massas formidandas. Enquanto, pois, lá fora, o Carnaval em fúria gralha, grasna e grulha, num repique macabro de guizos jogralescos, uivando uma língua convulsiva e exótica de duendes e notâmbulas bruxas walpurgianas, prende-te, ó deus do Tédio, Mergulhador dos Mediterrâneos da Arte! Às imensas asas da fria águia negra das multidões – a noite – e ri, ri! Sob as claras árias da luz das Estrelas, a tua venenosa risada em fel e em sangue… NAVIOS Praia clara, em faixa espelhada ao sol, de fina areia úmida e miúda de cômoro. Brancuras de luz da manhã prateiam as águas quietas, e, à tarde, coloridos vivos de acaso as matizam de tintas rútilas, flavas, como uma palheta de íris. Navios balanceados num ritmo leve flutuam nas vítreas ondas virgens, com o inefável aspecto nas longas viagens, dos climas consoladores e meigos, sob a candente chama dos trópicos ou sob a fulguração das neves do Pólo. Alguns deles, na alegre perspectiva marinha, rizam matinalmente as velas e parte ─ mares afora ─ visões aquáticas de panos, mastros e vergas, sob o líquido trilho esmaltado das espumas, em busca, longe, de ignotos destinos. Á tarde, no poente vermelho, flamante, dum rubro clarão d’incêndio, os navios ganham suntuosas decorações sobre as vagas. O brilho sangrento do ocaso, reverberando na água, dá-lhes uma refulgência de fornalha acesa, de bronze inflamado, dentre cintilações de aço polido. Os navios como que vivem, se espiritualizam nesta auréola, neste esplendor feérico de sangue luminoso que o ocaso derrama. E mais decorativos são esses aspectos, mais novos e fantasiosos efeitos recebem as afinadas mastreações dos navios, donde parece fluir para o alto uma fluida e fina hormonia, quando, após o esmaecer da luz, a Via- Láctea resplende como um solto colar de diamantes e a Lua surge opaca, embaciada, num tom de marfim velho. EMOÇÃO Não sei que estranho frisson nervoso percorre-me às vezes a espinha, me eletriza e sensibiliza todo como se meu corpo fosse um harmonioso teclado de cristal vibrando as sonoridades mais delicadas. Um ombro aveludado e trescalante a frescura aromática, que pelo meu ombro levemente roce na rua, num encontro fortuito, produz-me um estado tal de volúpia, dá-me tão longa, larga volúpia, que me vejo por entre incensos, festivamente paramentado como o sacerdote que ergue o cálix acima da cabeça, ao alto do Altar-Mor dos templos doirados, sentindo que um aluvião de almas crentes o adora de joelhos. A mão fina, ideal, calçada em luva clara, de formosa mulher que por entre a multidão aparece e desaparece, como uma estrela por entre nuvens, bem vezes, também, me alvoroça e agita o sangue. E sigo, radiante, triunfal, rei, essa nobre mão enluvada, à qual eu em vão pediria o ouro, a riqueza afetuosa de um gesto carinhoso – a essa delicada mão avara e milionária que,para mais avara tornar-se ainda, se fora esconder na maciez elegante da luva fresca, vivendo dentro dela afagada, confortada, palpitando talvez por encontrar a mão feliz que vibrará de amor ao seu contato. Então, assim, a emoção que desperta todos os meus sentidos, no curioso giro que faço com o pensamento acompanhando a feminina mão fidalga, não é uma emoção de indiferença, por certo, mas uma emoção de despeito. Estranhamente, como força hercúlea que me prendesse à terra, chamando-se à iniludível Realidade, desço das inauditas, siderais, regiões a que subira. Vejo-me logo, então, profundamente vencido no tempo, e, no meu rosto, à maneira dos fundos sulcos que as charruas abrem nos campos, imprevistas rugas se evidenciam, como se eu tivesse de repente envelhecido um ano. Da Dor poucas vezes sinto só o que ela tem de selvagem, de rugidora. Emoções delicadas, sutis, que me doem também fundo na alma, porque me melancolizam, deixam-me um ritmo de música, uma afinada dolência de suavíssimos violinos, e que por fim delicia. É como se alguém vibrasse de brando as cordas de um instrumento e ele, trêmula, amorosamente, ficasse a gemer no mais meigo, no mais doce dos dedilhados acordes... A emoção é que me faz amar os eucaliptus altos, afilados, retorcidos convulsamente, como a dor dum gigante. É ainda essa mesma emoção que me faz perceber e ouvir o misterioso som dos metais: o claro riso diamantino da Prata e o trovejante rumor do bronze. O que o mundo chama fatalidade, negras e assoberbantes catástrofes, como um incêndio, não posso bem com nitidez que emoção me causa. Realmente, num incêndio, todas aquelas chamas são maravilhosas! Por uma espécie apenas de schopenhaurismo é que eu adoro-te, ó feio! e quereria bem rolar contigo nesse Nirvana de dúvida até à suprema aniquilação da morte, vendo surgir, como de lagos de quimeras, em estalagmites de neve, diante de mim, sombrios e álgidos, pesadelos de mulheres amadas; pálidas Ofélias, Margaridas loiras, Julietas tormentadas, visões, enfim, como nas tragédias de Mcbeth ou a nevoenta Visão germânica do Graal. Numa seda negra d’Arte, vestidos de negro, à semelhança desse trágico Hamlet da Dinamarca, iríamos os dois, através dos largos e profundos cemitérios silenciosos, consultar as rígidas caveiras das virginais Ilusões que se foram, e que, à nossa aproximação, sorririam, talvez, felizes, como se lhes levássemos a palpitante matéria animada de nossos corpos para cobrir, fazer viver as suas galvanizadas carcaças frias. Mas ah! eu quisera bem, por vezes, também, ter o rude materialismo analítico de Buchener, que, certamente, não sentiria por ti, ó Feio! esta extravagante, excêntrica, singular influência mórbida que nas funções de meu cérebro vem, contudo, como doença amarga, um tédio amarelo e pesado de chim que o ópio estuporou e enervou. Não houvesse dentro em mim, através das Ilíadas do Amor, das Bacanais do Sonho, um sentimento melancólico ao qual o pensamento dá uma expressão de enfermidade psicológica, e eu não arrastaria a tua sombra, não andaria preso ao teu esqueleto, ó soturno, ó triste, ó desolado Feio! VITALIZAÇÃO Há uma irradiação larga e opulentíssima nos ares. Esbraseamento do sol do fim da tarde dá fortes verberações quentes à paisagem, que resplandece, e de cuja vegetação estuante de calor parecem rebentar as raízes túmidas de seiva, como veias imensas latejando de sangue oxigenado e vivo. Nessa elaboração enorme da Terra que procria e fecunda, na gestação desses mundos que, como astros, gravitam talvez em cada grão de areia, pululando e vibrando, a Natureza é como uma grande força animada e palpitante, dando entendimento e sentimento à Matéria e fazendo estacar a vida no profundo ocaso da Morte. E, daí a pouco, a Lua, através das matas do vale, anelante e álgida, surgirá, rasgará d’alto as nuvens do céu, acordando os aromas adormecidos, cristalizada, vagarosa e tristemente, como uma dor que gelou… GLORIA IN EXCELSIS Num recolhimento sugestivo, como se o meu espírito estivesse longinquamente a orar n’alguma velha abadia, penetrei na catedral em festa. Não sei que de nevoento, vago, dolente e nostálgico me invadira de repente e por tal forma, que eu fui, como que sonambulamente, à solenidade. Todo o templo, ornamentado, resplandecia, numa imponência, numa augusta suntuosidade, a que o grande esplendor das luzes dava majestades romanas. A onda humana, compacta, densa, murmurejava, numa compunção. Alvuras e incenso envolviam, como que em brumas imaculadas, em flocos matinais de neblina, o vasto recinto da igreja. Lustres imensos pendiam pomposamente da abóbada branca, numa infinidade de pingentes que tiniam e cintilavam, como polidas, facetadas lâminas metálicas, num brilho molhado. Do coro, para o alto, os instrumentos de corda choravam, salmodiavam, num crescendo de notas, através do vivos metais sonoros. Eram excelsos, eram egrégios aqueles sons sacros, religiosos, que subiam pelas naves, à maneira que os incensos subiam. No peito, como numa urna de cristal, o coração batia-me, anelante, na ânsia, na vertigem de vê-la por entre todo aquele confuso e amplo borboletar de cabeças. E, quando houve um alegre e diamantino tilintar de campas e o sacerdote elevou no cálix o Vinho Sagrado, o coração, como estranho pássaro de sol, fugiu-me do peito, num alvoroço arrebatado, maravilhado na grande luz do templo, em busca dos olhos dela, que, de repente, me fitaram, longos, negros e veludosos, quando, por entre níveas névoas d’incenso, o Gloria in Excelsis, exalçando os Evangelhos, triunfava nas vozes e levantava um festivo rumor no templo. E foi, para meu coração lancinado de amor, como se Ela, naquele instante, me trouxesse toda essa Glória