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Guias e Dicas
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Origens Da Vida, Notas de estudo de Ciências Biologicas

Um texto bom e completo sobre a Origem da Vida em PDF.

Tipologia: Notas de estudo

Antes de 2010

Compartilhado em 23/04/2009

larissa-juliani-12
larissa-juliani-12 🇧🇷

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Baixe Origens Da Vida e outras Notas de estudo em PDF para Ciências Biologicas, somente na Docsity! ORIGENS DA VIDA Augusto Damineli Daniel Santa Cruz Damineli Estudos avançados 21 (59) 2007 estudos avançados 21 (59), 2007  O que é vida? mbora a palavra vida pareça ter um sentido óbvio, ela conduz a dife- rentes idéias, tornando-se necessário definir o próprio objeto a que nos referimos neste texto. Para psicólogos, ela traz à mente a vida psíquica; para sociólogos, a vida social; para os teólogos, a vida espiritual; para as pessoas comuns, os prazeres ou as mazelas da existência. Isso é parte da nossa visão for- temente antropocêntrica do mundo. Para uma parte (relativamente pequena) das pessoas, ela traz à mente imagens de florestas, aves e outros animais. Mesmo essa imagem é parcial, já que a imensa maioria dos seres vivos são organismos invisíveis. Os micróbios compõem a maior parte dos seres vivos, a maioria (80%) vivendo abaixo da superfície terrestre, somando uma massa igual à das plantas. Entretanto, os micróbios ainda não ocupam a devida dimensão em nosso ima- ginário, apesar de mais de um século de uso do microscópio e de freqüentes notícias na mídia envolvendo a poderosa ação de micróbios, ora causando doen- ças ora curando-as, fazendo parte do ecossistema ou influindo na produção de alimentos. Esse quadro se deve ao fato de que a vida ainda é um tema recente no âmbito científico, comparado com sua antigüidade no pensamento filosófico e religioso. Uma concepção muito difundida entre os povos de cultura judaico-cris- tã-islâmica é que a vida foi insuflada na matéria por Deus, e seria, portanto, uma espécie de milagre e não uma decorrência de leis naturais. É difícil traçar a origem dessa concepção, mas os escritos de Aristóteles (384-322 a.C.) falam da pneuma, que seria uma espécie de matéria divina e que constituiria a vida animal. A pneuma seria um estágio intermediário de perfeição logo abaixo do da alma humana. A dualidade matéria/vida nos animais (ou corpo/alma nos seres hu- manos) já aparecia na escola socrática, da qual Aristóteles era membro, embora de modo um pouco diferente. Entre os animais superiores, o sopro vital passaria para os descendentes por meio da reprodução. Entretanto, Aristóteles acreditava que alguns seres (insetos, enguias, ostras) apareciam de forma espontânea, sem serem frutos da “semente” de outro ser vivo. Essa concepção é conhecida como geração espontânea e parece ter sido derivada dos pré-socráticos, que imagi- navam que a vida, assim como toda a diversidade do mundo, era formada por poucos elementos básicos. A idéia de geração espontânea está também presente em escritos antigos na China, na Índia, na Babilônia e no Egito, e em outros escritos ao longo dos vinte séculos seguintes, como em van Helmont, W. Har- Origens da vida AUGUSTO DAMINELI e DANIEL SANTA CRUZ DAMINELI E estudos avançados 21 (59), 2007 a possibilidade de existirem outros paradigmas de vida, mas porque essa é a única que possibilita uma abordagem científica, por apresentar dados observacionais e modelos teóricos. Inúmeras tentativas de formular um conceito geral de vida fo- ram e estão sendo feitas, mas nenhuma delas apresentou vantagens significativas para entender a vida que conhecemos, nem previu a existência de formas ainda desconhecidas que possam ser submetidas à observação. Ainda não existe uma Teoria Geral da Vida e isso restringe nossa capacidade de entendê-la. Só a desco- berta de outros exemplares de vida independentes da que