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Quatro uma dimensões do arquivo, Manuais, Projetos, Pesquisas de Jornalismo

Artigo de Maurício Lissovsky sobre memória e preservação da memória através de arquivos.

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2010

Compartilhado em 10/06/2010

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4.8

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Baixe Quatro uma dimensões do arquivo e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Jornalismo, somente na Docsity! QUATRO + UMA DIMENSÕES DO ARQUIVO “A luva é um documento.” Noel Rosa Assim que fui convidado para escrever um texto para este livro, a primeira coisa me ocorreu dizer – a primeira e a última – foi: a história pode ser um romance, mas o arquivo é uma poética. Duas objeções, duas acusações de impertinência, podem ser dirigidas a este enunciado. Uma é de anacronismo. Agora que a dinâmica cultural, econômica e política da sociedade coloca a gestão da informação “no cerne da contemporaneidade”,1 o reconhecimento e a notoriedade parecem abrir-se finalmente aos arquivistas e suas instituições. Reivindicar aqui uma poética soa como insistir em mantê-los (manter-nos) prisioneiros da obscura marginalidade a que se esteve submetido nos últimos dois séculos. A outra é que esta perspectiva apenas reproduz os preconceitos elitistas que subordinaram os arquivos ao mandato do interesse erudito do historiador – representante natural/naturalizado do suposto interesse histórico de uma sociedade em si mesma. Em resumo, ao reivindicar a poética posso não estar contribuindo para aquilo que Ramon Alberch i Fugueras chamou de “normalização” da função arquivística. Isto é, para a superação dessa incessante “oscilação” do arquivista entre o “estereótipo e a invisibilidade”.2 No argumento que pretendo desenvolver aqui, à guisa de comentário ao artigo primeiro da lei que consubstancia a política nacional de arquivos, quero manter bem vivas estas duas objeções. Não para confrontá-las, mas para que elas nos ajudem a sustentar a pergunta sobre o papel da “função arquivística” na sociedade contemporânea. Confesso, porém, desde já, que desconfio que uma certa “invisibilidade” talvez seja inerente à função. Mais precisamente: acredito que a “experiência” do arquivo dá-se sempre sobre a linha tênue que vincula aquilo que aparece àquilo que desaparece. Receio, portanto, que a ênfase demasiada nos dispositivos de transparência nos lancem na ilusão de que este vínculo (que na verdade é uma dobra) possa ser suprimido. E que ele então venha a ressurgir, para incômodo nosso, um tanto impensadamente, um tanto aleatoriamente, como o vinco em uma calça mal passada. * * * 2 O artigo primeiro da lei no 8.159 nos diz que é “dever do Estado a gestão documental e a proteção especial a documentos de arquivos, como instrumento de apoio à administração, à cultura, ao desenvolvimento científico e como elementos de prova e informação”. A enumeração destas tantas finalidades evoca toda uma história, que gostaria de visitar a partir de uma destas obrigações: proteger. Proteger de quem? Proteger de quê? Existem quatro respostas usuais a esta pergunta. Cada uma delas evoca um dos aspectos ou dimensões do arquivo. 1. Dimensão historiográfica Protegem-se os documentos de arquivo da ação entrópica do tempo – da “traça” (o correspondente acadêmico do verme machadiano ao qual Brás Cubas dedicou suas memórias póstumas), do mofo, da acidificação. Tal proteção desafia o passar do tempo que a tudo arruina. Em larga medida, os arquivos são – apesar de sua propalada obscuridade – instituições iluministas. São um projeto moderno – projeto de edificação de uma sociedade sem ruínas –, cuja expressão arquitetônica mais característica, o neoclassicismo, constrói-se a si mesmo como desarruinamento da história e representação da ressurreição heróica do passado. Esta é a dimensão historiográfica do arquivo. Estamos hoje de tal modo “desligados” da origem iluminista da disciplina que perdemos de vista a sensibilidade estética em que ela se conformou. Nada mais distante do espírito dos primeiros historiadores modernos que este