luminosa nos olhos. PÁGINA FLAGRANTE Inflamados de sol, como pássaros no esplendor da aurora, partiam Ambos a digressões singulares, por manhãs alegres, da alegria impulsiva e bizarra das Hallalis de caça. Uma virginal exalação de leite, um aroma finíssimo de lilás e rosa errava pelos prados sãos e férteis, na grande luz alastrante e germinadora da primavera. Na franqueza heróica da força que a expansão vigorescente da Natureza lhes infiltrava, experimentavam Ambos uma sensação aguda de espiritualidade, um eletrismo de idéias, que os agitava, dava-lhes intensa vibratilidade, uma embriaguez fascinante de acre aticismo mental, por entre os radiantes orientalismos de luz. E eles partiam nervosamente, alvoroçados, finos, fulgurantes, como sobre a impressão da alta e convulsionante música wagneriana. De uma abundante e luxuriosa vegetação psíquica, enclausurados na Arte, como numa cela, lá iam sempre nessas continuadas batidas, nesses verdadeiros assaltos ao Ideal, num fausto de Império romano, arrebatados pela grande borboleta iriante, fugidia e fascinadora da Arte. Vinham, então, os livres exames, os amplos golpes de Crítica, ao fundo e ao largo, através dos turbilhões luminosos do sol. Quase feroz, cheio de bárbaros venenos e ao mesmo tempo untuoso como os inquisidores, um deles fazia vagamente lembrar a urze das montanhas áridas, sobre a qual, entretanto, O Azul canta de dia os hinos claros do sol e à noite a luminosa barcarola da lua e das estrelas. O outro, recordava, também, por sua exótica natureza, perpetuamente envolta numa bruma de mistério, um Cristo célebre de Gabriel Max, corpulento, viril, de aspecto igualmente aterrador e piedoso, que vi uma vez numa galeria… Organizações dúbias, obscuras, de acridão agreste, que representam, na ordem animal, o que representa, para as camélias e para as rosas, o cróton. E aquelas duas almas, intelectualmente impulsionadas, abriam-se em chamas altas, aos deslumbramentos de sua estesia. As idéias fugiam, cabriolavam, penetravam todo o arcabouço do assunto, tomavam formas, aspectos estranhos, macabros; e era tal a intensidade, a veemência com que brotavam do cérebro, que pareciam viver, radiar, ter cor, vibrar. A verve esfusiava, mentalizada pela Análise, pela Abstração e pela Síntese; sátiras frias, cortantes como rijos e aguçados cutelos, espetavam capras a carne tenra, viçosa, próspera, de S. Majestade Imbecil; e, para supremamente assinalar todas as surpresas e elevação do Entendimento, uma psicologia rubra, flamante, sangrava, sangrava em jorro, torrencialmente sangrava. E eram boutades maravilhosas, a charge leve, pitoresca, ferreteando, zumbindo sobre os homens circunspectos, que passavam, o andar solene, ritmado, em cadência, como na marcha das procissões. E Ambos riram, riram, numa risada sonora e forte, como se festins cintilantes, bacanais, triclínios, todas as vermelhas orgias do Espírito, lhes cristalinamente no riso. De repente, como uma pausa repousadora nesse crepitante incêndio de verve, penetravam sutilmente com delicadezas extremas, nos pensamentos mais curiosos, mais sugestivos, nos amargos dolorimentos e pungências latentes da Arte. Diziam coisas aladas, quase fluídas, que determinavam a abstração do ser que os animava e floria; tinham essa percepção, esse entendimento profundo, tanto luar como o sol, que explica, mais ainda do que o que se perpetua em flagrância num livro, a poderosa força criadora, a ductilidade, a emoção e a contensão nervosa de raras naturezas artísticas. Refletiam que certo modo de colocar, de por as mãos, de certas mulheres, lhes fazia longamente considerar, meditar nas monjas… Pensavam que no mundo há naturezas tão excêntricas e nebulosas que, pelas condições complexas em que se encontravam na vida, precisariam de uma filosofia nova, original, para determiná-las. Eram como que existências eriçadas de abetos alpestres, carnes que se rasgavam, se despedaçavam… As rosa, pareciam-lhes belezas opulentes, pomposas, da Inglaterra… E todo o universo estava agora tão atrozmente perseguido por tédios mortais, que os homens já naturalmente falavam em morrer, como quem fala em viajar ou em rir… Quanto à Arte, queriam que a expressão, que a frase vivesse, brilhasse, sonora e colorida, como um órgão perfeito. Que tudo o que disseram ficasse imperecível, eterno, perpetuado no Espaço e no Tempo, com os sons que os circundavam, a cor, a luz, o aroma que os atraía. As palavras deveriam ser, para se eternizarem, cravadas no ar límpido, como num forte cristal de rocha. Era a ânsia dos requintes supremos, a exigência das formas castas, que os fascinava, que os seduzia, tentava, como nudez formosa de mulher virginal. Tudo, enfim, na Arte, deveria ficar luminoso e harmonioso, como um cantar d’astros. E lá caminhavam, inquietos, vertiginosos, no esplendor matinal, que os alagava e fecundava, como um prodigioso rio de ouro e diamantes, terras maravilhosas e produtivas. Iam à conquista das Origens verdes, das puras águas brancas da Originalidade, dentre o vibrante alarido de cristal dos seus temperamentos austrais, ardentes e sangrentos. Como orquestrações largas, sinfonias vivas de emoções e idéias, rompiam dia a dia nessas batidas frementes, numa transcendência de princípios e sentimentalidades – talvez no íntimo dolorosos, lancinados pelo Miserere das Ilusões elevadas. E, muitas vezes, já alta madrugada, sob o sereno e suave adormecer das estrelas alvorais, não era sem uma derradeira Apóstrofe à soberana Chatice que essas duas existências chamejantes se separavam, num grande clarão espiritual de afetos. Então, um deles, numa aclamação, num gesto singular e profético, arrojava, além, para os séculos, esta charge infernal, suprema: ─ A divina Estupidez, a onipresente Imbecilidade ficaria eterna, ao alto, junto às nuvens, sobre uma estranha Babel de milhões de degraus de bronze, como num trono colossal, bufando e roncando, a dominar as imensidades, fantasticamente, onipotentemente, guardada por cem mil esquadrões ferozes, monstruosos e formidáveis, de hipopótamos e búfalos!… TINTAS MARINHAS Mar manso, pelo fim da tarde. O ouro fulvo dos horizontes no ocaso a pouco e pouco esmaece. Pela manhã chovera, mas antes do pôr do sol o dia levantara e as perspectivas úmidas e frescas embebem- se agora no eflúvio salutar das marés. No espaço há uma grande acumulação de nuvens áureas e róseas de um forte colorido de silforama. Para além, da outra banda do mar, a faixa larga e prateada da praia, em curvas, coleando, está de uma extrema doçura e nitidez inefável. A retina mal pode apanhá-la. Os olhos pestanejam, nas infinitas vertigens e nos prismas visuais sutis e cambiantes de míope, diante do encanto dos tons de luz leve, rarefeita, espiritualizante e fina, como um tecido tenuíssimo. Há em toda a marinha um aspecto amável, uma suavidade de aquarela d’après nature, quase êxtase. Dá um esplêndido efeito à visão ótica e um revigoramento humorado às faculdades artísticas, este belo trecho sadio e agradável de vagas, em cuja superfície a luz frouxa da tarde se encarrega, com as suas pinceladas de fantasista, de fazer as mais extravagantes e rendilhadas decorações. O mar, aquietado, sereno, está de um verde glauco ativo e salgado, convidando a viajar, e, sobre ele, navios balouçantes, embarcações, soltas como aves, de delicadas formas artísticas, com afinidades abstratas de certas linhas fugidias de um perfil de mulher, conservam, então, como lenços de adeuses, as suas velas brancas estendidas, os seus panos a secar da chuva da manhã. Balançam-se um pouco, numa cadência harmônica, num ritmo musical, com os altos mastros erguidos para o céu em posição de vigia. E, assim, com os mastros e as velas, na aglomeração das adriças e dos cabos, os navios fazem vagamente lembrar, na calma da tarde, enormes e estranhas plantas de ornamentação. Ao fundo, na recortada e esfuminhada linha das montanhas, uma queimada faz evolar para os ares o seu azulado penacho de fumo. E, no meio da pitoresca delícia da marinha alegre e lavada, de um acre sabor de azote, uma ou outra gaivota esvoaça, além num vôo incisivo, rápido, ou pousa junto aos liquens ou junto às algas, mergulhando e roçando na vítrea vaga a nevada plumagem de arminho. Então, de toda a paisagem, larga, aberta, revigorativa e cheia de uma grande ar primitivo de virilidade, vem um sopro intenso, confortador e pagão de Heroísmo e de Mocidade, fazendo inflar o peito, e um sentimento anelante e virgem de pesca, no bravo Mar Alto, entre tropicalismos primaverais