conhecemos na Terra poderia nos levar a ampliar os horizontes conceituais. No item final, mostraremos projetos que visam descobrir vida fora da Terra e discutiremos sua factibilidade e sua potencial contribuição para a compreensão da vida no âmbito científico. Evolução e vida A evolução é o processo de mudança dos organismos através do tempo, fa- zendo que os organismos atuais sejam diferentes dos iniciais. Embora exista uma cadeia de continuidade ao longo do tempo, não é fácil inferir as propriedades dos primeiros organismos com base nos atuais. É possível recuperar algumas informa- ções sobre a estrutura corporal dos progenitores das espécies atuais por meio dos fósseis. Isso permitiu fazer um mapa exuberante da evolução ao longo dos últi- mos ~540 milhões de anos (M.a.). Todos os filos genéticos (arquiteturas corpo- rais) existentes hoje surgiram na chamada “explosão do Cambriano” que ocorreu por essa época. Ela se caracteriza pelo aparecimento de seres multicelulares. No período pré-Cambriano (era geológica anterior a 570 M.a.) os seres eram unicelulares (feitos de uma única célula), o que dificultou enormemente a formação de fósseis e sua descoberta através de microscópios. Os fósseis de mi- croorganismos foram rastreados até um passado tão remoto quanto 3,5 bilhões de anos (B.a.) atrás. Eles são encontrados em agregados rochosos que ainda hoje são habitados por colônias de bactérias, os chamados estromatólitos,1 como os da formação chamada de Apex do oeste da Austrália. Eles apresentam onze tipos diferentes de fósseis, mostrando aliás como as células se dividiam e multiplicavam (embora exista quem conteste que eles sejam fósseis verdadeiros). Suas formas são indistinguíveis das algas fotossintéticas atuais (cianobactérias) que infestam diversos ambientes da Terra. Mesmo sendo primitivos para a vida atual, esses fósseis são de organismos tão complexos que não podem ter sido as primeiras formas de vida. Microbiologistas e biólogos moleculares defendem que a ciano- bactéria teria sido um dos últimos grandes grupos de bactérias a aparecer. Como recuar nossos estudos mais para trás no tempo? É muito difícil en- contrar rochas mais antigas que 3,5 bilhões de anos, pois a superfície do nosso planeta é constantemente reciclada. As rochas da superfície são forçadas a imergir pela tectônica de placas, e nas profundezas da terra elas são cozidas sob pressão. Quanto mais antiga uma rocha, mais rara ela é. Desse modo, não existem esperan- ças de encontrar fósseis muito mais antigos que 3,5 bilhões de anos, o que inter- rompe o caminho em busca da origem da vida por meio desse tipo de registro. estudos avançados 21 (59), 2007  Figura 2 – Os fósseis mostram que a evolução transformou as características dos seres vivos ao longo do tempo, gerando diversidade biológica e permitindo que muitos nichos disponíveis na biosfera fossem ocupados. (Arte: Paulo Santiago) A evolução biológica é um fato surpreendente e inesperado quando te- mos em mente que o código genético trabalha para fazer uma cópia exata de si mesmo. A dupla hélice é uma garantia extra de fidelidade, providenciando duas cópias de cada informação genética. Se só existissem as forças mantenedoras da identidade, não existiria a diversidade biológica. Contudo, existem processos que levam a imperfeições na reprodução. Esses são “erros” aleatórios, naturais em qualquer processo de cópia em razão da radioatividade ambiental, dos raios cósmicos provenientes do espaço ou de agentes químicos. Eles geram molécu- las-cópias diferentes das originais, de modo que, quando a molécula participa da reprodução, o organismo resultante terá (em geral) pequenas diferenças de seu progenitor. Se ele for adaptado às condições do meio ambiente, sobreviverá e poderá deixar descendência, aumentando a diversidade biológica. Não existe uma pressão para a produção de organismos mais complexos ou mais “perfeitos”, como muitos