soneto 64 de Shakespeare: Vendo que a mão do Tempo desfigura A tão rica altivez dos dias idos, Que jaz a torre em terra das alturas Caída, ou o bronze eterno destruído; Vendo que o mar faminto um dia ganha Parte ao reino da praia a que vem dar E no outro o solo a água lhe arrebanha E ganha a perda e perde por ganhar; Vendo que é tão comum mudar-se o estado, Que o próprio estado lembra uma ruína, Eis que a ruína me tem ensinado 5 para o bom funcionamento da esfera privada. Se esta determinação constitucional tivesse sido levada às últimas conseqüências, teríamos visto – uma vez que a felicidade encontrava-se injusta e desigualmente distribuída – zelosos funcionários, arquivistas entre eles, vasculhando papéis e outros vestígios de famílias reconhecidamente ditosas com o objetivo de desvendar-lhes o segredo da felicidade e, no cumprimento de um dever cívico e constitucional, difundi-lo entre todos os cidadãos. Se tal não aconteceu, terá sido menos por displicência desses funcionários do que em virtude da tarefa ter sido levada a cabo com brilhantismo pelos produtores de cinema em Hollywood, que agiram, neste sentido, no mais puro interesse público. Um terceiro exemplo desses constantes deslocamentos entre as duas esferas nos é fornecido pelo dramaturgo sueco August Strindberg. Numa carta a um amigo, escrita em 12/11/1887, quando o autor estava com 38 anos, alguns poucos meses após o rompimento com sua esposa, a quem acusara de adultério, Strindberg desfia um rosário de disposições testamentárias, sugerindo um suicídio jamais consumado (ou sequer tentado): Reabilite minha esposa, atirando um manto de obscuridade sobre tudo o que aconteceu, para o bem das crianças... Obrigue Albert Bonniers a publicar a parte IV da minha autobiografia... Veja com que minhas obras reunidas sejam publicadas, no devido tempo, em Leipzig, Copenhague ou Chicago; tudo que eu escrevi, cada palavra, dos jornais, almanaques, no exterior e em meu país, inclusive minha correspondência... Cuida das pensões para as minhas crianças, as quais, sejam elas minhas ou não, foram adotadas por mim (não é necessário mencionar minha esposa). Urge que Zola arrume um editor para “O Pai”, ou a imprima em Copenhague, em francês... Tente que seja encenada em Paris... O empenho de Strindberg em garantir a publicação de O Pai, seguramente a mais brilhante e pungente obra de misoginia da dramaturgia moderna, testemunhando a dissolução física e moral de um pai devastado pela dúvida, é bastante compreensível no contexto. Mas por que sua correspondência pessoal? Ele justifica sua decisão: O meu [ideal] estava encarnado numa mulher, porque eu era um adorador de mulheres. Quando ele desmoronou, eu desmoronei. Nas minhas cartas, 6 você vai ver... um tolo crédulo e confiante, que podia acreditar em qualquer coisa, inclusive que ele era um lixo, o que não era, de fato... Há algo aqui além do simples desejo da “imortalidade” que as “obras completas” consagram. Para Strindberg, o duelo doméstico com a esposa era a faceta privada de uma luta pública. Um front político tão crítico quanto o parlamento sueco. À inquietação da paternidade correspondiam os movimentos pela emancipação das mulheres, particularmente o sufragismo. Suas cartas dariam testemunho, disto o autor tinha plena consciência, da derrota iminente dos homens e da ameaça de barbárie que o voto feminino representava. Ao mesmo amigo, ele ainda escreverá que se viesse a morrer numa época em que as mulheres já tivessem adquirido o direito de votar, dever-se-ia entalhar na lápide de seu túmulo “Aqui jaz o último homem”.8 O movimento de Strindberg não é o de expor-se ao mundo, na intimidade, como um idiota, mas expor-se como um idiota que colocara sua intimidade a serviço de uma causa pública. Não se trata, neste caso, nem da economia privada (doméstica) como condição da vida pública, nem do contrário, em que a felicidade pública torna-se condição da felicidade privada, mas de uma correspondência, quase termo a termo, entre as duas esferas. No jogo de contrastes entre esses três exemplos, pretendo apenas ressaltar que esta segunda resposta à pergunta “proteger de quem?” é talvez a mais