de sóis sangrentos e de dias azuis, sobre as rasgadas ondas mormurejosas. ESMERALDA A sua alma, de forma singela e branca de hóstia, tem ritmos de bondade infinita, meigas, claridades brandas e consoladoras de piedade e enternecimento, e a sua voz sonorizada, com a vivacidade nervosa e o alado timbre argentino, claro e fresco, de um gorgeante cristal de pássaro, derrama por toda a aparte a música emocionante, sugestiva e curiosa, de violino afinado… E nenhum peito dedicado de nobre dama medieval nobiliárquica será mais gentil e delicado que o seu peito, donde jorra, com firmeza e força, em onda original, talvez manado dessa simpleza de obscuridade, um inefável sentimento verdadeiro e virgem como o tenro broto verde dos arbustos. Ela é a Núbia-Noiva, singular e formosa, amada com religioso fervor artístico, com a fé suprema, a unção ritual dos evangeliários do Pensamento; e todo esse feminino ser preciosos brota agora em exuberâncias de afeto, em pompa germinal de extremos lascivos, floresce em rosas juvenis e polínicas de puberdade, abertas sexualmente nos seios pundonorosos e pulcros… SOM Trago todas as vibrações da rua, por um dia de sol, quando uma elétrica corrente de movimento circula no ar… Mas, de todas as vibrações recolhidas, só me ficou, vivendo a música do som no ouvido deliciado, a canção da tua voz, que eu no ouvido guardo, para sempre conservo, como um diamante dentro de um relicário de ouro. Cá está, cá a sinto harmonizar, alastrar em som o meu corpo, todo, como flexuosa serpente ideal, a tua clara voz de filtro luminoso, magnética, dormente como um ópio… Muitas vezes, por noite em que as estrelas marchetam o céu, tenho pulsado à sensação de notas errantes, de vagos sons que as aragens trazem. As fundas melancolias que as estrelas e a noite fazem descer pelo meu ser, da amplidão silenciosa do firmamento, dão-me à alma abstratas suavidades, vaporosos fluidos, sinfonias solenes, misticismos, ondas imensas de inaudita sonoridade. E, calado, na majestade sombria da Natureza, como num religioso recolhimento de cela, vou ouvindo, esparsos na vastidão, smorzando nos longes, entre redondos tufos escuros de folhagem, onde se oculta alguma luxuosa existência de mulher, inebriantes sons de peregrinas vozes ou de invisíveis instrumentos. E os sons chegam, vêm até mim, na estrelada tranqüilidade da noite, frescos e finos, como através de rios claros que nevassem ou de vagas embaladoras que o frio luar prateasse. E eu penso, então, nessas simpáticas, corretas atitudes e expressões da música. Vejo, na nitidez de cristal do pensamento, a harpa, sonora asa de ouro, com as cordas tensas, dedilhadas por brancas mãos aristocráticas que arrancam dela frêmitos, soluçantes dolências, plangências incomparáveis. Escuto a pompa, a imponência sonorizante de um órgão de catedral, quando, pelas altas naves, sobem rolos alvos de incenso, e, o sol, fora, com as flechas dos raios constela de astros microscópicos as polidas e góticas vidraçarias. Ou, pressinto ainda, num fidalgo salão do tom, onde os perfis ostentam valorosidades de linhas ducais e a luva impera galantemente, a assinalada elegância dos concertos da graça, quando os violinos, zurzinando notas que esvoaçam do arco resinado às cordas retesadas, zumbindo e ruflamente prendendo-se à voz que resplende, triunfa na sala, sonorizando-a e iluminando-a mais que os fúlgidos lustres e os candelabros facetados, como se, da garganta de quem cantasse, a aurora alvorecesse e vibrasse. E cuido logo ver uma mulher – alta, beleza grega, formas esculturais primorosamente cinzeladas. A cabeça, de uma discreta severidade de deusa, pousa-lhe no rico, abundante torso inteiriço do corpo forte. Há uns meigos tons loiros no aveludado cabelo que, por entre a luz, mais loiro e aveludado brilha. De pé, erecta, o perfil nitidamente marcado, no meio da cauda astral da veste de seda rara, ela desprende, evola a voz da garganta de aço novo e esta espiral de voz revoluteia no salão, fica algum tempo aquecendo e sonorizando o ar. Como um astro, essa voz flameja, palpita e gira na iluminada órbita da sala cheia da multidão que a escuta, e, como um astro, cai, fulgurando, semelhante a exalações meteóricas, no fundo do meu ser como num golfo… Nobremente, pela cadência do canto, o corpo da imaginária mulher tem certas flexões delicadas e eletrismos de gata voluptuosa, e o seio, fremente da melodia que o emociona, se afervora e pulsa. E a voz ala-se, ala-se, gorjeada, arrulhante, trinada, ave de luz harmoniosa que ela enfim solta do aviário do peito. Todos esses dulçurosíssimos efeitos musicais me impressionam singularmente, distribuindo por mim a mais aguda vitalidade mental, que me tensibiliza os nervos da atenção, como se todo eu me achasse sob uma atmosfera salutar e tonificante. Ou, então, cobrem-me também de opulências de gloriosas soberanias, as vivas forças orquestrais, onde perpassam ruídos largos de floresta, clarins, inefáveis misteriosas melodias de pássaros. Mas, do som, da música, não me exalça, não me enleva só o ritmo leve, educado, que deixa uma suavidade acariciando, bafejando o ouvido como um perfume bafeja, acaricia, o olfato. Ficam nos sentidos, nos nervos, calafrios sutis, ligeiros narcotismos, pequeninas vibrações que, não sei de que rútila chama, parecem faiscar… E começo, após um engolfamento de sons profundos, a ter penetrabilidades intensas, estranhas emoções que me despertam infinita série de fatos já gelados no tempo, como passadas fases de lua. Evideciam-se-me idéias, impressões, sugestões curiosas, certos obscuros estados mórbidos da alma, que em vão a espiritualidade humana tenta transplantar para os livros, mas que só o ritmo aviventa, levanta aos poucos da nebulosa das existências, como um sol sempre amado, mas já antigo, já velho, remotamente apagado nos sentimentos… A GATA De neve, de uma maciez de arminho e lactescência de neve, de uma nervosidade frenética, era luxuosa, principesca, de certo, essa orgulhosa gata. As esmeraldas de seus olhos claros fosforeavam sensualmente, eletricamente, quando alguém, no conforto da casa, lhe acarinhava de manso o dorso, o focinho tenro, polposo, espiguilhado de prateados fios sutis; e, no seu lindo pêlo cetinoso e alvo, como numa fresca e virginal epiderme de mulher aristocrática, perpassava um frisson de ternura, um estremecimento, como se em toda ela vibrasse alguma brisa de espiritual e amoroso. E era então fidalga nas sensações, no ronronar apaixonado, ao luar, sob o cintilante cristal das estrelas, pelas caladas vastidões da noite, ou, nas horas de sesta, nos quentes, enlanguescedores mormaços, preguiçosa e fatigada, anelando o repouso, numa onda de gozo e volúpia, enroscada, serpenteada, torcicolosa e convulsa, como um organismo suave e débil que um vivo azougue eletriza e agita. Talvez fosse a alma de uma vaporosa rainha que ali vivesse nesse precioso animal, alguma misteriosa visão polar dentro daquele feltro branco, daquela pelúcia rica, daqueles focos eslavos; algum sonho, enfim, errante, vago, perdido nesse nobre exemplar felino de formas lascivas, flexuosas e delicadas. Às vezes, mesmo, ela errava, como a nômade que perde a rota da caravana pelos desertos escaldados de sol, em busca de alimento; e os seus olhos, penetrantes no verde úmido e agudo das luminosas pupilas, mais até fantasiosa a tornavam e mais nevoeiro davam à sua lenda de fadas. E assim, arminho girante, que as quatro veludosas patas faziam fidalgamente caminhar, miando histérica, era como uma sonâmbula idealizada e amante que soluçava e gemia implorativamente a sua dor, através dos aposentos, na indiferença de quase todos. Um dia, porém, uma doce mão feminina e perfumada quis tê-la junto de si e elevou-a consigo para a tepidez e a pompa das alcovas cheirosas, vivendo com ela ao colo, passando-lhe os íntimos alvoroços de seu sangue de Virgem – como se a gata fosse um profundo seio de afagos a que ela confiasse todos os seus mistérios e segredos de Noiva ainda presa no claustro cerrado, como as monjas normandas, da carne inquietante e alucinadora. Agora, com a formosa seda do pêlo vibrando à carícia, alta e feliz a cabeça artística, vive nesse colo impoluto, em sonhos deliciosos e gozos infinitos de orientalista, o belo exemplar felino, voluptuoso e dolente como a lua embalada e cismando, imaculadamente, no seio azul das esferas. DIAS TRISTES Apesar do sol, que imensa tristeza para certos seres, que dias tristes, esses, de uma melancolia e dolorosa névoa… Os ruídos todos, o esplendor