acreditam. Os mais complexos não parecem ser mais vantajosos do ponto de vista da sobrevivência que os mais simples. Se isso fosse verdade, existiriam muito mais organismos complexos do que simples, ao contrário do que se observa na natureza. Essa idéia de evolução como aper- feiçoamento é pregada pelos criacionistas, segundo os quais a natureza segue um plano inteligente (inteligent design). Eles a aplicam não só para a evolução biológica, mas também para todos os fenômenos naturais. Ela se traduz simples- mente na crença de que as forças naturais não seriam capazes de criar “ordem” e “beleza” se não forem guiadas por uma inteligência exterior à própria matéria. Adotar esse ponto de vista é dar à ciência um mero papel de desvendar qual é esse plano subjacente à natureza que já está preestabelecido para todo o sempre. Esse determinismo foi abandonado pela Mecânica Quântica há quase um século. estudos avançados 21 (59), 2007 Figura 3 – Microfósseis pré-Cambrianos. Os exemplares “e, f, g, h, i” são os mais antigos (3,465 B.a.), encontrados nos estromatólitos de Apex, na Austrália (J. W. Schopf et al. Nature, 416, 73, 2002). A árvore universal da vida Atrás de sua enorme diversidade de formas, cores e tamanhos, os organis- mos atuais mostram características muito similares que servem de parâmetros importantes para entender sua origem. Por exemplo, a água é a substância (mo- lécula) mais abundante da matéria viva: 70% do corpo humano, 95% da alface, 75% de uma bactéria. Todos os seres têm uma alta porcentagem de água, o que favorece a hipótese de uma origem em meio aquoso. Sua composição atômica também é admiravelmente simples. Apenas quatro elementos químicos – car- bono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio (CHON) – somam 99,9% da matéria viva. Eles estão entre os cinco mais abundantes do Universo, só deixando de fora o hélio, que não faz ligações químicas. A bioquímica da vida é composta por combinações desses átomos, formando água (H2O), metano (CH4), amônia (NH3), dióxido de carbono (CO2), açúcares, proteínas, ácidos graxos e outros. Mesmo que muitas proteínas tenham elementos metálicos e requeiram certos íons para funcionar, os elementos mais abundantes são, de longe, os mencio- nados anteriormente. O fato de que a vida se compõe dos átomos mais ampla- mente encontrados na natureza indica que ela é simplesmente uma expressão da oportunidade e não uma excepcionalidade, um milagre, que poderia ser feito com materiais arbitrários, inclusive raros. R ep ro du çã o estudos avançados 21 (59), 2007  O progenota (último ancestral comum) O último ancestral comum deve ter tido características que são comparti- lhadas por todos os seres vivos: reprodução por meio de genes (DNA), fábricas de proteínas (ribossomo e RNA), mecanismos para reparar erros no código, obter e armazenar energia. Ele deve ter sido mais parecido com os organismos mais primitivos (ramos mais baixos da árvore universal) do que com os mais moder- nos (pontas dos ramos). Os organismos dos ramos mais baixos são tolerantes ao calor, os termófilos e hipertermófilos. Eles vivem em temperaturas parecidas com a da água fervente (90-113oC), como as encontradas nas fontes hidrotermais do fundo dos oceanos e nas poças vulcânicas como as do Parque Yellowstone (Esta- dos Unidos). Entretanto, existem técnicas que permitem avaliar a temperatura de formação de bases nitrogenadas, e elas indicam que os organismos primitivos te- riam se originado em ambientes de temperatura moderada e não extrema. Outro fato que vai contra a origem da vida em alta temperatura é o efeito desagregador que ela tem para o RNA, açúcares e alguns aminoácidos. A 100oC a meia-vida de diversos compostos é de segundos a horas. Assim, os hipertermófilos teriam se adaptado às altas temperaturas e não se formado nelas. Isso, somado à maqui- naria complexa que esses já apresentam, indica que eles não poderiam ter