delicada, pois trata-se de proteger o público da sanha do privado e o privado das investidas do público. E fazê-lo, segundo o interesse público, sempre de modo relativo, uma vez que as delimitações entre esses dois campos não são permanentes, sendo elas próprias constante objeto de uma disputa a partir da qual os campos se definem, engendrando um ao outro. Assim sendo, precisamos admitir, “proteger” é apenas mais um modo (o nosso modo) de participar dessa disputa que define os limites entre os dois campos e as regras de trânsito, a transigência, entre eles. A fluidez e a velocidade desses embates nunca poderão ser inteiramente subsumidas pela lei. O melhor que se pode desejar aqui é que a luta seja “justa”. Nas tensões entre público e privado, entre o cidadão e o Estado, o arquivo assume a sua segunda dimensão. A dimensão republicana. 3. Dimensão cartorial A terceira resposta, uma das mais antigas, é que o arquivo está a serviço do verdadeiro, protegendo-nos da mentira, da falsificação, da fraude. 7 As relações do arquivo com a produção do verdadeiro não são menos complexas que aquelas que dizem respeito à historiografia e à república. Creio ser possível identificar quatro regimes claramente distintos de funcionamento do arquivo nesta dimensão que poderíamos chamar de cartorial. Proponho resumi-las com o auxílio do quadro comparativo abaixo. Para nomear cada um destes quatro regimes, preferi utilizar a forma de identificação dominante em cada um deles: assinatura, cifra, número e senha. Eles não se sucedem no tempo, e têm convivido largamente ao longo da história, coexistindo nas mais variadas combinações e articulações, mesmo na atualidade. Mas é possível acompanhar um movimento amplo de transição que vem conduzindo, em pouco mais de um século, do regime da assinatura ao da senha. Quadro 1: O arquivo e os regimes de produção do verdadeiro assinatura cifra número senha função autenticação testemunho registro autorização falso A = B A ≠ A a ∉ A A > A crime usurpação perjúrio evasão invasão individuação um/não-uns uns/outros uns: todos e cada um relacional dividual autoridade soberano tribunal estado mercado domínio privado público público privado disciplinas associadas grafologia diplomática antropometria sinalética datiloscopia demografia higienismos informação cibernéticas sistema analógico analóg./digital digital/analóg. digital A primeira linha da tabela indica a função privilegiada por cada uma dessas formas de identificação. Assim, sob o regime da assinatura (e seus equivalentes, tais como o sinete, o carimbo etc.), esta função é a de autenticação. A tarefa de produção do verdadeiro consuma-se na verificação da autenticidade. Aqui a falsificação da qual se pretende proteger tem a forma de um sujeito B que pretende se fazer passar por A, o ato criminoso característico é o de usurpação (sobretudo da autoridade alheia). À imagem e semelhança do soberano (pois é de um regime de 10 Do esquecimento? O que seria do arquivo se não fosse o esquecimento? Estamos tão habituados com nossas instituições-memória (e com a sua missão) que acabamos por nos conformar com a suposta “naturalidade” do esquecimento. No longo percurso histórico que nos levou das sociedades tradicionais às sociedades modernas, deu-se também o deslocamento do passado para o passado. Isto é, a dissociação progressiva entre “passado” e “experiência”. Na mesma medida em que a seta do tempo toma o lugar do ciclo, o tempo vai ficando cada vez mais homogêneo, tornando possível a sensação tão tipicamente moderna de um “avançar” em direção ao “progresso” (como se isso tivesse algum sentido além da própria redundância). A atualidade tecnológica (pós-moderna) em que vivemos teria, neste sentido, acelerado tanto a velocidade desse avançar que tornou presente e futuro indiscerníveis.14 É usual assinalar na constituição de instituições-memória, ao longo do século XIX, um processo de exteriorização da memória coletiva ou social.15 Mas talvez não tenho sido suficientemente sublinhado que esse processo de exteriorização é, sobretudo, um processo de espacialização, isto é, um processo de destemporalização da memória, que perde assim sua potência (que os ritos das sociedades tradicionais encarnavam). O homem moderno é um “esquecido” por natureza. Neste sentido, a “função compensatória” de instituições como museus, por exemplo, tão bem descrita por Huyssen,16 teria sido calcada em um movimento ainda mais profundo de naturalização do esquecimento, sem o qual não seria possível pacificar o passado, evitando que o seu eventual retorno selvagem viesse a perturbar a marcha do progresso. O passado pode então tornar-se objeto de um respeito especial, pode ser cultuado. Mas esta “religião do passado”, tão característica do final do século XIX, observada agora de uma certa distância, soa como o lamento formal (e, eventualmente, hipócrita) das carpideiras diante de ídolos que perderam sua potência. O caráter devocional do arquivo vai conferir uma aura especial aos cultores eruditos do passado, encobrindo assim o processo que permitiu fundar essas instituições: a naturalização do esquecimento. Graças a este processo, o historiador profissional, como um domador de circo, pode ensinar ao passado pacificado alguns truques; e conquistar assim a atenção de uma audiência mais ou menos culta para o espetáculo mais ou menos monótono da narrativa histórica. Walter Benjamin foi o primeiro a sublinhar que a memória não apenas havia se tornado um tema vital para muitos pensadores e artistas na passagem do século XIX e XX – Freud, Bergson, Proust e Nietzsche são apenas alguns dos exemplos mais significativos –, como assumia neles um inusitado caráter conflituado. Refletiriam em suas obras, deste modo, a experiência de uma geração diante das radicais transformações sociais e técnicas que a modernidade impunha. Em todos esses autores, e particularmente em Nietzsche e Freud, o esquecimento não é o destino natural das impressões. Ao contrário, o esquecimento demanda esforço e implica a 11 mobilização de energias vitais a seu serviço. Para Benjamin, portanto, a imagem que faz Hegel do tecido histórico é demasiadamente domesticada, uma vez que resulta da investigação de um narrador que se volta, primeiro, para “a idéia” e, em seguida, para “o conjunto de paixões humanas; um, a urdidura, o outro, a trama do imenso pano de arrás da história”.17 Em uma paráfrase surpreendente, Benjamin vai referir-se à obra de Proust, ao trabalho do narrador da Recherche, como o de uma “Penélope do esquecimento”, para a qual “a recordação é a trama e o esquecimento é a urdidura”: Cada manhã, ao acordarmos, em geral fracos e semiconscientes, seguramos em nossas mãos apenas algumas franjas da experiência vivida, tal como o esquecimento a teceu para nós. Cada dia desfaz, com suas ações intencionais e, mais ainda, com suas reminiscências intencionais, desfaz os fios, os ornamentos do olvido.18 Em Hegel, a história pode ser narrada graças à intervenção de um mediador entre a idéia e as paixões humanas. Este mediador é o Estado.19 Não admira portanto que esta narrativa tenha se dedicado, primordialmente, à história política dos Estados. E nem que o arquivo tenha sido colocado a seu serviço e a serviço da “intriga”, da metabole (mudança da sorte), e de outras piruetas que o historiador vai representar com os “acontecimentos” e os “quase-acontecimentos” que dispõe para compor sua história.20 Se o arquivo só pode ser uma poética em contraste com uma história dominantemente romanesca, isto não exprime um antagonismo do tipo daquele que usualmente se supõe existir entre memória e esquecimento. Trata-se antes de reencontrá-lo agora na sua dimensão selvagem, como reserva poética constituída pelo esquecimento. Deleuze já o disse, em uma passagem que já vai se tornando célebre: “aquilo que se opõe à memória não é o esquecimento, mas o esquecimento do esquecimento”.21 Se o arquivo pode ser uma poética, ela deve ser buscada no esquecimento que lhe deu origem, numa poética que é do próprio acontecimento. 4+1. Dimensão poética A obra de Walter Benjamin foi, em larga medida, a tentativa de demonstrar que uma outra história poderia ser escrita. Entre as anotações manuscritas de seu livro sobre as “passagens de Paris” – que jamais chegou a concluir – podemos ler: “No campo que nos concerne, o 12 conhecimento surge como a luz dos relâmpagos. O texto é apenas o longo trovão que se segue.”22 É como um trovão que se segue ao acontecimento que podemos ler o soneto A uma passante, de Baudelaire: A rua em torno era um frenético alarido. Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa, Uma mulher passou, com sua mão suntuosa Erguendo e sacudindo a barra do vestido. Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina. Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia No olhar, céu lívido onde aflora a ventania, A doçura que envolve e o prazer que assassina. Que luz... e a noite após! – Efêmera beldade Cujos olhos me fazem nascer outra vez, Não mais hei de te ver senão na eternidade? Longe daqui! tarde demais! nunca talvez! Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste, Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!”23 Relâmpago e trovão: em meio ao colorido homogêneo da massa (“frenético alarido”), “uma mulher passou”. Os olhares se cruzam (“que luz....”); ela está de luto (“e a noite após”). 24 Como o flanêur que caminha driblando a multidão, o poeta esgrime sua pena diante de uma selva de palavras. Se a história pode ser esta narração-trovão que o acontecimento detona, o céu onde este acontecimento relampeja, acredita Benjamin, só pode ser o céu da memória (“o céu lívido onde aflora a ventania”). Nas famosas teses “Sobre o conceito da História”, dirá que “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como de fato foi’”, mas “apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.25 O mesmo perigo que percebe o poeta no olhar da passante (“a doçura que envolve e o prazer que assassina”). Mas neste ponto, toda a temporalidade do poema se complica, pois desde o início não há nenhuma mulher que passa, mas uma que já passou, “uma efêmera beldade, cujos olhos me fazem nascer outra vez”. Pois efêmero é isto que já passou, tão fugaz e indivisível que não pôde 15 como experiência. Assim aí se imprime o sinal do narrador, como a mão do oleiro no vaso de argila”.31 O sinal do narrador é como um dedo indicador apontado para a origem. O sentido fundamental do historiador, do historiador-filósofo que Benjamin pretendeu ser, do historiador-poeta, imaginado por Nietzsche, é a intuição do agora, como ocasião do acontecimento, como confluência entre a interrupção e a fugacidade. É a interrupção messiânica dos acontecimentos que funda, como numa fotografia, o objeto histórico-poético, fazendo “saltar pelos ares o contínuo da história”. Nisto se distingue a experiência do historiador-poeta diante dos claros, dos vazios “entre” os documentos de arquivo, dos intervalos, dos tempos-mortos de um aficicionado em bingos entre a extração de dois números. Em ambos os casos, trata-se da descontinuidade. Mas para o apostador, trata-se apenas do choque, onde a descontinuidade é apenas repetição. Para o jogador, “a aposta é um meio de dar aos acontecimentos um caráter de choque, de tirá-los do contexto da experiência”.32 Mas diante dos vazios entre os documentos, na descontinuidade que é a sua condição de existência, é possível mergulhar na memória. Não apenas em nossa memória individual, ou na memória fixada pela crônica histórica, mas na memória que se abre para a experiência: “Onde há experiência real, no sentido próprio do termo, determinados conteúdos do passado individual entram em conjunção, na memória, com os do passado coletivo”.33 Só na memória a experiência pode ser reencontrada. Na agora-memória para onde confluem o passado e o futuro. Que memória é esta? Que tipo de reminiscência ela guarda? É a memória do que poderia ter sido. Memória coletiva que abriga, com frescor original, como cada época sonhou o seu futuro irrealizado. Se o acontecimento pode saltar aos olhos e destacar-se do contínuo da história é porque foi reconhecido como visando o presente. Dar-se conta deste reconhecimento é a condição poética da história que o arquivo oferece. Condição extremamente fugaz, porque depende da percepção de uma semelhança (e a semelhança, todos sabem, principalmente os poetas, é algo que se vê ou não se vê): a semelhança, subitamente percebida, entre passado e futuro. Semelhança que nunca está presente nos documentos, mas apenas na trama de esquecimento em que foram tecidos. Semelhança que não poderia ser jamais entre isso que foi e isto que é, ou aquilo que vai ser, mas semelhança naquilo que, na ausência destes, poderia ter sido. Mauricio Lissovsky Publicado em: MATTAR, Eliana. (Org.). Acesso à informação e política de arquivos. Rio de Janeiro, 2004, p. 47-63. 