da luz, convergindo em foco para o coração, deslumbram, fascinam de modo tal e tão e tão profundamente, que o abatem, infiltrando-lhe essa tristeza infinita que não se define e que está, como um fundo de morbidez, nas almas contemplativas e nômades, que vão armar a sua tenda nas desconhecidas e longínquas paragens abstratas do Pensamento. Dias triste, muita vez, os dias de sol. Mergulhado o espírito na onda profunda de desejos irresistíveis, como numa intensa e luxuriosa paixão, os aspectos que se lhe manifestam na Natureza são amargos, atravessados dessa pungência aflitiva, dessa magoante desolação e atormentadora ironia que há na essência de todas as coisas e idéias. E, como o pensar dá uma grande tristeza, põe no cérebro uma incomparável tortura, o Pensamento, à evidência da luz, da alegria do sol, deixa-se possuir de um nervosismo triste, de um meio luar turvo e trágico de impressões agudas, dilacerantes. Os dias tristes, para raras naturezas intelectuais, são quase sempre os dias triunfantemente alegres, sonorizados de pássaros, quando há uma alta irradiação no ar, um repouso, uma paz feliz em toda a vegetação e que o sol, numa vitória astral, vai, como um deus pagão, em festins de luz… Como que filtros de dolorimento partem de todas essas luminosidades, todo esse fulgor solar verte uma nostalgia cruciante, que fere e fende o peito, incisivamente, como as flechas letalmente envenenadas dos hindus. Quanto a mim, amargamente sinto esses dias tristes. À larga luz de um templo vasto, na suntuosidade de uma festa católica, quando pela infinidade de rutilantes lustres acesos há facetas de estrelas, íris fulgurantes e pelos doiramentos dos altares borboleteiam faíscas, acendem-se chamas nas velas amareladas, e vozes flébeis, numa compunção religiosa, sobem para as naves com a vaporosidade dos brancos incensos, dentre músicas festivas, – um angustioso anseio me insufla, me enche infinitamente o peito. E, batido de uma pungência, vibrado de uma recordação, alanceado por uma idéia, subitamente para logo, toda a aparente radiação de alegria foge e eu me vejo então dentro dos meus dias tristes em que alguém, dos longos do Passado, acena-me, ou com um lenço amoroso, para as recônditas e virgens emoções do coração, ou com uma bandeira de combate, para as impulsivas faculdades do cérebro. Se um riso me aflora aos lábios, nervosamente, se uma verve satânica os inflama; se uma esfuziante sátira os eletriza, é ainda assim uma maneira de ser triste, apunhalante sarcasmo às tempestades mentais que se dão por dentro, – humorismo doente, que para se convencer de que é alegre e de que é são, flori em rosas de riso, abre em Via Láctea de riso. O esplendor das salas iluminadas, na abundância de cristais e flores, entre auroras de mulheres e luxuosas roupagens, dá-me também, a pouco e pouco, um abatimento, um afrouxamento aos nervos e daí nasce-me logo, como uma tentaculosa planta negra e de morte, essa indescritível tristeza, que é a feição ingênita de tudo, que cobre tudo como que de uma neblina crepuscular sensibilizante… Assim também, ao almoço, pelas claras manhãs, quando a toalha branca da mesa, as flores das jarras, o pão, o vinho, atitude correta das pessoas, a limpidez simpática da hora, fazem lembrar resplandecências, alvuras claras, paramentações de altar para a evangélica celebração da Missa, um sentimento de inexplicável tristeza me invade, nascido de toda essa disposição harmoniosa de objetos e de pessoas. E, abstratamente, como num nebuloso sonho, durante toda a alimentação desenrola-se lenta, vagarosa e fluida no meu ser, uma surdina oceânica que parece estar, na plangência de sons abafados, lembrando todas as abundantes fontes de afeto que para mim já para sempre secaram, todos os astros prodigiosos de enternecedor carinho que para mim já eternamente se apagaram. Mas esses dias tristes, as horas, os momentos desses nevoeiros d’alma, tão densos, tão cerrados, nascem apenas de uma Visão que se adora, que nos abre inefavelmente os braços, que o espírito ama no seu recolhimento, na sua cela sombria e muda! essa Visão seráfica, nervosa histérica, ideal – a Santa Teresa mística da Arte. PAISAGEM DE LUAR Na nitidez do ar frio, de finas vibrações de cristal, as estrelas crepitam… Há um rendilhamento, uma lavoragem de pedrarias claras, em fios sutis de cintilações palpitantes, na alva estrada esmaltada da Via-Láctea. Uma serenidade de maio adormecido entre frouxéis de verdura cai do veludo do firmamento, torna a noite mais solitária e profunda. O Mar, pontilhado dos astros, faísca, fosforesce e rutila, agitando o dorso Glauco. E, de leve, de manso, um clarão branco, lânguido, lívido vem subindo dos montes, escorrendo fluido nas folhagens, que prateiam-se logo, como se fabuloso artista invisível as prateasse e as polisse. A lua cheia transborda em rio de neve na paisagem, e, no mar, há pouco apenas fagulhante da iriação das estrelas, a lua jorra do alto. Por ele afora, pelo vasto mar espelhado, pequenas embarcações se destacam agora, alígeras, lépidas, à pesca da noite, velas brancas serenas, sob a constelação dos espaços. Velas saudosas de navios, enfunadas ao impulso das correntes aéreas; mastreações caprichosas e confusas, misteriosamente interrogando o céu; os montes ao fundo, formando panoramas álacres com seus cabeços azulados e colossais, e a grandeza olímpica das ondas fechadas pela natureza numa extensa área do terreno: tudo gozava e sentia além viver a janela; e, ao longo de indefinida barra dos horizontes esfuminhados, a linha vaga, melancolizada, das imensas distâncias intermináveis. Dum lado e doutro da janela, subindo-a, galopando-a festivamente em caracóis negligentes, a expansão, a nevrose de folhagens trepidantes que busca em ânsias o ar… Rosas vermelhas e rosas jaldes alastravam numa primaveril e casta alegria radiosa de Via-Láctea, o quadrado verde da janela, enquanto amorosamente um jasmineiro florido, entrelaçado às rosas, com flores alvas e cheirosas desabrochadas em forma de pequeninas estrelas, punha um encanto romântico e noival de janela de Julieta na larga janela verde que dava para o mar. E as embarcações, os iates, os navios, os paquetes paravam no mar dormente, lá iam todos afora, – ambulância marinha, dorsos de tritões ferozes e soturnos, vogando na superfície das ondas… Iam talvez perto: a países meridionais, sob céus elegantes e azues, ou – mundo adentro – às eternas neves glaciais das geleiras do pólo: às regiões setentrionais das flamejantes auroras boreais: a Islândia, a Lapônia, a Noruega, Poe entre as frias e brancas estalactites fulgurantes da lua… Em frente à janela, eram terrenos desapropriados e planos, que um rente folhedo luxuriante cobria. Depois era o mar, sempre o mar, todos os dias, a toda hora, a todo instante, cortando, no entanto, com a monotonia do seu aspecto, a agreste monotonia daqueles sítios suaves. Mas, contudo isso, o mar nenhuma monotonia parecia inspirar, porque dava à janela, àquele original recanto, àquele desconhecido retiro isolado, aberto na parede como o nicho de uma Santa, à recordação de todo o vasto ruído atordoante e culto da vida de longe:os rumorosos cais frementes, as movimentadas cidades alegres, os grandes portos febris da efervescente efusão cosmopolita de mil exemplares de povos. Pela manhã, aparecia à janela, como um lindo sol feminino, uma bela mulher, forte, alta, loira, de flavos cabelos talhados dum golpe numa quente e perfumosa massa de luz e de sangue, clara da epiderme macia e clara nos rendados vestidos em fofos e folhos que lhe afogavam soberbamente a garanta bourbônica, arrematados por fitas de azul leve e doce, graciosamente enlaçarotadas sobre o sedoso colo oválico. E logo seus olhos azues como as fitas, da mesma meiga frescura e candidez de hóstia transparente, pareciam adejar, voar, como dois pássaros inquietos e deslumbrados, pela amplidão das vagas verdes e vivas, como se ambos quisessem nelas colher alguma certeza ou derramar alguma esperança. E o seu perfil, sob o sol, alvorecido na janela, lavado nas frescas essências salitrosas que emanavam do mar, tinha florescimentos, resplandecências, um vivo fulgor d’ouro novo, derramando no ambiente eflúvios de magnólia. Às vezes ela deixava-se ficar por mais tempo à janela – e era então ali uma deliciosa e cristalina ária de trinados, de matutinos gorjeios de pequenas aves que por entre a viçosa verdura da janela esvoaçavam em ruflos e contentamentos d’asa, em palpitações elétricas de plumagem, cantando para o