sido a primeira forma de vida. Na primeira metade do século passado, imaginava-se que a vida já teria se iniciado fabricando seu próprio alimento (autotrofismo5) como fazem hoje os seres fotossintetizantes. Na fotossíntese, por exemplo, o CO2 atmosférico é absorvido pela célula, e, sob a ação da luz e com a utilização de água, gera uma série de compostos orgânicos, em especial açúcares como a glicose. Numa etapa seguinte, eles são usados para gerar energia e fabricar componentes estrutu- rais (corpo). Os animais não geram, mas capturam energia fabricada por outros organismos (heterotrofismo6). Mediante a oxidação7 dos açúcares, percorre-se um caminho inverso ao da fotossíntese, liberando energia e devolvendo CO2 à atmosfera. Por volta do início dos anos 1900, esses processos estavam ainda sendo entendidos e se imaginava que, sem seres autotróficos, não haveria fontes de alimento na Terra primitiva. Entretanto, o aparecimento de organismos que já nascem fabricando sua própria comida parece implausível hoje em dia. Na década de 1920, Oparin apresentou uma idéia nova, que teve grandes desdobramentos. Ele usou um cenário de evolução darwiniana lenta e gradual, partindo do mais simples para o mais complexo. A partir dos hidrocarbonetos e da amônia, teriam se formado outros compostos mais complexos, como car- boidratos e proteínas. Processos semelhantes, num ambiente redutor,8 foram propostos por J. B. S. Haldane (1892-1964). Depois disso, o cenário autotrófico perdeu ímpeto, mas continua a ter seus defensores até hoje. A química pré-biótica Os aminoácidos são fundamentais para a vida. No mundo atual eles são produzidos por intermédio das proteínas, no interior das células. Para a vida ter estudos avançados 21 (59), 20070 surgido, eles precisariam ter sido produzidos por processos abióticos (inorgâni- cos). A proposta Oparin-Haldane é que os aminoácidos teriam sido produzidos a partir de moléculas carbonadas mais simples, num ambiente redutor. Nos anos 1950, Harold Urey (1893-1981) argumentou que a atmosfera da Terra, em sua origem, era parecida com a dos planetas gasosos (Júpiter, Saturno, Urano e Netuno). Eles teriam mantido suas atmosferas quase inalteradas por causa da grande massa (alta gravidade) e baixa temperatura (distantes do Sol). Os pla- netas rochosos (Mercúrio, Vênus, Terra e Marte) as teriam perdido pela baixa gravidade e pela proximidade do Sol, que teria dissociado as moléculas pela ação dos raios UV e que produz alta temperatura atmosférica. Como Júpiter e seus parceiros gasosos têm atmosfera rica em amônia (NH3), metano (CH4) e hidro- gênio (H2), assim também teria sido a atmosfera primitiva da Terra e dos outros planetas rochosos. A hipótese de Urey entusiasmou seu aluno Stanley Miller. Ele conhecia a teoria de Oparin de que os aminoácidos poderiam se formar por processos abi- óticos numa atmosfera redutora e decidiu colocar isso à prova no laboratório. Em 1953, montou um experimento mimetizando os processos atmosféricos, em que um gás de amônia, metano e hidrogênio passava por uma câmara onde havia descargas elétricas, depois era condensado num recipiente de água e evaporado novamente, num ciclo contínuo. Em poucos dias se formou um precipitado rico em aminoácidos. Esse resultado é espetacular e abriu horizontes novos para o entendimento da origem da vida. O experimento é um cartão-postal exibido pelos professores de ciências como sendo a demonstração de que foi assim que a vida se originou na Terra, mas isso é incorreto por dois motivos. O primeiro problema com o experimento de Miller é que a atmosfera da Terra nunca foi redutora, pelo menos no grau necessário para formar ami- noácidos. As inúmeras variantes do experimento de Miller, quando realizadas em ambientes neutros (intermediário entre oxidante e redutor) ou baixamente redutores, nunca produziram quantidades relevantes de aminoácidos. A idéia de atmosferas redutoras