16 1 JARDIM, José Maria. O acesso á informação arquivística no Brasil: problemas de acessibilidade e informação. Disponível em: http:<//www.arquivonacional.gov.br/pub/virtual/mesaredondanacionaldearquivos/josemaria.html>. 2 FUGUERES, Ramón Alberch i. Ampliación del uso social de los archivos; estrategias y perspectivas. Disponível em: http://www.arquivonacional.gov.br/download/ramonfugueres.rtf. 3 SHAKESPEARE, William. Sonetos. Tradução Jorge Wanderley. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 158. 4 WHITE, Hayden. Meta-história; a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992, p. 118-130. 5 MATOS, Olgária C. F. O iluminismo visionário: Benjamim, leitor de Descartes e Kant. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 139. 6 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1984. 7 ARENDT, Hanna. Sobre la revolución. Madrid: Revista de Occidente, 1967. 8 STRINDBERG, August. Six plays of Strindberg. Nova York, 1955. 9 CRARY, Jonathan. Techniques of the observer. Cambridge: MIT Press, 1995 10 LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. 11 LISSOVSKY, Mauricio. O dedo e a orelha; ascensão e queda da imagem nos tempos digitais. Acervo, Revista do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro v. 6, n. 1-2, p. 55-74, jan./dez. 1993. 12 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1977. 13 DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992, p. 219-225. 14 VAZ, Paulo. Globalização e experiência de tempo. In: MENEZES, P. (Org.). Signos plurais: mídia, arte e cotidiano na globalização. São Paulo: Experimento, 1997. p. 99-115. 15 LISSOVSKY, Mauricio. Sobre o vazio entre paredes. Anais do Primeiro Seminário sobre Museus-Casas. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1997. p. 17-40. 16 HUYSSEN, Andreas. Escapando da amnésia: o museu como cultura de massa. Revista do Patrimônio, n. 24 (Cidade), 1994. 17 WHITE, Hayden. Meta-história; a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992, p. 121. 18 BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 37. 19 WHITE, Hayden, op. cit. 20 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa, tomo 1. Campinas: Papirus, 1994. 21 DELEUZE, Gilles. Foucault. Lisboa: Vega, s.d., p. 145. 22 BENJAMIN, Walter. The Arcades Project. Cambridge: Belknap/Harvard, 1999, p. 456. 23 BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução Ivan Junqueira. In: Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 133. 24 Também na canção de Noel Rosa, da qual retirei a epígrafe deste texto, a visão da mulher comporta dois tempos (primeiro ela é vista entrando em um táxi e depois é um carro com “uma cruz vermelha” que parte), mas ao contrário de Baudelaire, em Cor de Cinza, composição de 1933, Noel prefere não recapitular o encontro: “Com seu aparecimento/ Todo o céu ficou cinzento/ E São Pedro zangado/ Depois, um carro de praça/ Partiu e fez fumaça/ Com destino ignorado// Não durou muito a chuva/ E eu achei uma luva/ Depois que ela desceu/ A luva é um documento/ Com que provo o esquecimento/ Daquela que me esqueceu.// Ao ver um carro cinzento/ Com a cruz do sofrimento/ Bem vermelha na porta/ Fugi impressionado/ Sem ter perguntado/ Se ela estava viva ou morta.// A poeira cinzenta/ Da dúvida me atormenta/ Não sei se ela morreu/ A luva é um documento/ De pelica e bem cinzento/ Que lembra quem me esqueceu.” 25 BENJAMIN, W. Obras Escolhidas I, p. 224. 26 Ibidem, 223. 27 Ibidem, p. 232, 28 BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 38. 29 BENJAMIN, W. Obras Escolhidas I, p. 224. 30 BAUDELAIRE, Charles, op. cit., p. 133. 31 BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire, op. cit., p. 31. 17 32 Ibidem, p. 46. 33 Ibidem, p. 32.
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