espaço todo esse sonoro amor infinito dos pássaros que a sua estreita laringe metálica tão maravilhosamente sabe desfolhar em notas, como se essa mulher loira fosse a corporificação da própria aurora que raiasse doirada no acanhado horizonte enquadrado na florida janela verde. E ficava ali constantemente a olhar, a ver o mar, talvez na esperança de algum sonho de afeto que de repente lhe surgisse e cuja enamorada lembrança lhe vibrasse o coração anelante, fazendo dolentemente o seu colo arfar, agitar-se numa onda nervosa de convulsão e alvoroço, inflado desse tormentoso e vago desejo irresistível do amor, que um dia vertiginou o mundo, e que, quanto mais afastado se está de quem se adora, mais fundo, mais entranhado fere e martiriza. Pelas noites, quando o hostiário das estrelas abria a sua rendilhada cintilação de prata nos sidérios espaços calmos, ou as finíssimas gazes lácteas da lua flutuavam, velando tudo, ela, virgem noiva, branca e muda como a lua, por lá ficava ainda a viajar na gôndola da imaginação e fantasiosa saudade que a emocionava, através do mar, ao encontro sonhado do seu afeto querido. E, tonta, magnetizada, narcotizada na emoliente volúpia da lua, na quente exalação dos aspectos, lá adormecidamente ficava a amar, presa na fluida teia luminosa das estrelas e da lua… __________ Agora um muro enriquecido e alto que o musgo e o limo maciamente vestem de um veludoso verde escuro de tapeçaria, veio para sempre obstar a ampla vista azotada e alegre do edificante panorama do Mar. Para além, como um gigantesco protesto que a pedra opusesse às jubilosas, triunfantes, águas marinhas, o vai, longo e impenetrável, estendido em pano ríspido de parede socavada e cerrada, que tudo do mar avaramente encobre – levantado da terra como um brusco e bronco biombo de terra à livre expansão da luz. Austeros homens egoístas, no intuito de edificar, apropriaram-se dos terrenos e para ali ergueram, dividindo-os, semelhante à rija muralha d’imperecível fortaleza, esse imenso muro empedernido, rochoso, como que feito de um só bloco inteiriço de calcárea matéria rude. Então, sem a perspectiva da alacridade vitoriosa e bizarra das ondas, sem aquela vastidão consoladora, salutar, das águas salgadas, e sem a visão branca dessa mulher, vive agora quase sempre fechada, triste e fria a reluzente vidraça clara eternamente descida, na meia sombra crepuscular da persiana, a idealizada janela verde – a florejante janela que abria, como um desejo vago, para o Mar infinito… UMBRA Volto da rua. Noite glacial e melancólica. Não há nem a mais leve nitidez de aspectos, porque nem a lua, nem as estrelas, ao menos fulgem no firmamento. Há apenas uma noite escura, cerrada, que lembra o mistério. Faz frio… Cai uma chuva miúda e persistente, como fina prata fosca moída e esfarelada do alto… À turva luz oscilante dos lampiões de petróleo, em linha, dando à noite lúgubres pavores de enterros, vêem-se fundas e extensas valas cavadas de fresco, onde alguns homens ásperos, rudes, com o tom soturno dos mineiros, andam colocando largos tubos de barro para o encanamento das águas da cidade. A terra, em torno dos formidáveis ventres abertos, revolta e calcárea, com imensa quantidade de pedras brutas sobrepostas, dá idéia da derrocada de terrenos abalados por bruscas convulsões subterrâneas. Instintivamente, diante dessas enormes bocas escancaradas na treva, ali, na rigidez do solo, sentindo na espinha dorsal, como uma tecla elétrica onde se calca de repente a mão, um desconhecido tremor nervoso, que impressiona e gela, pensa-se fatalmente na morte… MODOS DE SER Com uma nobre emoção da Arte dizia Balzac que faltariam sempre cordas à lira de uma alma que nunca tivesse visto o Mar. Na verdade, sem o mar, sem esse organismo vivo, movimentado, vibrante, as perspectivas como que são indecisas, vagas, a retina pouco se desenvolve e educa sem essa larga vastidão das ondas, de onde parece subir, nascer para o alto, como uma luz original, todo o sentimento indutivo das coisas. Diante do Mar, à sua influência vital, que é a influência da força, do vigor do pensamento, as faculdades de cada um recebem impressões estéticas muito consideráveis, ampliando o seu modo de ser, dando-lhe a sugestão das latitudes geográficas, correspondentes também, para um espírito de indução e dedução fina e atilada, à amplidão das idéias. Gozar o Mar é viver, sentir a eflorescência da carne, crer n’algum poder forte e épico que nos encoraje, dê ao pulso e ao cérebro essa poderosa segurança de existir que levanta sobre rijos alicerces os princípios e crenças de cada homem. Do mar vem essa emanação virginal, salutar, que traz o impulso às ações, o vigor nobre à vontade, dando a todo o organismo uma função especial, uma atividade própria, uma determinação expressivista da Natureza. Os efeitos maravilhosos que a visão recebe do mar , como uma máquina fotográfica recebe nitidamente as fisionomias, desenvolvem-se nos temperamentos artísticos em impressões, em nuances, em colorações, em estilo, em linhas, em sutilezas de percepção, em ductilidade, em fiorituras de imagens, em abundantes floras de imaginação, tão múltiplas e luminosas quantas são as infinidades de ilhas verdes de algas e de sargaços que o Mar contém em seu seio. Ele infiltra nos órgãos emocionais e pensantes todo um exuberante eletrismo nervoso, todo um fluido de luz e originalidade, uma essência, um germe rico e novo de graça e fantasia alada. Fica numa saudável impressão e frescura radiante de caça e pesca, numa alegria de sol undiflavando rouparias brancas e finas. __________ Serenidade de Campo e Mar é esta em que estou agora. Campo fértil, verde, como se agora mesmo brotasse, em flor, da terra. Nas manhãs claras, de grande majestade de sol, pelos domingos, a missa da capela branca convida a digressar entre árvores, sob o festivo e claro repique do sino. E, por estar no campo, numa extensão de relva, de verdurosas alfombras, lembro-me vivamente dos campos das paradas, ao sol, num espelhar faiscante de baionetas, rutilar de fardas e triunfal desfraldamento de bandeiras, quando, imensas, pesadas massas marciais, na evolução de um corpo disciplinar, agitam-se, num tinir e cintilar de metais, como enorme serpente de coruscantes escamas. Com o espírito livre, em asa aberta, eu procuro arrancar das vozes mudas, inexprimíveis da Natureza, significações. Campo e Mar estendem-se até longe, ao infinito horizonte, fulgurando às luxuosíssimas sedas do sol. Elevados cômoros de areias alvas, ao longo das praias, conservam a aparência de grandes dorsos de elefantes brancos deitados. Então, um ritmo me sobe da alma ao cérebro para me afinar os pensamentos em aspectos felizes, luminosos, como quando os alemães, fumando cachimbo e bebendo cerveja, por entre uma leve névoa ideal de fumo e álcool, mentalmente produzem filosofias… Como essas raças finas e loiras a que nada mareia a pureza clara da carne civilizada, a idéia da Arte surge-me, alvoresce-me no espírito, diante das ondas, sideral, imaculada, como uma doce monja vestida de linho branco e virgem. Estranhos, misteriosos, na magia dos feiticeiros caldeus, com o pensamento cristalizado na Forma, sinto que me ferem o cérebro, pesando fundo sobre ele, os nevropatas de agudez psíquica, mórbida, doentia, os psicólogos tenebrosos que como Huysmans, vibram num eletrismo histérico, numa dança macabra, satânica, num delirium tremens de sensações. Ninfomaníacos mentais, como que sob a impressão de um sono de morfina ou de ópio, numa alucinação ou fascinação de hipnotizados, a alma deles flutua, desce sombriamente lá abaixo, ao antro negro da Terra, ou sobe lá acima, à infinita mudez do céu, como que em busca, sinistros e luminosos, revoltados Moisés de uma Bíblia nova, em busca de saber qual a doença que dá a morte… Sentem-se-lhes isso na tortura da prosa, no funambulesco cabriolar do estilo, na acre violência das palavras, abertas umas em chagas e escorrendo sangue, outras brancas como Noivas amadas derramando lágrimas astrais… E, dentre esse exalar de vida espiritual dolorosa, rompem coros de catedrais entoados por veladas, místicas vozes freiráticas; ouvem-se Missas negras e abrem-se, num ritual cristão, para a contemplação dos augures e dos símbolos, os medievos Hagiológios. NO FAÉTON Na manhã fria, fresca de maio, por uma rua arreada, um noble esplendor de mulher iluminou-me e surpreendeu-me os olhos. Numa elegância de pelúcias claras, o seu perfil delicado, um biscuit d’arte, surgiu em flor no faéton, alta a estatura, com