em planetas rochosos foi demonstrada inconsistente pela planetologia por volta dos anos 1970 (ver Delsemme, 2000). Os planetas rochosos se formaram a partir de poeira seca, sem a capa de água e elementos voláteis que formaram os planetas gasosos. É por isso que os planetas rochosos têm atmosferas neutras (ricas em dióxido de carbono e nitrogênio), e os gasosos têm atmosferas redutoras (ricas em hidrogênio, amônia e metano). O segundo problema é que os experimentos nunca produziram vida ou qualquer coisa mais complexa que aminoácidos. Como se explica então o fato de que a Terra e outros planetas rochosos te- nham água hoje (embora pouca em comparação com os corpos mais distantes do Sol)? Os fragmentos que restaram da formação de Júpiter e dos outros planetas gasosos foram lançados para todos os lados, em forma de cometas, e muitos deles atingiram a Terra trazendo grande quantidade de água e compostos carbonados. A formação da Lua (4,42 B.a.) pela colisão com um planetóide do tamanho de estudos avançados 21 (59), 2007  Marte com a Terra cozinhou a crosta terrestre e vaporizou os oceanos trazidos pelos cometas. Novas quedas de cometas e meteoritos trouxeram mais água e compostos carbonados. O calor dos impactos, o efeito estufa da luz solar na at- mosfera rica em CO2 e a dissociação das moléculas hidrogenadas pela radiação UV não deixam muito espaço para uma atmosfera redutora (rica em hidrogênio). A descoberta das fontes hidrotermais submarinas trouxe uma nova es- perança de encontrar esse ambiente redutor. Esses locais são interessantes por serem abrigados contra a queda de meteoróides e cometas, por exalarem com- postos de interesse para a química pré-biótica (H2S, CO e CO2) e pela fonte de energia térmica (temperaturas de até 350oC). Se eles exalassem também HCN, CH4 e NH3, formariam um ambiente redutor e possivelmente alguns tipos de aminoácidos, embora não todos os necessários para a vida, por causa do efeito desagregador das altas temperaturas sobre alguns deles. Figura 5 – Experimento de S. Miller para síntese abiótica (inorgânica) de aminoáci- dos em uma atmosfera redutora, que Urey supunha ter existido na Terra primitiva. Enquanto é difícil encontrar um ambiente favorável à formação de ami- noácidos na Terra primitiva, o experimento de Miller se mostra amplamente operativo fora dela. Alguns meteoritos (do tipo condrito), como o que caiu estudos avançados 21 (59), 2007 ganização considerável na própria seqüência de reações químicas, sem que haja um código genético. Essa perspectiva, porém, ainda carece de evidências expe- rimentais, já que parece improvável que polímeros longos e reações complexas possam se organizar de forma autônoma. Alguns autores acham possível que exista um princípio de auto-organização que opere nesse sentido. Quando ocorreu a origem da vida? É comum as pessoas pensarem que algo tão complexo quanto a vida exi- giria processos que só ocorrem raramente, demandando tempos extremamente longos para terem alguma chance de ocorrer. Os dados atuais indicam que isso não é verdade. Vamos olhar para as primeiras eras geológicas da Terra. A for- mação rochosa Isua (na Groenlândia) é uma das mais antigas, tem 3,8 B.a. Em- bora não contenha organismos fósseis, ela tem indicações de contaminação por atividade biológica. O grafite encontrado nela tem um teor de 13C (variedade de átomo de carbono com seis prótons e sete nêutrons) em relação ao isótopo mais leve 12C com valores típicos de material orgânico, como o encontrado em restos vegetais atuais. Até agora, não se encontrou outra explicação, a não ser a fotossíntese para explicar essa anomalia do carbono. Outro dado que aponta para a fotossíntese em épocas remotas são os imensos depósitos de óxido de ferro (chamados de banded iron formation – BIF), os mais antigos com ~3,7 B.a. de idade. Nessa época, não existia oxigênio livre na atmosfera, como indicado pela existência de pirita e uraninita. O oxigê- nio pode ter sido liberado nos oceanos pela atividade de algas fotossintetizantes e consumido localmente, oxidando o ferro. Se as rochas de Isua e os BIF mais antigos indicam existência de vida, ela deve ter surgido antes de 3,8 B.a., dado que a fotossíntese, por ser um processo muito complexo, não deve ter sido a primeira forma de produção de energia. O ancestral comum deve ter surgido antes disso. Mais um motivo para recuar o aparecimento do progenota para antes de 3,8 B.a. é que os trezentos milhões de anos seguintes parecem ser muito curtos para a vida ter atingido o nível de complexidade da cianobactéria, parente dos organismos que formaram os estromatólitos. Mas não podemos recuar a origem da vida para tempos muito anteriores a esse. A Terra se formou há 4,56 B.a., e há 4,46 B.a. já tinha crosta sólida, a água tinha chovido das nuvens para formar os oceanos e a atmosfera tinha temperatura aceitável. Mas nos primeiros ~700 milhões de anos ela era castigada por uma densa chuva meteorítica, alguns dos fragmentos com centenas de quilômetros de tamanho. Uma colisão dessas va- porizaria os oceanos e aqueceria tanto a atmosfera, que levaria mais de mil anos para chover de novo. Se já existia vida na Terra nessa época, ela teria sido destru- ída, não uma, mas muitas vezes. Ela só poderia ter se arraigado de forma estável depois do fim da chuva de meteoros esterilizantes, ou seja, há menos de 3,9 B.a. Isso deixa uma janela de <100 milhões de anos para a vida partir do zero e atin- gir o estágio de produção de energia por fotossíntese. Se preferirmos descartar estudos avançados 21 (59), 2007  o diferencial de 13C ou os BIF como indício de vida, o intervalo de tempo para a vida ter se formado e evoluído até o nível de complexidade da cianobactéria sobe para meros 400 M.a. Nos 3,5 B.a. seguintes a vida aumentou sua diversida- de, mas não aconteceram saltos de complexidade tão grandes quanto o inicial, do inorgânico para o vivo. Por isso, a janela de tempo de centenas de milhões de anos é pequena e indica que esse salto não é tão difícil ou improvável para a natureza. A janela para a origem da vida, se ela se iniciou na Terra, pode ser bem mais curta do que os quatrocentos milhões de anos indicados antes. Uma escala de tempo muito curta poderia ser obtida do fato que as reações químicas que produzem as grandes moléculas (polímeros) são reversíveis. Em escalas de dias a meses, a maioria delas reverteria para componentes mais simples, em meio aquo- so. Isso poderia ser evitado se as grandes moléculas fossem retiradas do meio líquido, logo que formadas. Esse cenário funcionaria se a vida tivesse surgido nas plataformas continentais e não no fundo dos oceanos. No início, as placas litos- féricas9 ainda estavam submersas, e as indicações mais fortes são de que a vida te- nha surgido no fundo dos oceanos. Outra forma de evitar a reversibilidade seria encerrar as macromoléculas em membranas, como as paredes celulares. Naquele tempo não havia células como as atuais, mas é possível que houvesse membranas formadas por processos inorgânicos. Oparin sugeriu que coacervados,10 forma- dos espontaneamente por polímeros em solução aquosa, tenham constituído a membrana de uma protocélula. Embora eles realmente se formem em laborató- rio, são muito instáveis. Outros tipos de formação de membranas são possíveis; por exemplo, os proteinóides11 que Sidney Fox sintetizou em laboratório. Mesmo depois de escapar da reversibilidade, os componentes da vida pri- mitiva encontrariam outras armadilhas fatais. Uma delas são as fontes hidroter- mais que existem no fundo dos oceanos. Elas reciclam um volume igual ao dos oceanos atuais em dez milhões de anos. Entretanto, quando o interior da Terra era mais quente, esse processo era muito mais forte e os tempos de reciclagem eram muito mais curtos. A água sai das fontes hidrotermais com T>350oC, sen- do