a graça educada de amazona espiègle. Nos amplos claros de aspecto arejado de gare, sob o espaço vibrante, sonoro como uma grande cúpula de cristal, o faéton girava, de manso, na doce flexão das rodas leves, como se girasse sobre macias relvas de veludo. Os cavalos normandos, lustrosos no cetim do pêlo, davam a correção, o tom das carruagens de molas flexíveis, suaves, das envernizadas caleches aristocráticas de luxo, cujos claros e polidos metais dos eixos cintilam. Com uma linha fidalga ela manobrava as rédeas, nuns volteios audazes e galantes, a mão fremente, agitada, convulsa pelo ferir matinal do frio no sangue novo de gazela, com a orgulhosa atitude das ecuyères. Algumas atenções paravam diante desse feminil deslumbramento desabrochado ao sol em aromas e formosuras. No ar nítido, azul, fino do dia, duma limpidez deliciosa, o seu esbelto porte nervoso vinha erecto, num alto-relevo, destacando forte no fundo luminoso, transparente da manhã, como que cortado, talhado numa lâmina de vidro. RITOS A luz lirial da Lua abre tu’alma, artista, como um solar antigo. Sob a neve luminosa do grande astro noctâmbulo, as visões que um dia amaste aparecerão agora. Ah! A tu’alma é um antigo solar, onde mulheres prodigiosas, enfloradas de beleza, peles finas, transparentes, de delicadeza de porcelana, passaram. Vendo-se a cada instante o objeto das interpretações deles, reveladas através de seus pensamentos tão recatados como os seus seios, os pudores dos seus corpos angélicos, em tantas páginas dilacerantes e impiedosas, as mulheres não buscam sistematicamente os artistas para amar, feridas nos seus orgulhos melindrosos, nas suas vaidades excessivas e principescas, nas suas finas susceptibilidades de formosos seres triunfantes e inaccessíveis. Só raramente, por singularidade, uma ou outra mulher ama o artista, quando já acaso existe nela qualquer corrente de simpatia mental, qualquer relação de afinidade que estabeleça entre ambos uma claridade e harmonia de sentimentos mais ou menos congêneres, equilibrados. PERSPECTIVAS Naquela alvejante planura de areias salitrosas, onde o mar espumeja; naquela fulgurante extensão de praias brancas, indizíveis de pitoresco, felizes os olhos que se demoram, com o carinho, o afeto das coisas, a gozar as riquezas, o encanto, a imponência imortal dos aspectos. Nas manhãs, céus louçãos, de um leve ar azul, azotado, fresco, pacificam o porto, adoçam os horizontes, inefavelmente. Ocasos opulentos, feéricos, imprimem às tardes a mais suntuosa e serena majestade. No mar, ao largo, entram e saem navios de alto bordo, numa infinita beleza de excêntricas formas requintadas, em caprichosos estilos diversos, mastreações aparatosas, parecendo enormes aparelhos estranhos para maravilhosamente arrancarem do fundo das ondas o misterioso deus das algas, da lenda secular e virgem dos hirsutos tritões verdes. Marinheiros terrosos e fuscos, como que sujos a betume; outros loiros, flamejantes do sol, do ouro cantante da pele, dão à paisagem sã, revigoradora e larga, tons álacres e acres. Das vagas, como exóticos monstros marinhos, as rubras e arredondadas cabeças das bóias, aqui e além, emergem. Os mastros avultam, enchem prodigiosamente o mar supremo, sob a flava cintilação do dia; e, assim firmes, aprumados ao alto, ao firmamento, parecem tochas imensas para a celebração do Te Deum sideral dos astros, nos templos pagãos dos navios. À noite, peregrinadoras estrelas, em claras chamas sagradas, no espaço ardem. Uma lua virginal, aureolada de branco, irrompe fria e magoada, com um ar antigo e desolante de histerismo atormentado, como as freiras que envelhecem nos claustros.; Hálitos, vivos estremecimentos elétricos, passam, perpassam no dorso Glauco das ondas que o luar então alastra… Mas, o que mais enternecidamente enleva e perturba até as lágrimas, num sentimento intenso, de recôndita vibração, é um simples lenço, um adeus febril vertiginoso, em ânsia, que ali fica às vezes a palpitar ao sol, infinitamente, na emoção de uma alma, para a vela que vai já além confusa na distância, desaparecendo, perdida nos longes esfuminhados, infinitamente, infinitamente… CAMPAGNARDE O dia abriu um explosão d’oiro, dum oiro inflamado de forja, trescalando perfumes, cheirando acremente à terra. Tu, gárrula vivandeira dos prados, que ao primeiro rumor sonoro do teu coração amoroso, como ao alegre rufo bizarro dum tambor de guerra ou à esfuziante vibração matinal de uma trompa de caça, toda estremeces e fremes, voltas agora púrpura dos campos onde te fecundaste, desabrochaste e floriste logo em papoula. E voltas mais púbere, mais virtual, mais mulher, porque sorveste o leite o leite virginal e sadio aos abundantes seios da Natureza. Quando para lá foste, o teu corpo frágil, tênue, traspassado do azulado enraizamento arterial das veias, era quase diáfano, transparente, vitrescível quase, através do qual bem facilmente a aurora coaria os seus flavos raios rútilos, como através de um delicado e aromático filó finíssimo, cor-de-rosa e translúcido. Além disso, quando para lá foste, eras infantil ainda, ainda a ave implume, e entrarias daí por diante, como por uma zona de sol, nesse luxurioso período genesíaco da mulher, quando suas formas se ampliam, se completam e perdem essa volatilidade aérea, o borboletismo, essa tonalidade vaporosa da primitiva graça, para irem aos poucos adquirindo opulências, exuberante vigor germinativo no sangue que as alimenta, enlabareda e fecunda, arredonda e turgesce triunfais e alucinantes no colo as duas polposas saliência carnudas, das quais, em busca da instintiva subsistência, pende, mais tarde, como astros no firmamento, o encanto virgem dos filhos. Mas, agora que de lá chegas, vens florescente como a vinha verde, dum sabor de uva branca, inundada do palpitante pólen doirado da antera dos vegetais, das emanações revigorativas da planturosa paisagem. Trazes a carne emadurecida, sazonada em fruto, exalando essências de campos, sutilíssimos eflúvios de vergéis, alastrada de brilhos quentes, de elétricas faíscas narcotizantes, como se o teu imaculado torso inteiriço irrompesse, brotasse do noivado da Natureza no mesmo veemente e original impulso das árvores e dos rios. Perfeito, soberbamente rico e raro, Campagnarde! esse humor campestre, esse alagamento e deslumbramento de luz com que regressas da Vida, do seio livre da grande amplidão da saúde, onde tudo, afinal, são concentradas forças, pujanças novas para o sangue, renascimento para a carne. Ninguém, por certo, calcula, a ninguém sugere, por certo, a alta realidade do quanto é salutar e é nobre e supremo bem que lá se goza nos campos e como o corpo abalado pelos inevitáveis golpes da matéria falível, resiste o espírito, o fluido nervoso, dando à existência o equilíbrio sereno. Nenhum pincel colorista, nenhuma entranhada emoção ou visão impressionista d’arte, nenhuma perciptibilidade acústica de músico, poderá bem com exatidão apanhar a cor, o sentimento, a errante, dispersa harmonia que se eterifica na liberdade dos campos e que assim te penetrou pelo coração e pelos olhos, primorosamente enflorescendo e viçando no teu corpo de graça, lirial e formoso. Abres a veludosa e cerejada boca e os teus esmaltados dentes rutilam – lisos e claros – enrijados nos ares puros, nas frescas águas correntes, nos frutos castos e doces. Falas, e atua voz, em músicas, desfolha notas de canção feliz da tu’alma; e a tua voz pelo espaço voa, voa, voa de eco em eco, infinitamente, inefavelmente, parecendo então reproduzir o teu nome, Campagnarde! Campagnarde! e eternamente desdobrá-lo, arremessá-lo ao longe, por colinas e vales derramá-lo, Campagnarde! Campagnarde! RITMOS DA NOITE Lá fora a noite é estrelada e quente. Chego da rua. A vida ferve ainda nos cafés com intensidade. No Londres, uns imbecis doirados de popularidade fácil saudaram-me, e, nessa saudação, senti o ar episcopal das proteções baratas que os conselheiros costumam dar aos jovens esperançosos. Eu percebi o conselherismo e tive uma careta, uma grimace diabólica de ironia… Oh! Oh! infinitamente incomparáveis os caríssimos imbecis doirados de popularidade fácil… ___________ No meu quarto, entro, enfim, agitado, da rua, com mil idéias, com mil impressões e dúvidas e fundamente considero, tenho tão estranhos monólogos mentais, que quase que me alucinam. A luz da vela, em torno à sombra do quarto, põe uma claridade velada, penumbrada, quase morta. Um retrato de Daudet, pendurado à parede, parece ter para mim uma piedade no seu fino