totalmente esterilizada. Quanto menor a escala de tempo, mais simples deve ter sido o processo de origem da vida. Na Terra, ela se instalou tão cedo e tão rapidamente que parece ser um mero subproduto da formação planetária. Isso abre enormes perspectivas de que ela também tenha surgido em outros planetas, que só na nossa galáxia devem ultrapassar a casa dos trilhões. No volume visível do Universo existem cerca de cem bilhões de galáxias como a nossa, elevando o número de planetas para mais de 1023. O fato de que a origem da vida seja um assunto tão difícil de ser compreendido não nos deve induzir ao erro de assumir que também seja difícil de ser realizada pela natureza. A janela para a formação de vida na Terra é tão estreita, que alguns preferem acreditar que ela tenha aportado aqui já pronta (hipótese de panspermia). O conforto que se ganha aumentando a janela de estudos avançados 21 (59), 2007 tempo para dez bilhões de anos e multiplicando a diversidade de situações físicas e químicas por um número incontável de planetas se perde pelo imenso isola- mento cósmico dos astros e pela exigüidade de mecanismos viáveis de transporte de seres vivos de um para outro. O transporte só é viável para planetas próximos, como entre a Terra e Marte. O problema do mecanismo de origem se transfere daqui para outro planeta, mas sua solução não se torna mais fácil. Figura 7 – Estabelecimento da vida na Terra após ~700 milhões de anos de idade, quando findou a chuva meteorítica esterilizante. Perspectivas de vida fora da Terra O estudo da vida no contexto astronômico é relevante por diversos mo- tivos. O mais fundamental deles é que nunca poderemos ter uma teoria geral da vida enquanto conhecermos só o exemplar terrestre. Tomemos a física como paradigma, ela tem teorias gerais porque existem inúmeras situações em que po- dem ser aplicadas e se verificar como cada parâmetro varia de uma situação para outra. A multiplicidade de situações permite fazer previsões e passar a teoria pelo crivo do teste empírico. Só a descoberta de outros exemplares de vida, formados fora da Terra, permitirá ver o que é fundamental e o que é secundário no fenô- meno. Outro motivo é que as informações sobre as condições físicas e químicas da Terra, no momento em que a vida aqui se estabeleceu, estão perdidas para sempre. A observação de outros astros permite rever o passado, pois tudo o que estudos avançados 21 (59), 2007  tagem em relação a Marte é a baixíssima probabilidade de contaminação a partir da Terra. Mas fazer um furo de dezenas de quilômetros de profundidade na capa de gelo de Europa e procurar micróbios num volume de água maior que o dos oceanos da Terra é um empreendimento economicamente inviável na atualida- de. Não existem outros lugares no sistema solar que ofereçam perspectivas tão boas quanto Marte e Europa para a vida ter surgido. Figura 8 – Sistemas planetários em formação na Nebulosa de Orion, mostrando discos de poeira protoplanetária (machas escuras). Eles permitem rever como se deu a formação do sistema solar. (Nasa) De qualquer modo, o sistema solar é um pouco irrelevante para uma teoria geral da vida, dado que precisamos de uma abundância de exemplos diferentes. Para vasculhar um grande número de planetas, temos que olhar para as estrelas, em torno das quais devem existir trilhões, só na nossa galáxia. Os instrumentos atuais só conseguem detectar planetas de modo indireto, por meio da reação gravitacional da estrela hospedeira, e isso se limita a casos atípicos (planetas mui- to grandes e bem próximos da estrela central). Mesmo assim, já se conhecem mais de 150 planetas extra-solares. Todos são desinteressantes para a vida, pois trata-se de gigantes gasosos que reciclam suas atmosferas entre temperaturas de milhares de graus no interior a -180oC, no topo das nuvens. estudos avançados 21 (59), 20070 Figura 9 – Espectro da Terra no infravermelho médio, tomado a partir do espaço, mostrando uma banda molecular do ozônio na atmosfera. Esse sinal é considerado inequívoco de atividade biológica (fotossíntese). (Projeto Darwin - ESA) O Santo Graal da procura da vida está escondido nos planetas rochosos como o nosso. Outra falta de imaginação? Talvez. Por um lado, ainda não nos libertamos da imagem da Mãe Terra, tão acolhedora para a vida. Mas, por ou- tro, está o fato de que a contaminação por produtos da atividade biológica é facilmente visível nas tênues atmosferas dos planetas rochosos, por serem mui- to rarefeitas. Os telescópios atuais estão muito aquém da acuidade necessária para fotografar planetas rochosos em torno de outras estrelas. Mas isso é uma mera questão técnica, que se resolve com investimentos humanos e financeiros. Os recursos financeiros estão aparecendo. Será necessário aumentar o poder resolvente dos telescópios por um fator mil (o salto foi de um fator ~10 nesses quatrocentos anos desde Galileu). Depois, devemos peneirar os fótons da luz estudos avançados 21 (59), 2007  provenientes do planeta, pois, a cada um bilhão de fótons da estrela hospedeira, entram no telescópio apenas alguns poucos do planeta. Será preciso apagar a es- trela, sem interferir na luz do planetinha situado a frações de segundos de arco12 dela. Os instrumentos para isso já estão em desenvolvimento, e as primeiras de- tecções diretas devem acontecer em menos de duas décadas. Aí bastará passar a luz dos planetas rochosos pelo espectrógrafo e procurar a assinatura do ozônio e do metano. Nesse meio tempo, novas gerações de pesquisadores ligados a esses proje- tos poderão descobrir outros sinais mais característicos de contaminação bioló- gica diferentes dos aqui apresentados. Depois de passar pelo crivo uma extensa lista de planetas, poderemos ter estatística suficiente para saber se o Universo é tão biófilo quanto nos parece hoje. É possível que não encontremos nenhum sinal de vida (para o grande deleite dos criacionistas contrários à teoria evoluti- va), mas o progresso científico só tem como escolha produzir testes que possam contradizer as premissas teóricas. Se existirem detecções positivas, aí será o início do estudo de cada tipo particular de vida, e seria ficção especular quais vão ser as técnicas empregadas para isso. Assim, uma teoria geral da vida não é esperada para tão cedo, mas se há uma coisa clara é que o avanço tecnológico e científico sempre superou as expectativas e chegou antes do que se esperava. Notas 1 Estromatólito: formação rochosa de carbonato de cálcio, depositada a partir de algas mortas nas águas rasas dos oceanos. 2 Monômeros: subunidades moleculares que, acopladas, formam longas cadeias, cha- madas polímeros. 3 Análise genômica: mapeamento da seqüência de pares de bases nitrogenadas (AG – adenina e guanina; CT – citosina e timina) que forma o DNA de um dado organismo. 4 Associação simbiôntica: quando dois seres se associam com vantagens mútuas. Por exem- plo, a mitocôndria gera energia para a célula e ela lhe oferece proteção e alimento. 5 Autotrofismo: quando um organismo produz seu próprio alimento, como no caso das plantas. 6 Heterotrofismo: quando um organismo se alimenta da energia gerada por outros, como no nosso caso. 7 Substância oxidante: aquela que recebe elétrons, como as ricas em oxigênio. Exemplos de oxidação: enferrujamento, respiração. 8 Substância redutora: aquela que doa elétrons, como as ricas em hidrogênio. 9 Placas litosféricas: são as camadas superficiais da Terra que formam os continentes. Elas são formadas de placas que se chocam com outras, produzindo os terremotos. 10 Coacervados: sistemas coloidais (estruturas fechadas) gerados em soluções de políme- ros (moléculas com longas cadeias de carbono). 11 Proteinóides: grandes moléculas, parecidas com proteínas, formadas por aminoácidos, mas de origem abiótica.
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