perfil de Cristo alemão. Ah! por que será que na hora dos estrangulamentos supremos, quando a Dor nos alanceia e torna velhos, os objetos têm todos, para nós, uma feição singularmente diversa da que têm sempre – ou sinistra, ou agressiva, ou piedosa? Por que será que nas longas noites desolação, quando uma ventania de desespero sopra por trompas de bronze do nosso peito, todas as coisas desfalecem aos nossos olhos, as perspectivas se anulam, os astros loiros se apagam e a própria luz de uma lamparina ou de uma vela projeta claridade dúbia, que antes punge, que antes apunhala e dói, do que alumina!? O coração cerra-se-nos de uma névoa triste, e, como um solitário monge, põe-se a balbuciar não sei para que mundos distantes, orações indefinidas, kiries eternos e nostálgicos, de um nebuloso sentimentalismo, que estão no fundo de todos os seres espirituais. São fluidos íntimos, virginais, da alma, que sobem para o desconhecido; são incensos inefáveis de que está cheio o turíbulo do nosso amor e que, nos lancinantes momentos em que se desmorona para nós alguma força nobre, alguma força edificante, partem candidamente para as regiões do Ideal, país jamais descoberto e que só o pensamento logrou conhecer… Vão lá saber qual é a tecla sombria que vibra o nosso organismo em certas horas, qual é a corda que pulsa, quais os nervos que se agitam! Por uma impressionabilidade indizível, por um toque no orgulho, por uma mancha no cetim branco da Arte, lá fica uma nobre cabeça doente, sob a febre das nevroses, sentindo eboluir o sangue em chama e sentindo até que o cronômetro regular do pulso alterou a marcha das vibrações… Tudo o que nos vem às idéias são princípios de demolição, de destruição, armados das rijas couraças e das agudas lanças da sua inevitabilidade. O mundo surge-nos logo como uma formidável floresta dos tempos primitivos e só tremendos animais de uma colossal corpulência urram e bufam sanguinolentos. E a noite, que verte fel no espírito, arrebatando-o não sei para que inferno de agitações, não sei para que tercetos do Dante, ainda mais peadas barras de chumbo arroja sobre o florido arbusto da Crença, cujas flores luminosas já a indiferença humana calcou a pés, ou a ruidosa, jogralesca multidão dos cafés desdenhosamente cuspiu em cima. E, nessas batalhas, batalhas vivas, acres, onde o coração está eternamente a sangrar, a sangrar; nesses rudes combates, ao mesmo tempo tão puros e fidalgos, a carne é o menos que fica ferido, os músculos são o menos que se perde, os nervos o menos que se atrofia. O que se perde de todo é a alta penetração da Vida, do Mundo e dos Homens, para terrivelmente se adquirir uma doença amarga, aguda e dilacerante, que se constitui das frias e tortuosas análises e que se chama – Psicologia. SUGESTÃO Tu, quem quer que sejas, obscuro para muitos, embora, tens um grande espírito sugestivo. Os jornais andam cantando a tua verve flamante, pertences a uma seita de princípios transcendentais. Na tua terra os cretinos gritam, vociferam. Não sabem o que tu escreves. Não entendem aquilo… Palavras, palavras, dizem. Tu tens, porém, uma tal orientação, uma tão profunda firmeza artística, que não te abalas com a vozeria que se levanta. Pelo contrário! À bateria de frases ríspidas, que te assestam, rompe do teu cérebro a bateria viva das idéias.Não recuas, escreves. Tudo quanto a imaginação pode criar de imprevisto, original, surpreendente, vais arrancar à nevrose da composição, encrustar, como pedrarias, na escrita cinzelada, cujo estilo apuras e aprimoras com verdadeira êxtase de uma devotada seita religiosa. E, apesar das frases que te dirigem, cercam-te apoteoses. E isso, conquanto simules o contrário, sempre te desvanece. Então, para que o teu esplendor seja maior e mais completo, andas a preparar um livro de estilo nobre e que, segundo pensas nas horas de nervosismo psíquico, há de fazer sucumbir no lodo da banalidade a turba triunfante dos imbecis. E assim, com a tua elevação mental e disciplina, julgas-te profundamente feliz. Não trocarias o teu espírito pela ostentação e pompas do mundo. Ah! se tu tens a pompa das idéias! O cocheiro mais agaloado e galante, guiando o mais elegante coupé tirado por éguas de raça, de amplas ancas carnudas e luzidias, cheias de nervosidades, de altivezes bourbônicas, com um fino sentimento mulheril nas linhas, tudo isso, Artista, não vale a página mais simples, mais frouxa, sem mesmo maior ornamentação de estilo, que tu, por acaso, escrevas. Nem tu trocarias todo o veio virgem do ouro do mundo pelo livro que daí a meses deve entrar para o prelo. Os reclamos soam pelos jornais, como clarins. Andam já longe. Caminham. Chega já ao domínio de todos a notícia. Há ansiedade. Espera-se a obra. Vai aparecer, brevemente, cintilante, a duas cores, em tipos Elzevires, vistosos e claros, com o teu retrato, papel satin, nas lustrosas vitrinas, acendendo um clarão em torno do teu nome, como um facho de fama. Mas, um dia, vais ao teatro, um acaso, por exemplo. Sentas-te na poltrona junto à orquestra. Num intervalo suas demasiadamente. Estás abafado do calor da noite tórrida. Precisas de ar, de refrigerantes. Um sorvete, um gelado. E, seguro de teu vigor de mocidade, da tua saúde e do radiante rubor do teu rosto, que é admirado na rumorosa cidade onde habitas, tomas, sem o maior receio, o gelado que te trazem. Daí sentes-te logo como que atordoado. Não estás bem. Calafrios agudos percorrem-te a espinha. Vertigens cálidas fisgam-te a cabeça. Ardem-te os olhos e se umedecem sob a luz flagrante e crua da ribalta;mesmo o gás te dá mais febre; parece que te estalam as fontes, latejando fortemente – e tu não podes mais ficar, nem um instante sequer, na vasta sala iluminada e cheia de multidão matizada que formiga e aplaude. Então, um de teus amigos te conduz à casa, já abatido e quase sem voz; e, mais tarde, passados dias, corre a dolorosa notícia, – ó amargurado Espírito moderno! – de que morreste de uma pneumonia aguda… E após a tua morte ainda se haveria de contentar o teu merecimento. Muitos diriam: ─ Também não deixou um livro que significasse a sua individualidade. E outros responderiam: ─ Mas deixou escritos nos jornais. ─ Ora, jornais! jornais são papéis avulsos, vivem o curto espaço de um minuto ou de um segundo e, muitas vezes, até sem os lermos, com os mais resplandecentes pensamentos contidos em suas colunas, os E se queres um noivo, se andas em busca de um noivo, aí tens, pois, o Luar, frio como essa natureza fria, e alvo, lirialmente alvo, como tu. Aí tens o Luar… Envolve-se à sua clâmide de linho, mergulha-te nos seus flocos de prata, ó meiga Eslava triste, meu desmaiado amor e heliotrópio branco dos sonhos, que aqui vieste findar eternamente a vida nessa nostálgica doença nervosa de melancolia que trouxeste do teu país polar, muito longe nos gelos, e que até te dá já a névoa densa, a espessa nuvem dolorosa das ilusões que se transformam em nuvens. Vens para sempre extinguir-se sob esses tórridos mormaços, nessa doença histérica de que ninguém na tua pátria pôde de certo determinar a pugentíssima origem, e que não é mais, nada mais é, talvez do que a doença do clima, do spleen das tardes, das exaustas paisagens sem seiva; as displicências amargas à hora dos longos ocasos taciturnos, quando adormecidamente as campinas e as planícies incultas nevam e o horizonte é uma trespassante angústia crepuscular que desola… Aí tens o Luar… Cobre-te nessa musselina fúlgida, veste essa finíssima gaze diáfana… Abre os primorosos olhos de Madona, castíssimos, chorosos e macerados, e absorve pelos cílios todo esse nosso fluido e luxuoso azul; e fecha depois esses teus primorosos olhos também azues… Sorri ainda uma vez, como num supremo frêmito final de ave ferida no peito;agita amorosamente, languescidamente, numa poeirada d’ouro, como na última noite de beijos da remota paixão que se foi, a loira e divina cabeça astral, leonina e doirada; tem um derradeiro estremecimento convulsivo e sonoro de cordas d’harpa em todo o níveo corpo; cerra à música celeste, eucarística da voz para sempre os lábios, e, assim, nesse láteo nimbo seráfico da Lua, fica em êxtase, na doce, na infinita quimera misteriosa da Morte, numa leve graça idealizante e alada de vôo etéreo de querubins, como quem está dormindo ou como o sol que emperdeniu e gelou… Fria Aparição da meia-noite, o Luar seja contigo! ESTESIA ESLAVA Como os embriagados de kava da Polinésia vou tartamudeando e soluçando sob as paixões, ó águia, Águia Germânica, imperiosa e doirada! Uma estranha harmonia de “Dança macabra” de Saint-Saens me entorpece e invade em lágrimas negras de notas. Todo o meu pensar e sentir estacou de súbito agora, como um nervoso cavalo da Arábia a que se refreia o bridão, diante da tua plumagem d’oiro da tua envergadura d’asa valente, – ó águia! doirada Águia humana e Germânica, que tudo de mim para sempre levas, Esperanças e Sonhos, impetuosamente arrebatado no alto, ao impulso fremente das tuas garras alpinas. E eu fico em ânsias no vácuo, num vago anelar indefinido, como as aspirações do perfume que quer ser luz… Mas um pedaço de horizonte ao longe marcando as infinitas distâncias e uma língua de terra aprumada em monte, tornam-me tangível o sentimento da realidade; e, então, claramente vejo e sinto, desiludido das Coisas, dos Homens e do Mundo, que o que eu supunha embriagamento, arrebatamento de amor nas tuas asas, ó loira Águia Germânica! – nada mais foi que o sonambulismo dum sonho à beira de rios marginados de resinoso aloendros em flor, na dolência da Lua nebulosa e fria, à alta paz do Azul, sob as pestanejantes estrelas rutilamente acesas… TÍSICA Lânguida e loira, tinha, na verdade, um ruidoso e festivo acordar de canários. Quando o dia vem triunfalmente cantando por todas as gargantas de oiro dos pássaros, perfumado por todos os prados de rosas, rumorejando por todos os sonoros veios cristalinos de fontes, ela erguia-se também do leito, cantando, numa alegria comunicativa que iluminava tudo e ia para o piano soluçar no teclado, lindas barcarolas e valsas. Quanta vez eu ouvi, e quantas outras a vi no rés do chão que enfrentava a minha morada, sempre com um vermelho esmaecido, manchado, em ambas as faces. Como era feliz, e que ruidoso e festivo acordar de canários tinha Ela! __________ Chegou, afinal, o inverno. A emigração das andorinhas começa em vôos incisivos, que frisa o espaço translúcido de ruflagens d’asas… Os grandes frios pedem as grandes capas de lã para as mulheres, os confortáveis regalos de pelúcia, as luvas, que agasalham, que protegem as mãos, os pardessus e os largos fíchus para a cabeça. Desprende-se já do éter as fortes lestadas de vento e chuva, destruidoras e rijas, arrepiando e convulsionamente contorcendo os galhos das árvores, que amarelecem. Amanhece-se tiritando sob o fulgurante ar frígido das geadas, que nevam os plácidos campos. E, lá, à cima das serras altas, nas desprotegidas cabanas onde a miséria habita, tiritam também de frio e desamparadamente morrem, com uma chama azul no olhar vítreo, as loiras e morenas virgens tísicas que na estação passada levaram a trabalhar nos rudes amanhos da lavoura e a mourejar nas longas vigílias amargurosas da agulha. __________ A tísica! a tísica! Essa doença simbolicamente dolorosa e triste, que devasta os lares como os cortantes invernos devastam as searas! Doença artística e desolada, que dá um aspecto eminentemente romântico a todas as mulheres, como àquela violeta de Parma, flor dolente e venenosa do Amor, essa Margarida Gautier, roxo lírio inefável de melancolia plantado à margem de lagos furta-cores de quimera, e que a mais abrasadora paixão, a febre mais intensa, o tufão ardente de um fundo e desvairado sentimento para sempre emurcheceu e desfolhou! Doença amarga! que soturnamente devorando os pulmões, põe em redor de quem a sofre um magoado impressionismo de saudade e uma névoa gelada de sepulcro… E as virgens que morrem dessa doença tão atormentadora e serena ao mesmo tempo, levam para o túmulo, na crispação dos lábios entreabertos e violáceos, como derradeira e a mais pungente ironia da Dor, o desmaiado sorriso da última esperança, do último sonho, da última ilusão que tiveram sobre a Terra. __________ Há muitos dias já não a vejo, a lânguida Loira. Não sei porque, mas a sua ausência inquieta-me. Eu quisera sempre vê-la, como dantes, pálida, lânguida e loira, com um vermelho esmaecido, manchado, em ambas as faces. Porém, ela não aparece, não vai, como então, sentar-se ao piano, no luminoso purpurear das manhãs, fazendo soluçar no teclado lindas barcarolas e valsas. E isso punge-me n’alma de tal modo que eu procuro saber o que é feito dela e dizem-me que adoeceu. ─ Adoeceu! E de que? ─ Está tísica. O médico diz que não durará muito. ─ Tísica! Tão moça e tão bela! E que ar festivo tinha ela. Como cantava! Que sonoridade de voz! E tudo isso agora acabar, morrer… __________ É certo, aflitivamente certo o que me disseram. Ela vai morrer! Vejo-a continuamente de uma palidez clorótica, os olhos de um brilho cru, agudo, que faz febre; as orelhas diáfanas, muito despegadas do crâneo; o nariz cada vez mais afilado e desfalecido; toda ela de uma amarelada transparência de morte, de uma magreza hirta, como essas santas mártires do cilício que vivem nos claustros fechados e austeros de pedra, olhando entre grades para céus fuscos, com olhos cheios dos fluidos místicos do Panteísmo, e que parecem subir, através de nimbos, além, às empíreas regiões dos excelsos arcanjos alvos de luz… Vejo-a constantemente, através de vidraças, sem brilho de vida quase, como um astro vesperal prestes a apagar para sempre todo o seu clarão diamantino e virgem. E, no entanto, nos intervalos lúcidos da doença, que lhe abrem no peito, às Esperanças, como um esplendor de força nova, de vigorosa saúde, o piano vibra de quando em quando, , sob as suas mãos febris, trêmulas, nervosas e cadavéricas, alguma melodia triste de casuarinas gementes, um desvairamento histérico de lágrimas, a fina música nostálgica no fim de tudo – talvez essa suspirante serenata de Schubert, cujo ritmo saudoso tão profundamente nos invade a alma e a entristece e no qual parece haver gritos e soluços de amor entrecortados pela agonia torturante da Morte… ORAÇÃO AO MAR Ó mar! Estranho Leviatã verde! Formidável pássaro selvagem, que levas nas tuas asas imensas, através do mundo, turbilhões de pérolas e turbilhões de músicas! Órgão maravilhoso de todos os nostalgismos, de todas as plangências e dolências… Mar! Mar azul! Mar de ouro! Mar glacial! Mar das luas trágicas e das luas serenas, meigas como castas adolescentes! Mar dos sóis purpurais, sangrentos, dos nababescos ocasos rubros! No teu seio virgem, de onde se originam as correntes cristalinas da Originalidade, de onde procedem os rios largos e claros do supremo vigor, eu quero guardar, vivos, palpitantes, estes Pensamentos, como tu guardas os corais e as algas. Nessa frescura iodada, nesse acre e ácido salitre vivificante, eles se perpetuarão, sem mácula, à saúde das tuas águas mucilaginosas onde se geram prodígios como de uma luz imortal fecundadora. Nos mistérios verdes das tuas ondas, dentre os profundos e amargos Salmos luteranos que elas cantam eternamente, estes pensamentos acerbos viverão para sempre, à augusta solenidade dos astros resplandecentes e mudos. Rogo-te, ó Mar suntuoso e supremo! para que conserves no íntimo da tu’alma heróica e ateniense toda esta dolorosa Via-Láctea de sensações e idéias, estas emoções e formas evangélicas, religiosas, estas rosas exóticas, de aromas tristes, colhidas com enternecido afeto nas infinitas idéias do Ideal, para perfumar e florir, num Abril e Maio perpétuos, as aras imaculadas da Arte. Em nenhuma outra região, Mar triunfal! ficarão estes pensamentos melhor guardados do que no fundo das tuas vagas cheias de primorosas relíquias de corações gelados, de noivas pulcras, angélicas, mortas no derradeiro espasmo frio das paixões enervantes… Lá, nessas ignotas e argentadas areias, estas páginas se eternizarão, sempre puras, sempre brancas, sempre inacessíveis a mãos brutais e poluídas, que as manchem, a olhos sem entendimento, indiferentes e desdenhosos, que as vejam, a espíritos sem harmonia e claridade, que as leiam… Pelas tuas alegrias radiantes e garças; pelas alacridades salgadas, picantes, primaveris e elétricas que os matinais esplendores derramam, alastram sobre o teu dorso, em pompas; pelas confusas e mefistofélicas orquestrações das borrascas; pelo epiléptico chicotear, pelas vergastantes nevroses dos ventos colossais, que te revolvem; pelas nostálgicas sinfonias que violinam e choram nas harpas das cordoalhas dos Navios, ó Mar! guarda nos recônditos Sacrários d’esmeralda as idéias que este Missal encerra, dá-o, pelas noites, a ler, a meditadoras Estrelas, á emoção do Ângelus espiritualizados e, majestosamente, envolve-o, deixa que Ele repouse, calmo, sereno, por entre as raras púrpuras olímpicas dos teus ocasos…
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